Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1971/15.8T8CSC.L1-8
Relator: CATARINA ARÊLO MANSO
Descritores: JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
SISTEMA INTEGRADO DE GESTÃO DE RESÍDUOS DE EMBALAGENS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de pedido de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de embalador/ /importador celebrado no âmbito do SIGRE - Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

             Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – A A. Sociedade ... S.A. intentou acção declarativa com forma comum, pedindo a condenação da R. R ... S.A. em € 160.818,11, acrescida de juros vencidos e vincendos, sendo os vencidos € 67.203,49, e o reconhecimento das obrigações da R. de pagar à A. os valores ponto verde (VPV) referentes às embalagens secundárias e terciárias que lhe declarou e vier a declarar, e de declarar os pesos relativos aos sacos de caixa nos campos específicos para este tipo de embalagens e pagar os VPV correspondentes.
Fundamentou tal pretensão em contratos de adesão a um sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens, pelos quais esta transferiu para a A. as suas responsabilidades relativamente à gestão dos resíduos de determinadas embalagens pelas quais é responsável pela sua colocação no mercado nacional, e mediante o pagamento de contrapartidas financeiras.
Na contestação a R. invocou a excepção da incompetência em razão da matéria deste tribunal para julgar a acção, uma vez que, a autora fundamentou a sua pretensão na licença que lhe foi atribuída para a gestão de um sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens e no contrato celebrado com a R., em que transferiu para a A. a responsabilidade pela gestão de embalagens que coloca no mercado nacional, sendo que a adesão da R. aos termos contratuais propostos pela A. é a concretização de uma imposição legal, e sendo que o conteúdo do contrato não pode ser conformado pelas partes, quanto ao preço e quanto ao seu objecto, já que o primeiro corresponde ao VPV aprovado pela APA (Agência Portuguesa do Ambiente). E assim conclui que a relação estabelecida entre as partes deve ser qualificada como de natureza jurídico-administrativa, sendo dos tribunais administrativos a competência para conhecer do litígio emergente dessa relação.
A autora respondeu defendendo a improcedência de tal excepção, sustentando não se estar perante uma relação de direito administrativo mas antes perante uma relação de direito privado, desde logo porque a A. não está investida de prerrogativas de autoridade, e estando aqui em causa a responsabilidade civil contratual da R., que não cabe em nenhuma das previsões do art. 4º do E.T.A.F.
Foi proferida decisão que julgou procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, absolvendo a R. da instância.
Não se conformando com a decisão interpôs recurso a autora e nas alegações concluiu:
A. De acordo com o artigo 1°, n.º 1 do ETAF, os Tribunais Administrativos são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência do Tribunal de Conflitos e do Supremo Tribunal de Justiça acima citadas, que, para se estar perante uma relação jurídica administrativa, é necessário que pelo menos um dos sujeitos actue nas vestes de autoridade pública, investido de ius imperium, com vista à realização do interesse público. Ora, a S... não está, nem alguma vez esteve, investida do poder de utilizar, quando e se necessário, prerrogativas de ius imperi.
B.  Para se aferir da subsunção de determinado processo numa norma de competência há que atender-se exclusivamente – cf. artigo 38.° da Lei de Organização do Sistema Judiciário – ao modo como o autor delineia o pleito na petição inicial, pelo que andou mal o Tribunal a quo ao analisar a sua competência à luz das excepções peremptórias invocadas pela Ré/Apelada. Nestes autos a S... invoca como causa de pedir apenas os Contratos firmados entre a S... e a R... e assenta os seus pedidos na responsabilidade contratual da Ré, nos termos do artigo 798.° do CC, tendo a Ré/Apelada invocado, na sua Contestação, a excepção de não cumprimento (artigos 428.° e ss. do CC) e o enriquecimento sem causa (artigo 473.°, n.º 1 do CC) - tudo matéria que não se inclui em qualquer das alíneas do artigo 4.° do ETAF.
C. No que concerne à alínea e) do artigo 4.° do ETAF, nada do que é referido na Sentença Recorrida está em causa na presente acção – muito menos tal como delineada pela Autora –, não tendo a Apelante pedido ao Tribunal que apreciasse a validade de qualquer ato pré-contratual ou que apreciasse um contrato submetido a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.
D. O ponto decisivo para determinar o âmbito contratual da jurisdição Administrativa nos termos da alínea e) é a natureza do procedimento que antecedeu – ou que devia ou podia ter antecedido – a sua celebração (v. a este respeito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.03.2014 citado na decisão a quo). No entanto, inexiste, na Sentença Recorrida, a referência a qualquer facto que permita subsumir o objeto da presente acção e a relação contratual existente entre a Apelante e a Apelada a qualquer uma das realidades reguladas por esta alínea e) do artigo 4.° do ETAF, pois não é feita qualquer alusão a procedimentos pré-contratuais aplicáveis.
E. Sendo certo que, aos Contratos que constituem a causa de pedir da Apelante não subjaz qualquer procedimento Administrativo pré-contratual regulado por normas de direito Administrativo, designadamente das normas do Código do Processo Administrativo ou o Código de Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro – como sucedia no caso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.03.2014 citado pelo Tribunal a quo, donde se retira, mais uma vez, que, não só a jurisprudência do referido Acórdão não tem aplicação nos presentes autos corno ainda que o litígio em apreço não é subsumível na alínea e) do artigo 4.° do ETAF.
F. Bem concluiu, assim, este Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão proferido no processo n.º 2961/14.3TBOER.L1', a respeito da S... e dos contratos praticamente iguais aos que se encontram em discussão nos presentes autos celebrados com outra empresa de distribuição, no sentido de que:«A assinatura dos contratos dos autos não foi, pois, submetida a um qualquer procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, como cf. documento n.º 1 junto com as presentes alegações de recurso requisito prévio à sua celebração e com vista à determinação do respectivo contraente que ali deveria figurar.
Acresce que, não sendo a A. [isto é, a S...] uma pessoa colectiva de direito público, não está impreterivelmente sujeita à disciplina do Código dos Contratos Públicos pelo que não pode o Tribunal socorrer-se desta alínea para fundar a decisão de obrigatoriedade da A. de submeter o caso dos autos à apreciação da jurisdição administrativa.
É certo que no âmbito dos contratos públicos se inserem também os contratos de direito privado, desde que celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no artigo 2. ° daquele Código mas, como podemos verificar pela simples consulta de tal disposição legal, a A. [isto é, a S...] não se encontra ali incluída.»
G. Ademais, o litígio subjacente aos presentes autos também não é subsumível na alínea f) do artigo 4.° do ETAF, sendo certo que o Tribunal a quo também não identifica nem explica em qual ou quais das diversas situações reguladas nesta alínea se enquadram os Contratos que constituem a causa de pedir nesta acção.
H. Ao referir-se aos contratos de objeto passível de ato administrativo a lei reporta-se aos contratos que versem sobre a produção de efeitos jurídicos que a lei haja previsto serem atingidos mediante a prática de um ato administrativo, substituindo o ato administrativo pelo concreto negócio do conteúdo da relação jurídica – ato administrativo definido, nos termos do artigo 120.° do CPA2, como a decisão dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público vise produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. Não é o caso dos autos, na medida em que o objeto dos Contratos celebrado entre a S... e a R... (a transferência, mediante o pagamento de contrapartidas financeiras, das responsabilidades destas, enquanto embaladoras) não pode ser substituído por qualquer ato administrativo praticado unilateralmente por qualquer entidade, nem, de resto, a sentença recorrida o refere.
I. Quanto aos contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, este segmento dirige-se àqueles regimes em que "a parte administrativa goza de poderes de autoridade e, bem assim, aqueles cuja execução é fixada mediante cláusulas específicas de interesse público, postas pelo legislador em consideração do ente público contratante ou, se se preferi, em consideração do objecto implicado no contrato" 3. Os Contratos que constituem a causa de pedir nos presentes autos não revestem estes requisitos necessários para que se conclua pela competência dos Tribunais Administrativos características, porquanto:
a)  A S... não está investida de poderes de autoridade;
b)  Para se incluir a situação dos autos neste segmento, seria necessário que o contrato estivesse sujeito, no respeitante aos direitos e deveres das partes, à sua direcção, modificação, fiscalização, extinção ou sanção, a um regime legal específico de direito público (ex.: modificação ou resolução unilaterais por motivos de interesse público), o que não se encontra verificado in casu, sendo de salientar que, como resulta claro da Licença, a entidade licenciadora (os Ministros responsáveis pelas áreas da Economia e do Ambiente) nem sequer tem poder de resgate da actividade exercida pela S..., o que indica que nenhuma autoridade administrativa assume responsabilidade pela actividade – a título principal ou subsidiário - ou qualquer obrigação de a garantir.
J.  Acresce que, o que se analisa a propósito deste segmento da alínea f) é o regime do contrato em causa e não o regime legal do exercício de uma actividade profissional que seja objeto de uma prestação contratual. Pese embora a gestão de resíduos de embalagens (quer a consignação quer a gestão integrada) esteja enquadrada pelas normas do Decreto-Lei n.º 366-A/97, isso não lhe confere natureza pública, na medida em que a regulação legal não transforma a gestão de resíduos de embalagens numa actividade pública – como também não é uma actividade pública a actividade da banca (apesar da regulação pública bancária), a actividade das seguradoras (apesar da regulação pública), a actividade de construção de edifícios (apesar das inúmeras regras de direito administrativo da edificação), etc.
K. Conclui-se, assim, que os três argumentos identificados pelo Tribunal não são minimamente suficientes para subsumir os Contratos e o presente litígio à competência dos Tribunais Administrativos:
a) O facto de a actividade da Apelante ser uma actividade licenciada não é minimamente suficiente, dado que a relação estabelecida entre as partes nos presentes autos é manifesta e exclusivamente de cariz privado (contratual e paritário), entre duas sociedades privadas, conforme resulta designadamente das cláusulas décima e décima primeira do Contrato 2008. O entendimento (errado) do Tribunal a quo, se extrapolado para outras actividades licenciadas - cf. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, op. cit., p. 58 levaria, por exemplo, à conclusão (também errada) de que uma dívida entre particulares, relativa ao fornecimento de serviços de restauração e bebidas, caberia aos Tribunais Administrativos porque a actividade do prestador é uma actividade licenciada, regulada no Decreto-lei nó 234/2007, de 19 de  junho.
b)  Também não é suficiente o facto de os VPV serem aprovados pela APA. Por exemplo, da mera circunstância de, nos estores dos combustíveis e dos medicamentos, ter havido tempos em que os preços não eram deixados ao livre critério das partes contratantes e às regras da oferta e da procura, não resultou que, nas referidas situações, o fornecimento de combustível por um preço fixado administrativamente ou a venda de um medicamento numa farmácia teriam o respectivo litígio sujeito à jurisdição administrativa, apesar de em causa estarem dois privados.
c)  Finalmente, não é suficiente o mero facto de a Apelante ter por "missão a satisfação das referidas necessidades de interesse público". Como salientado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.11.2008 acima identificado: "Em todos os contratos celebrados pela Administração, mesmo nos privados, está presente o interesse público. Era preciso que, na relação concreta, fossem conferidos poderes de autoridade ao município perante as rés. ".
L.  Não pode a Apelante deixar de salientar que entre o caso presente e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.01.2013 mencionado na Sentença Recorrida, existe uma diferença de fundo que determina a irrelevância daquela decisão para a determinação da competência deste tribunal: no caso presente não está em causa uma entidade que possa utilizar, "quando e se necessário, prerrogativas de jus imperii" estando aqui em causa uma simples relação contratual entre dois particulares.
M. Acresce que também não está em causa uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão, não constando, também quanto a este aspecto, dos autos ou da Sentença Recorrida, a referência a uma qualquer qualificação da S... como entidade pública ou a menção a um qualquer contrato de concessão que vincule a S... ou a Recheio.
N. Em suma, ao decidir pela competência aos Tribunais Administrativos, o Tribunal a quo violou o artigo 1.° e o artigo 4.°, alíneas e) e f), do ETAF, situação confirmada, de resto, na maior parte das acções — com pedido e causa de pedir em tudo idênticos aos sub judicie - propostas pela Apelante contra outros aderentes ao SIGRE, nas quais os respectivos tribunais, por decisão transitada em julgado, declararam-se absolutamente competentes para conhecer dos respectivos litígios.
Nestes termos e nos restantes de Direito aplicáveis, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.
Factos
- O pedido – pagamento de €160 818,11, a título de valores ponto verde, em divida, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos.
- Os contratos celebrados entre Recorrente e Recorrida, através dos quais esta transferiu para aquela, mediante o pagamento de contrapartidas financeiras, as suas responsabilidades enquanto produtor de resíduos de embalagens.
- A licença atribuída à recorrente por decisão conjunta dos Ministros de Estado das Actividades económicas e do Trabalho, e Ambiente e do Ordenamento do Território, em 7 de Dezembro de 2004, para exercer a actividade de gestão de resíduos de embalagens:
- Todas as actividades de gestão do SIGRE têm em vista o cumprimento das metas de valorização e reciclagem a que a recorrente se encontra obrigada , nos termos da licença que detém, e que decorre quer da legislação  nacional quer das directivas da União Europeia sobre a matéria.
Houve contra alegações defendendo a manutenção da decisão
Corridos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento
II – Apreciando
Não aceita a apelante a decisão impugnada e concluiu pedindo a revogação, podemos adiantar, que não lhe assiste razão.
 A questão colocada consiste em definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio é da competência dos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa
No artigo 4º do ETAF, em vigor desde 01.01.2004, aqui aplicável, antes da alteração que lhe foi efectuada em 2015, é feita uma enumeração exemplificativa de matérias cujo conhecimento pertence [alíneas do nº1] ou não pertence [alíneas do nºs 2 e 3] aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Entre elas destacam-se, as alíneas e) e f) do seu nº1. Nos termos da primeira [e)], compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto «Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público». E nos termos da segunda [f)], compete à mesma jurisdição a apreciação de litígios que tenham por objecto «Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».
A competência do tribunal é determinada pela pretensão formulada pelo autor caracterizada pelo pedido e causa de pedir.
No caso em apreço, o pedido das apelantes traduz-se na condenação do valor em disputa no contrato celebrado entre a A. (à qual foi atribuída, em 7/12/2004, por decisão conjunta dos Ministros de Estado das Actividades Económicas e do Trabalho, e Ambiente e do Ordenamento do Território, licença para exercer a actividade de gestão de resíduos de embalagens enquanto (única) gestora do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens (SIGRE), enquadrado pelo D. L. 366-A/97, de 20/12, com as alterações do D.L. 162/2000, de 27/7, do D.L. 93/2006, de 25/5 (que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva 2004/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11/2, a qual estabelece obrigações, a nível europeu, de gestão de embalagens e resíduos de embalagens, tendo como prioridade a prevenção de resíduos de embalagens, e, como princípios fundamentais, a reutilização das embalagens, a reciclagem e outras formas de valorização dos resíduos de embalagens e, bem assim, metas de valorização e reciclagem a cumprir pelos Estados Membros), do D.L. 73/2011, de 17/6, e da Portaria 29-B/98, de 15/1, licença essa prorrogada pelo Despacho 1647/2012, publicado no DR, 2ª série, nº 25, de 3/2/2012), e a R., e através do qual esta tem transferidas para a A., mediante o pagamento de contrapartidas financeiras, as suas responsabilidades previstas na legislação em vigor relativamente à gestão dos resíduos das embalagens previstas nos mesmos contratos. ( cf. art. 1 a 4)
A autora referiu que todas as actividades de gestão do SIGRE têm em vista o cumprimento das metas de valorização e reciclagem a que se encontra obrigada, nos termos da licença que detém, e que decorrem quer da legislação nacional, quer das directivas da União Europeia sobre a matéria. As facturas a que se refere o valor peticionado, a R. procedeu ao pagamento parcial das mesmas, o litígio circunscreve-se a descortinar se a A. presta ou não serviços no âmbito da gestão de resíduos de embalagens secundárias e terciárias, designadamente quanto às que ficam nas lojas da R., e se deve ou não a R. proceder ao pagamento da contrapartida financeira (VPV) correspondente a tais serviços (VPV das embalagens secundárias e terciárias declaradas) e definidos em tabela aprovada pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Cf. art.25 e seg. da pi, onde definiu o conceito do SIGRE.
O regime jurídico, que se aplica, nestes autos prossegue «objectivos explícitos de política ambiental», visando a redução não só da quantidade de embalagens usadas no trato industrial e comercial, como também a «redução, reutilização e reciclagem» dos respectivos resíduos de embalagens [preâmbulo do DL nº366-A/97, de 20.12].
O DL nº366-A/97, de 20.12, transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva nº94/62/CE, do Parlamento e do Conselho da União Europeia, de 20.12.1994, e estabelece as regras e os princípios gerais a que deverá obedecer a «gestão de embalagens e resíduos de embalagens», na mira da sua redução, reutilização e reciclagem, como condição necessária a obter um crescimento sustentável.
A Portaria nº29-B/98, de 15.01, vem, na sequência do estipulado nos artigos 5º e 9º desse diploma, regulamentar, além do mais, os «dois sistemas de gestão» das embalagens reutilizáveis e dos resíduos de embalagens não reutilizáveis por ele criados.
Nestes diplomas estabeleceu-se a co-responsabilização dos operadores económicos, segundo o princípio do poluidor-pagador, pela gestão das embalagens e resíduos de embalagens usadas no exercício da respectiva actividade, tudo para «defesa do ambiente, da saúde, segurança e higiene», e criam-se, para esse efeito, dois sistemas de gestão: o de consignação e o integrado [artigos 4º nº1, do DL nº366-A/97; e 6º, nº1, da Portaria nº29-B/98].
No sistema de consignação, aplicável às embalagens reutilizáveis e às que não são reutilizáveis, o consumidor da embalagem paga um determinado valor de depósito no acto da compra, valor esse que lhe é devolvido quando da entrega da embalagem usada; no sistema integrado, aplicável somente às embalagens não reutilizáveis, o consumidor da embalagem é informado, por marcação que nela é aposta, de que deverá colocar a embalagem usada, como resíduo, em locais devidamente identificados [artigos 2º, nº1, alíneas p) e q) do DL nº366-A/97; e 1º da Portaria 29-B/98].
Porém, no âmbito do referido sistema integrado, a responsabilidade dos agentes económicos - entre os quais o «embalador» - pela gestão dos resíduos de embalagens pode ser transferida para uma entidade devidamente licenciada para exercer tal actividade, ou seja, para «desenvolver operações de recolha selectiva e triagem dos resíduos de embalagens, bem como a retoma e a reciclagem dos mesmos», mediante o pagamento de contrapartidas financeiras [artigos 2º, nº1, alíneas l) e m), 5º, nº2 e nº3, do DL nº366-A/97; e 7º, nº2, alínea d) da Portaria nº29-B/98].
A referida licença é concedida por decisão conjunta dos Ministros da Economia e do Ambiente, e a transferência da responsabilidade do operador económico para a entidade gestora, devidamente licenciada, é feita por contrato escrito, com a duração mínima de três anos, e contendo obrigatoriamente: a) A identificação e caracterização das embalagens abrangidas pelo contrato; b) A previsão da quantidade de resíduos dessas embalagens a retomar anualmente pela entidade; c) Os termos do controlo a desenvolver pela entidade, de forma a verificar as quantidades e a natureza das embalagens a seu cargo; d) As contrapartidas financeiras devidas à entidade tendo em conta as respectivas obrigações, definidas na presente portaria [artigos 7º, nº2, e 8º, da Portaria nº29-B/98].
Foi criada, também, uma Comissão de Acompanhamento da Gestão de Embalagens e Resíduos de Embalagens [CAGERE], presidida por um representante do Ministério do Ambiente, à qual cabe zelar pelo cumprimento das disposições do «regime jurídico» em referência [artigo 15º do DL nº366-A/97].
E acresce, que constitui «contra-ordenação», punível com coima e ainda, eventualmente, com sanções acessórias, a «colocação no mercado, pelo embalador ou importador, de produtos embalados sem que a gestão das respectivas embalagens ou resíduos de embalagens tenha sido assegurada através de um dos dois sistemas referidos [artigo 11º, nº1, alínea a), do DL nº366-A/97].
É perante este quadro legislativo que a competência material tem de ser atribuída, seguramente estribada no pedido e causa de pedir. 
E, as decisões encontradas não têm-se sido unânimes na atribuição da competência. Sobre esta matéria encontrámos variadas decisões que apontam sentidos opostos. Umas atribuindo a competência aos tribunais administrativos, ac.tribunal de conflitos de 18.2.2016, com um voto de vencido; ac. TRL de 3/3/2014 e de 17/1/2013, disponíveis em www.dgsi.pt). Em sentido contrario Ac. trl de 12.5.2015.
No entanto, em face do que ficou exposto, no caso vertente, atento o pedido e a causa de pedir, podemos adiantar que a decisão impugnada deve ser mantida.
A competência em razão da matéria, “deriva da competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação”, sendo que “na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto encarado sob o ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação trazida para decisão. A instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes” – Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94.

Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais – art. 1/1 ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) – Lei 13/2002 de 19/2 com as alterações introduzidas pela Lei 107-D/2003 de 31/12.

Incumbe-lhes, em sede de administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas – art. 3 ETAF.

Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto – questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem os aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que, pelo menos, uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário, que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público – art. 4/1 f) ETAF.

Deste preceito resulta que incumbe à jurisdição administrativa o julgamento de acções que tenham por objecto todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário atribua expressamente a outra jurisdição.

Esta competência fixa-se no momento da instauração da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, e se no mesmo processo existirem decisões divergentes sobre a questão da competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior – art. 5 ETAF.

O actual ETAF eliminou critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.

O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa – conjunto de relações onde a administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, pag. 103.     

E também, aí se define a relação jurídica administrativa como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

No art. 4° do ETAF, constam exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do referido art. 1°, outras em desconformidade com ela.

Aquele normativo define no âmbito da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, além de outras, a competência para apreciação de litígios que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal.
Significa isto que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Considerou-se implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas.
Existiu, por banda do legislador, o propósito de estender a competência dos tribunais administrativos e fiscais a áreas de jurisdição que antes não eram suas.
Deixou de vigorar o art. 4º al. f), norma restritiva da competência dos tribunais administrativos inserta no anterior ETAF (Dec-Lei 124/84 de 27/4), segundo a qual estavam excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e acções que tinham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público.
O regime introduzido atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais a todas as questões de responsabilidade civil envolvendo pessoas colectivas de direito público (vide alíneas g) e h) do referido art. 4° nº 1), independentemente de se saber se as mesmas eram regidas por normas de direito público ou por normas de direito privado. Houve uma evidente intenção de alargar a jurisdição dos tribunais administrativos, ao aplicar essa competência à responsabilidade civil extracontratual dos próprios privados desde que lhes deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Para efeitos de competência dos tribunais administrativos e fiscais, deixa de ter relevância a distinção, que antes do actual ETAF entrar em vigor, se fazia entre actividade de gestão privada e a de direito público, atribuindo-se a competência a esses tribunais apenas nesta hipótese.
A autora tem por obrigação a satisfação das necessidades de interesse público, encontrando-se licenciada, para exercer a actividade de gestão de resíduos de embalagens enquanto gestora do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens (SIGRE), a natureza dos sucessivos contratos celebrados entre as partes, a fim de dar cumprimento ao estabelecido no D.L. 366-A/91, de 20/12, e designadamente das contrapartidas nos mesmos estabelecidas, que são aprovadas pela APA (e que aprova também os valores de informação e motivação, o plano de marketing e o investimento em investigação), há que concluir que está preenchida a previsão das al. f) do nº 1 do art. 4º do ETAF, na qualificação do presente litígio, assim se podendo afirmar que é a jurisdição administrativa aquela que tem competência para apreciar e decidir o mesmo.
O contrato em causa tem a origem no direito público, a sua execução é substancialmente regulada por «normas de direito público». São, as normas de direito público, que regulamentam a execução das obrigações impostas à entidade gestora do SIGRE, obrigações que lhe foram transferidas pelo contrato de adesão celebrado com a ré e consubstanciam a «prestação» que lhe é devida em função do pagamento das contrapartidas financeiras. Conferir a causa de pedir art. 1 a 4, 25 e seg. entre outros da pi.
Não resta dúvida, assim, de que, na apreciação e resolução do presente litígio o tribunal se confronta com a necessidade de interpretar e de aplicar normas que são de «direito público», que impõem obrigações ao embalador e foram por ele transferidas para a entidade gestora.
Tudo aponta no domínio da relação jurídica administrativa, prevista na alínea f) do nº1 do artigo 4º do actual ETAF: Questões relativas à [...] execução [...] de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo [...]».
E, como consta no referido Ac. do Tribunal de conflitos de 02/18/2016 transcreve-se o sumário: “Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de pedido de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de embalador/importador celebrado no âmbito do SIGRE [Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens”.
Fundamentando essa decisão, por considerar «a competência residual dos tribunais judiciais [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e em particular, no que respeita à competência da jurisdição administrativa o que é disposto nos artigos 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, e 4º, nº1 alínea f), do ETAF, impõe-se decidir este recurso no sentido da atribuição da competência material para conhecer da acção em causa aos «tribunais da jurisdição administrativa».
Improcedem as conclusões da apelação
Concluindo
- Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de pedido de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de embalador/ importador celebrado no âmbito do SIGRE - Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens.
 III – Decisão: julga-se improcedente a apelação, mantendo-se a decisão impugnada.
Custas pela apelante

Lisboa, 30/6/2016

Maria Catarina Manso
                                                          
Pedro Lima Gonçalves
                                                          
Maria Alexandrina Branquinho