Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
625/20.8T8CSC.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE - MANTIDA A DECISÃO SINGULAR EM CONFERÊNCIA
Sumário: I - “A massa insolvente, através do administrador de insolvência, tem legitimidade, ao abrigo do disposto no artigo 286 do CC, para pedir em juízo a declaração de nulidade, por simulação”, de doações feitas pelos insolventes e pela donatária a terceiro.
II - Quando o CIRE fala na legitimidade do administrador da insolvência para intentar acções, no exercício das suas funções, está a referir-se ao administrador como representante da massa insolvente (como está agora consagrado, para um caso paralelo, na nova redacção dada ao artigo 1437 do CC pela Lei 8/2022, de 10/01).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

Em 20/02/2020, a Massa insolvente de M e M, representada pela Administradora Judicial nomeada veio intentar uma acção comum contra os insolventes (1.ºs réus) e ainda contra a filha destes (2.ª ré) e o filho desta (3.º réu), pedindo a declaração de nulidade de uns contratos de doação [que identifica], por simulação, considerando-se os mesmos sem efeito, e que seja ordenado o cancelamento dos registos de aquisição a favor da 2ª e 3º ré, bem como de outra qualquer inscrição que se venha a efectuar, relativamente aos imóveis identificados, e ainda que os réus sejam condenados a reconhecer que a autora tem direito à restituição dos imóveis na medida do referido crédito e juros vincendos, podendo executar os imóveis no património do 3.º réu.
Alega para tanto, em síntese, que o 1º réu era sócio gerente de uma sociedade que veio a ser declarada insolvente, por sentença transitada em julgado, proferida em 13/05/2015; ele e a mulher, no âmbito da actividade dessa sociedade, tinham subscrito avais e livranças que não foram satisfeitos; em 31/07/2019, os 1.ºs réus apresentaram-se em insolvência que veio a ser decretada em 27/08/2019, por sentença já transitada em julgado; o valor dos créditos, reclamados em tal insolvência, totaliza 1.346.925,69€; os 1ºs réus são pai e mãe da 2ª ré, que por sua vez é mãe do 3º réu; os 1ºs réus realizaram a 25/02/2014 doação à sua filha, de vários bens (3 prédios rústicos, 3 prédios urbanos (fracções autónomas), 1 deles com 2 garagens (também fracções autónomas), 3 fracções indivisas de 3 prédios rústicos, 2 prédios urbanos), pelo valor atribuído de 165.440€, e apenas alguns dias depois, a 2ª ré fez doação, pelo mesmo valor, daqueles bens (menos um) a favor do 3º réu, seu filho que tinha apenas dias de vida à data; as doações são simuladas e portanto nulas (art. 240 do Código Civil); na data da primeira doação já se encontravam pendentes várias execuções contra os 1.ºs réus, ou as mesmas estavam iminentes de dar entrada, sendo mais do que previsível que eles não pudessem cumprir com as garantias que tinham prestado; com as doações os 1.ºs réus e 2ª ré decidiram, por isso, conluiados entre si, colocar os seus bens mais valiosos a salvo dos credores, nunca tendo sido intenção deles transmitir ao 3.º réu o que quer que seja; em virtude dos créditos de que é titular, a autora tem interesse na declaração de nulidade do negócio; por conseguinte, verificam-se os pressupostos previstos nos artigos 240 e 605 do CC; alegam também no sentido da verificação dos requisitos da impugnação pauliana, fazendo referências, expressas ou implícitas, às normas que a prevêem.
A 2.ª ré e o 3.º réu contestaram, dizendo, na parte que importa, que o fazem por excepção: consideram que a petição inicial se mostra dúbia quanto à acção pretendida pela autora – de declaração de nulidade ou de impugnação pauliana, sendo que nesta hipótese, aliás, o direito da autora já estaria caducado – mas dizem que a acção é de declaração de nulidade e que ela é inadmissível legalmente, porque os 1.ºs réus foram declarados insolventes e o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas consagra um regime específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente (e, consequentemente, dos credores da insolvência): o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente, não prevendo a lei que os credores, paralelamente, instaurem acções com o mesmo objectivo, como ocorre com a declaração de nulidade de negócios celebrados pelo devedor antes da insolvência que teria o mesmo resultado que a resolução em benefício da massa insolvente; ao longo desta construção também vão falando de inviabilidade da acção; dizem ainda que a autora não é credora dos réus pelo que não tem legitimidade para instaurar a presente acção.
Os 1ºs réus também contestaram; em síntese, na parte que importa: sugerem que a intenção da doação que fizeram foi outra e que ela está provada por documento autêntico cuja força probatória só pode ser impugnada em dados termos que a autora não cumpre; dizem que o direito de impugnar paulianamente a doação já caducou, mas de qualquer modo esse direito não existiria na esfera da autora por variadíssimas razões que desenvolvem; alegam que a autora não fez uso, por falta de pressupostos, do instituto da reversão a favor da massa, apesar de na data de instauração dos presentes autos (20/02/2020), ainda não ter decorrido o prazo, entretanto já completado; dizem que a autora não teria legitimidade ou capacidade judiciária para esta acção, porque a autora destina-se à satisfação dos credores da insolvência e só abrange o património dos réus à data da declaração de insolvência e os bens doados já não faziam parte do património dos réus; como na presente acção a autora é representada pela mesma entidade que representa os réus, se a autora fosse capaz, o AI poderia, por simples requerimento aos autos, confessar ou transigir, em nome da autora e dos réus; por fim, impugna vários dos factos alegados na petição inicial; dizem também que a autora não tem qualquer crédito sobre os réus, pelo que não tem qualquer interesse na declaração de nulidade da doação dos bens dos réus à 3ª ré; e que os pedidos 1 e 2 são incompatíveis com o 3.
A MI respondeu à matéria da excepção das duas contestações, dizendo, na parte que importa, que: A acção assenta no instituto de simulação e não de impugnação pauliana. A massa insolvente, através do administrador de insolvência, tem legitimidade, ao abrigo do disposto no art. 286 do CC, para instaurar acção com vista a obter a declaração de nulidade, por simulação, dos contratos de doação referenciados na PI.
O tribunal recorrido proferiu despacho saneador com os seguintes fundamentos:
“Os réus invocaram a falta de legitimidade da autora para propor a presente acção.
[segue-se parcial transcrição da contestação da 2ª e do 3º réu]
Respondeu a autora, pugnando pela improcedência desta excepção, do seguinte modo [segue-se a transcrição da resposta].
*
Cumpre decidir:
[…]
De acordo com o art. 82/3b do CIRE, invocado pela autora, durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da mesma tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir, as acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente, como posteriormente à declaração de insolvência.
Ora, a acção proposta pela autora não é uma acção de indemnização, nem nenhuma das referidas no mencionado art. 82 do CIRE.
É uma acção com as características da impugnação pauliana, que a autora denominou de acção de declaração de nulidade.
Como referem os réus, a forma legal que o administrador da insolvência tem ao seu dispor para reverter os efeitos dos negócios jurídicos simulados pelos insolventes, é a resolução em benefício da massa insolvente, a que alude o art. 120/1 do CIRE, como sejam as doações (art. 121/1b do CIRE).
Mas aqui, há que respeitar o limite temporal de dois anos a que aludem os artigos referidos.
Ou seja, só são resolúveis a favor da massa insolvente os actos celebrados pelo devedor dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
No caso em apreço, as doações efectuadas pelos primeiros réus aos filhos ocorreram em 25/02/2014 e 05/04/2014.
E foi em 31/07/2019 que, os 1.ºs réus, se apresentaram à insolvência, ou seja, muito depois de ter decorrido o prazo de 2 anos já mencionado.
Do exposto decorre que, não podendo a administradora de insolvência recorrer ao instituto da resolução em benefício da massa para reverter estes negócios, por ter sido excedido o prazo legal para o efeito, também não pode usar a presente acção para obter o mesmo efeito, na medida em que a mesma não consta do rol das mencionadas no art. 82 do CIRE, acções essas que, sempre correriam por apenso ao processo de insolvência (nº 6 do art. 82 do CIRE).
Assim sendo, procede a excepção invocada.
Determina o artigo 577/-e do CPC que são dilatórias, entre outras, a ilegitimidade de alguma das partes, sendo que nos termos do artigo 578 do CPC o tribunal deve conhecer de todas as excepções dilatórias, salvo da incompetência relativa nos casos não abrangidos pelo disposto no artigo 104, bem como da preterição de tribunal voluntário.
Destarte, pelo exposto, nos termos do disposto nos artigos 278/1-e e 576/2 do CPC, absolvo os réus da instância.
A MI recorre com os argumentos já referidos.
Os 1.ºs réus contra-alegaram no sentido da improcedência do recurso.
O relator deste acórdão - considerando que a questão a decidir era simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, e que o recurso é manifestamente infundado (art. 656 do CPC) - proferiu decisão singular a 17/12/2021, que será reproduzida a seguir.
Os 1.ºs réus vieram reclamar para a conferência (art. 652/3 do CPC) nos termos que serão reproduzidos a seguir à decisão singular.
A autora respondeu à reclamação – depois de devidamente notificada dela, com grande atraso, pelos 1.ºs réus – limitando-se a dizer que a reclamação apresentada carece de qualquer fundamento de facto ou de direito e que a decisão sindicada, não merece qualquer reparo ou alteração.
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Questão a decidir: se a autora não tem legitimidade processual para esta acção.
*
Os factos que interessam à decisão desta questão são aqueles que foram descriminados no relatório que antecede.
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Apreciando
A acção, tendo em conta os pedidos formulados, é, naturalmente, uma acção de nulidade e não uma impugnação pauliana, como, aliás, é reconhecido pela 2.ª e 3.º réu.
Isto não obstante a formulação parcialmente errada do terceiro pedido (já que a restituição se deve fazer sem as reservas ali feitas) e a referência constante da petição inicial também a fundamentos e normas próprios da impugnação pauliana.
Posto isto,
Das normas jurídicas que importam para a questão da legitimidade:
Do Código Civil:
Art. 240: 1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo.
Art. 286: A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
Art. 289/1: Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Do CIRE:
Art. 246/1: A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
Art. 55/1a: Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência […] Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;
Art. 81/1: Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
Destas normas decorre que o AI deve propor acções em que peça a nulidade de actos simulados de venda de bens, praticados por aqueles que vieram a ser declarados insolventes, para que, por força dessa declaração de nulidade, tais bens sejam restituídos aos insolventes e por isso integrados na massa insolvente, para que, depois, vendendo os bens, com o produto da venda possa pagar as dívidas dos insolventes aos credores.
O que é o mesmo que dizer que o AI, agindo em representação da massa insolvente por ser seu administrador, tem legitimidade para esta acção, como representante da parte, sendo esta a MI.
O que afasta os argumentos da sentença e dos réus em sentido contrário, sendo que todos eles já constam e foram apreciados e afastados pelos acórdãos que seguem:
O ac. do TRC de 16/06/2015, proc. 529/10.2TBRMR-S.C1:
A massa insolvente, através do administrador de insolvência, tem legitimidade, ao abrigo do disposto no art. 286 do CC, para pedir em juízo a declaração de nulidade, por simulação, de um contrato de compra que havia sido celebrado entre a devedora insolvente e a ré.
O ac. do TRG de 08/11/2018, proc. 2395/17.8T8GMR.G1:
I - A nulidade de determinado acto ou negócio jurídico além de poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal, pode ser invocada por qualquer interessado. É isso que se dispõe no art. 286 do CC e interessado para esse efeito será o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática que demonstre ter interesse na respectiva declaração.
II - Nada encontramos no CIRE ou noutro diploma legal que seja susceptível de ser interpretado no sentido de estar vedado ao administrador da insolvência a propositura de acção com vista à declaração de tal nulidade e no sentido de lhe retirar a legitimidade que, por efeito da aplicação da regra geral consagrada no art. 286 do CC, lhe deverá ser reconhecida.
[…]
O ac. do TRC de 12/02/2019, proc. 3356/16.0T8LRA.C1:
[…]
V - O facto de o CIRE prever um modo especial de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente não afasta a possibilidade de poder ser declarada judicialmente a nulidade de negócios jurídicos efectuados pelo devedor.
VI - A consagração do meio expedido de resolução dos negócios efectuados nos termos e limites temporais referidos no art. 120 do CIRE não afasta essa possibilidade nem tal se compreenderia uma vez que os actos resolúveis não se configuram, nem são havidos, como actos inválidos, seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista substancial, atendendo naturalmente à inexistência de vícios que os afectem.
O ac. do TRG de 17/10/2019, proc. 2124/17.6T8VCT.G1 (este acórdão foi confirmado pelo ac. do STJ de 13/10/2020, proc. 2124/17.6T8VCT.G1.S1):
I- A massa insolvente, através do administrador de insolvência, tem legitimidade, ao abrigo do disposto no art. 286 do CC, para pedir em juízo a declaração de nulidade, por simulação, de um contrato de partilha de bens que havia sido celebrado entre o devedor insolvente e a ré.
[…]
O ac. do TRP de 18/11/2019, proc. 2288/17.9T8STS-F.P1:
I - O artigo 605 do CC veio tornar expresso que os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, mas não lhes atribui a exclusividade, pois, a mesma faculdade também pertence, nos termos do artigo 286 do CC, a qualquer pessoa interessada na declaração de nulidade.
II - O administrador de insolvência pode pedir em juízo a declaração de nulidade, por simulação, como pode qualquer simulador.
[…]
Também o acórdão do STJ de 10/11/2020, proc. 1967/17.5T8PRD.P2.S1, tem, naturalmente, como pressuposto a admissibilidade da acção, embora, no caso em causa, a julgue improcedente por falta de prova, como decorre do seguinte sumário:       
I- Quem invoca a simulação de um negócio, realizado através da forma legalmente exigida, tem o ónus de provar que, inequivocamente, se verificam os requisitos próprios da simulação, estabelecidos no art. 240 do CC.
II- Quem se propõe invocar tal patologia contratual tem de desenvolver um adequado trabalho técnico, munindo-se de todos os meios probatórios admissíveis, para provar que a realidade pactuada foi diferente daquela que se encontra contratualmente documentada. Não o conseguindo fazer adequadamente, são-lhe imputáveis as consequências dessa falha ou insuficiência probatória, como decorre do art. 342 do CC.
*
Contra isto, os 1.º réus dizem agora (na reclamação para a conferência) que:
Dos acórdãos invocados na decisão singular, os dos TRG de 08/11/2018, TRC de 12/02/2019 e TRP de 18/11/2019 referem expressamente a legitimidade do AI.
Só os dos TRC de 16/06/2015 e TRG de 1//10/2019 referem a competência da Massa Insolvente “através” do Administrador de Insolvência.
Na verdade, não é despiciendo, na nomenclatura legal, a distinção entre MI e AI.
Assim, por exemplo, no processo principal de insolvência, a parte é o AI, bem como nos apensos de reclamação de créditos, de apreensão de bens e no de liquidação (artigos 82, 85 e 86 CIRE).
Já na verificação ulterior de créditos, a parte é a MI, sendo-o igualmente, nas acções de impugnação em benefício da MI (vide artigos 46, 55/8, 125, 146, 160/1-2 do CIRE).
Tendo esta distinção em mente, importa frisar, que, no caso dos autos figura no lado activo, como autora, a MI, que não o AI (certamente por lapso, ao longo da DS ora reclamada é sempre referido o AI como autor e recorrente, quando este não é parte nos autos, mas sim e tão só, representante legal da autora).
Deriva das normas invocadas na DS que o AI teria competência para propor a presente acção.
Só que não o fez, tendo, apesar de representante legal da autora, o que se não discute, decidido que esta figurasse como autora, que não o AI (vide formulário ref.ª Citius 16422403).
Ora, como resulta do artigo 82/3 do CIRE, o AI tem “exclusiva legitimidade”.
Sendo as duas figuras jurídicas, AI e MI conceptualmente diferentes, a exclusiva legitimidade de um, exclui a da outra.
Pelo que tendo o AI exclusiva legitimidade, lógica e racionalmente a autora não a pode ter, mesmo que por aquela representada.
A interpretação vertida na DS de que a autora tinha legitimidade “através” do AI, não autor, não se parece conter dentro dos limites de interpretação do artigo 82/3 do CIRE possível nos termos do artigo 9/2-3 CC.
Termos em que requerem seja, em conferência, tirado acórdão que se poderia sumariar do seguinte modo:
1. O AI tem legitimidade exclusiva, ao abrigo do disposto nos artigos 286 CC e 82/3 do CIRE, para pedir em juízo a declaração de nulidade, por alegada simulação, de doações feitas pelos insolventes e pela donatária a terceiro.
2. Tendo a acção sido proposta pela MI, apesar de representada pela AI, a exclusiva legitimidade desta afasta a daquela.
3. Consequentemente, nos termos dos artigos 577/-e, 578, 278/1-e e 576/2, todos do CPC, são os recorridos absolvidos da instância.
*
Apreciando:
Antes de mais, o relator reconhece o erro que lhe é apontado por estes réus. Nas duas vezes que, no relatório da decisão singular, empregou a expressão AI, como sujeito activo da resposta à contestação e do recurso, quis, como decorre do texto da decisão singular, referir-se à MI. Isso já não acontece agora por ter sido corrigido pelo relator, colocando a correcção, MI, em itálico. Outra correcção foi agora acrescentada numa frase acima sublinhada no texto da decisão singular.   
Posto isto,
O AI, quando está no exercício das suas funções, está a defender os interesses da MI, como seu administrador. Está, por isso, a actuar em representação da mesma e, por isso, a autora da acção, a parte, é necessariamente a MI. A MI como representada e o AI como representante da parte.
O AI como parte real só surge quando ele defende os seus próprios interesses contra os interesses da MI.
O lugar paralelo do art. 1437 do CC e o seu recente desenvolvimento serve como exemplo do que se está a defender.
Esse artigo dispunha, na parte que interessa, e sob a epígrafe
Legitimidade do administrador [do condomínio]:
1. O administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
2. O administrador pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício. […].”
Eram estas as normas que parte da doutrina utilizava para defender que o Condomínio tinha personalidade judiciária, mesmo antes de tal ter sido consagrado pela reforma de 1995/1996 do CPC na norma correspondente ao actual art. 12 do CPC: quando o administrador do condomínio está no exercício das suas funções, está a representar o Condomínio o que implica que é este que é a parte na acção e por isso tem necessariamente personalidade judiciária (neste sentido, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, Almedina, 2021, reimpressão da de 2017, páginas 60-61, 63 e 64-65, n.ºs 1, 2, 5 e 9 e páginas 85-86, nota 2, e Parecer da Comissão de Legislação da Ordem dos Advogados sobre o projecto de CPC, Revista da Ordem dos Advogados, 1990, III, páginas 780-781, n.º 5; também o comentário 4 ao art. 1437 do CC, de Ana Filipa Morais Antunes e Rodrigo Moreira, em Comentário ao CC, Direito da Coisas, 2021, UCP/FD/UCE, pág. 531; e anotações ao art. 1437 do CC por Rui Pinto Duarte, no CC anotado, vol. II, 2017, Almedina/Cedis, páginas 293-294).
E foi isso mesmo que agora a Lei 8/2022, de 10/01, veio consagrar, ao dar a seguinte nova redacção ao artigo 1437 e respectiva epígrafe:
Representação do condomínio em juízo:
1 - O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo [este, o AI] demandar e ser demandado em nome daquele.
2 - O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
E note-se que mesmo a outra parte da doutrina que defende que o administrador do condomínio tem legitimidade processual própria para agir em juízo, diz que este, quando está no exercício das suas funções, está a defender os interesses do condomínio, pelo que, nestes casos, se verifica uma substituição processual representativa (veja-se Miguel Teixeira de Sousa, num post colocado no blog do IPPC a 11/01/2022, A posição em juízo do administrador do condomínio: et tu, Legislator? [é o que aqui consta que serve de base aos parênteses rectos introduzidos acima, por este acórdão, no n.º. 1 do art. 1437 do CC]).
Por isso, num comentário (publicado no blog do IPPC de 03/01/2022: A posição em juízo do administrador do condomínio analisada sem confusões) a um acórdão em que se discutiu quem é que era o réu na acção, se a administradora do condomínio ou o condomínio, este Professor, apesar de defensor da tese da substituição processual e de, formalmente, nessa acção, a ré ser a administradora, disse que a única decisão aceitável proferida tinha sido a da 1.ª instância, que considerou que o réu na acção era o condomínio (que foi condenado), representado pelo sua administradora, e não a administradora demandada, como foi decidido pela Relação e pelo STJ absolvendo a administradora da instância.
Quanto à substituição processual substitutiva veja-se o desenvolvimento dado por este Professor à questão, a seguir, naquele post de 11/01/2022: “Dado que o administrador não está em juízo defendendo interesses próprios, mas antes os interesses alheios do condomínio, o que se consagra nos referidos preceitos é o que em termos doutrinários se qualifica como substituição processual representativa (como também se verifica, por exemplo, quanto ao administrador de insolvência) […].”
Posto isto, e na lógica do que se defende acima e que se considera agora expressamente consagrado na lei embora a propósito do administrador do condomínio, na posição pois, por exemplo, de Lebre de Freitas e não do Prof. Teixeira de Sousa (confronto que se faz apenas para deixar claro o que se está a defender), quando o CIRE fala na massa insolvente e no administrador da insolvência como partes nas acções, está normalmente a fazê-lo para se referir a questões diferentes, como, por exemplo, no seu artigo 82/3-a, em que está apenas a pôr em confronto o AI, como administrador da MI, frente ao devedor insolvente, e não a atribuir legitimidade ao AI como parte distinta da MI (que é a parte, porque são os interesses desta que aquele está a defender).
E, assim sendo, não tem nenhum sentido dizer que é o AI que tem legitimidade exclusiva para invocar a nulidade, pois que, quando o fizer, no exercício das suas funções, o fará sempre em representação da MI (e, por isso, a legitimidade é desta).
Dito de outro modo: se o AI, agindo no exercício das suas funções e em defesa dos interesses da MI, intenta uma acção, é a MI que é parte na acção; e isto mesmo que o AI a tenha intentado como parte, como se tivesse por si legitimidade processual; e mesmo que se pudesse dizer, seguindo a posição do Prof. Teixeira de Sousa, que a parte era o próprio AI, como substituto processual da MI, estar-se-ia perante uma substituição processual representativa. Pelo que, materialmente, sempre seria a MI a beneficiária da invocação da nulidade das doações. Sendo assim, nenhum sentido tem negar a legitimidade da MI para a invocação das nulidades. Pois que defender-se a tese dos réus reclamantes seria o mesmo que dizer que o AI teria legitimidade processual para pedir a declaração da nulidade das doações em defesa dos seus próprios interesses (o que aliás seria contraditório com a restituição dos bens à massa insolvente). Posição esta, dos 1.ºs réus, que nada tem a ver com a posição do Prof. Teixeira de Sousa (por isso é que, no caso acima referido, mesmo tendo sido a administradora do condomínio a ré demandada na acção, este Professor considerou aceitável a condenação do condomínio em vez da absolvição da administradora).
*
Quanto aos acórdãos que os réus dizem que referem expressamente a legitimidade do AI e que, por isso, não serviriam de apoio à posição assumida na decisão singular, a afirmação é, no mínimo, surpreendente:
- no ac. do TRG de 08/11/2018, a autora é a MI, a sentença recorrida declara a nulidade do negócio como pedido pela MI e o acórdão confirma a sentença, pelo que, evidentemente, quando se está a referir ao AI se está a referir a ele como representante da MI, o que decorre expressamente do respectivo texto;
- no ac. do TRC de 12/02/2019, a autora também era a MI, como decorre implicitamente da decisão da 1.ª instância e o acórdão determinou o prosseguimento da acção para conhecimento do pedido subsidiário da nulidade, reconhecendo ao AI, enquanto representante da MI, legitimidade para o efeito, transcrevendo a fundamentação de um outro acórdão no qual se diz: a massa insolvente e, como tal, o administrador de insolvência, no âmbito das funções que lhe estão atribuídas, tem interesse na declaração de nulidade […] providenciando, dessa forma, pela restituição à massa insolvente dos bens;
- e no ac. do TRP de 18/11/2019, considerou-se que o AI pode pedir em juízo a declaração de nulidade, por simulação, como pode qualquer simulador, e mais à frente, estando a discutir se a MI pode ser considerada terceiro diz que o facto de o AI ser um substituto processual e, por isso, agir no interesse dos credores, não lhe confere o estatuto de terceiro, portanto referindo-se ao AI e à MI como a mesma entidade, sendo que a ré na acção era a MI e não o AI.
*
Pelo exposto, mantém-se a decisão singular reclamada, julgando o recurso procedente e revogando o despacho recorrido, devendo pois o processo prosseguir os seus normais termos, com custas do recurso [na vertente de custas de parte] pelos réus.
Custas da reclamação pelos 1.ºs réus que se fixam em 1 UC de taxa de justiça (artigos 527, nºs 1 e 2 do CPC e 7.º, n.º 4, do RCP e tabela II, penúltima linha, anexo ao mesmo).

Lisboa, 24/02/2022
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas