Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
997/19.7T8OER-B.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
DESPACHO LIMINAR DE ADMISSÃO
POSTERIOR INDEFERIMENTO LIMINAR
RECURSO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO DE NÃO ADMISSÃO DE RECURSO
Decisão: DEFERIDA
Sumário: 1.Tendo proferido despacho liminar de admissão dos embargos de executado, não pode o juiz, mais tarde, depois de finda a fase dos articulados, indeferi-los liminarmente, por considerar verificada a sua extemporaneidade, invocada pela embargada em sede de contestação.

2.É meramente tabelar o despacho que se limita a admitir liminarmente os embargos, não formando caso julgado formal no processo, pois não decide definitivamente as questões relativas à verificação dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias correspetivas, assegurando apenas o seguimento do processo.

3.Nenhum impedimento existe, por isso, a que o juiz se pronuncie sobre a questão da sua extemporaneidade dos embargos, invocada pela embargada em sede de constatação aos embargos; o que ele não pode é indeferir liminarmente os embargos depois de os ter admitido liminarmente.

4.Considerando, num tal contexto, extemporâneos os embargos de executado, deve o juiz, em sede de despacho saneador, julgar verificada a exceção dilatória inominada consistente na sua extemporaneidade e, consequentemente, absolver o embargado da instância.

5.A extemporaneidade da dedução de embargos de executado não constitui exceção material ou de direito substantivo, mas antes exceção processual, já que o prazo legalmente estabelecido para a sua dedução não é um prazo dentro do qual deva ser exercido um direito substantivo, que caduque pelo seu não exercício findo ele, tratando-se antes de um prazo dentro do qual deve ser produzido determinado efeito processual, qual seja a oposição a uma execução.

6.Proferido, nesse enquadramento, ainda que indevidamente, despacho de indeferimento liminar dos embargos, depois de anterior admissão liminar dos mesmos, é lícito à embargante dele recorrer, independentemente do valor da causa, nos termos do art. 629.º, n.º 3, al. c), do C.P.C.

7.
O indeferimento, num tal quadro, do requerimento de interposição de recurso do indevido despacho de indeferimento liminar dos embargos, em razão do valor da causa, além de constituir um procedimento processualmente desleal, viola o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, consagrado no art. 20.º, n.º 1 da CRP, na vertente de “direito ao recurso”.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO:


BC opôs-se, mediante embargos de executado, à execução que lhe é movida por N, S.A., com vista ao pagamento coercivo da quantia de € 633,05.

Atribuiu aos embargos, ainda que não se compreenda ao abrigo de que critério, o valor de € 1.571,26.

No dia 10 de fevereiro de 2020 o senhor juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Admito, liminarmente, a petição de embargos de executado – art. 732º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Civil (CPC).
Notifique o exequente para, querendo, contestar, no prazo e sob as cominações legais (art. 732º, nº 2 e 3 do CPC).»

A exequente contestou os embargos, começando por invocar, como questão prévia, a extemporaneidade dos embargos.

Notificada da contestação aos embargos, a executada, invocando indevidamente o art. 7.º, n.º 1, do C.P.C.[1], veio responder à contestação apresentada pela embargada.

Em seguida à apresentação do articulado de resposta à contestação, a embargante veio apresentar «como parecer sobre o que alega no art. 3.º e pressupostos indicados no artigo 22 do C.P.C., sobre incertos», imagine-se, uma tese de doutoramento intitulada «Os Incertos no Código de Processo Civil», datada de 2018, da autoria de Marta Susana Duarte de Figueiredo Lobo, com nada mais nada menos do que 126 páginas.

Notificada, tanto da resposta à contestação, como da junção do «parecer», a embargada também respondeu, alegando que «a forma processual dos presentes autos não admite direito de resposta ou exercício de contraditório relativamente ao articulado apresentado pela Embargada em 04/03/2020, isto é, a contestação realizada aos embargos de executado apresentados.
Apenas sendo admissível a impugnação dos documentos apresentados pela Embargada, nos termos do disposto nos artigos 415.º n.º 2, 444.º e 446.º do Código de Processo Civil, o que não foi efetuado pela Embargante.
Motivo pelo qual vem requerer a V. Exa. se digne desconsiderar/ordenar o desentranhamento dos requerimentos apresentados pela Embargante em 05 e 06 de Março».

Como se tudo isto não bastasse, a embargante ainda veio «responder à resposta» da embargada.

Conclusos os autos ao senhor juiz a quo, em vez de imediatamente colocar ordem na tramitação processual, mandando desentranhar as peças processuais que não tinham cabimento legal, limitou-se a ordenar a notificação do BNI para envio aos autos de certidão integral do processo injuntivo relativo ao título que suporta a execução.

Junta a certidão, veio a embargante «arguir a falsidade ideológica da declaração de força exarado a fls. 19 da certidão, no canto superior direito.»

Notificada deste surpreendente requerimento, veio a embargada afirmar que reiterava o alegado em sede de contestação aos embargos.

Em seguida, a 29 de junho de 2020, o senhor juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«1.- Atento o objecto da presente acção e a factualidade trazida ao Tribunal - não havendo matéria de excepção em relação à qual ainda não tenha/tivesse sido exercido o contraditório, com a discussão de facto e de direito nos respectivos articulados -, afigura-se-me que é possível dispensar a realização de audiência prévia - artº 593 e 597º, do C.P.Civil.
Assim e dentro dos poderes de gestão processual e adequação formal conferidos ao Juiz, nos termos do artº 6º e 547º, do C.P.Civil, notifique as partes para, em dez dias, comunicarem ao Tribunal se prescindem da realização da audiência prévia, procedendo o tribunal ao proferimento do despacho saneador.
2.- Considerando o disposto no artº 598º, do C.P.Civil, as partes poderão, no mesmo prazo e caso prescindam da realização de audiência prévia, proceder á alteração dos requerimentos probatórios, nos termos previstos no referido preceito legal.
Decorrido o referido prazo de dez dias, abra conclusão.»

E a seguir, em 14 de setembro de 2020, proferiu o seguinte despacho:
«Melhor compulsados os autos, verifica-se uma questão prévia que cumpre analisar e que foi suscitada pela Exequente, a da tempestividade dos presentes embargos.
Assim, notifique a embargante, para se pronunciar em 10 dias.»

A embargante já se havia pronunciado quando, nos termos acima referidos, apresentou articulado de resposta à contestação aos embargos.

No entanto, notificada daquele despacho, veio reafirmar o alegado naquele articulado.

Em seguida, a 28 de fevereiro de 2021, o senhor juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Cumpria proferir despacho saneador e eventualmente designar data para a realização de audiência.
No entanto, por força da entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021 de 1 de fevereiro e mais especificamente o seu art.º 6.º-B que dispõe no seu n.º1 “São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais,(…), sem prejuízo do disposto nos números seguintes.”
Assim face a essa suspensão, aguardem os autos, sem prejuízo de eventual impulso das partes, nos termos do n.º 5.º alínea b) desse mesmo artigo 6.º-B.
Notifique.»

Na sequência de conclusão aberta em 3 de maio de 2021, o senhor juiz a quo proferiu então a surpreendente decisão datada de 28 de julho de 2021, com a Ref.ª 130514419.

Essa decisão tem o seguinte teor:
«Nos presentes autos vem a executada BC deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, que lhe foi instaurada por NOS Comunicações, S.A..
Cumpre apreciar da respectiva tempestividade.
A executada foi citada em 10 de Julho de 2019 (ver autos de execução)
Face ao que dispõe o art. 856.º 1 do CPC, no momento em que foram apresentados os embargos de executado, já transcorrera integralmente o prazo para dedução de oposição.
Tal impõe, neste momento, seja a oposição deduzida mediante embargos considerada extemporânea.
Assim, por extemporâneos, indefiro liminarmente[2] os embargos à execução apresentada.
Custas pela executada sem prejuízo do apoio judiciário.
Notifique.»

A embargante interpôs recurso de apelação deste despacho, invocando o disposto no art. 629.º, n.º 3, al, c), do C.P.C.

Sobre o requerimento de interposição do recurso, o senhor juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Fixa-se à causa o valor indicado pela embargante.
*
Considerando que a causa não tem valor superior à alçada do tribunal de que se recorre (art.ºs 853.º, n.º 1, e 629.º, n.º 1, ambos do CPC, não se admite o recurso interposto pela embargante.»

Notificada desse despacho, a recorrente apresentou a seguinte reclamação:
«BC, tendo recorrido do despacho alegadamente de indeferimento liminar, e. como alegou no requerimento de interposição, dele cabendo recurso, nos termos do artigo 629 nº 3 alínea c) do C P C, vem reclamar para V. Exas., conforme lho faculta o disposto no artigo 643 do C P C. a autuar por apenso nos termos do nº 3 do referido artigo 643 do C P C
Na verdade, reza assim o artigo 629 nº 3 alínea c):
Nº 3 – Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação:
Alínea c) – Das decisões de indeferimento liminar da petição de ação (…)
A requerente, que pretende recorrer, propôs uma ação de embargos de executada.
O despacho de sobre a mesma foi proferido reza assim:
“Nos presentes autos vem a executada BC deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, que lhe foi instaurada por NOS Comunicações, S.A..
Cumpre apreciar da respetiva tempestividade.
A executada foi citada em 10 de Julho de 2019 (ver autos de execução)
Face ao que dispõe o art. 856.º 1 do CPC, no momento em que foram apresentados os embargos de executado, já transcorrera integralmente o prazo para dedução de oposição.
Tal impõe, neste momento, seja a oposição deduzida mediante embargos considerada extemporânea. --
Assim, por extemporâneos, indefiro liminarmente os embargos à execução apresentada.
Custas pela executada sem prejuízo do apoio judiciário”.
Nos termos do nº 1 do artigo 643 cabe reclamação do despacho que não admitiu o recurso
Nos termos do nº 3 do artigo 643, a reclamação deve ser ilustrada com o requerimento de interposição do recurso e as alegações, a decisão recorrida e o despacho objeto de reclamação.
Sugere-se se certifique também o requerimento inicial dos embargos e a tramitação subsequente anterior ao despacho de indeferimento liminar.
Termos em que reclama para V. Exas.»

***
A embargada não respondeu à reclamação.

***
II–OBJETO DA RECLAMAÇÃO:
Face ao teor do despacho reclamado e da própria reclamação contra ele apresentada, importa apenas decidir da admissibilidade do recurso.

***
III–DO MÉRITO DA RECLAMAÇÃO:

3.1-DOS FACTOS RELEVANTES:
Os elementos fáticos relevantes para a decisão desta reclamação são os que constam do relatório supra.

3.2-DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO:
A presente reclamação deve-se, única e simplesmente, ao manifesto equívoco em que labora o senhor juiz a quo, que após uma tramitação em que as partes praticaram atos que a lei não admite, sem qualquer pronúncia da sua parte, acabou por proferir, reitera-se, a surpreendente decisão datada de 28 de julho de 2021, com a Ref.ª 130514419, de indeferimento liminar dos embargos.

É evidente que o senhor juiz a quo não podia ter indeferido liminarmente os embargos de executado nos termos e no momento processual em que o fez, depois de os autos terem sofrido a tramitação que se deixou descrita no antecedente relatório.
O senhor juiz a quo proferiu despacho liminar no dia 10 de fevereiro de 2020, quando decidiu expressamente: «Admito, liminarmente, a petição de embargos de executado – art. 732º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Civil (CPC).»

Logo nesse momento era sua obrigação aferir da tempestividade dos embargos.

E, caso considerasse extemporânea a sua apresentação, como muito mais tarde veio a fazer, logo ali deveria ter indeferimento liminarmente a petição de embargos.

O art. 732.º, n.º 1, al. a), do C.P.C. é bem claro:
«Os embargos, que devem ser autuados por apenso, são liminarmente indeferidos quando (...) tiverem sido deduzidos fora do prazo».

É evidente que aquele despacho de 10 de fevereiro de 2020, que admitiu liminarmente os embargos, sem que, como se constata, o senhor juiz a quo tivesse atentado na sua extemporaneidade, é um despacho meramente tabelar, não formando caso julgado formal no processo.

O despacho liminar de recebimento da oposição à execução não decide definitivamente as questões relativas à verificação dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias correspetivas, assegurando apenas o seguimento do respetivo processo.

Assim, alegando a embargada, em sede de contestação aos embargos, a sua extemporaneidade, não estava, obviamente, o senhor juiz a quo impedido de se pronunciar, desde logo aquando da prolação de despacho saneador, acerca de tal questão.

O que o senhor juiz a quo não podia, nunca, era ter indeferido liminarmente os embargos de executado nos termos em que, equivocadamente o fez, e através de simples despacho avulso.

No caso de considerar, na sequência do alegado pela embargada na contestação, extemporâneos os embargos de executado, o que o senhor juiz a quo devia ter feito era, em sede de despacho saneador, julgar verificada a exceção dilatória inominada consistente na extemporaneidade dos embargos e, consequentemente, absolver a embargada da instância.

A extemporaneidade da dedução de embargos de executado não constitui exceção material ou de direito substantivo, mas antes exceção processual, já que o prazo legalmente estabelecido para a sua dedução não é um prazo dentro do qual deva ser exercido um direito substantivo, que caduque pelo seu não exercício findo ele, tratando-se antes de um prazo dentro do qual deve ser produzido determinado efeito processual, qual seja a oposição a uma execução.

O que é certo, porém, é que a embargante foi notificada de um despacho que lhe indefere liminarmente os embargos.

A embargante não pode ser prejudicada na sequência de um erro do tribunal.

Se, no momento da prolação de despacho liminar relativo à admissibilidade dos embargos, em vez de os admitir liminarmente, o senhor juiz a quo os tivesse indeferido liminarmente por os considerar extemporâneos, a embargante poderia recorrer da respetiva decisão, nos termos do art. 629.º, n.º 3, al. c), do C.P.C.

O que não pode agora a embargante, surpreendentemente confrontada com o um equivocado despacho que expressamente determina o indeferimento liminar dos embargos, ver coartado o direito de recorrer, nos termos daquele art. 629.º, n.º 3, al. c), do C.P.C..

Um tal procedimento, além de processualmente desleal, seria violador do princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, consagrado no art. 20.º, n.º 1 da CRP, na vertente de “direito ao recurso”.

***

IV– DECISÃO:

Por todo o exposto, na procedência da reclamação, verificados que se mostram os demais requisitos de admissibilidade, nos termos do art. 629.º, n.º 3, al. c), do C.P.C., admito o recurso interposto pela embargante, aqui reclamante, contra a decisão proferida em 28 de julho de 2021, com a Ref.ª 130514419, que indeferiu liminarmente os embargos de executado, o qual é de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Notifique e, com cópia da presente decisão para devido enquadramento, requisite ao tribunal a quo o processo de embargos.
Sem custas.



Lisboa, 18 de janeiro de 2022



José Capacete




[1]O art. 7.º, n.º 1 do C.P.C. não serve para embargante se «apressar», motu proprio, a apresentar articulado de resposta à contestação em casos em que não admissíveis mais de dois articulados. A resposta à matéria excetiva invocada pela embargante tinha o tempo e o modo processuais próprios para ser deduzida.
[2]O destacado a negrito é da autoria do ora relator.