Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
83/2006-3
Relator: CARLOS DE SOUSA
Descritores: PROVAS
FOTOGRAFIA ILÍCITA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/03/2006
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDA
Sumário: I - São provas nulas as imagens de vídeo obtidas sem o consentimento ou conhecimento do arguido, através de câmara oculta colocada pelo assistente no seu estabelecimento de gelataria, e que é o local de trabalho do arguido, e sem que estivesse afixada informação sobre a existência de meios de videovigilância e qual a sua finalidade – artºs 118º nº 3, 126º, 167º nº 1 do C.P.P., D.L. nº 267/93 de 10/8, Lei nº 67/98 de 26/10, D.L. nº 231/98 de 22/7, D.L. 263/01 de 28/9 e artºs 18º, 26º nº 1 e 32º nº 8 da C.R.P.
II – Arrolados tais meios de prova na acusação pública por crime de furto e valorados em audiência, onde foram visionadas as imagens de vídeo, é nulo todo o processado desde a acusação, inclusivé, e ulteriores termos do processo – artº 122º nº1 do C.P.P..
III - Há declaração de voto do Exmº Desembargador Mário Morgado neste sentido:
A prova obtida é válida nos termos do artº 167º nº1 do C.P.P., já que a captação de imagens realizada não ofende a integridade física ou moral do arguido nem a sua dignidade e intimidade, como não é ilícita e nem integra o crime p. e p. pelo artº 199º nº 2 a) do C.P..
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – No presente processo comum (tribunal singular) nº 31/02.6TAPDL do 1º Juízo do T. J. de Ponta Delgada, por sentença de 28/04/2005 (fls. 400 e ss.), foi decidido:
a) quanto à instância criminal, julgar a acusação pública parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, absolver o arguido P …, da prática do crime de furto, na forma continuada, p. e p. pelo artº 203º nº 1, do Código Penal, pelo qual vinha acusado nestes autos; e condená-lo, pela prática de um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelos artºs 205º nº 1, 30º nº 2, e 79º, todos do Código Penal, na pena de multa de 180 (cento e oitenta) dias, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a multa criminal de €900,00 (novecentos euros), com 120 (cento e vinte) dias de prisão subsidiária, «caso o arguido não pague voluntária ou coercivamente a multa criminal»; mais o condenando nos mínimos de taxa de justiça e acréscimos legais, e nos mínimos de procuradoria, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe fora concedido (cfr. despacho de fls. 138);
b) quanto à instância civil, julgar o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente/demandante, R… (id. nos autos), parcialmente procedente por provado, e, em consequência, condenar o demandado a pagar ao demandante uma indemnização, a título de danos patrimoniais, na quantia de € 7,48 (sete euros e quarenta e oito cêntimos), « acrescida de juros de mora, à taxa de 12% e 4% ao ano, contados desde a data de notificação do arguido para contestar o pedido de indemnização civil e até integral e efectivo pagamento»; condenando-os, ainda, nas custas de natureza civil, na proporção dos seus decaimentos (cfr. artº 446º, nºs 1 e 2, do CPC) – sem prejuízo do apoio judiciário (cfr. fls. 138). *
II – A) Inconformados com esta sentença, recorrem o arguido (cfr. fls. 435 e ss.) e o assistente (cfr. fls. 493 e ss.).
1. O arguido formula as seguintes conclusões (que se transcrevem):
« 1) A reprodução de imagens contidas na cassete de vídeo junto aos autos, foi obtida de forma ilegal, pois que, não procederam a tais gravações qualquer consentimento do visado, ora recorrente, constituindo assim uma intromissão abusiva na vida privada do mesmo (art. 32, n° 8 CRP e art. 126, n° 3 CPP) cominam a nulidade para as provas assim obtidas.
2) Ainda, foi a gravação realizada de forma oculta, também sem conhecimento dos demais frequentadores do estabelecimento, incorrendo por tal facto o denunciante em contra-ordenação (conforme dispõe o DL n° 263/2001 de 28 de Setembro).
3) Assim sendo, o denunciante procedeu às gravações do interior do estabelecimento, (gravando imagem do ora recorrente e clientes) desrespeitando o condicionalismo legal para o efeito.
4) Na verdade, a gravação apresentada em audiência, para além de ter sido realizada de forma oculta, não reproduz qualquer som, não tem qualquer referência ao espaço temporal a que respeita e ainda verifica-se que se trata da junção de vários episódios montados na sequência que melhor terá interessado ao denunciante, ou seja, não reproduzindo o tempo real ou qualquer possível diálogo que procedesse às actuações do ora recorrente, que nos permita entender o que o mesmo se encontra de facto a fazer.
5) No caso concreto afigurava-se indispensável, para a descoberta da verdade material, a captação de som, com vista a entenderem-se todas as circunstâncias que rodeiam a actuação do ora recorrente.
6) Pelo exposto se demonstra que não existe na captação de tais imagens qualquer garantia de autenticidade, genuinidade e isenção.
7) Devendo assim, uma vez que as gravações das imagens não foram obtidas nos termos da lei ser a respectiva gravação considerada nula, por ser esta a cominação prevista pelo artigo 32° n° 8 da CRP e pelo artigo 126º n° 3 do CPP, disposições legais que tratam da matéria das provas obtidas mediante intromissão na vida privada".
8) Assim sendo, para além de ser proibida a produção da prova face às circunstâncias expostas, a prova obtida através de método proibido é insusceptível de valoração pelo tribunal (art. 126, n° 1 do CPP).
9) Bem como o são todos os demais actos processuais que dela dependam (122º, n° 1 do CPP).
10) Nos termos do disposto no art° 113º do CP, quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quais proteger com a incriminação.
11) Não sendo o assistente proprietário do espaço comercial onde era exercida a actividade, não era ele o titular do direito de queixa, sendo o mesmo parte ilegítima nos presentes autos.
12) Os factos que são imputados ao arguido P … não preenchem o tipo legal de crime do abuso de confiança, p. e p. pelo art° 205° do CP.
13) Em causa está a propriedade do dinheiro que surge no vídeo .
14) Verdadeiramente essencial à estrutura objectiva típica da conduta é que a entrega tenha sido feita por título não translativo de propriedade, o que no caso concreto não se verifica e isto porque,
15) O dinheiro entregue ao arguido P ... era efectuado a título de pagamento de entrega de gorjeta de troca, nesta última situação.
16) Pelo exposto, não se pode considerar a conduta de apropriação de trocos pelo arguido P … que lhe foram entregues a título de gorjeta ilegítima e consequentemente o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não se encontra integrado pela conduta do arguido.
17) O tipo subjectivo do crime de abuso de confiança pressupõe o dolo, intenção esta que não ficou provada em sede de julgamento.
18) A conduta do arguido não preenche objectiva nem subjectivamente o tipo legal de crime pelo qual foi condenado.
19) Da conjugação dos elementos de prova não resulta provada a prática pelo arguido do crime de abuso de confiança.
20) Inexiste nexo de causalidade entre o pedido cível do assistente e a conduta do arguido.
21) Para além de que não é possível fixar o quantum de uma indemnização com base em presunções lógicas.
22) O assistente não logrou fazer prova do pedido cível.
23) A produção de prova em análise é manifestamente ilegal, devendo por isso ser nula, bem como todos os depoimentos que à mesma se referem.
24) Ao condenar o arguido pela prática do crime de abuso de confiança, o M. Juiz a quo violou o disposto no artº 205º nº 1 do CP.
Requer-se (...)
Nestes termos e nos melhores de direito e com o douto suprimento de V. Ex.as, deve a sentença de que se recorre ser revogada e substituída por outra que:
a) considere a prova nula;
b) absolva o arguido do crime de abuso de confiança;
b) absolva o arguido do pedido cível no qual foi condenado. »
*
2. O assistente/demandante deduz as seguintes conclusões (que se transcrevem):
« 1. O arguido trabalhou para o A. no período compreendido entre 1 de Agosto de 1999 e 9 de Janeiro de 2002.
2. Durante esse período desempenhou as funções inerentes à categoria profissional de barman, no decurso das quais atendia os clientes, à mesa e ao balcão, recebi os respectivos pagamentos e fazia o troco quando necessário.
3. O arguido era a única pessoa estranha à família do A. que trabalhava no estabelecimento deste, sendo por todos considerado como pessoa da família e de plena confiança.
4. No ano de 2000, o estabelecimento apresentou como média para 6 meses de actividade um volume de compras de 1.791.799$00, um volume de vendas de 2.611.387$00 e um lucro bruto de 819.587$00.
5. No ano de 2001, o estabelecimento apresentou uma média de compras de 1.848.942$00, um volume de vendas de 2.104.093$00 e um lucro bruto de 256.150$00,
6. O que significa que o saldo médio das compras aumentou em 56.142$17, o volume de vendas diminuiu 507.294$00 e o lucro bruto diminuiu 563.437$00 !
7. A margem de lucro no ramo de actividade do A. é de 60%, pelo que, considerado o volume de compras de 1.848.942$00, deveria o A. ter auferido um lucro bruto de 1.109.365$20.
8. Tendo auferido 256.150$00 é o arguido responsável pelo diferencial mensal de 853.215$20, já que
9. No exercício da sua actividade, no ano de 2001, apoderou-se desta quantia mensal, quer apropriando-se de dinheiro no caixa, quer oferecendo bens de consumo do estabelecimento a clientes como se seus fossem,
10. A qual se traduzia nos baixos apuros de venda no caixa, não obstante o crescente volume de compras e de clientela,
11. Havendo clientela que não frequentava o estabelecimento na ausência do arguido,
12. Factos que foram apurados e detectados no dia 2 de Janeiro de 2002, aquando da entrada em vigor do euro, em que o A. ficou todo o dia no caixa, constatando para seu espanto um apuro de mais de 100.000$00 um dia de fraquíssimo movimento quando em dias de grande movimento não o fazia.
13. Instalada uma câmara de vídeo no estabelecimento ver-se-ia o arguido a fazer suas diversas importâncias em dinheiro.
14. Após a saída do arguido do estabelecimento, e passando o Recorrente a trabalhar menos 5 horas por dia, constatou-se que o volume das vendas subiu acima de 3.000.000$00, o volume de compras de tabaco diminuiu de 130.000$00 para menos de 70.000$00, o lucro bruto ultrapassou os 1.000.000$00.
15. O arguido fazia uma vida acima das suas possibilidades, almoçando em restaurante, jogando em diversos jogos da fortuna e azar, pagava bebidas aos amigos e adquiria com frequência peixe e mariscos.
16. Do depoimento das testemunhas ... o Tribunal deveria ter dado como provados os factos constantes do pedido de indemnização cível, atrás enunciado, impondo-se decisão diversa da recorrida, por via da qual deveria ter sido o R. condenado a pagar ao A. a quantia de 10.238.582$40 referente ao lucro que este deixou de auferir decorrente da conduta do R.
17. Ao dar como provado que o arguido praticou o crime de abuso de confiança na forma continuada, o Tribunal não fez a correcta adequação dos factos ao direito ao condenar o arguido a pagar ao A. a quantia de 7,48 € de indemnização.
18. O Tribunal, se dúvidas tinha quanto ao montante exacto dos danos, deveria ter recorrido "a juízos de equidade", nos termos do n° 3 do art° 566º do Código Civil.
19. A condenação do arguido na pena de 900,00 € de multa criminal ou 120 dias de prisão subsidiária e 7,48 € de indemnização cível é uma afronta ao direito e à justiça.
20. Nos termos da prova produzida, o arguido deveria ser condenado em pena de multa exemplar além do peticionado em sede cível.
21. Assim não o tendo entendido, a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 205°, n° 4, alínea b) do Código Penal e 562°, 564° e 566°, n° 3, todos do Código Civil.
Termos em que deve a sentença recorrida ser substituída por outra que condene o arguido em pena de multa exemplar e que julgue procedente por provado o pedido de indemnização cível, quanto mais não seja por recurso a juízos de equidade, por ser de Direito e de
JUSTIÇA! »
*
B) Respondeu o digno magistrado do MºPº (sem articular – fls. 746), concluindo que a sentença recorrida não merece censura e, assim, devem improceder ambos os recursos.
O arguido respondeu ao recurso do assistente (fls. 767-769), pugnando pela improcedência deste.
*
C) Nesta Relação, o Ex.mo PGA deu o seu parecer, concluindo que deve apenas tomar-se conhecimento destes dois recursos, interpostos da sentença final, pelo arguido e pelo assistente, concluindo que não é de conhecer do recurso interposto pelo arguido na acta de 10/03/05 (cfr. fls. 383 e ss.), i.e. da decisão que ordenou o visionamento da cassete vídeo junta aos autos, porquanto não manifestou interesse no conhecimento deste recurso (retido), explicitação que devia constar das conclusões do recurso que interpôs da sentença final, face ao disposto no nº 5 do artº 412º do CPP (e não consta: v. fls. 447 e ss.).
O relator ordenou o cumprimento do artº 417º, nº 2 do CPP e fez constar, além do mais, a observação de que não é de conhecer do recurso retido, atento o disposto no aludido nº 5 do artº 412º do CPP – cfr. despacho a fls. 818 verso.
Cumprido o artº 417º, nº 2 do CPP, e notificada a il. mandatária do arguido/recorrente deste despacho de fls. 818 vº, não houve respostas, pelo que prosseguiram os autos para esta audiência (cfr. artº 421º do CPP).
*
III – Colhidos os vistos e realizada audiência pública, cumpre decidir.
A) Começamos por decidir a questão acabada de referir: apenas se vai conhecer dos dois recursos interpostos da sentença final, pelo arguido e pelo assistente.
1. Não se conhece do recurso interposto pelo arguido na acta de 10/03/05 (cfr. fls. 383 e ss., motivado a fls. 386 e ss., ou fls. 391 e ss.), i.e. da decisão que ordenou o visionamento das cassetes vídeo juntas aos autos, porquanto não manifestou interesse – expressamente, nas respectivas conclusões – no conhecimento desse recurso retido; ou seja, não cumpriu a exigência constante do nº 5 do artº 412º do CPP (cfr. fls. 447 a 452).
2. Assim, apenas se vai conhecer dos recursos interpostos da sentença final (pelo arguido e pelo assistente), pelo que há que sintetizar as questões colocadas por estes.
Na verdade, o âmbito dos recursos é dado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, como é jurisprudência pacífica: cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, 3ª edição, pág. 48; vide, entre outros, os Acs. STJ de 16/11/95 (BMJ 451/279), e de 31/01/96 (BMJ 453/338).
Nestes termos, as questões suscitadas são as seguintes:
1. Da nulidade das provas: por terem sido obtidas de forma ilegal (rectius proibida), sem o consentimento do respectivo titular, através da gravação de imagens vídeo do arguido contidas nas cassetes de vídeo juntas aos autos – arroladas na acusação (cfr. fls. 125) e na pronúncia (cfr. fls. 262) –, visionadas na audiência de julgamento (sessão de 10/03/05, cfr. fls. 383 e ss.) e valoradas na sentença recorrida – cfr. artºs 32º, nº 8 da CRP, 126º, nºs 3 e 4, e 167º, nº 1, do CPP ? Imagens essas gravadas por câmara oculta, colocada no interior do estabelecimento comercial de gelataria, denominado “Oásis”, pelo ora assistente, R..., que explorava o estabelecimento, sendo este local de trabalho do arguido, P ..., sem haver aviso ou informação de que aquele local se encontrava sob videovigilância – cfr. artº 3º do DL nº 263/2001, de 28/9 ? Violação de proibição de prova que tem a mesma natureza das nulidades insanáveis – cfr. artºs 118º, nº 3, 119º e 126º, do CPP ?
No caso de resposta positiva, quais as suas consequências: absolvição do arguido ? Ou antes, a nulidade da acusação e dos ulteriores termos do processo – cfr. artº 122º do CPP ?
2. Da ilegitimidade do assistente R...: atento o apurado crime de abuso de confiança, não é titular do respectivo direito de queixa – cfr. artºs 113º nº 1 e 205º, nºs 1 e 3, do C.Penal ?
3. O dinheiro entregue ao arguido foi a título de gorjeta ? E não por “título não translativo da propriedade? Pelo que falece o requisito objectivo daquele crime ? O arguido agiu sem dolo? Deve, por isso, ser absolvido ? Deve, ainda, improceder totalmente o pedido de indemnização civil ?
4. Deve, ao invés, ser agravada a pena de multa aplicada ao arguido, P ... – como pretende o assistente (no seu recurso) ? Sem o apoio do MºPº, nesta pretensão punitiva ?
5. Devem dar-se como provados todos os factos que o recorrente, demandante civil R ..., articulou no pedido deduzido a folhas 169 e segs. destes autos ? Em consequência, deve o demandando civil, P ..., ser condenado a pagar-lhe a quantia peticionada, Esc.10.238.582$40 (ou equivalente em euros), acrescida dos juros de mora legais (também pedidos – cfr. fls. 175) – cfr. artºs 562º, 564º e 566º, nº 3, todos do C.Civil ? Ou antes disso, (também) não deve conhecer-se desta pretensão do recorrente, mormente por não ter cumprido as exigências dos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP ?
*
B) Para melhor ponderação e decisão de tais questões, passamos a consignar a matéria de facto dada como assente, e respectiva motivação, na sentença ora recorrida.
1. Consignaram-se os seguintes factos provados:
« Entre 1 de Agosto de 1999 e 9 de Janeiro de 2002, o arguido, P ...., trabalhou para R... no estabelecimento comercial de gelataria de que este era proprietário e sito na Rua ..., área desta Comarca, exercendo as funções de barman e que consistiam em atender os clientes à mesa e ao balcão, receber os respectivos pagamentos e efectuar os trocos.
No decurso do ano 2001, o arguido, ..., fez suas algumas importâncias, em dinheiro, cujos montantes não foi possível apurar, que os clientes lhe entregavam e fez suas algumas outras quantias em dinheiro que se encontravam em cima do balcão e dentro da caixa registadora em montantes que, igualmente, não foi possível apurar, sendo que todas essas quantias pertenciam ao proprietário desse estabelecimento comercial, o identificado, R.... O arguido ao proceder da forma descrita, agiu livre, deliberada e conscientemente determinado, bem sabendo a sua conduta era proibida e punida por lei.
Sabia que as tais quantias – cujos montantes não foi possível apurar – não lhe pertenciam e que fazendo-as suas agia contra a vontade e em prejuízo do respectivo titular.
O assistente foi proprietário do estabelecimento comercial de Snack Bar Gelataria, sito à Rua ....
No período compreendido entre 1 de Agosto de 1999 e 9 de Janeiro de 2002, o arguido trabalhou para o assistente como seu funcionário, exercendo as funções de barman, no decurso das quais atendia os clientes à mesa e ao balcão, recebia os respectivos pagamentos e fazia o troco quando necessário, tendo, para tanto, acesso directo à caixa registadora e chaves do estabelecimento.
O arguido trabalhava por turnos alternados com o assistente, ora entre as 7:30 horas e as 13:30 horas e as 16:00 horas, ora das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 24:00 horas.
A margem de lucro média no ramo de actividade do assistente era à volta de 60%.
O dito Snack-bar Gelataria era frequentado diariamente por clientela, alguma com carácter regular.
Desconfiando do arguido, em resultado da diminuição das receitas, o assistente instalou no referido estabelecimento uma câmara oculta sem que aquele dela se apercebesse.
No início de Janeiro/2002, confrontado com as imagens de um dia captadas pelo vídeo – das quais resulta, no que aos autos interessa, que, não se encontrando no estabelecimento qualquer cliente, o arguido meteu ao bolso do vestuário, por três vezes, moedas ou notas, de valor não apurado, no entanto, sendo notas nunca seriam de valor inferior a 500$00, e ao fim do dia de trabalho retirou de um frasco de vidro várias guloseimas (tipo rebuçados) que guardou num saco, transportando-o consigo quando abandonou o estabelecimento – o arguido por essa altura (Janeiro/2002) abandonou o estabelecimento não mais voltando ao trabalho.
Tal estabelecimento comercial foi propriedade do sogro do assistente, ..., durante cerca de 3/4 anos, após o que cedeu a exploração desse estabelecimento – Gelataria – ao assistente, por volta de Julho/2000, até que tal estabelecimento acabou por encerrar nos finais de 2002 e início de 2003.
Até por volta de Julho/2000, a entidade patronal do arguido foi ..., após o que passou a ser o genro daquele, ora assistente, R ....
Para além do arguido, tinham também as chaves do estabelecimento e da casa do assistente, ..., esposa do assistente, ..., sogro do assistente, e .,.., filho de ..., e, por isso, com acesso aos mesmos locais, todos eles moradores no imóvel onde estava instalada a gelataria, sendo que a habitação, com cerca de dez divisões, tinha acesso directo para o interior do estabelecimento comercial, formando um único imóvel, em que as facturas relativas aos fornecimentos de água, telefone, TV cabo e electricidade, eram únicas para os espaços, comercial e habitacional.
Da discussão da causa, mais se provou que o arguido é pessoa com 40 anos de idade.
É casado e o seu agregado familiar é constituído por esposa, empregada de hotelaria, no Café ..., auferindo cerca de € 349, 16, mensais, e duas filhas menores.
O arguido trabalha como empregado de mesa e balcão no café denominado, “V...”, sito em Ponta Delgada, desde Fevereiro/2002, auferindo cerca de € 610, 00, mensais.
O arguido tem de encargo mensal, a quantia de € 224,46, junto de uma instituição bancária, relacionado com um empréstimo para aquisição de casa própria.
O arguido tem como grau de instrução a 4ª classe.
O arguido não tem passado criminal. » - nossos sublinhados.
2. E os seguintes factos não provados:
« Da discussão da causa não se provaram os demais factos narrados na acusação pública e pronúncia cujo teor aqui dou por reproduzido e para todos os efeitos legais; designadamente, aqueles relacionados com os montantes – alguns entregues pelos clientes e outros colocados quer em cima do balcão quer dentro da caixa registadora – e alegadamente subtraídos pelo arguido; bem como os alegados no pedido cível – art.os 5.º, 6.º, 11.º, 14.º, 16.º e 17.º – e, bem ainda os alegados na contestação, nomeadamente, os que constam dos art.os 19.º, 20.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 32.º, do referido articulado. »
3. Com a seguinte motivação:
( ... )
*
C) Quanto à alegada violação de proibição de prova – artºs 126º nºs 3 e 4, e 167º, nº 1, ambos do CPP, e 32º, nº 8 da CRP.
1. Esta questão já foi anteriormente suscitada, como bem consta da decisão instrutória, cfr. fls. 256 a 260, concluindo a Mmª JIC pela improcedência da arguida nulidade.
Muito embora a melhor doutrina (vd. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 105) distinga as proibições de prova e o regime das nulidades, por se tratar de realidades distintas e autónomas, há, porém, entre elas “uma imbricação íntima” – como ensina o Prof. Manuel da Costa Andrade (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 193).
De qualquer modo, a utilização de uma prova proibida no processo tem os efeitos da nulidade do acto. “ Por isso, a nulidade resultante da produção de prova proibida será de conhecimento oficioso até decisão final, só se convalidando com o trânsito em julgado da decisão. ” - cfr. Prof. Germano Marques da Silva (ob. loc. cit.).
A jurisprudência, mormente a do nosso mais alto tribunal vem sendo no sentido de que: “A nulidade resultante da violação de proibições de prova é insanável ” – cfr. Ac. STJ de 05/06/91 (BMJ 408, 405).
Em suma, sem confundir aquelas realidades, sempre concluiríamos, como vamos fazer, ou seja, que, no caso, não se formou caso julgado sobre esta questão, a qual pode ser conhecida, mesmo oficiosamente, até ao trânsito em julgado da decisão final – segue o regime dos vícios insanáveis (cfr. artºs 118º, nº 3, 119º e 126º, do CPP).
Prosseguindo.
2. Considera o arguido, ora recorrente, que são nulas as provas por terem sido obtidas de forma ilegal, desde logo, sem o consentimento do respectivo titular (do direito à imagem) – no caso, o arguido, bem como os clientes cuja imagem também foi ali captada, sem o seu conhecimento), com violação de princípios e garantias constitucionais e normas legais, mormente as constantes dos artºs 32º, nº 8 da CRP, 126º, nºs 3 e 4, e 167º, nº 1, do CPP, e ainda artº 199º do C.Penal.
Acresce que foram obtidas através da gravação vídeo de imagens do arguido – mas, no caso, sem reprodução de som, e sem qualquer referência ao espaço temporal a que respeita –, mediante a utilização de câmara oculta, no interior daquele estabelecimento comercial de gelataria, denominado ..., o qual vinha sendo explorado pelo denunciante (assistente R ...), sendo o local de trabalho do arguido, ora recorrente.
Releva ainda, segundo o ora recorrente (arguido), que a câmara de vídeo (oculta) foi ali colocada, sem qualquer aviso ou informação – ao invés do que dispõe a lei, nomeadamente o D.L.nº 263/2001, de 28 de Setembro, que regula os termos e condições em que os estabelecimentos de restauração e bebidas podem dispor de um sistema de segurança privada.
Assim, e conforme se dispõe no artº 3º deste diploma legal, são obrigados “a afixar, na entrada das instalações sob vigilância, em local bem visível, um aviso com os seguintes dizeres: «Para sua protecção, este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagens e som » (…)”
Em suma, não existe na captação de tais imagens qualquer garantia de autenticidade, genuinidade e isenção – segundo alega.
Daí que, nos termos do artº 126, nº 4 do CPP, em articulação com o artº 199º C.Penal, «... é possível concluir-se que a obtenção de tal meio de prova violou os pressupostos legais exigíveis, inclusivamente passível de incorrer na prática de crime
Pois, reitera, para tais gravações não houve qualquer consentimento do visado, o ora recorrente, constituindo, assim, uma intromissão abusiva na vida privada do mesmo, nos termos dos artºs 32º, nº 8 da CRP, e 126º, nº 3 do CPP, os quais cominam a nulidade para as provas assim obtidas.
Cita, para o efeito, o Ac.STJ de 14/01/99 (CJ, Acs. STJ, tomo I, pág. 179): “Destinando-se as gravações feitas por particulares e sem consentimento do visado a ser utilizadas para efeitos probatórios, estamos perante provas proibidas, provas nulas”. E, em consequência, remete ainda para o citado acórdão: “(...) tendo sido utilizadas, tais gravações, enquanto provas, são nulas (art. 126, nº 1 do CPP) bem como são os demais actos processuais que delas dependerem (122, nº 1 do CPP) (…)”
Por isso, conclui o arguido, ora recorrente, que deve ser considerada nula aquela prova, por ter sido obtida através de método proibido de prova (artº 126º do CPP).
3. A decisão recorrida considera, em síntese, lícita a recolha de imagens mediante gravação vídeo, apesar de efectuada sem consentimento do visado e de se presumir contra a sua vontade (do titular do direito à imagem), por, no seu entender, se justificar face a “razões de justiça e em face da necessidade de carrear provas para o processo penal ” – cfr. artºs 31º, nº 1 do C.Penal, e 79º, nº 2 do Código Civil.
Sustenta a sua posição, citando a jurisprudência do Ac. STJ de 20/06/01 (SASTJ, nº 52, 46), onde, sumariamente, se considera:
« A proibição de gravações ou imagens, na medida em que o legislador constitucional e o ordinário pretendem defender a vida privada, pressupõe que foram obtidas em algum local privado, total ou parcialmente restrito, no qual, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não pode ser retratada, abrindo-se uma excepção sempre que as exigências da polícia ou dos tribunais determinarem ... A video-gravação dos arguidos por sistema mecânico colocado num posto de abastecimento de combustíveis visando a protecção da vida, da integridade física e do património dos donos dos veículos e dos referidos locais é lícita e não viola os artigos 18º, 26º, e 32º nº 8 da CRP nem os artigos 126º e 167º do CPP. » - nossos realces.
E conclui (a decisão ora recorrida) que:
« A gravação que, note-se, tem por objecto o direito à imagem, apresenta-se como justificada por razões de justiça e em face da necessidade de carrear provas para o processo penal – artigo 31º nº 1 do Código Penal e 79º nº 2 do CC – não violando assim o disposto no artigo 32º, nº 8 da CRP nem o artigo 126º do CPP. » - nosso sublinhado.
4. Como iremos demonstrar, cremos que esta posição e decisão judicial não é correcta, nem coerente nem compatível com os princípios e regras fundamentais do nosso processo penal.
Ao invés, tem razão, no essencial, o arguido, ora recorrente.
Desde logo, as imagens vídeo (contudo, sem reprodução de som) ora em causa são, nomeadamente, as do arguido, constam das (três) cassetes de vídeo arroladas na acusação (cfr. fls. 125 destes autos), e foram, expressamente, apreciadas na pronúncia (cfr. fls. 262); sendo ainda certo que foram visionadas na audiência de discussão e julgamento (na sessão de 10/03/05, cfr. fls. 383 e ss.), e foram valoradas na sentença recorrida – sendo tidas como nucleares, como vimos acima, para a formação da convicção da Mmª Juíza a quo, mormente no que à decisão sobre a matéria de facto diz respeito (acima transcrita).
Como se pode ver, trata-se de imagens obtidas mediante gravação vídeo, de forma ilícita, mais propriamente proibida por lei – cfr. artº 125º do CPP – já que se utilizou uma câmara oculta, colocada no interior do estabelecimento comercial onde o arguido trabalhava – local de trabalho – sem o consentimento do visado, o titular do direito à imagem – direito fundamental do cidadão (no caso, o arguido) – cfr. artº 26º, nº 1 da CRP.
Em suma, estamos perante a violação do direito à imagem e até da privacidade, direitos consagrados na nossa Lei Fundamental (cfr. artº 26º, nº 1 da CRP).
Por isso, não se pode interpretar o regime excepcional, previsto no citado nº 2 do artº 79º do C.Civil, no sentido de dispensar o consentimento do cidadão visado, mormente sem se fundamentar em valor superior, ou (como se costuma dizer, em interesse preponderante), e ainda assim, devendo explicitar-se a opção feita, perante uma tal colisão de direitos.
Acontece, porém, que neste aspecto a decisão recorrida é vaga, e quando o não é, mostra-se incoerente e, de qualquer modo, incompatível com os princípios constitucionais e as regras básicas do processo penal.
Na verdade, o direito processual penal num Estado de direito democrático, como o nosso – cfr. artºs 1º e 2º da CRP – não se compadece com a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a qualquer custo, pois estes fins para serem atingidos, como deve ser, têm de o ser através do respeito e a garantia dos direitos fundamentais da pessoa, com vista a alcançar a almejada paz jurídica.
Neste sentido, Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, págs. 20 e ss.). Ou como vem citado pelo Prof. Germano Marques da Silva (idem, pág. 97): “ A verdade processual não é absoluta ou ontológica, mas uma «verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida» ”
Em suma, como estes mestres defendem, vigora aqui o princípio da lealdade, como princípio de “natureza essencialmente moral” (Prof. Marques da Silva, idem, ibidem), o qual deve revelar “uma maneira de ser da investigação e obtenção das provas em conformidade com o respeito dos direitos da pessoa e a dignidade da justiça”.
Trata-se, pois, de um princípio do processo penal ao qual os operadores judiciários estão obrigados, respeitando assim os valores próprios da dignidade da pessoa humana, da sua integridade pessoal, física e/ou moral – cfr. artºs 25º, 26º e 32º da CRP.
Por tudo isto, o arguido não pode ser tratado como objecto, “melhor, como um meio de prova utilizado contra si mesmo, característica do processo de estrutura inquisitória” – cfr. Lei e Crime..., de Fernando Gonçalves, Manuel João Alves e Manuel Monteiro Guedes Valente, Almedina, pág. 147 – “...mas tem de ser visto como sujeito processual...”
Por isso, como decreta o artº 32º da CRP, no seu nº 8: “a nulidade de todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” – e se reafirma nos artºs 118º, nº 3 e 126º, nºs 1, 2 e 3, do CPP.
O que significa que a justificação, avançada na douta decisão recorrida, não só não está devidamente fundamentada, como caiem pela base as alegadas – mas não concretizadas, nem devidamente sopesadas – exigências de polícia ou de justiça, a que se reporta o mencionado nº 2 do artº 79º do Código Civil.
Como vimos, sob pena de esvaziarem de conteúdo útil, aqueles direitos fundamentais – à imagem e à privacidade (cfr. artº 18º da CRP) – as aludidas exigências de polícia ou de justiça têm de ser interpretadas como integrando particulares exigências de segurança de pessoas e bens – o que, como se pode ver, não era o presente caso!
Assim, face aos valores consagrados no Estado de direito democrático como o nosso (citado artº 2º da CRP), não é admissível nem tolerável a concepção securitária que subjaz à douta decisão ora recorrida, por manifestamente excessiva, desproporcionada e desnecessária para o fim pretendido, sob pena de esvaziamento do conteúdo essencial daqueles direitos fundamentais e de cidadania – como são o direito à imagem e à vida privada do cidadão (no caso, o arguido) – que não se compadece com a (eventual) lesão patrimonial daquele estabelecimento comercial – cfr. artºs 18º e 26º, nº 1 da CRP.
Por outra via, estamos perante uma abusiva intromissão na vida privada do arguido e/ou a recolha proibida de imagens suas, sem o seu consentimento (tal como as dos clientes daquele estabelecimento comercial, que também não tinham conhecimento, nem deram consentimento à sua recolha), através da colocação de uma câmara de vídeo oculta, no interior daquele estabelecimento de gelataria, denominado “Oásis”.
Aliás, a colocação dessa câmara oculta foi da iniciativa de um outro cidadão – o aqui assistente – e não de uma entidade pública com competência e legitimidade para o efeito (v.g. MºPº, OPC, órgão policial, etc. ...); sendo ainda certo que, apesar de aquele cidadão explorar ou gerir aquele estabelecimento comercial não lhe confere legitimidade para tal actuação, nem se pode olvidar que se tratava (também) do local de trabalho do ora arguido.
Por tudo isto, não restam dúvidas que o legislador não só não permite como proíbe tal método de aquisição de prova – porquanto pode mesmo integrar a prática de um ilícito criminal (o do artº 192º, nº 1 e/ou o do artº 199º, nº 2, ambos do C.Penal).
Seja como for, estamos perante método proibido de recolha de prova – cfr. artºs 125º e 126º do CPP – já que só excepcionalmente é permita por lei a utilização deste tipo de equipamento, de videovigilância, e quando o é, o legislador rodeia-o dos maiores cuidados, mormente tendo em conta as particulares exigências de segurança de pessoas e bens.
Só assim se justifica a videovigilância em actividades de segurança de aeroportos, bancos, discotecas, etc. e, mesmo aí, desde que se informe ou afixe um aviso aos utentes (e/ou aos trabalhadores) desses locais de que o mesmo se encontra sob videovigilância (com gravação de imagens e som).
Basta ler, a título de exemplo, os artigos 1º, nº 2, al. f), do D.L.nº 267/93, de 10/8, 3º, al. a), e 10º, da Lei nº 67/98, de 26/10, e 12º do D.L.nº 231/98, de 22/7, (cfr. Ac. T.C. nº 255/02, de 12/6) – no que respeita à actividade de segurança privada.
De igual modo, o supra mencionado D.L.nº 263/01, de 28/9, cfr. mormente o seu artº 3º, especificamente para os estabelecimentos de restauração e bebidas.
E, mais recentemente, o artº 20º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/8, o qual transpôs as directivas comunitárias, vd. artº 2º desta lei), mais uma vez, ao permitir, excepcionalmente, a instalação deste tipo de equipamento (de videovigilância), tendo em vista a protecção e segurança de pessoas e bens e/ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem.
Mas, ainda assim, exige o citado artº 3º do D.L.nº 263/01, deve ser previamente dado cumprimento ao dever de informar os utentes, através da afixação de um aviso, na entrada das instalações sob vigilância, e em local bem visível, com os dizeres:
Para sua protecção, este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagens e som.”
O mesmo ocorrendo no mencionado artº 20º, nº 3 do Código do Trabalho, ao impor ao empregador o dever de informar o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados.
5. Concluindo.
Assim, como as imagens de vídeo em causa foram obtidas de forma ilícita (rectius, proibida), já que sem o consentimento ou conhecimento do visado (o arguido), através de câmara oculta, colocada pelo ora assistente, no interior daquele estabelecimento comercial de gelataria, ..., que aquele explorava, mas que (também) era local de trabalho do arguido, e para além disso, sem que tivesse sido afixado, em local visível, aviso ou informação aos utentes sobre a existência naquele local daqueles meios de videovigilância, e qual a sua finalidade;
Em suma, por todo o exposto, não podemos deixar de concluir que, no presente caso, a gravação de imagens de vídeo (ainda que sem reprodução de som) assim obtidas e cujas (3) cassetes de vídeo foram juntas ao presente processo crime – mormente, arroladas na acusação pública e valoradas, indevidamente, aquando da decisão instrutória, de pronúncia; sendo ainda visionadas na audiência de julgamento (1ª instância – cfr. acta a fls. 383 e ss.); e, finalmente, valoradas na sentença ora recorrida;
Por tudo isto, verifica-se a utilização de método proibido de prova, tendo em conta, nomeadamente, o disposto nos supra citados artºs 125º, 126º, nºs 1, 3 e 4, e artº 167º, nº 1, todos do CPP.
Nestes termos, são nulas as provas assim obtidas, pelo que não podem ser utilizadas nestes autos, como foram – com violação, além do mais, dos citados artºs 18º, 26º, nº 1, e 32º, nº 8, da CRP, e artº 126º, nºs 3 e 4, do CPP.
6. Em consequência – como as imagens de vídeo sub judice, constantes das cassetes (3) arroladas na acusação pública (cfr. fls. 125), e apreciadas e valoradas no despacho de pronúncia (cfr. fls. 262), foram visionadas na audiência de julgamento (sessão de 10/03/05, cfr. fls. 383 e ss.), tendo sido indevidamente valoradas na sentença ora recorrida, mais não resta que concluir, para os efeitos do artº 122º, nº 1 do CPP (cuja conformidade constitucional não foi posta em causa, cfr. Ac. T.C. nº 198/2004, de 24 de Março, in D.R., II Série, de 02/06/04), que:
É nulo todo o processado, desde a acusação pública, inclusive, bem como os ulteriores termos do processo – incluindo a pronúncia, o julgamento e a sentença recorrida.
7. Procede, nestes termos, o recurso do arguido.
Ficam, assim, prejudicadas todas as demais questões, mormente as suscitadas no recurso do assistente/demandante, do qual não se toma conhecimento.
*
IV - Decisão.
Nos precisos termos e fundamentos acima expostos, acordam em dar provimento ao recurso do arguido Paulo ... e, em consequência, declara-se nulo todo o processado, desde a acusação pública, inclusive, bem como os ulteriores termos – incluindo a pronúncia, o julgamento e a sentença ora recorrida (cfr. artº 122º, nº 1 do CPP).
Prejudicadas ficam as demais questões, pelo que também não se toma conhecimento do recurso do assistente/demandante, R ....
Sem tributação.
Lisboa, 3 de Maio de 2006
(Carlos de Sousa – relator)
(Mário Varges Gomes)
(Mário Belo Morgado) – (vencido, nos termos da declaração de voto que junto)
(João Cotrim Mendes)
Declaração de voto:
“Vencido, pelas seguintes razões:
As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal – art. 167º, nº 1, CPP.
Afigura-se-nos que a captação de imagens em causa não integra o crime p. e p. pelo art. 199º, nº 2, a), CP: a captação de imagem dirigida a provar factos ilícitos em locais públicos ou no local de trabalho deve considerar-se desprovida de tipicidade (aquele tipo criminal deve sofrer uma redução da área de tutela de sentido vitimodogmático) ou, pelo menos, de ilicitude (com base, segundo as diferentes posições doutrinárias, em “quase legítima defesa”, legítima defesa, direito de necessidade, prossecução de interesses legítimos ou num critério geral de interesses) – cfr. sobre esta problemática Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 834-840, e Sobre as proibições de prova em processo penal, 242-272.
Também não se descortina no caso vertente qualquer violação da integridade física ou moral do arguido ou ofensa da sua dignidade/intimidade – como se sabe, nem toda a lesão de um direito de personalidade viola a dignidade humana.
Sobre o caso – julgado lícito – de um empregado de casino, filmado às ocultas a contar o dinheiro do jogo, vide o autor citado, na última das obras referidas (p. 264).
Lisboa, d. s. Mário Morgado