Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5584/12.8TBSXL-D.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: HABILITAÇÃO
CESSÃO DE CRÉDITOS EM MASSA
CONTESTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I.– O Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, que aprovou um regime simplificado de cessão de créditos em massa, dispensa, para a habilitação processual atinente à cessão de créditos aí prevista, a dedução do incidente de habilitação previsto no art.º 356.º do CPC.

II.– Para essas cessões de créditos a habilitação opera mediante a simples junção aos autos de cópia do contrato de cessão.

III.– Porém, nada obsta a que a parte contrária deduza contestação ou oposição à pretendida habilitação.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa


RELATÓRIO


1.– Em 28.9.2012 A – Sucursal em Portugal intentou ação de execução para pagamento de quantia certa contra Carlos, reclamando o pagamento da quantia de € 512 256,84, emergente do incumprimento de um contrato de mútuo (que identificou e documentou juntamente com o requerimento executivo, incluindo o aditamento ao contrato de mútuo outorgado em 09.11.2010) celebrado em 30.9.2008 entre a exequente (isto é, segundo alega a exequente, o B S.A., que mais tarde foi incorporado no C GMBH, passando a operar em Portugal sob a firma C GMBH – Sucursal em Portugal, após o que o C GMBH, por meio de contrato de cisão e transferência cedeu ao D a totalidade dos seus ativos e passivos, desenvolvendo a sua atividade em Portugal através da sucursal ora exequente), que deu origem ao preenchimento da livrança que o executado/mutuário havia subscrito como garantia, ora dada à execução.
2.– O executado foi citado para a execução em 22.10.2012.
3.– Foram efetuadas penhoras.
4.– Em 12.3.2013 a exequente informou que na sequência de resgate de penhor de obrigações que havia sido dado em garantia, a dívida havia sido reduzida para o montante de € 227 781,63.
5.– Houve reclamações de créditos.
6.– Em 24.5.2018 E, S.A., foi julgada habilitada a prosseguir na execução em substituição da credora reclamante F.
7.– Em 14.10.2020 G, S.A., Sucursal em Portugal requereu a sua habilitação nos autos, ao abrigo do disposto no Dec.-Lei n.º 42/2019, de 28.3.

A requerente alegou o seguinte:

1.–Em 07.6.2019 outorgou com a exequente um contrato designado por Contrato de Trespasse da actividade relativa a Clientes Privados e Comerciais da Sucursal em Portugal do D”, formalizado por escritura pública de Trespasse, Cessão de Créditos, Compra e Venda e Promessas de Compra e Venda, bem como Declaração Relativa à Verificação de Condição Suspensiva, outorgada em 09 de Junho de 2019, ambas perante o Notário (…), contrato ao abrigo do qual foram cedidos à requerente um conjunto de créditos, respectivas garantias e acessórios, relacionados com o ramo de actividade objecto do trespasse, conforme Certidão Narrativa Parcial que juntou como documento n.º 1;
2.–No âmbito do Trespasse, Cessão de Créditos, Compra e Venda e Promessas de Compra e Venda, foram cedidos os créditos detidos sobre o Executado subjacentes à ação executiva apresentada.
3.–Tendo o Cedente transmitido para a Cessionária todos os direitos e garantias associadas aos referidos créditos, nomeadamente o que consta do Contrato de Mútuo e respetivos Aditamentos objeto da presente ação, que juntou como Doc. 2.
4.–Ao Contrato celebrado entre Cedente e Executado foi atribuído o n.º 830011433 pelo sistema interno do D.
5.–Este encontra-se devidamente identificado na página 76, linha 4015 do documento complementar n.º 2 que contém a Listagem dos Créditos Cedidos, em anexo ao Contrato de Trespasse da actividade relativa a Clientes Privados e Comerciais da Sucursal em Portugal do D”, cuja cópia juntou como Doc. n.º 3;
6.–O Decreto-lei n.º 42/2019, de 28 de Março de 2019, estabelece um regime simplificado para a cessão de carteiras de créditos, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido.
7.–Decorre do artigo 2.º do referido Diploma que considera-se cessão de créditos em massa aquela em que o cessionário seja uma instituição de crédito, sociedade financeira ou uma sociedade de titularização de créditos sempre que o preço de alienação global dos créditos a ceder seja, no mínimo, de € 50 000,00, e a carteira seja composta por, pelo menos, 50 créditos distintos.”.
8.–A requerente/cessionária é uma instituição de crédito supervisionada pelo Banco de Portugal.
9.–A fim de comprovar o preço de alienação global dos créditos cedidos, bem como o número de créditos pelos quais a carteira era constituída, a cessionária junta aos autos Declaração conjunta emitida por esta e pelo Cedente, D, como Doc. 4.
10.–Conforme dispõe o n.º 1 do artigo 3.º do mencionado Diploma o cessionário considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objeto de cessão.

A requerente terminou pedindo que a habilitação fosse admitida e, a final, deferida, habilitando-se a cessionária na qualidade de exequente nos autos, em substituição do cedente.
8.–Tendo os mandatários dos sujeitos processuais na execução sido notificados do requerimento pelo mandatário da requerente/cessionária, veio o executado apresentar contestação ao por si designado “incidente de habilitação”, alegando, em síntese, o seguinte:
1.- O incidente deveria ter sido suscitado por apenso;
2.- O executado desconhecia, por nunca lhe ter sido comunicada, a alegada cessão de créditos;
3.- Os documentos juntos pela requerente não provam nem revelam a alegada cessão de créditos, nem o seu valor, enfermando de omissões e de ininteligibilidade, que o contestante discrimina.

O executado concluiu pelo indeferimento da habilitação peticionada.
9.–A requerente G respondeu à contestação, alegando não haver lugar a apenso, pois o Dec.-Lei n.º 42/2019 dispensa a dedução de incidente de habilitação processual; mais reiterou o alegado quanto à ocorrência e eficácia da cessão de créditos e ao preenchimento dos requisitos previstos pelo Dec.-Lei n.º 42/2019.

10.– Em 30.11.2020 foi proferida a seguinte decisão:
Ref.ª 27465056 – Aguarde-se pela junção da procuração em falta.
Caso a mesma venha a ser remetida a juízo, desde já decido proferir o seguinte:
O incidente de habilitação do adquirente ou cessionário deduzido em conformidade com o regime previsto no Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de Março, como aqui sucede, não admite a dedução de contestação.
Consequentemente, não admito a contestação apresentada – art.º 590.º n.º 1 do CPC.
Custas pelo executado, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.
Registe e notifique.

11.–O executado apelou da referida decisão, tendo apresentado alegações em que formulou conclusões que por dificuldade técnica inerente ao respetivo documento aqui se não transcrevem, mas que assim se sintetizam:
a)- A decisão recorrida é nula, por falta de fundamentação;
b)- O art.º 578.º n.º 2 do Código Civil não foi revogado ou alterado pelo Dec.-Lei n.º 42/2019, de 28.3 e exige que a cessão de créditos hipotecários conste de escritura pública;
c)- A cessão só produz efeitos sobre o devedor depois de lhe ter sido comunicada, o que no caso não sucedeu;
d)- Tal notificação tem de existir antes da habilitação, sendo pressuposto da segurança que deve estar subjacente ao negócio jurídico, sob pena de inconstitucionalidade por violação do art.º 27.º n.º 1 da CRP;
e)- O Dec.-Lei n.º 42/2019 não revogou nem alterou nenhum artigo ou dispositivo do instituto de habilitação consignado e previsto no art.º 351.º e seguintes do CPC;
f)- Se não for possível deduzir contestação ou oposição a uma alegada habilitação consubstanciada numa cessão corporizada num simples documento particular há um grave atropelo ao direito do contraditório constitucionalmente consagrado e uma nulidade, conforme consigna o n.º 1 do art.º 195.º do CPC.

O apelante terminou pedindo a revogação da decisão recorrida.

12.–Não houve contra-alegações.

13.O tribunal a quo pronunciou-se pela inexistência da nulidade de falta de fundamentação da decisão recorrida e admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata e em separado, com efeito devolutivo.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO

As questões suscitadas neste recurso são as seguintes: nulidade da decisão recorrida; admissibilidade da contestação apresentada pelo executado/apelante ao requerimento de habilitação apresentado pela apelada G.

Primeira questão (nulidade da decisão recorrida)
As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo deverão ser sempre fundamentadas (n.º 1 do art.º 154.º do Código de Processo Civil, diploma a que doravante nos referiremos, caso nada se diga em contrário). Trata-se, de resto, de um imperativo constitucional (art.º 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
Consonantemente, as sentenças e os despachos não fundamentados padecem de nulidade (artigos 613.º n.º 3 e 615.º n.º 1 al. b)).
Sendo certo que, como é jurisprudência constante, não pode confundir-se falta de fundamentação com fundamentação alegadamente insuficiente ou desacerto da decisão (v.g., STJ, 02.6.2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt).
In casu, como decorre da transcrição supra da decisão recorrida, o tribunal a quo radicou a rejeição da peça processual apresentada pelo executado/apelante (contestação ao requerimento de habilitação) no teor de um diploma legal, que invocou. É verdade que o tribunal a quo não procedeu a mais considerandos, certamente por entender que a simples leitura do aludido diploma bastaria. Poderá entender-se que a fundamentação é escassa, mas cremos, ainda assim, que é suficiente. Tudo passa por, lido o diploma (que tem seis artigos), formular-se um juízo de discordância ou concordância com o decidido. Uma eventual discordância não emergirá de nulidade consubstanciada em falta de fundamentação, mas em erro na aplicação da lei.
Inexiste, pois, a imputada nulidade.

Segunda questão (admissibilidade da contestação)
Em princípio (princípio da estabilidade da instância) “[c]itado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei (art.º 260.º).
Entre as possibilidades de modificação subjetiva da instância previstas na lei figuram as que sejam consequência “da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por ato entre vivos, na relação substantiva em litígio” (art.º 262.º, al. a)).
No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo” (art.º 263.º n.º 1). Pese embora o transmitente, operada a transmissão da coisa ou do direito objeto do litígio, já não ser o titular do direito, enquanto o adquirente não for habilitado no processo o transmitente permanecerá na ação, atuando em seu nome, embora prosseguindo o interesse do adquirente, em relação a quem a sentença produzirá efeitos, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação (n.º 3 do art.º 263.º).

O incidente de habilitação é o meio processual a utilizar para determinar as pessoas que têm legitimidade para ocupar no litígio a posição da parte que tenha falecido na pendência da causa, assim como para proceder à substituição no processo do cedente da coisa ou direito em litígio pelo adquirente ou cessionário: no primeiro caso, nos termos previstos no art.º 351.º e seguintes e no segundo caso nos termos previstos no art.º 356.º e seguintes.

No caso de falecimento de uma das partes, a instância suspende-se, obrigatoriamente (art.º 269.º n.º 1 alínea a)), devendo a suspensão ser decretada pelo juiz logo que seja junto ao processo documento que comprove o falecimento, ressalvando-se exceções que implicarão a extinção do processo ou o diferimento da suspensão da instância (artigos 269.º n.º 3 e 270.º n.º 1).

No caso da transmissão da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, como se disse, a instância não se suspende, continuando o transmitente a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for admitido a substituí-lo.
A habilitação por transmissão inter vivos pode ser requerida por qualquer das partes, bem assim como pelo adquirente ou cessionário (art.º 356.º nº 2).

A habilitação do cessionário ou adquirente processa-se mediante incidente que é iniciado por requerimento que é autuado por apenso ao processo a que respeita, devendo ser acompanhado do título de aquisição ou da cessão, caso não tenha sido lavrado no processo termo da cessão (art.º 356.º n.º 1 al. a)). A parte contrária será notificada para contestar (art.º 356.º n.º 1 al. a)). Na contestação o notificado pode impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo (art.º 356.º, n.º 1, al. a), in fine; art.º 263.º n.º 2, in fine). Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe. Todas essas peças processuais deverão ser elaboradas em forma de articulado e acompanhadas das provas pertinentes (artigos 292.º a 294.º, 147.º n.º 2). Seguidamente produzir-se-ão as provas julgadas necessárias, após o que será proferida decisão (art.º 356.º n.º 1 al. b)). Na falta de contestação, verifica-se se o documento junto como título da transmissão do direito prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário (art.º 356.º n.º 1 al. b) 2.ª parte e 263.º n.º 2).

Este incidente será de admitir na ação executiva, em caso de transmissão do direito de crédito exequendo (art.º 551.º, n.º 1; Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 9.ª ed., p. 222, apud António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª edição, 2020, Almedina, p. 433).

Esta tramitação consome tempo e implica despesa (cfr. artigos 529.º, 530.º, 533.º, 539.º n.º 1).
Tendo declaradamente em vista simplificar o modelo processual acima descrito, em situações qualificadas como de “cessão de créditos em massa”, o Governo da República aprovou o Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março.
Este diploma, segundo consta no seu preâmbulo, enquadra-se no objetivo de redução do elevado nível de endividamento e a melhoria de condições para o investimento das empresas, nomeadamente através da eliminação ou mitigação dos constrangimentos com que estas atualmente se deparam no acesso ao financiamento por capitais próprios ou alheios”. Nesse quadro fora aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 81/2017, de 8 de junho, que incluiu, como medida inserida no eixo “reestruturação empresarial”, a ser aplicada pelo setor governativo da Justiça, “[m]elhorar os processos conexos com as operações de cessão de créditos em massa, com recurso aos meios tecnológicos apropriados, designadamente com vista a permitir (i) a habilitação de cessionário de forma centralizada, através de processo que assegure a tramitação agregada e expedita, e (ii) a realização dos registos junto das respetivas conservatórias de registo predial e automóvel de forma centralizada, em processo unitário e expedito” (cfr. último ponto do Anexo II da dita Resolução). Nesta sequência ponderou-se, no preâmbulo do Dec.-Lei n.º 42/2019, que “[a] agilização do mercado no que toca à transação de carteiras de crédito contribui significativamente para a melhoria das condições de financiamento das empresas e para a redução dos níveis de créditos não produtivos”. Assim, explicita-se no aludido preâmbulo, cria-se um regime simplificado para a cessão de carteiras de créditos, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido e simplificando-se as operações registais associadas”.

O universo a que este regime simplificado é aplicável define-se pelo conceito de cessão de créditos em massa, que é assim caraterizado no art.º 2.º do diploma:
a)-O cessionário é uma instituição de crédito, sociedade financeira ou uma sociedade de titularização de créditos;
b)- O preço de alienação global dos créditos a ceder é, no mínimo, de € 50 000,00, e a carteira é composta por, pelo menos, 50 créditos distintos.
Quanto à forma da cessão de créditos em massa, o diploma estipula a celebração por documento particular (n.º 1 do art.º 4.º), o qual constituirá título bastante para efeitos do registo da transmissão dos créditos hipotecários, ou das respetivas garantias sujeitas a registo, quando contenha o reconhecimento presencial das assinaturas do cedente e do cessionário (n.º 2 do art.º 4.º).
Finalmente, no que diz respeito à forma da habilitação processual do cessionário, o art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 42/2019 tem a seguinte redação:
Habilitação legal do cessionário
1 — O cessionário considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objeto de cessão.
2 — Para efeitos do número anterior, compete ao cessionário juntar ao processo cópia do contrato de cessão, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 356.º do Código de Processo Civil.
3 — O cedente deve informar o cessionário sobre quaisquer causas que sejam instauradas contra si respeitantes a certo crédito cedido nos termos do presente decreto-lei, no prazo máximo de cinco dias após a sua citação.”

Assim, para que o cessionário fique habilitado nos processos em que estejam em causa créditos objeto da cessão, basta que junte ao respetivo processo cópia do contrato de cessão.
Não haverá lugar a autuação de apenso, nem ao pagamento de taxa de justiça por desencadeamento de incidente de habilitação (cfr., neste sentido, acórdão da Relação de Guimarães, de 18.3.2021, processo 74/13.4TBGMT-G.G1).
Esta forma simples e célere proporcionada pelo legislador para fazer operar nos processos as transmissões de crédito efetuadas em grande escala adequa-se, afinal, ao direito substantivo, que não cria particulares dificuldades à eficácia da cessão de créditos perante o devedor (cfr. artigos 577.º, 578.º, 583.º do CC).
Mas significa isto que a parte contrária não pode exercer o contraditório quanto à alegada habilitação?
Não poderá a parte contrária questionar o título apresentado, quanto ao seu conteúdo e à sua forma? Não poderá pôr em causa a aplicabilidade ao seu caso do regime da cessão de créditos em massa? Não poderá suscitar fundadas dúvidas acerca da inclusão do seu crédito na alegada cessão?
Parece-nos evidente que a resposta a tais questões só pode ser no sentido da possibilidade de oposição.
O legislador não interferiu na matriz do modelo processual que nos rege.
Em regra, não será difícil ao cessionário comprovar documentalmente a cessão subjacente à habilitação e o preenchimento dos requisitos de aplicação do figurino simplificado previsto pelo Dec.-Lei n.º 42/2019. Por sua vez, a parte contrária não terá fundamento credível para se opor. Na generalidade dos casos não será necessária, pois, qualquer intervenção do juiz, que quando muito se limitará a determinar que seja levada em consideração nos autos a alteração da identidade da parte. Mas, se assim será na grande maioria dos casos, bem pode suceder que as coisas não sejam tão lineares, e suscitarem-se dúvidas, se não forem evidências, acerca da (im)procedência da invocada habilitação de cessionário. Ora, a possibilidade do exercício do contraditório, enquanto elemento estrutural do processo equitativo, é um princípio fundamental do direito adjetivo, consagrado na Constituição (art.º 20.º n.º s 1 e 4) e na lei ordinária (art.º 3.º do CPC).

Acresce que, como decorre da parte final do n.º 2 do art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 42/2019, nada obsta a que a habilitação do cessionário seja promovida pelo cedente ou pela parte contrária, nos termos do art.º 356.º, n.º 2, do CPC, podendo então seguir-se, parece, a tramitação tradicional, prevista no n.º 1 do art.º 356.º.

In casu, a alegada cessionária juntou, a acompanhar o seu requerimento, um acervo documental que suscitou dúvidas e reparos ao executado, que os formalizou mediante a apresentação de uma autodesignada “contestação”, em que concluiu pelo indeferimento da habilitação.

Ora, colocado perante a apresentação de tais questões, o tribunal a quo não deveria limitar-se a arredar dos autos a peça processual apresentada pelo executado, chame-se-lhe contestação, oposição, ou outra designação equivalente, mas sim deveria analisar o bem ou mal fundado do teor da mesma, decidindo em conformidade, sem prejuízo de diligências prévias que julgasse necessárias.

Pelo exposto, a apelação procede, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que aprecie o conteúdo da contestação apresentada, nos termos indicados.


DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que o tribunal a quo aprecie o conteúdo da contestação apresentada pelo executado, identificada supra, sem prejuízo de diligências prévias que julgue necessárias.
As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo da apelada G, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).



Lisboa, 09.9.2021



Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins