Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4717/20.5T8FNC-A.L1-7
Relator: CRISTINA SILVA MAXIMIANO
Descritores: EXECUÇÃO
CONTRATO DE MÚTUO
PRESTAÇÕES MENSAIS E SUCESSIVAS
CAPITAL E JUROS
PRESCRIÇÃO
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: ITendo as livranças dadas à execução sido entregues em branco, com autorização de preenchimento, com o propósito de servir de garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos de mútuo, no domínio das relações imediatas, a prescrição da obrigação causal determina a necessária extinção da obrigação cartular.

IIÉ jurisprudência actualmente consolidada no Supremo Tribunal de Justiça que prescrevem no prazo de 5 anos, nos termos da al. e) do artigo 310º do Código Civil, as obrigações decorrentes de um contrato de mútuo bancário, desdobradas em quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, com prestações mensais e sucessivas, de valor predeterminado, englobando os juros devidos, sendo que a circunstância de o direito de crédito se encontrar vencido na totalidade não altera o dito enquadramento em termos da prescrição.

IIIEstando subjacente à emissão da livrança um direito de crédito emergente de contrato de mútuo bancário, em que se estabelecia o pagamento do montante financiado em prestações mensais que incluíam juros remuneratórios e amortização do capital, essas obrigações e as dos respectivos juros de mora estão sujeitas ao prazo prescricional de cinco anos, por força do artigo 310º, als. d) e e) do Código Civil, conforme jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal de Justiça mencionada em II.

IVNão sendo – e não querendo ser - exercida pelo credor a faculdade que lhe é conferida nos termos do artigo 781º do Código Civil, as prestações relativas à amortização do empréstimo e respectivos juros não perdem a sua individualidade e continuam a vencer-se nas datas convencionadas (artigo 805º, nº 2, al. a) do Código Civil), ficando cada prestação concretamente considerada subordinada ao prazo de prescrição de cinco anos estabelecido nas als. d) e e) do artigo 310º do Código Civil, a contar da data de vencimento respectivo.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:      Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



IRELATÓRIO


Por apenso à execução ordinária contra si intentada por “Novo Banco, S.A.”, para pagamento da quantia global de € 40.119,84, veio o embargante B deduzir os presentes embargos de executado, peticionando a extinção da acção.

Para o efeito, alegou, em síntese útil, que: os contratos subjacentes às livranças dadas como título executivo não foram declarados resolvidos; não foi informado do preenchimento das livranças; as livranças não lhe foram apresentadas para pagamento; as dívidas estão prescritas nos termos do art. 310º, als. d) e e) do Cód. Civil, por já terem decorrido mais de cinco anos desde a data de vencimento de cada uma das prestações; existe preenchimento abusivo quanto às datas de vencimento das livranças; as obrigações cartulares estão prescritas; os pactos de preenchimento são nulos; e as livranças são nulas.
A embargada contestou, pugnando pela improcedência dos embargos, alegando, em síntese útil: não se verificar a prescrição cambiária, por não terem decorrido 3 anos desde a data de vencimento das livranças (arts. 70º e 77º da LULL); o prazo de prescrição da obrigação causal é de 20 anos (art. 309º do Cód. Civil) e só se iniciou desde o incumprimento definitivo dos contratos ocorrido no respectivo termo, durante o ano de 2017; interpelou o embargante para pagar; e preencheu a livrança nos termos acordados nos contratos.

Foi dispensada a realização da audiência prévia, e foi proferido saneador-sentença, constando do respectivo dispositivo:
“Pelo exposto, julgo os embargos de executado parcialmente procedentes e, consequentemente:
a)- por referência aos dois contratos referidos nos factos provados, declaro prescritas as quotas mensais de amortização dos empréstimos (capital e juros) vencidas até 14/11/2015, bem como os juros de mora que sobre as mesmas incidiam;
b)- determino a extinção (parcial) da execução relativamente à quantia correspondente às quotas de amortização e respectivos juros de mora declarados prescritos;
c)- determino a notificação do embargado/exequente para, no prazo de 20 dias, proceder (nos autos principais) a nova liquidação da quantia exequenda, contabilizando apenas as prestações mensais e juros em dívida com data de vencimento posterior a 14/11/2015.
Quanto ao mais, julgo improcedentes os embargos de executado.”.

Inconformada, a embargada recorre desta decisão, requerendo a respectiva revogação e substituição “por outra que decrete a suficiência dos títulos executivos dado à execução e a inexistência da prescrição, parcial, da relação subjacente ou subsidiariamente, assim não se entendendo”, “o prosseguimento dos autos para julgamento, afim de esclarecer da interrupção, ou não, da pretendida prescrição extintiva”. Termina as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
I-Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. (…) que considerando “prescritas todas as quotas de amortização (de capital e juros) vencidas desde a data da celebração dos contratos até 14/11/2015, bem como os juros de mora que sobre as mesmas incidiam (artigo 310.º d) e e) do CC)” julgou “os embargos de executado parcialmente procedentes e, consequentemente:
a)- por referência aos dois contratos referidos nos factos provados, declaro prescritas as quotas mensais de amortização dos empréstimos (capital e juros) vencidas até 14/11/2015, bem como os juros de mora que sobre as mesmas incidiam;
b)- determino a extinção (parcial) da execução relativamente à quantia correspondente às quotas de amortização e respectivos juros de mora declarados prescritos;
c)- determino a notificação do embargado/exequente para, no prazo de 20 dias, proceder (nos autos principais) a nova liquidação da quantia exequenda, contabilizando apenas as prestações mensais e juros em dívida com data de vencimento posterior a 14/11/2015.”
II-Com a qual o Recorrente não se conforma, desde logo e em primeira linha, porque a procedência parcial da oposição à execução mediante embargos de executado e a consequente extinção parcial da execução baseia-se, em primeiro lugar, no facto de o tribunal a quo julgar parcialmente prescrita a relação subjacente às livranças dada à execução, pese embora reconheça a exequibilidade do título e a sua suficiência.
III-Ora, apesar de se estar no domínio das relações imediatas (actual beneficiário e subscritor da livrança, respectivamente Exequente e Embargante), isso não significa que a livrança deixe de valer enquanto tal (verdadeiramente, depois de preenchida).
IV-Com efeito, uma livrança constitui, por si, título executivo (como decorrência das características próprias dos títulos de crédito, como são as livranças – literalidade, autonomia e abstracção) e dispensa o seu portador de invocar a relação jurídica subjacente, ainda que o portador seja parte nessa relação.
V-No caso dos autos, resulta provado que houve duas subscrições válidas e, nesse contexto, foram-lhe apostas as datas de vencimento (30/10/2020); cfr. factos A, B, C, D, E, F, G e H provados.
VI-E sabendo-se que o prazo de prescrição das livranças é de 3 anos (cfr. art.º 70 da LULL, ex vi art.º 77 do mesmo diploma), é manifesto que esse prazo não estava decorrido (a contar da data do respectivo vencimento), quando a acção foi instaurada ainda em 2020 – como, de resto, o tribunal a quo afirma; cfr. facto I provado.
VII-De tudo isto, se infere que as livranças em causa podem continuar a ser feitas valer contra o Embargante.
VIII-Estando diante de “livranças em branco”, entende, em suma, a nossa jurisprudência que, o momento decisivo para se determinar a validade da livrança é o do seu vencimento.
IX-É, pois, no momento do vencimento que se gera a obrigação cartular.
X-Resulta, então, claro para a nossa jurisprudência – constituindo, aliás, orientação consolidada -, que, tratando-se de livrança emitida em branco, o prazo prescricional corre desde o dia do vencimento aposto pelo exequente/beneficiário.
XI-E, no caso concreto, o embargante concedeu ao embargado o direito de fixar a data de vencimento, não tendo sido acorda a coincidência da mesma com a data do incumprimento dos contratos – fls. 10 da douta sentença.
XII-Pelo que, e numa primeira conclusão, não se encontrando prescritas as livranças, nos termos do art.º 70.º da LULL pois que se venceram em 30/10/2020 (i.e. a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70.º da LULL, conta-se da data aposta como data de vencimento) os títulos exequendos são certos, líquidos e exigíveis e consequentemente suficientes para o ressarcimento do Banco credor.
XIII-Depois, antes do preenchimento da livrança, estamos, no fundo, no âmbito da obrigação causal (e não no âmbito da obrigação cambiária).
XIV-Sendo que, a obrigação de restituição da dívida mutuada encontra-se sujeita ao prazo geral ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309º do CC, não estando, assim, prescrita.
XV-De resto, a interpretação feita na douta sentença recorrida, levaria a que os contratos de mútuo, passassem a prescrever todos no prazo de 5 anos, passando, a ser essa a regra, ao arrepio do que prescreve a lei a esse respeito - 20 anos.
XVI-Por seu turno, determina o artigo 306.º do CC que, o prazo de prescrição começa a correr “quando o direito puder ser exercido”.
XVII-Ou seja, a prescrição inicia-se quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular poder exercê-lo, desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação; deve, pois, entender-se que o critério consagrado é o da exigibilidade da obrigação.
XVIII-Assim, a obrigação só se tornou exigível após o termo dos contratos, em 2017.
XIX-Portanto, se conclui que não decorreu o aludido prazo de 20 anos.
XX-Subsidiariamente, caso se assuma a posição do tribunal a quo, e se arrogue uma prescrição de cinco anos, para os mútuos em causa, sempre ter-se-ia, então, de considerar a interpelação efectuada pelo Recorrente ao Recorrido.
XXI- Pese embora o termo do primeiro contrato date de Junho de 2017 e do segundo date de Março de 2017, sempre seria, ainda e também - ao contrário do entendimento do tribunal a quo - necessária a prévia interpelação do devedor para cumprir - condição indispensável à sua constituição em mora.
XXII-Sendo este o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência.
XXIII-Daí que se defenda que, neste quadro normativo, a interpelação do devedor é necessária, pois só dessa forma este pode saber que o credor exerceu a faculdade que lhe é conferida de escolher exigir a totalidade da dívida.
XXIV-E nessa medida, para cobrança dos créditos mutuados, o Recorrente interpelou o Recorrido.
XXV-Quanto ao primeiro mútuo, fê-lo aos 05/01/2013, 08/01/2013, 08/03/2013 e ainda aos 09/10/2020 exigindo, pois, o pagamento da totalidade do valor do contrato.
XXVI-Já quanto ao segundo mútuo, fê-lo aos 05/04/2013 e ainda aos 09/10/2020 exigindo, aqui igualmente, o pagamento da totalidade do valor do contrato – missivas que, tendo sido juntas sob os docs. 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 à contestação do Recorrente de 27/05/2021.
XXVII-No entanto, mediante requerimento de 11/06/2021, o Recorrido impugnou tais documentos.
XXVIII-Em face do que, dever-se-ia, pois, ter - previamente - sindicado tal factualidade, em sede própria (julgamento).
XXIX-Mais se esclarecendo que, o Recorrente notificado pelo tribunal a quo para se pronunciar sobre a possibilidade de, no imediato, ser proferida decisão, à mesma não se opôs porquanto, sempre entendeu que a decisão lhe seria favorável, porquanto, desde logo, a sua alegação resulta documentada e alinhada com a jurisprudência dominante.
XXX-Por outro lado, mesmo quando o tribunal a quo determine a prescrição – parcial - da obrigação principal, a obrigação de juros sempre se poderia manter e, consequentemente, o Exequente ter direito a receber os juros que se foram vencendo sobre o valor do capital.
XXXI-Com efeito, estabelece o artigo 561.º do CC, que “o crédito de juros não fica necessariamente dependente do crédito principal, podendo qualquer deles ser cedido ou extinguir-se sem o outro”.
XXXII-Assim sendo, antes da sua constituição, a obrigação de juros depende da obrigação pecuniária principal, podendo, uma vez constituída autonomizar-se, nos casos previstos na lei.
XXXIII-O legislador permite, portanto, que, depois de nascido, o crédito de juros possa vir a ter vida autónoma, sendo que uma das disposições legais que consagra a autonomia da obrigação de juros em relação à obrigação principal é o artigo 310.º, alínea d) do CC, relativamente aos prazos de prescrição de uma e outra.
XXXIV-E perante a apontada independência, não se estranhará, por isso que os juros possam continuar a ser devidos, mesmo que prescrita a dívida de capital, podendo neste caso, exigir-se todos os anteriores de há menos de cinco anos.
XXXV-Considerando a autonomia do crédito de juros em relação ao crédito de capital (artigo 561º do CC) e ainda que o crédito de juros não constitui um direito indisponível e se extingue pelas causas gerais de extinção das obrigações e, como tal, sujeito a prescrição (artº 298º nº 1 do CC), temos de concluir que não se pode ter como verificada a prescrição dos juros, tout court.
XXXVI-Pelo que, os mesmos continuam a ser devidos.
XXXVII-Ainda neste contexto, mais se esclarece que, mesmo que os contratos tenham chegado ao seu termo em Junho de 2017 e Março de 2017, respectivamente, sempre o mutuário tinha de ser interpelado; o que ocorreu mediante as missivas de 09/10/2020 – o que identicamente deveria, então, ter sido, sindicado em julgamento.
XXXVIII-Ao assim decidir, o tribunal a quo violou as disposições normativas constantes dos art.ºs 574º, n.º 2º, 590º, n.º 2 e ss, 595º, n,º 1, al. b) a contrario e 607º, n.º 5 do CPC e 70º da LULL, ex vi art.º 77 do mesmo diploma e ainda dos arts.º 309º, 342º, 358.º, n,º 1, 364.º, 376.º, 561.º e 805.º, n.º 1 do CC.
XXXIX-Em face do que, deve proceder o presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que decrete a suficiência dos títulos executivos dado à execução e a inexistência da prescrição – ainda que parcial - da relação subjacente, ordenando o prosseguimento dos autos, com vista à sua ulterior tramitação.”.

O apelado apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II–QUESTÕES A DECIDIR

De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objeto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, n.º 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116.

Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil). Porém, o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cfr. nº 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.

Nestes termos, no caso em análise, a questão a decidir reporta-se apenas à apreciação da excepção peremptória de prescrição das obrigações de pagamento de capital e juros das relações subjacentes aos títulos dados à execução. Com efeito, resulta de forma cristalina das alegações de recurso que a apelante concorda com a decisão do tribunal a quo ao julgar improcedente a prescrição cambiária (cfr., neste sentido, máxime, arts. 3º, 4º, 30º a 47º, 63º e 64º das motivações e pontos VI e XII das conclusões das alegações de recurso), apenas discordando da decisão recorrida na parte em que julgou procedente a excepção de prescrição das obrigações causais (cfr., neste sentido, máxime, arts. 48º a 62º, 64º e 75º a 88º das motivações e pontos XIII a XIX e XXX a XXXVII das conclusões das alegações de recurso).

III–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
A.–Foi dada como título a livrança n.º 500............478 com o valor de «28 754,66 €», assinada pelo embargante no campo destinado aos subscritores.
B.–Da livrança constam os dizeres «Funchal», «2007.06.11» e «2020.10.30», nos campos destinados ao «local», «data de emissão» e «data de vencimento», respectivamente.
C.–Esta livrança foi entregue em branco para garantia do cumprimento das obrigações assumidas no escrito particular intitulado «Contrato de Crédito ao Consumo BES», celebrado em 11/06/2007, e que aqui se dá por integralmente reproduzido, pelo qual o embargado concedeu ao embargante, em 15/06/2007, um empréstimo de € 36.321,93, obrigando-se este reembolsar àquele tal valor através de 120 prestações mensais e sucessivas de capital e juros.
D.–Deste escrito particular constam os seguintes dizeres: «Para garantia e segurança do cumprimento das responsabilidades ora assumidas, V. Exa.(s) entrega(m) ao BES uma livrança com a cláusula “não à ordem” subscrita por B […], cujo montante e data de vencimento se encontram em branco para que o Banco os fixe na data em que julgar conveniente pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos […].»
E.–Foi ainda dada como título livrança n.º 500............080 com o valor de «11 318,18 €», assinada pelo embargante no campo dos subscritores.
F.–Da livrança constam os dizeres «Funchal», «2012.02.22» e «2020.10.30», nos campos destinados ao «local», «data de emissão» e «data de vencimento», respectivamente.
G.–Esta livrança foi entregue em branco para garantia do cumprimento das obrigações assumidas no escrito particular intitulado «Contrato de Crédito ao Consumo BES», celebrado em 22/02/2012, e que aqui se dá por integralmente reproduzido, pelo qual o embargado concedeu ao embargante, em 23/02/2012, um empréstimo de € 5.693,65, obrigando-se este a reembolsar tal valor àquele através de 60 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, a primeira das quais em 02/03/2012.
H.–Deste escrito particular constam os seguintes dizeres: «O Cliente entrega ao BES uma livrança com a cláusula “não à ordem” que o BES poderá acionar ou descontar no caso de incumprimento das obrigações […]. O BES fica autorizado a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do contrato.»
I.–A acção executiva deu entrada em juízo em 09/11/2020, e o embargante foi citado em 08/04/2021.
*

Na decisão recorrida, foi consignado que:
A restante matéria alegada pelas partes é de direito, conclusiva ou simplesmente irrelevante para a decisão, tal como se explanará na fundamentação de direito.”

IV–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Está em causa neste recurso a decisão do tribunal a quo na parte atinente à procedência parcial da excepção peremptória de prescrição relativamente às obrigações subjacentes às emissões das livranças dadas à execução.

Apreciemos.
Como é sabido, a livrança é um título de crédito, o qual contem a promessa de pagamento de uma determinada quantia, nos termos do art. 75º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, resultante das Convenções de Genebra de 07/06/1930, aprovadas pelo Decreto nº 23721, de 29/03/1934, em vigor como direito interno português desde 8 de Setembro desse ano (doravante, designada pela sigla LULL). Pode a livrança, como título de crédito que é, servir de título executivo (cfr. art. 703º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil), sendo que a exequente/embargada configurou a sua pretensão inicial como uma típica acção cambiária de natureza executiva.

Com efeito, a execução a que os presentes autos se encontram apensos foi instaurada tendo por base duas livranças, subscritas pelo executado, nos termos literais das quais resulta que o mesmo se obrigou a pagar ao sacador, ou à sua ordem, os valores de € 28.754,66 e € 11.318,18, respectivamente, tendo essas obrigações de pagamento, ambas, data de vencimento de 30/10/2020.

As livranças, enquanto títulos de crédito, têm como traços principais a incorporação da obrigação no título; a literalidade da obrigação; a abstracção da obrigação; a independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título; e a autonomia do direito do portador.

A mencionada característica de abstracção exprime a ideia de que a declaração aposta no título dá forma a um novo direito, o direito cartular, independente da relação fundamental. O negócio jurídico cambiário pode preencher diversas funções económico-jurídicas (“a obrigação cambiária pode ser assumida “pro soluto” ou “pro solvendo”, com uma função de garantia ou de pagamento, com ou sem eficácia novadora, e pode ser assumida em face das mais diversas relações jurídicas: compra e venda, mútuo, etc.” –Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial”, Vol. III Letra de Câmbio, p. 47), não tendo uma causa própria, legalmente típica e é independente da causa que, em cada caso concreto, vise. Ou seja, embora seja abstracto, o negócio cambiário radica sempre numa causa, sucedendo, apenas, que esta é separada daquele, decorrendo não dele próprio, mas de uma convenção subjacente, extra-cartular, sendo que os vícios de que esta padeça não poderão ser opostos ao portador mediato de boa-fé, mas já o poderão ser ao portador imediato.

Nas relações imediatas, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que se fundamentam nessas relações pessoais.

A este propósito, e com particular pertinência neste caso (cfr. infra) importa notar, como bem se refere no Acórdão deste Tribunal e Secção, de 30/10/2018, Carlos Oliveira, acessível em www.dgsi.pt, que:
“a característica da abstração dos títulos de crédito não legitima a conclusão de que a obrigação subjacente se extinguiu por novação, nos termos dos Art.s 857.ºe ss do C.C., por força da sua substituição pela obrigação cambiária.
Na verdade, a obrigação cambiária existe em paralelo com a obrigação causal subjacente, até porque para existir novação como causa de extinção duma obrigação era necessário que a vontade de contrair uma nova obrigação em substituição da antiga fosse expressamente manifestada (Art. 859.º do C.C.), o que claramente não sucede no caso concreto, dado que a livrança foi entregue precisamente para “caucionar” ou “garantir” a obrigação principal, conforme ficou consignado no contrato de fls 46 e 47. Pelo que, a assunção das obrigações cartulares pelos executados foi feita no pressuposto necessário da subsistência do vínculo emergente da obrigação visada garantir.
Como ensinava Ferrer Correia (in Ob. Loc. Cit., pág.s 441 a 442), continua a valer a doutrina resultante do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de maio de 1936, segundo a qual a prescrição a que se refere o Art. 339.º do Cód. Comercial não abrange a obrigação constante da letra, o que tem vindo a ser interpretado no sentido de que extinta a obrigação cambiária por prescrição, pode ainda reportar-se o credor à obrigação fundamental e com base nesta acionar o devedor (No mesmo sentido: Pinto Furtado, in Ob. Loc. Cit. pág. 72).
Foi esta orientação doutrinária, que mereceu acolhimento jurisprudencial, que veio a ter forma de lei no Art. 703.º n.º 1 al. c) do C.P.C. vigente, ao reconhecer força executiva aos títulos de crédito, mesmo que quirógrafos, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.
Decorre do exposto que, não só subsiste a relação creditória subjacente à emissão do título de crédito, como no caso concreto a obrigação cambiária tinha por função servir de garantia de cumprimento da obrigação creditória subjacente.”.

No caso dos autos, conforme resulta dos factos provados sob as als. A. a H. , as duas livranças dadas à execução foram entregues pelo  respectivo subscritor, o executado/embargante/ora apelado, ao então BES, a quem sucedeu “Novo Banco, S.A.”, a exequente/embargada/ora apelante, em branco, para garantia do cumprimento das obrigações emergentes dos “Contratos de Crédito ao Consumo BES” celebrados, entre ambos, em 11/06/2007 e em 22/02/2012, respectivamente, tendo conferido autorização ao então BES para proceder ao seu preenchimento pelos valores das responsabilidades, vencidas e em dívida, por referência às quantias devidas ao abrigo de cada um daqueles contratos, respectivamente.

Estamos, assim, no domínio das relações imediatas, ou seja, as livranças dadas à execução não foram objecto de transmissão, isto é, não entraram em circulação, sendo o sacador e o subscritor das livranças, simultaneamente, o credor e o devedor das obrigações principais originais extra-cartulares.

Desta forma, o subscritor das livranças (executado/embargante nesta acção) tem legitimidade para invocar perante o sacador (exequente/embargada nesta acção) qualquer meio de defesa, incluindo os decorrentes da invalidade, ineficácia ou extinção da obrigação causal - cfr. arts. 17º e 77º da LULL.

E é, precisamente, isto que o embargante veio sustentar nestes embargos ao invocar a extinção – por prescrição - das obrigações assumidas com a subscrição das duas livranças dadas à execução – cfr. arts. 728º, 729º e 731º, todos do Cód. Proc. Civil.

Na verdade, não obstante a literalidade, a abstracção e a autonomia das livranças, o embargante, confrontado com o pedido exequendo, teve a iniciativa de ampliar a discussão para além dos factos não inscritos nas livranças (títulos de crédito), colocando em crise a própria existência das obrigações emergentes das relações subjacentes às respectivas emissões, defendendo (para  que aqui interessa) a sua extinção por prescrição – para além da invocação da prescrição da obrigação cambiária, de três anos, ao abrigo do art. 70º, nº 1, ex vi do art. 77º, ambos da LULL (prescrição cambiária esta, que foi julgada improcedente na decisão recorrida que, nesta parte, por não ter sido objecto de recurso, transitou em julgado).

Desta forma, independentemente das datas de vencimento das livranças em referência e da inexistência de abuso dos respectivos pactos de preenchimento e da inexistência da prescrição cambiária propriamente dita (questões suscitadas pelo embargante nesta acção e julgadas improcedentes na decisão recorrida, que, nestas partes, por não ter sido objecto de recurso, transitou em julgado), mesmo assim, a eventual extinção por prescrição das obrigações principais, causais e subjacentes às mencionadas livranças “pode arrastar consigo a necessária extinção” das obrigações cambiárias – cfr. citado Acórdão desta Relação e Secção de 30/10/2018, Carlos Oliveira.

Reforçando esta realidade e entendimento jurídico, chama-se aqui à colação as também esclarecedoras palavras exaradas a este respeito no Acórdão do TRC de 26/04/2016, Maria João Areias, acessível em www.dgsi.pt:
“A par da obrigação cambiária resultante da assinatura do título por parte do embargante (relação cartular), existem e subsistem as obrigações decorrentes da celebração de um contrato de mútuo entre o embargante e o Banco exequente (relação fundamental ou subjacente). O negócio cambiário possui uma causa (contrato de mútuo) que levou à subscrição da livrança. Em simultâneo com tais negócios existirá ainda uma convenção executiva entre o subscritor e o beneficiário da livrança, um acordo que explica a subscrição do título, fazendo a ligação entre a relação fundamental e o negócio cambiário.
De harmonia com o disposto no artigo 17º da L.U.L.L. (aplicável às livranças por força do disposto no artigo 77º), no domínio das relações imediatas podem, em regra, ser invocadas as exceções inerentes à relação fundamental ou subjacente.
Nas relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador/sacado, sacador/tomador, tomador/1º endossado, etc.), nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, é comum afirmar-se que tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstrata, ficando sujeita às exceções que nessas relações pessoais se fundamentem[3]
Ou, como prefere Carolina Cunha[4], sendo a obrigação cambiária instrumental da relação fundamental (instrumentalidade que é definida pela convenção executiva) é legítimo que as vicissitudes que afetem a relação subjacente tenham reflexos na pretensão cambiária.
Quanto à determinação sobre quais as vicissitudes causais que relevam e em que termos, deverá ser levada a cabo partindo do teor da convenção executiva, dependendo dos contornos da situação concreta. Sempre que o devedor esteja em condições de fazer valer factos extintivos da pretensão fundamental do credor, o carater instrumental da pretensão cambiária determina a sua vulneração: a circunstância de a obrigação fundamental não se ter validamente constituído ou de vir a ser extinta não pode deixar de comprometer irremediavelmente a obrigação cambiária criada para a solver, garantir, novar, etc.[5].
A prescrição da obrigação subjacente, atribuindo ao beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou se se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (artigo 304º, CC), acarretará, assim, em regra, a extinção da obrigação cambiária.”.

Desta forma, e ao contrário do entendido pela apelante em sede deste recurso, não obstante a decidida inexistência da ocorrência da prescrição cambiária, cumpre apreciar a questão da prescrição das obrigações fundamentais decorrentes dos contratos de crédito e respectivos juros, o que se passa a fazer.

Muito embora o Código Civil não contenha qualquer definição de prescrição, estabelece o nº 1 do art. 298º deste diploma que a mesma se reconduz ao “não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei” de direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare como isentos de prescrição. A prescrição extingue, pois, os direitos subjectivos que não são exercidos durante um tempo determinado na lei. Este instituto tem como fundamento a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o prazo que a lei lhe faculta, findo o qual já não se justifica a protecção legal desse direito, podendo até presumir-se que o titular terá querido renunciar ao seu exercício – cfr. Vaz Serra, inPrescrição e Caducidade”, BMJ, 105, p. 32.

A prescrição, para além de satisfazer a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos, baseia-se numa ponderação de justiça e de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, de modo que se presume a renúncia ao direito ou, pelo menos, a desnecessidade da tutela do Direito, relativamente a quem não o exerce, protegendo-se o interesse do sujeito passivo. “Há, portanto, uma inércia do titular do direito, que se conjuga com o interesse objectivo numa adaptação da situação de direito à situação de facto.” – cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed. actualizada, p. 376.

Cumpre, então, analisar qual o prazo de prescrição aplicável ao caso dos autos.

Como se viu, no caso dos autos, as obrigações de pagamento a cargo do executado/embargante emergem de dois contratos de mútuo, nos quais foram estabelecidos pagamentos fraccionados para reembolso dos capitais financiados em cada contrato pela exequente/embargada.

Na decisão recorrida, foi entendido que o cumprimento dessas obrigações fraccionadas, que incluíam capital e juros, estavam subordinadas ao prazo prescricional de cinco anos, nos termos do art. 310º, als. e) e d), respectivamente, do Cód. Civil, reportando-se o início deste prazo à data de vencimento de cada uma das prestações. Donde, de acordo com o disposto no art. 323º, nº 1 do Cód. Civil, e tomando “como premissa o dia 14/11/2020, 5.º dia subsequente à data de entrada da acção”, julgou o tribunal a quo prescritas “todas as quotas de amortização (de capital e juros) vencidas desde a data da celebração dos contratos até 14/11/2015, bem como os juros de mora que sobre as mesmas incidiam”.

A apelante, nas alegações de recurso, sustentou que não se aplica ao caso o disposto no art. 310º do Cód. Civil, mas o prazo prescricional ordinário de 20 anos (art. 309º do Cód. Civil), que ainda não decorreu – cfr., máxime, arts. 49º a 51º e 57º das motivações e ponto XIV das conclusões de recurso.

O apelado, em sede de recurso, veio sustentar, no essencial, a mesma posição que decorre da decisão recorrida, defendendo a aplicação ao caso do prazo prescricional mais curto de 5 anos (art. 310º, als. d) e e) do Cód. Civil).

Vejamos.
Como é sabido, e já aflorado quer nos articulados destes embargos por ambas as partes, quer na decisão recorrida, quer em sede de alegações e contra-alegações deste recurso, a questão do prazo de prescrição em casos como o dos autos tem causado controvérsia na jurisprudência.

Uma corrente jurisprudencial entende que prescrevem no prazo de 5 anos, nos termos da al. e) do art. 310º do Código Civil, as obrigações decorrentes de um contrato de mútuo bancário, desdobradas em quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, com prestações mensais e sucessivas, de valor predeterminado, englobando os juros devidos, sendo que a circunstância de o direito de crédito se encontrar vencido na totalidade não altera o dito enquadramento em termos da prescrição.

Num campo de conceptualização oposto, com menor expressão actual na jurisprudência, como se verá infra, outra corrente jurisprudencial compreende o contrato de mútuo a liquidar em prestações como um contrato de natureza duradoura e prestação única, distinto do contrato de prestações continuadas, no qual as prestações de amortização não assumem autonomia, sendo por tal de aplicar ao capital total em dívida o prazo de prescrição geral de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil – cfr., neste sentido, Acórdão do TRE de 10/05/2018, Paulo Amaral, acessível em www.dgsi.pt.
A propósito desta questão e controvérsia, recorremos aqui, pela sua clarividência, à análise feita a este propósito no recente Acórdão desta Secção de 06/07/2021, Luís Filipe Sousa, disponível em www.dgsi.pt - que nos permitimos transcrever:
“Nos termos do Artigo 310º, al. d), do Código Civil, prescrevem no prazo de cinco anos os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades. E, nos termos da al. e), prescrevem no mesmo prazo as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros.
Em análise à al. e), refere Ana Filipa Morais Antunes, “Algumas Questões sobre Prescrição e Caducidade”, Separata de “Estudos em Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia”, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010, p. 47, acessível em https://www.servulo.com/pt/investigacao-e-conhecimento/Algumas-questes-sobre-prescricao-e-caducidade/5279/ :
«(…) o preenchimento da situação contemplada na alínea e) do artigo 310.º do C.C. obriga a que se atenda às circunstâncias do caso concreto. Em particular, será relevante, para aquele efeito, o facto de o reembolso da dívida ter sido objeto de um plano de amortizações, composto por diversas quotas, que compreendam uma parcela de capital e uma parcela de juros remuneratórios. Este dado tem, como observado, importantes reflexos em matéria de prazo prescricional, na medida em que permite suportar a conclusão de que será aplicável a referida prescrição quinquenal, e não o prazo ordinário prescricional, previsto no artigo 309.º do C.C.
Na verdade, na situação prevista no artigo 310.°, alínea e), não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição, de vinte anos, mas sim, diversamente, uma hipótese distinta, resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizada num plano de amortização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição, de curta duração. O referido plano, reitera-se, obedece a um propósito de agilização do reembolso do crédito, facilitando a respetiva liquidação em prestações autónomas, de montante mais reduzido. Por outro lado, visa-se estimular a cobrança pontual dos montantes fracionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato, tendo por objeto a totalidade do montante em dívida.
Constituirão, assim, indícios reveladores da existência de quotas de amortização do capital pagáveis com juros: em primeiro lugar, a circunstância de nos encontrarmos perante quotas integradas por duas frações: uma de capital e outra de juros, a pagar conjuntamente; em segundo lugar, o facto de serem acordadas prestações periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após outra.»

A jurisprudência do STJ sobre o âmbito desta alínea e) do Artigo 310º do Código Civil tem sido clara. Assim:

§ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.4.2021, Graça Amaral, 1736/19:
I-O contrato de mútuo bancário em que a obrigação de restituição do capital mutuado se mostra fracionada (prestações) consubstancia um acordo de amortização em que cada uma das prestações mensais devidas é uma quota de amortização do capital (ainda que integrada por duas frações: uma de capital e outra de juros), sendo, por isso, aplicável o prazo de prescrição previsto no artigo 310.º, alínea e), do Código Civil.
II-Não releva para efeitos de enquadramento em termos de prescrição a circunstância de, em consequência da perda do benefício do prazo, o direito de crédito se vencer na sua totalidade com o vencimento imediato de todas as frações.
§ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.4.2021, Pinto Oliveira, 5329/19:
Em contratos de mútuo, em que se “compartimenta” a obrigação de restituição do capital em quotas de amortização, o vencimento antecipado de todas as prestações, em consequência do art. 781.º do Código Civil, não prejudica a aplicação do prazo do art. 310.º do Código Civil.
§ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.5.2021, Lima Gonçalves, 3522/18:
I— Em contratos de mútuo oneroso, o acordo pelo qual se fraciona a obrigação de restituição do capital mutuado é um acordo de amortização e cada uma das prestações em que a obrigação de restituição se fraciona é uma quota de amortização.
II.— Em consequência, cada uma das prestações mensais devidas pelo mutuário é uma quota de amortização do capital no sentido do artigo 310.º, alínea e), do Código Civil.
III.— A circunstância de o direito de crédito se vencer na sua totalidade, em resultado do incumprimento, não altera o seu enquadramento em termos da prescrição, sob pena de se poder verificar uma situação de insolvência, a qual, manifestamente, o legislador pretendeu evitar, quando consagrou o prazo comum da prescrição da alínea e) do artigo 310.º do Código Civil.
§ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.2.2021, Fernando Samões, 15273/18:
I. Os créditos emergentes de contratos de mútuo bancário em que é convencionada a amortização da dívida em prestações periódicas de capital com os respetivos juros estão sujeitos ao prazo de prescrição quinquenal previsto no art.º 310.º, al, e), do Código Civil.
II. O vencimento antecipado da totalidade das prestações não altera o seu enquadramento em termos da prescrição.
§ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.1.2021, Maria Vaz Tomé, 20767/16:
I- No mútuo bancário, as obrigações que visam simultaneamente amortizar e remunerar o capital - obrigações híbridas ou mistas não são nem obrigações de reembolso de capital e nem obrigações de pagamento de juros. São obrigações unitárias, ainda que se destinem a cumprir uma dupla função: restituição e remuneração do capital mutuado.
II- Segundo a doutrina dominante, o incumprimento de uma das prestações em que a obrigação de reembolso é dividida ou repartida preenche a facti-species do art. 781.º, ainda que o incumprimento se reporte a uma prestação com função simultaneamente amortizadora e remuneratória do capital.
III-De modo a evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, para tutelar o devedor contra a acumulação da sua dívida, deve aplicar-se o prazo de prescrição do art. 310.º, als. d) e e) do CC - de cinco anos a contar do respetivo vencimento.
IV- O facto de o incumprimento de uma prestação implicar o vencimento antecipado das restantes prestações em “nada releva para o problema em causa, porque nesse caso a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização e não ao todo em dívida”.
§ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.1.2021, Tibério Silva, 6238/16:
I.Nas dívidas liquidáveis em prestações, de acordo com o regime previsto no artigo 781.º do Código Civil (que não tem natureza imperativa), o não pagamento de uma delas, conferindo ao credor o direito de exigir antecipadamente o cumprimento das vincendas, não o dispensa de interpelar o devedor para proceder ao respetivo pagamento.
II. Prescrevem no prazo de 5 anos, nos termos da al. e) do art. 310º do CC, as obrigações decorrentes de um contrato de mútuo bancário, desdobradas em quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, com prestações mensais e sucessivas, de valor predeterminado, englobando os juros devidos.
III. A circunstância de o direito de crédito se encontrar vencido na totalidade, não altera o dito enquadramento em termos da prescrição.
§ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.9.2020, Rijo Ferreira, 805/18:
Às quotas de amortização do capital integrantes das prestações para amortização de contratos de financiamento aplica-se a prescrição quinquenal prevista no art.º 310º, al. e), do CCiv, ainda que se verifique o vencimento antecipado das mesmas.
Consoante se refere neste último aresto:
«O vencimento imediato de todas as prestações por via da falta de pagamento de uma deles, nos termos do art.º 781º do CCiv, implica apenas e tão só isso mesmo: o vencimento imediato, com perda do benefício do prazo; não tem por efeito alterar a natureza da dívida, repristinando a anterior obrigação única que foi substituída por uma obrigação fracionada. O que é devido continua a ser todas as quotas de amortização individualmente consideradas e não a quantia global do capital em dívida. E o facto de as quotas de amortização deixarem nessa situação de estar ligadas ao pagamento dos juros (cf. AUJ 7/2009, DR, I, 05MAI2009), por via dessa antecipação do vencimento, não interfere, em nosso modo de ver, com o tipo de prescrição aplicável em função da natureza da obrigação, que não é alterada pelas vicissitudes do incumprimento.
Por outro lado, se é certo que se logrou um dos fundamentos da aplicação da prescrição quinquenal (o evitar a acumulação dos montantes em dívida tornando o pagamento excessivamente oneroso para o devedor) não deixa de subsistir a necessidade de uma acrescida diligência do credor na recuperação do seu crédito, tendo em vista, numa ótica do ‘favor debitoris’ imanente ao CCiv, evitando a perpetuação, com a consequente incerteza e insegurança, da situação do devedor.»
Decorre desta jurisprudência consolidada do STJ, que subscrevemos, que as quotas de capital e juros remuneratórios do mútuo acordado prescreveram na sua totalidade cinco anos após o vencimento da última prestação (de 7.3.2006), ou seja, em 7.3.2011. Acresce que, mesmo que se considerasse que a totalidade das prestações se tinham vencido em 7.2.2002 (cf. facto 7; solução que afastámos supra), tal prescrição também ocorreria, mas ainda mais cedo, em 7.2.2007, uma vez que o vencimento antecipado não afasta a aplicação da regra da al. e), do Artigo 310º do Código Civil.”

Ponderados os argumentos relevantes, afigura-se-nos ser de perfilhar este último entendimento, igualmente acolhido no recentíssimo Acórdão desta Relação e Secção de 11/01/2022, Carlos Oliveira, acessível em www.dgsi.pt.
No caso dos autos, em sede deste recurso, a mutuante/credora/exequente/embargada/ora apelante afasta expressamente, desde logo, que “não estamos perante um caso de vencimento antecipado do capital por falta de pagamento de prestações vencidas, nos termos do artº 781º do C. Civil (…), pois o ora Recorrente não recorreu a tal figura jurídica, uma vez que só com a presente acção veio pedir o pagamento do capital em dívida e de juros de mora sobre o mesmo, à taxa acordada, à semelhança da interpelação que fez ao Recorrido(art. 59º das motivações das alegações de recurso), nem perante uma resolução dos contratos de mútuo por incumprimento dos mutuários (v.g. art. 1150º do Cód. Civil), ao invocar explicitamente que: “a obrigação só se tornou exigível após o termo dos contratos, em 2017” (art. 61º das motivações e ponto XVIII das conclusões das alegações de recurso).
Donde, sem necessidade de maiores considerações, e face ao entendimento que perfilhamos, é cristalino que, em cada um dos dois contratos dos autos, todas as prestações vincendas após o incumprimento de uma qualquer anterior, continuaram a vencer-se na data que estavam estabelecidas em cada um dos contratos, respectivamente, permanecendo sujeitas ao prazo prescricional de cinco anos, de acordo com o art. 310º, al. d) (quanto à obrigação de juros) e e) (quanto às prestações de amortização de capital pagáveis com juros) do Cód. Civil, e não ao prazo de 20 anos previsto no art. 309º do mesmo diploma.

Em suma, no caso dos autos, e ao contrário do entendido pela apelante em sede deste recurso: (i)-o prazo de prescrição aplicável é o de cinco anos (art. 310º, als. d) e e) do Cód. Civil); (ii)-tal prazo conta-se relativamente a cada prestação em falta concretamente considerada (e não relativamente a uma “obrigação única” e global de todo o montante em dívida); (iii)- tal prazo conta-se a partir do dia de vencimento de cada prestação em falta concretamente considerada (e não “após o termo dos contratos, em 2017”); e (iv)-não é exigível a interpelação do devedor para se dar a sua constituição em moracfr. art. 306º, nº 1, conjugado com os arts. 804º, 805º, nº 2, al. a) e 806º, todos do Cód. Civil.

Acresce que, não sendo exigível, no caso dos autos, a interpelação do devedor para se dar a sua constituição em mora relativamente a cada prestação (uma vez que, como se viu, cada obrigação de pagamento da prestação tinha prazo certo de vencimento: cfr. citados arts. 306º, nº 1 e 805º, nº 2, al. a), ambos do Cód. Civil), não tem razão a apelante ao pugnar, em sede deste recurso, “subsidiariamente” pelo prosseguimento da instância para julgamento no que concerne à alegada realização das interpelações do executado/embargante/ora apelado para cumprir através das cartas datadas de 05/01/2013, 08/01/2013, 08/03/2013 e 09/10/2020 quanto a um contrato, e datadas de 05/04/2013 e 09/10/2020 quanto ao outro contrato, juntas como documentos nºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 à contestação. Na verdade, tal factualidade (mesmo a ser verdadeira) é irrelevante para o efeito pretendido pela apelante - de interpelação do devedor para se verificar a sua constituição em mora – uma vez que, na situação dos autos, e como se viu, o devedor constitui-se em mora quanto a cada prestação mensal “independentemente de interpelação (cfr. art. 805º, nº 2, proémio, do Cód. Civil) e a partir da data de vencimento de cada prestação mensal (cfr. al. a) desta última norma). Donde, não existir fundamento válido para aquele prosseguimento da instância para julgamento.

Acresce que, as únicas (alegadas) cartas relativamente aos dois contratos em que decorre do seu teor que o credor exigiria a totalidade do valor financiado em dívida (do teor das alegadas cartas datadas do ano de 2013 apenas resulta a exigência do pagamento dos montantes parciais então em dívida) são as (alegadamente) datadas de 09/10/2020, data esta, em que os dois contratos já tinham chegado há muito - durante o ano de 2017 - ao seu termo natural com o vencimento integral de todas as prestações pelo decurso do tempo (em Junho de 2017 quanto a um contrato, e em Março de 2017 quanto ao outro contrato: cfr. Factos Provados sob as als. C) e G), respectivamente), pelo que, tal factualidade (mesmo verdadeira) sempre também seria inócua para obstar à prescrição de cada uma das prestações mensais entretanto vencidas e/ou para ter eficácia como interpelação do devedor para os efeitos pretendidos pela apelante. Donde, também por esta razão, verifica-se não existir fundamento válido para o pretendido prosseguimento da instância para julgamento.

Note-se, ainda, que, que a alegada remessa das mencionadas cartas (documentos particulares) também não tem a virtualidade de interromper o prazo da prescrição da obrigação atento o disposto no art. 323º, nº 1 do Cód. Civil, a qual só se interrompe pela citação ou notificação judicial avulsa de acto que expresse a intenção de exercer o direito. Donde, também para estes efeitos, sempre aquela factualidade (mesmo sendo verdadeira) seria irrelevante, não existindo, por isto, fundamento válido para o pugnado prosseguimento da instância para julgamento.

Discorda, ainda, a apelante do decidido pelo tribunal a quo quanto à prescrição dos juros dos últimos cinco anos. Para o efeito, convoca o art. 561º do Cód. Civil.

Porém, este preceito consagra apenas o princípio da autonomia do crédito de juros, inclusivamente, para o que aqui interessa, quanto à consideração de causas de extinção típicas, nada se retirando deste princípio que desabone a decisão recorrida quanto à prescrição dos juros. Na verdade, quanto à prescrição dos juros, resulta claramente do disposto na al. d) do art. 310º do Cód. Civil (preceito aplicado na decisão recorrida) a possibilidade de os créditos periódicos de juros prescreverem, independentemente da extinção da dívida de capital, sendo certo que esta norma abrange quaisquer juros, convencionais ou legais, moratórios ou remuneratórios.

Donde, só se pode concordar com a decisão recorrida relativamente à prescrição dos juros, pelo que, sem necessidade de maiores considerações, improcede a argumentação da apelante em sentido contrário.

Na decorrência do que se vem expondo, e em suma, sendo incontroverso nos autos que a data de 14/11/2020 sinaliza o 5º dia subsequente à data de entrada da execução (cfr. art. 323º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil), é de julgar verificada a prescrição de todas as quotas de amortização (de capital e juros) vencidas desde a data da celebração dos contratos até 14/11/2015, bem como os juros de mora que sobre as mesmas incidiam (art. 310º, als. d) e e) do Cód. Civil); devendo a execução prosseguir os seus termos cingida às prestações dos empréstimos e respectivos juros cuja data de vencimento seja posterior a 14/11/2015 - tal como decidiu o tribunal a quo.

Por todo o exposto, improcedem as conclusões da apelante, devendo a sentença recorrida ser confirmada, concluindo-se pela total improcedência da presente apelação.
*

As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade da apelante – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.

V.–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação improcedente, e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa, 22 de Março de 2022



Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
Dina Monteiro