Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5/10.3PGLRS-A.L1-5
Relator: RICARDO CARDOSO
Descritores: PRESCRIÇÃO DAS PENAS
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
PENA DE MULTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: De acordo com o art. 125º, nº 1, al. c), do Código Penal, apenas a prescrição da pena privativa da liberdade se suspende durante o tempo em que o condenado estiver a cumprir outra pena privativa da liberdade, e a prescrição da pena de multa não se suspende com o decurso do cumprimento da pena de prisão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

1. No âmbito do processo sumário nº 5/10.3PGLRS do Juiz nº 2 do Tribunal da Instância Local de Loures – Secção de Pequena Criminalidade - da Comarca de Lisboa Norte no qual é arguido B, por decisão proferida em 17 de Março de 2014, a fls. 75 nos autos em epígrafe referenciados o Tribunal “a quo” decidiu o seguinte:

“Conforme resulta de fls. 63 e de fls. 67, o arguido esteve em cumprimento de pena de prisão de 23/06/2010 a 14/11/2013, ou seja durante o período de 3 anos, 4 meses e 20 dias.

É entendimento deste Tribunal que, uma vez que o artigo 125º, n.º 1, alínea c) do Código Penal não distingue, a causa de suspensão aqui prevista também opera no caso de pena de multa, como é o caso dos presentes autos. Assim, discordando-se do entendimento do Ministério Público exposto a fls. 73/74, indefere-se o promovido, consignando-se que a pena destes autos apenas prescreverá a 01/07/2017.

Mais decidiu o Tribunal a quo substituir a pena de multa de 120 dias aplicada ao arguido, por 120 horas de trabalho a favor da comunidade, nos termos que vierem a ser propostos pela DGRSP.”

2. Inconformado o magistrado do Ministério Público interpôs recurso formulando na sua motivação as seguintes conclusões:

“1º. Nos presentes autos foi o arguido B condenado, por sentença transitada em julgado em 11.02.2010, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 2/98 de 03.01 e pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º n.º 1 al. b) do Código Penal, na pena única de 120 dias de multa, à razão diária de € 10,00, perfazendo um total de € 1.200,00.

2º. De acordo com o artigo 122º n.º 1 al. d) e n.º 2 do Código Penal, as penas de multa prescrevem no prazo de 4 anos a contar da data do trânsito em julgado da decisão que as tiver aplicado.

3º. Nos presentes autos não ocorreu qualquer causa de interrupção da prescrição e entende-se, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, não ter, igualmente, ocorrido qualquer causa de suspensão da prescrição da pena, mormente a estatuída na al. c) do artigo 125º n.º 1 do Código Penal.

4º. No nosso modesto entendimento e, repristinando aqui os fundamentos exarados no aresto da Relação de Évora datado de 20.09.2011, a cujo teor se adere in totum, concluímos que:

“1. O art. 125º, nº 1, al. c) do CPP deve interpretar-se no sentido de se considerar que apenas o prazo da prescrição da pena privativa da liberdade se suspende durante o tempo em que o condenado estiver a cumprir outra pena privativa da liberdade.

2. Assim, o prazo prescricional da pena de multa corre durante o tempo em que o condenado esteja a cumprir pena de prisão.”

5º. Ademais, a circunstância de o condenado estar a cumprir pena de prisão não pode ser fundamento para a suspensão da prescrição da pena de multa porquanto são penas de natureza diferente e nada obsta a que um recluso efectue o pagamento de uma multa, donde se retira que o seu cumprimento simultâneo não é incompatível.

6º. Destarte, constata-se não ter ocorrido qualquer causa de interrupção ou de suspensão da prescrição, tendo já decorrido mais de 4 anos desde a data do trânsito em julgado da decisão condenatória, pelo que, ao indeferir a promovida declaração de prescrição da pena de multa e, em consequência, determinar a substituição da pena de 120 dias de multa por 120 horas de trabalho a favor da comunidade o Tribunal a quo, salvo o devido respeito por entendimento diverso, violou o disposto nos artigos 122º n.º 1 al. d) e n.º 2 e artigo 125º n.º 1 al. c), ambos do Código Penal.

7º. Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o despacho proferido pela Meritíssima Juíza a quo substituído por outro que determine a prescrição da pena de multa.”

3. O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

4. Subidos os autos, neste Tribunal, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

5. Foi realizada a competente conferência.

6. O objecto do recurso versa a questão de saber se o cumprimento de pena de prisão constitui causa suspensiva do prazo de prescrição da pena de multa.

7. Apreciação:

7.1. Compulsados os autos apura-se que o arguido B foi nos mesmos condenado, por sentença proferida a 18 de Janeiro de 2010, - transitada em julgado em 11 de fevereiro de 2010, - pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 2/98 de 03.01 e pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º n.º 1 al. b) do Código Penal, na pena única de 120 dias de multa, à razão diária de € 10,00, perfazendo um total de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).

Por força do disposto no artigo 122º n.º 1 al. d) e n.º 2 do Código Penal, as penas de multa prescrevem no prazo de 4 anos a contar da data do trânsito em julgado da decisão que as tiver aplicado.

O arguido B esteve recluso em cumprimento de pena de prisão de 23 de Junho de 2010 a 14 de Novembro de 2013 (à ordem de outros autos).

7.2. Neste circunstancialismo o MºPº considerou reunidos os pressupostos da prescrição da pena de multa, uma vez que o cumprimento de pena de prisão não teria reflexo na suspensão da prescrição, tal como resulta da indeferida promoção, “(…) constata-se não ter ocorrido qualquer causa de interrupção ou de suspensão da prescrição, tendo já decorrido mais de 4 anos desde a data do trânsito em julgado da decisão condenatória, pelo que, promovo se declare prescrita a pena de multa em que o arguido foi condenado e, em consequência, extinta a sua responsabilidade criminal.”

Opostamente a tal entendimento se pronunciou o tribunal “a quo”, com a seguinte fundamentação:

“É entendimento deste Tribunal que, uma vez que o artigo 125º, n.º 1, alínea c) do Código Penal não distingue, a causa de suspensão aqui prevista também opera no caso de pena de multa, como é o caso dos presentes autos. Assim, discordando-se do entendimento do Ministério Público exposto a fls. 73/74, indefere-se o promovido, consignando-se que a pena destes autos apenas prescreverá a 01/07/2017.”

7.3. Embora inusitada a rara questão em apreciação não é inteiramente nova radicando numa “aparentemente pura” interpretação literal.

Dúvidas não restam de que a interpretação literal não encontra obstáculos ou contrariedade nos casos em que se refira exclusivamente à prescrição das penas de prisão, aceitando-se pacificamente que a prescrição da pena privativa da liberdade se suspende durante o tempo em que o condenado estiver a cumprir outra pena privativa da liberdade, uma vez que se não podem cumprir duas penas de prisão ao mesmo tempo – sendo este facto, a impossibilidade de cumprimento concomitante ou simultâneo de duas penas de prisão, a verdadeira razão lógica contida na alínea c) do nº 1 do artº 125º do Código Penal, na sua actual redacção.

7.4. Observada a razão de ser da norma a interpretar, a “pura interpretação literal” começa a esboroar-se e acaba por fenecer de sustento, face aos argumentos interpretativos de ordem teleológica, histórica e sistemática, como facilmente se demonstra de seguida.

Compreendendo que a interpretação literal não esgota por si só o “thema decidendum” na interpretação da norma contida no artº 125º nº 1 alínea c) do Código Penal, importa ter presente a necessidade de que a interpretação seja teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito - e, em definitivo, a regulamentação - assumem no sistema (neste sentido vide Figueiredo Dias, Direito Penal, I, 2004, p. 178).

Por sua vez o elemento histórico obriga-nos a recuar às Actas da Comissão Revisora do Código Penal (1965, p. 238) e à redacção inicial do Código Penal de 1982 que, no seu, então correspondente, art.º 123º, nº1, alínea b), dispunha que a prescrição da pena se suspendia durante o tempo em que o condenado estivesse a cumprir outra pena, ou se encontrasse em regime de prova, ou com suspensão de execução de pena.

Relevante se demonstra o argumento de que o referido segmento final da norma (em que se referia ao regime de prova e ao período de suspensão da execução da pena) veio a ser suprimido na Reforma de 1995, pelo que se tem de concluir peremptória e inultrapassavelmente que as penas não privativas da liberdade deixaram de ser relevantes para efeito de suspensão de prazo prescricional de pena.

7.5. Por este motivo se deve reconhecer o pleno acerto de Paulo Pinto de Albuquerque quando identifica como a razão histórica e (teleo)lógica do art.º 125º, nº 1, al. c) do Código Penal a seguinte:

“(…) Encontrando-se o condenado ou o internado privado da liberdade em cumprimento de outra pena de prisão, o prazo de prescrição da pena não podia decorrer porque ele não poderia ser simultaneamente submetido a duas sanções privativas da liberdade” (Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, edição da Universidade Católica de 2010, a páginas 386).

Demonstrativo dessa asserção se revela igualmente o elemento sistemático da interpretação da norma em questão, apontando neste mesmo sentido, decorrente da necessária escala de concordância abstracta entre a gravidade da pena e a vida da pena como decisão ainda exequível, como observado, aliás com denodado brilho, pelo senhor magistrado recorrente:

“À pena de multa corresponde o prazo prescricional, justificadamente mínimo, de quatro anos. O prazo prescricional máximo, de vinte anos, está reservado para penas de prisão superiores a dez anos.

Testando os resultados práticos, a que conduziria a solução contrária à que consideramos correcta, uma pena de multa de €50 poder-se-ia manter activa por vinte anos, sempre que o condenado estivesse preso durante tal período.”

Assim se demonstra, também no plano dos princípios, a inexistência de fundamentos lógico-penais para uma tal construção hermenêutica, como aquela a que conduziria a interpretação “puramente literal” efectuada na decisão recorrida.

7.7. Sendo o art. 125º do Código Penal uma norma processual material, - na medida em que produz efeitos jurídico-materiais e condicionam a efectivação da responsabilidade penal - apenas consente interpretação de acordo com as regras e princípios de interpretação reservados ao direito substantivo, tendo, por isso, de respeitar as regras e os limites da interpretação admissível em direito penal substantivo, pelo que se torna inadmissível a interpretação seguida na decisão recorrida na medida em que alarga o alcance da norma, dela resultando consequências desfavoráveis ao arguido, (sem que sequer se alege qualquer motivo ponderoso ou “justificado”), ultrapassando a fronteira da punibilidade legalmente prescrita, a qual não pode ser modificada em desfavor do arguido.

7.8. Em conformidade com o que se conclui:

De acordo com o art. 125º, nº 1, al. c), do Código Penal, apenas a prescrição da pena privativa da liberdade se suspende durante o tempo em que o condenado estiver a cumprir outra pena privativa da liberdade, e a prescrição da pena de multa não se suspende com o decurso do cumprimento da pena de prisão.

Tal como acertadamente observado pelo recorrente, “só esta interpretação é conforme à Constituição, respeitadora dos princípios constitucionais da legalidade, da necessidade e da proporcionalidade (arts 18º, nº2, 29º, nºs 1 e 2 e 30º, nºs 1 a 3 CRP), funcionalmente justificada”, por “adequada à função que a regulamentação assume no sistema”.

Cumpre finalmente sublinhar que a circunstância de o condenado estar a cumprir pena de prisão não pode ser fundamento para a suspensão da prescrição da pena de multa, atenta a diferente natureza das penas, já que nada obsta a que um recluso efectue o pagamento de uma multa, donde se conclui que o cumprimento simultâneo de pena de prisão e de pena de multa não é incompatível.

Donde se conclui pela manifesta procedência do recurso, por não ter ocorrido qualquer causa de interrupção ou de suspensão da prescrição, tendo já decorrido mais de 4 anos desde a data do trânsito em julgado da decisão condenatória, pelo que, ao indeferir a promovida declaração de prescrição da pena de multa e, em consequência, determinar a substituição da pena de 120 dias multa por 120 horas de trabalho a favor da comunidade o Tribunal “a quo”, violou, por erro da interpretação “literal” efectuada, o disposto nos artigos 122º n.º 1 al. d) e n.º 2 e artigo 125º n.º 1 al. c), ambos do Código Penal.

8. Decisão:

Em conformidade com o exposto acordam os juízes neste tribunal em conceder total provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e ordenando a sua substituição por outra proferida em conformidade com o exposto.

Sem Tributação.

(texto elaborado em suporte informático e revisto pelo relator)

  Lisboa, 5 de Maio de 2015

                

Ricardo Manuel Chrystello e Oliveira de Figueiredo Cardoso

Filipa Maria de Frias Macedo Branco