Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8389/13.5TCLRS.L2.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Para o efeito de verificação da condição de recursos tendo em vista a prestação de alimentos a cargo do FGADM contam todos os rendimentos auferidos pelo agregado familiar do beneficiário, independentemente da regularidade, ritmo ou momento temporal da sua perceção, sendo certo que tanto contam rendimentos de trabalho dependente como rendimentos empresariais, prediais, de capitais.
II. Nos rendimentos a considerar incluem-se os subsídios de férias e de Natal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Nos autos de incumprimento das responsabilidades parentais em que é requerente Carla e requerido Samuel, por despacho de 15.01.2016 foi decidido que o FGADM deveria realizar prestação substitutiva dos alimentos a que o requerido estava obrigado, em relação aos seus filhos menores, e cuja efetivação não se lograra.
Por despachos de 27.02.2017 e de 17.4.2018 declarou-se a manutenção da referida prestação do FGADM, por se ter renovado a prova dos respetivos pressupostos.
Contudo, por decisão de 01.4.2019, após se ajuizar que o agregado familiar do menor Daniel (único em relação ao qual subsistia a obrigação de prestação de alimentos) auferia um rendimento mensal per capita de € 497,36, superior ao valor do indexante dos apoios sociais (€ 435,76), considerou-se que já não se verificavam os pressupostos legalmente exigidos para a intervenção do FGADM em substituição do devedor dos alimentos, pelo que se declarou cessada a intervenção do FGADM.
A requerente apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou conclusões meramente repetitivas das alegações e que assim se sintetizam:
a) O tribunal a quo, nos cálculos que efetuou para apurar o rendimento mensal do agregado familiar do menor Daniel, integrou os subsídios de férias e de Natal;
b) Ora, o cálculo de apuramento do rendimento mensal do agregado familiar do menor deve, a fim de aderir à vida real, apenas dizer respeito aos 10 meses em que não sofre a influência dos pagamentos dos subsídios de férias e de Natal, ou seja, para o cálculo do apuramento do rendimento mensal ilíquido do agregado familiar do menor Daniel, em primeiro lugar haveria que se ter dividido o montante do rendimento anual ilíquido desse agregado por 14 meses, para que dele fossem expurgados os montantes dos subsídios de férias e de Natal, apurando-se o verdadeiro rendimento ilíquido mensal do agregado do menor e, posteriormente, aplicar-se-ia a escala de equivalência constante do art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 70/2010, de 16.6, sobre o mesmo, ou seja, aplicar-se-ia 2,2 ao rendimento mensal apurado e, consequentemente, ter-se-ia apurado o valor mensal de € 426,34, inferior ao IAS;
c) Nesses termos se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 30.01.2018, processo 25091/13.0T2SNT.A.L1;
d) O despacho recorrido violou o disposto no art.º 1.º n.º 1 da Lei n.º 75/98 de 19.11, o art.º 3.º n.º 1 al. b), n.º 2 e n.º 3 do Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, os artigos 3.º a 6.º do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16.6, bem como os artigos 63.º n.º 1 e n.º 3, 67.º e 69.º, estes da CRP, devendo ser revogado e substituído por outro que determine a manutenção da prestação de alimentos devidos ao menor Daniel por parte do FGADM.
O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência da ação e consequente manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
Cabe apreciar, nesta apelação, se na verificação da condição de recursos que a prestação devida pelo FGADM pressupõe, se deve incluir os subsídios de férias e de Natal.
A decisão recorrida deu como provada e não foi questionada a seguinte
Matéria de facto
1 - O menor Daniel (…) vive com a mãe e com o marido desta, José (…).
2 - Da declaração de rendimentos para efeitos de IRS da Requerente, referente ao ano de 2017, consta que a mesma auferiu de rendimento global ilíquido e a título de trabalho dependente a quantia de € 9.290,46.
3 – O marido da Requerente recebeu de pensões no ano de 2018 o valor total de € 3.840,72.
4 – Actualmente, a Requerente trabalha na “D – Unipessoal, Lda” e aufere de remuneração base € 750,00 ilíquidos mensais, acrescidos de € 4,77 de subsídio de alimentação por dia de trabalho efectivo.
5 – Actualmente, o marido da Requerente recebe € 281,00 mensais de pensão.
6 – A Requerente recebe o abono de família referente ao menor Daniel pelo escalão 2.
7 - O agregado familiar aludido em 1. despende mensalmente montantes não concretamente determinados com a alimentação, vestuário, calçado e demais bens essenciais a cada um dos elementos daquele agregado.
8 – O pai do menor Daniel não aufere qualquer rendimento, pensão ou subsídio.
O Direito
O Estado, em cumprimento da obrigação de proteção das crianças, consagrada no art.º 69.º da CRP, criou um sistema de garantia de alimentos devidos a menores, instituindo o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM), o qual assegura o pagamento das prestações de alimentos, fixadas pelo tribunal, em caso de incumprimento da obrigação pelo respetivo devedor.
Trata-se do sistema instituído pela Lei n.º 75/98, de 19.11, alterada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31.12, pela Lei n.º 24/2017, de 24.5 e pela Lei n.º 71/2018, de 31.12, regulamentada pelo Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, alterado pelo Dec.-Lei n.º 70/2010, de 16.6, pela Lei n.º 64/2012, de 20.12 e pelo Dec.-Lei n.º 84/2019, de 28.6.
A referida prestação social está sujeita a condição de recursos, isto é, só será concedida se o menor não tiver rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (art.º 3.º n.º 1 al. a) do Dec.-Lei n.º 164/99). E entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos superiores ao valor do IAS quando a capitação do rendimento do respetivo agregado familiar não seja superior àquele valor (n.º 2 do art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 164/99).
O fundamento do recurso reside no facto de a apelante entender que, para o efeito de atribuição da prestação de alimentos pelo FGADM, não se deve considerar como rendimento do agregado familiar os subsídios de férias e de Natal auferidos pelo agregado familiar, isto é, pela requerente e pelo seu marido, aquela reportada a trabalho subordinado e este como pensionista.
Só assim, diz a apelante, se levará em consideração aquele que é o rendimento mensalmente auferido pelo agregado familiar, com o qual fazem face aos encargos do seu dia a dia.
Ora, tal entendimento, salvo o devido respeito por opinião contrária, não tem apoio no texto da lei nem no seu espírito, constituindo interpretação ab-rogante.
Nos termos do n.º 3 do Dec.-Lei n.º 164/99, “[o] agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação dos rendimentos, referidos no número anterior, são aferidos nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, alterado pela Lei n.º 15/2011, de 3 de maio, e pelos Decretos-Leis n.os 113/2011, de 29 de novembro, e 133/2012, de 27 de junho.
O Dec.-Lei n.º 70/2010, de 16.6, estabeleceu as regras para a determinação dos rendimentos, composição do agregado familiar e capitação dos rendimentos do agregado familiar para a verificação das condições de recursos a ter em conta no reconhecimento e manutenção do direito às prestações dos subsistemas de proteção familiar e de solidariedade, entre as quais se conta a prestação de alimentos paga pelo FGADM (cfr. al. c) do n.º 2 do art.º 1.º do diploma).
Conforme consta no respetivo preâmbulo, esse diploma visou contribuir para a consolidação orçamental, contendo de forma sustentada o crescimento da despesa pública, harmonizando as condições de acesso às prestações sociais não contributivas e introduzindo “uma maior efetividade na determinação da totalidade dos rendimentos, incluindo designadamente a consideração de apoios em espécie, como os apoios ao nível da habitação social, assim como a consideração dos rendimentos financeiros e da respetiva situação patrimonial”.
Nos termos do art.º 2.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 70/2010, a condição de recursos “corresponde ao limite de rendimentos e de valor dos bens de quem pretende obter uma prestação de segurança social ou apoio social, bem como do seu agregado familiar, até ao qual a lei condiciona a possibilidade da sua atribuição.”
Nos termos do art.º 3.º do diploma, “para efeitos da verificação da condição de recursos, consideram-se os seguintes rendimentos do requerente e do seu agregado familiar:
a) Rendimentos de trabalho dependente;
b) Rendimentos empresariais e profissionais;
c) Rendimentos de capitais; 
d) Rendimentos prediais;
e) Pensões;
f) Prestações sociais;
g) Apoios à habitação com carácter de regularidade.”
Por outro lado, conforme se estipula no n.º 2 do aludido art.º 3.º, os rendimentos em causa reportam-se “ao ano civil anterior ao da data da apresentação do requerimento, desde que os meios de prova se encontrem disponíveis, e, quando tal se não verifique, reportam-se ao ano imediatamente anterior àquele, sem prejuízo do disposto no número seguinte” (isto é, sem prejuízo de serem levados em consideração rendimentos atualizados mais recentes, se a instituição pagadora dispuser dos respetivos elementos).
Especificamente quanto aos rendimentos de trabalho dependente, o n.º 1 do art.º 6.º do Dec.-Lei n.º 70/2010 estipula que “consideram-se rendimentos de trabalho dependente os rendimentos anuais ilíquidos como tal considerados nos termos do disposto no Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares (Código do IRS), sem prejuízo do disposto no presente decreto-lei.”
Isto é, para o efeito de verificação da condição de recursos contam todos os rendimentos auferidos pelo agregado familiar do beneficiário, independentemente da regularidade, ritmo ou momento temporal da sua perceção, sendo certo que tanto contam rendimentos de trabalho dependente como rendimentos empresariais, prediais, de capitais.
Aliás, como bem nota o Ministério Público na sua resposta, hoje em dia é viável e pode suceder, no setor privado, que por acordo entre as partes, a totalidade ou parte dos subsídios de férias ou de Natal sejam pagos em duodécimos.
De resto, a sentença recorrida, na matéria de facto dada como provada, apenas menciona os rendimentos anuais auferidos pelo agregado familiar, não discriminando os alegados subsídios de Natal e de férias.
O apelante cita, em abono da sua tese, um acórdão desta Relação de Lisboa, datado de 30.01.2018, processo 25091/13.0T2SNT.A.L1.
Tal acórdão, que não figura na base de dados da dgsi, está publicado na base de dados da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa, in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=5368&codarea=58&
Trata-se, porém, segundo cremos, de uma decisão isolada, podendo apontar-se, em sentido contrário a essa e em consonância com o que aqui defendemos, os seguintes acórdãos (todos consultáveis em www.dgsi.pt):
- acórdão da Relação de Guimarães, de 06.10.2016, processo 3273/12.2TBBCL.G2;
- acórdão da Relação de Coimbra, de 12.7.2017, processo 92/14.5TBNLS-A.C1;
- acórdão da Relação do Porto, de 08.3.2018, processo 1787/07.5TBPFR-B.P1;
- acórdão da Relação de Guimarães, de 21.02.2019, processo 5674/16.8T8BRG-A.G1;
- acórdão da Relação de Guimarães, de 13.6.2019, processo 5874/15.8T8VNF-B.G1.
Assim, e nada mais havendo a apreciar neste recurso, conclui-se que a apelação é improcedente, devendo a decisão recorrida subsistir.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação seriam a cargo da apelante, que nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC), não fora o apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 19.12.2019
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins