Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1896/15.7T8SXL.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
VEÍCULO AUTOMÓVEL
REGISTO
TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I O efeito translativo da propriedade no contrato de compra e venda opera mediante o acordo de vontades dos outorgantes, por mero efeito do contrato, sem prejuízo da observância da forma legal que no caso couber, exceto se tiver sido estipulada reserva de propriedade ou qualquer condição suspensiva;
II Comprovando-se que o proprietário de um veículo automóvel (ou alguém em sua representação), entregou o mesmo a um interessado comprador, juntamente com as respetivas chaves e documentos, bem como cópia do cartão do cidadão do dono, aceitando como meio de pagamento do preço um cheque, mas não entregou a declaração de venda respetiva, que seria apenas entregue após recebimento do preço, é razoável admitir que os intervenientes quiseram fazer depender a transmissão do direito real do efetivo pagamento do preço;
III Serão apenas terceiros para efeitos de registo aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si;
IV A ação judicial de declaração de nulidade do registo, por ter sido lavrado com base em títulos falsos, não tem de ser dirigida contra quem praticou o ato de falsificação, nele interveio ou dele tenha tido conhecimento por qualquer forma, devendo ser interposta contra os titulares inscritos no registo;
V Tendo o R. registado a seu favor, a pedido do verdadeiro comprador, o veículo automóvel, sendo declarada a nulidade do registo não poderá o mesmo R. prevalecer-se do nº 2 do art. 17 do C.R.P., uma vez que não adquiriu, sobre o mesmo veículo, quaisquer direitos a título oneroso, ainda que tenha agido de boa-fé;
VI Estando em causa a nulidade do registo por ter sido lavrado com base em títulos falsos, e não se discutindo na ação qualquer vício substantivo do negócio subjacente, a boa-fé relevante a que se refere o nº 2 do art. 17 do C.R.P. será, em qualquer caso, a respeitante à idoneidade e conformidade daqueles títulos.

SUMÁRIO:(da relatora – art. 663, nº 7, do C.P.C.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRelatório:


Cecília... veio, em 9.9.2015, propor contra Hugo..., ação declarativa sob a forma comum, pedindo seja a A. declarada a única e universal proprietária do veículo automóvel, da marca Mercedes-Benz, com a matrícula 20…, sendo declarado nulo o registo feito com base na apresentação nº 9…, de …2014, a que corresponde o pedido 7…/2014, respeitante ao dito veículo, e, em consequência, seja ordenado o cancelamento da respetiva inscrição a favor do R.. Invoca, para tanto e em síntese, que não vendeu nem entregou ao R. a mencionada viatura, não tendo recebido qualquer quantia em pagamento e não conhecendo a Solicitadora que promoveu o referido registo, nem tendo esta poderes para a representar, pelo que os factos pela mesma submetidos na plataforma informática do Instituto dos Registos e do Notariado do Ministério da Justiça são falsos, sendo o registo nulo.

Contestou o R., impugnando em parte a factualidade alegada e defendendo que foi o filho da A., que utilizava o veículo em causa, quem colocou um anúncio na internet para a venda do mesmo e, tendo então recebido uma proposta de aquisição, entregou ao interessado o veículo, os documentos, uma cópia do cartão do cidadão da A. e um requerimento de registo automóvel por esta assinado, aceitando o pagamento por cheque, desconhecendo o R. se a A. autorizou ou não essa venda. Mais refere que o veículo foi posteriormente vendido ao R., ele próprio funcionário de um Stand de vendas de automóveis usados, por um comerciante de automóveis, tendo pago o preço devido e recebido as chaves e os documentos, após o que registou a aquisição a seu favor, pagou o IUC e contratou o seguro. Diz ainda que, tendo agido de boa-fé, não lhe é oponível a nulidade da venda, pois se o filho da A. atuou sem autorização da mãe está em causa a venda de coisa alheia, tal como não lhe é oponível a alegada nulidade do registo, pois quando este foi realizado não se encontrava registada a ação de nulidade.

Conclui pela improcedência da causa.

A A. apresentou réplica, concluindo como na petição inicial.

A convite do Tribunal, veio a mesma A. aperfeiçoar a sua petição inicial, explicando o modo e data de aquisição, por si, do veículo em causa. 

O R. exerceu o contraditório.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que conferiu a validade formal da instância, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova, fixando-se ainda o valor da causa em € 11.900,00.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, em 30.1.2017, que decidiu nos seguintes termos:
“(...)Julgo a acção improcedente, por não provada, e, em consequência:
a)- Absolvo o réu Hugo... dos pedidos contra ele deduzidos pela autora Cecília...;
b)- Condeno a autora Cecília... nas custas do processo.
(...).”
Inconformada, interpôs recurso a A., culminando as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem:
 “
1. Sucede que os factos dados como provados em 28 e 29, não poderiam ter sido dados como provados, atento o depoimento da testemunha, Paulo …, que no seu depoimento afirmou que a viatura em causa nos autos foi adquirida por ele e pelo seu sócio, bem como que o Réu não tinha qualquer poder decisório e que nada teve a ver com a aquisição, tendo sido o negócio efectuado por si e pelo seu sócio, que foi ele e o seu sócio quem pagou a viatura e que a viatura é pertença dele e do seu sócio e não do Réu e que o carro nunca foi vendido ao Réu.
2. O facto dado como provado em 31, não poderia ter sido dado como provado, porquanto a alegação do pagamento daquele imposto efectuado pelo réu na sua contestação foi impugnada pela A. no ponto 13, da peça processual remetida a juízo com a ref. 21179371, em 23 de Novembro de 2015 e contrariamente ao que é referido na d. sentença, dos autos não consta qualquer documento comprovativo, por parte do réu do pagamento de IUC. no ano de 2015.
3. O facto de a A reconhecer que não pagou o IUC durante um ano, não evidencia que foi o réu que efectou tal pagamento, que poderá ter sido efectuado por qualquer pessoa. Ou o mesmo se encontrar por liquidar. Igualmente não existiu qualquer depoimento que corroborasse tal facto, uma vez que no depoimento da única testemunha apresentada pelo Réu, Paulo..., em momento algum deste depoimento, é feita qualquer referência ao pagamento do IUC, por quem quer que fosse, nem lhe foi efectuada qualquer pergunta nesse sentido, nem aquela testemunha referiu esse facto, em qualquer momento do seu depoimento.
4. Julgou o tribunal a quo, improcedente o primeiro pedido, (ser a autora declarada única e universal proprietária do veículo 20…), por não provado, porém sucede que a A, em momento algum procedeu à transmissão do veículo automóvel identificado nos autos, uma vez que, foi dado como provado que a A nunca considerou que o contrato de compra e venda se encontrasse perfeito, atenta a falta de recebimento e da entrega da declaração por si assinada, tudo conforme consta do depoimento efectuado pela testemunha A.R., que procedeu à entrega do veículo automóvel em causa, que às perguntas efectuadas sobre tal facto, que era condição para a perfeição do negócio o recebimento efectivo do preço, e que enquanto tal se não verificasse o negócio não se encontrava perfeito, por isso não foi entregue qualquer declaração de venda, o que foi corroborado pela autora nas declarações que prestou.
5. Pelo que deveria ter sido dado como provado que existia uma condição suspensiva no contrato de compra e venda de veículo automóvel, In casu, o recebimento efectivo do dinheiro em troca da declaração de compra e venda.
6. Motivo pelo qual deveria ter sido dado como provado que não ocorreu a perfeição do contrato de compra e venda do veículo automóvel em causa, uma vez que se verificou a tal condição suspensiva estabelecida entre as partes, motivos pelos quais deveria a autora ser declarada a única e universal proprietária do veículo 20...
7. Mais se provou ser falsa a assinatura aposta na declaração de venda com o nome da ora autora, facto provado como 16, sendo que a prova da falsidade da declaração de venda para efeitos do registo, consubstanciando uma causa de nulidade do registo, é suficiente para ilidir a presunção.
8. Como tal, em face daquela factualidade, a A demonstrou a nulidade do registo de inscrição da propriedade em nome do R, Hugo..., pelo que deverá prevalecer, em conformidade, a inscrição do registo em nome da própria autora por ser anterior àquele.
9. Sendo a inscrição do registo em nome da A anterior ao início de qualquer posse que o R teve, sobre o veículo, por um lado, o R não pode beneficiar da presunção de propriedade que lhe poderia advir dessa posse, por outro lado, a A beneficia outrossim da presunção da propriedade que lhe advém do registo anterior em seu nome [em face da nulidade do registo em nome do R Hugo...].
10. O pedido de declaração de nulidade não tem de ser deduzido contra quem praticou o acto mas sim contra quem consta no registo como proprietário.
11. E mesmo que assim fosse, o que se não concede, o acto de que se pede a nulidade é o registo, ora, conforme facilmente se constata, uma vez que o registo se encontra em nome do R, foi tal acto praticado por este, ou a seu pedido.
12. O que se encontra pedido nos autos, é a nulidade do registo, nulidade, essa, que decorre por efeito da nulidade do documento que deu origem a tal registo, que conforme se referiu consta dos factos provados, porquanto a A não entregou qualquer declaração de venda, nem ao R, nem a qualquer outra pessoa, bem como consta dos factos provados que a A não deu o seu consentimento a quem promoveu o registo, para o realizar.
13. Não se peticiona a nulidade da declaração de compra e venda, peticionando-se, isso sim a nulidade do registo, que foi efectuado sem o consentimento e o acordo da autora, através da plataforma informática, por uma solicitadora, que declarou naquele pedido, que era representante do sujeito activo e do sujeito passivo e mais declarou, a aludida solicitadora, no pedido de registo que submeteu na plataforma informática, que o mesmo foi requerido com aprovação online pelo sujeito passivo/vendedor, sendo que ao pedido não foi anexado o referido requerimento de registo automóvel – modelo único, nem qualquer outro documento.
14. Foi com base no requerimento informático acima referido que foi efectuada a inscrição da propriedade do veículo em nome do réu, Hugo..., porém, a autora nunca falou com a solicitadora que promoveu o registo, nem lhe deu o seu consentimento para promover, em seu nome, qualquer registo automóvel ou outro. Do mesmo modo, a autora não lhe outorgou qualquer procuração ou lhe solicitou, fosse a que título fosse, mesmo que verbalmente, para a representar e/ou para proceder ao registo do veículo.
15. A assinatura aposta na qualidade de Sujeito passivo no Requerimento de Registo Automóvel mencionado e utilizado para proceder ao registo em nome do réu Hugo..., não foi executada pelo punho da autora.
16. Nos termos do disposto no art. 16.º do CRpr, o registo é nulo quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos.
17. Por seu turno, dispõe o art. 25.º do DL 55/75 de 12.02 [Regulamento do Registo automóvel, com a redacção do DL 177/2014, de 15.12] que o registo posterior de propriedade adquirida por contrato verbal de compra e venda pode ser efectuado em face de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, através de declaração de venda apresentada com o pedido de registo [n.º1 al. a)].
18. E nos termos do art. 9.º do mesmo diploma legal, o requerimento para registo pode ser subscrito por advogado, solicitador ou notário, cujos poderes de representação se presumem [n.º4], sendo que nos pedidos de registo de propriedade adquirida por contrato verbal de compra e venda subscritos por advogado, solicitador ou notário deve ser indicada a parte representada [n.º6].
19. Ora, no caso dos autos, não obstante a declaração aposta pela solicitadora que requereu a inscrição do registo em nome do réu Hugo... no sentido de que representava a autora, na qualidade de vendedora, tal declaração revelou-se ser falsa porquanto não corresponde à realidade, ou seja, a solicitadora em referência não foi mandatada pela autora para o efeito e praticou o acto sem poderes de representação.
20. Tendo-se provado ser falsa a assinatura aposta na declaração de venda com o nome da autora, sendo que a prova da falsidade da declaração de venda para efeitos do registo, consubstanciando uma causa de nulidade do registo, é suficiente para ilidir a presunção de titularidade.
21. Como tal, em face da factualidade ora descrita, a autora demonstrou inequivocamente a nulidade do registo de inscrição da propriedade em nome do réu Hugo..., prevalecendo, em conformidade, a inscrição do registo em nome da própria autora por ser anterior àquele.
Sempre sem conceder,
22. O réu não poderá ser considerado de boa-fé, porquanto; não identificou de forma concreta quem lhe vendeu o veículo automóvel, ao que acresce o facto de o não ter apresentado como testemunha, por outro lado, não consta dos autos qualquer comprovativo do pagamento do preço supostamente pago, por último, não foi o réu quem adquiriu o veículo automóvel identificado nos autos, mas sim uma sociedade, devendo ser o réu condenado nos exactos termos do pedido.
23. E mesmo que assim, não fosse, o que não se concede, por mera cautela sempre se diga que, o artigo 17 n.º 2 do CRP. aplica-se a transmissões sucessivas que não advenham dum mesmo transmitente, em que esteja em causa o vício formal do registo, que gera a nulidade do mesmo, através duma acção de nulidade.
24. O artigo 291 do C.Civil aplica-se aos casos de vícios substanciais da relação jurídica, que geram a nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, que fundamenta o respectivo registo. Impõe-se em ambos os normativos o registo anterior, a boa fé do adquirente e a onerosidade da aquisição.
25. O registo, nestes casos, impõe-se por si, na medida em que visa tutelar a segurança nas relações jurídicas, promovendo a confiança no comércio jurídico imobiliário, são salvaguardados os efeitos jurídicos emergentes dos factos registados, cujo registo venha a ser julgado nulo, desde que o registo seja anterior (artigo 17 n.º2 do CRP) e que não seja proposta acção de nulidade ou anulação registada no prazo de 3 anos após a conclusão do negócio (artigo 291 n.º 1 do C.Civil).
26. A decisão recorrida seguiu a doutrina que defende que o artigo 17 n.º 2 do CRP é aplicável, de forma genérica, a todas as situações em que esteja em causa uma transmissão que foi registada e lhe precedeu um registo que é nulo, em si, por violação das regras do registo ou a relação jurídica que o fundamenta está ferida de alguma invalidade.
27. Porém, a norma do artigo 17 n.º 2 do CRP é excepcional e está inserida na parte referente à nulidade do registo e suas consequências, e não pode ter a aplicação genérica que se lhe atribuí na decisão recorrida.
28. E isto, porque está em causa a protecção do titular do direito, cuja oportunidade de defesa deverá ser alargada nos mesmos termos que é conferida no artigo 291 n.º2 do C.Civil, porque a falsificação se apresenta como um vício mais grave, devendo ter, pelo menos, o mesmo tratamento que a invalidade dos negócios.
29. Pelo que á de permitir, através duma interpretação analógica a aplicação do prazo de três anos a situações de nulidade de registo com base em falsificação de títulos, uma vez que cada norma deve ter o âmbito de aplicação que lhe é definida pelo seu fim (artigo 17 n.º 2 do CRP nulidade do registo e artigo 291 do C.Civil invalidades substantivas dos negócios), ou, nas situações mais idênticas, a que for mais favorável ao titular do direito.
30. Assim, a acção terá de proceder, aplicando-se-lhe o disposto no artigo 291 n.º 1 e 2 do C.Civil, incluindo o seu requisito fundamental, o registo da acção no prazo de três anos após a conclusão do negócio inválido, registo que foi efectuado pela autora.
31. Uma vez que o artigo 17 n.º 2 do CRP se aplica a situações de nulidade do registo, em que esteja em causa a sua nulidade.”
Pede a procedência do recurso, sendo revogada a sentença e o R. condenado no pedido.

Em contra alegações, sustenta o R. o acerto do julgado.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***

IIFundamentos de Facto:
A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:

1) Foi inscrita no registo, sob a Ap. 0…, de 08.01.2009, a favor de David..., a propriedade do veículo marca Mercedes-Benz com a matrícula 20....
2) No dia 23 de Novembro de 2012, a autora declarou comprar a David..., que declarou vender-lhe, a viatura marca Mercedes-Benz de matrícula 20..., pelo preço de € 11.500,00, a qual o mesmo lhe entregou nessa data.
3) Foi inscrita no registo, sob a Ap. 06…, de 07.12.2012, a favor da autora Cecília..., a propriedade do veículo marca Mercedes-Benz com a matrícula 20....
4) A partir dessa data, a autora passou a ter em seu nome as apólices de seguro do veículo de matrícula 20..., sendo a mesma quem efectua o pagamento dos respectivos prémios de seguro e do Imposto Único de Circulação, exceptuando o referente ao ano de 2015, bem como leva a viatura às inspecções periódicas e assegura o respectivo pagamento, levando-a à oficina de mecânica, para realização de manutenções e revisões à viatura, procedendo ao pagamento das mesmas.
5) Encontra-se inscrita no registo, sob a Ap. …8, de 19.09.2014, a favor do réu Hugo..., a propriedade do veículo marca Mercedes-Benz com a matrícula 20....
6) A referida inscrição teve origem no pedido n.º 7…/2014, datado de 15.09.2014.
7) Esse pedido foi efectuado através da plataforma informática http://www.automovelonline.mj.pt/AutoOnline/, do Instituto dos Registos e do Notariado do Ministério da Justiça, pela Sr.ª Solicitadora CH., titular da cédula profissional n.º …, emitida pela Câmara dos Solicitadores.
8) No mesmo pedido, requereu-se, como acto a registar, a “declaração para registo de propriedade (contrato verbal de compra e venda)”.
9) Nesse referido requerimento foi identificado como “sujeito activo (comprador)” o réu Hugo....
10) E aí se identificou como “sujeito passivo (vendedor)” a autora Cecília....
11) A Sr.ª Solicitadora CH declarou nesse mesmo pedido ser representante do “sujeito passivo” e do “sujeito activo”.
12) Mais declarou a Sr.ª Solicitadora CH., no pedido de registo por si submetido, que o mesmo foi requerido com a aprovação do “sujeito passivo/vendedor”.
13) A esse pedido de registo não foi anexado qualquer outro documento.
14) A autora não declarou vender ao réu o veículo com a matrícula 20....
15) A autora não conhece o réu.
16) A autora não assinou e não entregou ao réu nenhum requerimento de registo automóvel - modelo único, para inscrição no registo automóvel da venda da viatura de matrícula 20....
17) A autora não recebeu qualquer quantia referente à venda do veículo com a matrícula 20... do réu ou de qualquer outra pessoa.
18) A autora nunca entregou o aludido veículo automóvel ao réu.
19) A autora não conhece e nunca falou com a Sr.ª Solicitadora CH., nem lhe deu o consentimento para promover qualquer inscrição no registo automóvel.
20) A autora não outorgou a favor da Sr.ª Solicitadora CH. qualquer procuração, nem lhe solicitou, fosse a que título fosse, mesmo que verbalmente, que a representasse em algum acto.
21) O veículo marca Mercedes-Benz com a matrícula 20... tem o valor aproximado de € 11.900,00.
22) É a autora quem detém presentemente o veículo de matrícula 20....
23) Foi entregue ao réu, por um comerciante de automóveis, um requerimento de registo automóvel, no qual foi aposto o nome da autora na parte destinada à assinatura do “sujeito passivo (vendedor)”, conforme consta do documento de fls. 77 e 78, cujo teor se dá por reproduzido.
24) Não obstante a propriedade do veículo com a matrícula 20... ter estado inscrita no registo a favor da autora, quem o detinha e fruía era o seu filho, A.R..
25)– Em data não concretamente apurada, A.R., colocou no sítio de vendas da internet “www.olx.pt” um anúncio para venda do veículo de matrícula 20.... 26)– Tendo recebido uma oferta de aquisição do veículo de matrícula 20..., por parte de um interessado, o filho da autora, A.R., encontrou-se com uma pessoa que se intitulou filha desse potencial comprador, na Estação de Comboios da Trofa, tendo-lhe entregue o veículo, com as chaves, os respectivos documentos e uma cópia do cartão do cidadão da autora, aceitando como meio de pagamento do preço da venda da viatura um cheque, mas não entregando a declaração de venda subscrita pela autora, a qual apenas seria entregue após recebimento do preço.
27)– Essa transacção foi efectuada com o conhecimento e autorização da autora.
28)– Posteriormente, um comerciante de automóveis declarou vender a viatura de matrícula 20... ao réu, o qual declarou comprar-lho, por preço não concretamente apurado, mas que rondava os € 6.750,00.
29)– O réu pagou ao comerciante de automóveis o preço por ele pedido, o qual lhe entregou o veículo, as respectivas chaves e documentos do mesmo, bem como lhe entregou uma cópia do cartão do cidadão da autora e o requerimento referido em 23.
30)– Após, o que o réu procedeu ao registo referido em 5.
31)– O réu pagou o Imposto Único de Circulação do veículo de matrícula 20... referente ao ano de 2015.
32)– O réu é funcionário de um “Stand” de comércio de automóveis.
33)– É prática no ramo de comércio de automóveis usados que estes sejam consecutivamente vendidos sem inscrição no registo de todas as transacções, por o número de registos determinar a desvalorização das viaturas.
34)– Conhecendo o réu essa prática, por via profissional, e por lhe ter sido entregue a descrita documentação necessária à inscrição no registo automóvel da propriedade do veículo de matrícula 20... a seu favor, o mesmo não estranhou que a propriedade no registo automóvel estivesse inscrita a favor da anterior proprietária.
35)– Tendo o réu declarado adquirir a viatura apenas depois de se ter assegurado, mediante consulta no registo, que não incidiam sobre ela quaisquer ónus ou encargos pendentes e considerando adequado o preço pedido, tendo em atenção o tipo de viatura, a sua idade e estado de conservação.
36)– A presente acção foi registada provisoriamente, por natureza, sob o número de ordem 1…, de 16.10.2015.
                                                                        ***
III–
Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

De acordo com as conclusões acima transcritas em causa está apreciar:
- da impugnação da matéria de facto;
- do enquadramento jurídico: propriedade do veículo, falsidade da declaração de venda, nulidade e cancelamento do registo.

A)–Da impugnação da matéria de facto;
A apelante defende que deviam ser julgados como não provados os factos constantes dos pontos 28, 29 e 31 julgados assentes, devendo ainda dar-se como provado que “existia uma condição suspensiva no contrato de compra e venda de veículo automóvel, In casu, o recebimento efectivo do dinheiro em troca da declaração de compra e venda” e que “não ocorreu a perfeição do contrato de compra e venda do veículo automóvel em causa, uma vez que se verificou a tal condição suspensiva estabelecida entre as partes”. Justifica a sua pretensão.

O recorrido defende, em contra alegações, que deve manter-se inalterada a matéria assente.

Vejamos.

De acordo com o princípio consagrado no art. 607, nº 5, do C.P.C. de 2013, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. As provas são assim valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.

Os poderes do tribunal da Relação de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto foram, por seu turno, largamente ampliados e reforçados pelo C.P.C. de 2013, como decorre do seu atual art. 662, no confronto com o anterior art. 712 do C.P.C. 1961.

No entanto e ao mesmo tempo, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto obedece a determinadas exigências que surgem agora mais precisas que no anterior C.P.C. de 1961 e cuja observância não pode deixar de ser apreciada à luz de um critério de rigor([1]).

Assim, de acordo com o atual art. 640, nº 1, do C.P.C.: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, incumbe ainda ao recorrente “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (art. 640, nº 2, al. a)).

Finalmente, tais regras hão-de compaginar-se com aquela outra já indicada de que as conclusões delimitam o âmbito do recurso (art. 635, nº 4).

Assim, e em síntese, ao recorrente que impugne a matéria de facto caberá indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar nas conclusões), especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, em seu entender, impunham decisão diversa quanto a cada um desses factos e propor, ainda, a decisão alternativa sobre cada um deles. A não observância de tais regras implicará a rejeição imediata do recurso.

Admitindo-se que o apelante cumpre minimamente com as referidas imposições legais, passemos à análise da impugnação feita, depois de ouvidos os depoimentos atinentes e vistos os autos.
- Pontos 28 e 29 e provados:
28)– Posteriormente, um comerciante de automóveis declarou vender a viatura de matrícula 20... ao réu, o qual declarou comprar-lho, por preço não concretamente apurado, mas que rondava os € 6.750,00.
29)– O réu pagou ao comerciante de automóveis o preço por ele pedido, o qual lhe entregou o veículo, as respectivas chaves e documentos do mesmo, bem como lhe entregou uma cópia do cartão do cidadão da autora e o requerimento referido em 23..

A apelante sustenta que tais factos deviam ser julgados como não provados em face do depoimento da testemunha Paulo... que afirmou ter sido ele, e não o R., a adquirir a viatura. O apelado defende ser outro o sentido de tal depoimento.

O Tribunal justificou tais respostas, em conjunto com outras, nos seguintes moldes: “(…) Os factos plasmados sob 23. e 28. a 35. provieram essencialmente do depoimento sincero, detalhado e consistente da testemunha Paulo..., o qual é gerente da sociedade «F.», a quem pertence o Stand «Z.», no qual o réu é colaborador, tendo a testemunha descrito com lógica, congruência e detalhe o teor das declarações emitidas aquando da aquisição da viatura 20... pelo réu a um comerciante de automóveis usados, de nome Paulo…, o que o réu fez mediante pedido e indicação da testemunha e do seu sócio e no propósito de o revender posteriormente a um cliente daquele Stand que mostrasse interesse na aquisição da viatura (por existir uma relação de confiança entre eles), indicando a testemunha com precisão qual o preço pago e explicando que o mesmo foi liquidado com dinheiro da sociedade que representa, mas não se recordando se foi o réu que o entregou ao vendedor, descrevendo quais os documentos que foram então entregues pelo vendedor ao réu, incluindo o “livrete”, a fotocópia do cartão do cidadão da autora e uma declaração de venda, com uma assinatura que entendeu ser da mesma, pois correspondia ao seu nome, bem como asseverou a testemunha que foram entregues duas chaves do veículo, tendo previamente sido verificado que sobre este não incidiam quaisquer ónus, clarificando ainda a testemunha que, no ramo do comércio de veículos usados, é muito frequente o último registo da propriedade não coincidir com a pessoa que vende (por motivo de sua desvalorização, o que, aliás, se trata de situação que é consabidamente conhecida como se tratando de prática frequente no ramo do comércio de automóveis usados), razão pela qual, tendo sido entregues os referidos documentos e as chaves da viatura, foi o veículo colocado à venda no Stand, com a matrícula à mostra, sucedendo que, posteriormente, a autora aí se dirigiu com a polícia e relatou a transacção que teve lugar na Trofa, explicando a testemunha que o réu adquiriu aquele veículo, tal como havia adquirido vários outros, nas mesmas condições e sempre no propósito de o revender a algum cliente do referido Stand, mas não estando o mesmo impedido de o vender ele próprio, tendo ainda sido valorados, para prova dos factos elencados sob 23. e 29. os documentos de fls. 71 e 76 a 79, correspondentes a partes da cópia da certidão que foi extraída do processo de inquérito no qual a testemunha entregou o documento mencionado em 23., o qual classificou como se tratando de uma “declaração de venda”, quando, na realidade, o mesmo se trata de um requerimento de registo, fundado num “contrato verbal de compra e venda” (cfr. fls. 78), para que os mesmos documentos teriam que estar na sua posse, entregues precisamente ao réu, conforme a testemunha relatou (…).”

No essencial, a referida testemunha Paulo..., sócio da sociedade proprietária do Stand de venda de automóveis usados onde presta colaboração o R. e em que o veículo 20… veio a ser colocado à venda, explicou, com serenidade e firmeza, de modo a permitir a convicção do tribunal, que um certo comerciante de automóveis, um tal Paulo..., se apresentou a vender o indicado veículo naquele estabelecimento. Depois de aceite o negócio pela testemunha e pelo seu sócio na empresa, ficou combinado que a dita venda seria feita a favor do R., por questões de ordem prática, tal como já sucedera noutras ocasiões, uma vez que o R. era colaborador do Stand e ali se encontrava diariamente, havendo enorme relação de confiança entre todos. Assim, uma vez que o referido veículo iria ser vendido no mesmo Stand e o indicado comerciante de automóveis informara que a proprietária/vendedora queria, rapidamente e por razões de segurança, a mudança do titular, entregaram à Solicitadora que costumava ocupar-se do registo dos veículos ali transacionados a documentação respetiva, pedindo-lhe que o registo fosse feito a favor do R., figurando este como comprador.

Nessa medida, por acordo entre todos, a venda acabou por ser formalizada entre o dito comerciante de automóveis e o R., sendo o preço estipulado entregue e efetivamente desembolsado pela sociedade. Conforme asseverou a testemunha Paulo..., foi ele e o seu sócio que fizeram o negócio, sendo deles o dinheiro entregue ao vendedor, tendo o R. agido como intermediário.

Deste modo, o que resulta realmente do depoimento prestado é que um comerciante de automóveis declarou vender a viatura de matrícula 20... à sociedade que explorava o Stand com a qual o R. colaborava, que declarou comprar-lho, por preço não concretamente apurado, mas que rondava os € 6.750,00. Provado ficou ainda que foi pago ao dito comerciante de automóveis o preço por ele pedido e que este entregou naquele Stand o veículo, as respetivas chaves e documentos do mesmo, bem como uma cópia do cartão do cidadão da A. e o requerimento de registo automóvel referido no ponto 23 supra (que tinha aposto o nome da A. na parte destinada à assinatura do “sujeito passivo (vendedor)”, conforme consta do documento de fls. 77 e 78).

Mais resultou do depoimento da mesma testemunha que, por acordo entre a sociedade que explorava o Stand e o R., foi decidido que a referida viatura seria registada em nome deste como sendo o adquirente.

Assim, não devem ser simplesmente eliminados os pontos 28 e 29, como requer a apelante, devendo os mesmos, bem como, em coerência, o ponto 30, passar a ter a seguinte redação:
28)– Posteriormente, um comerciante de automóveis declarou vender a viatura de matrícula 20... à sociedade que explorava o Stand onde o R. trabalhava, que declarou comprar-lho, por preço não concretamente apurado, mas que rondava os € 6.750,00.
29)– Foi pago ao comerciante de automóveis o preço por ele pedido, tendo o mesmo entregue naquele Stand o veículo, as respetivas chaves e documentos do mesmo, bem como uma cópia do cartão do cidadão da A. e o requerimento referido em 23.
30)– Por acordo entre a referida sociedade que explorava o Stand e o R., foi decidido que a referida viatura seria registada em nome deste como sendo o adquirente, pelo que o R. procedeu ao registo referido em 5..

Cumpre, assim, alterar a resposta dada aos ditos pontos 28, 29 e 30 supra.
Ponto 31 provado:
31)– O réu pagou o Imposto Único de Circulação do veículo de matrícula 20... referente ao ano de 2015.
Diz a apelante que o ponto 31 deve ser julgado não provado uma vez que a alegação correspondente do R. na contestação foi impugnada pela A. no artigo 13º da sua resposta de 23.11.2015, não constando dos autos documento comprovativo de que o R. pagou o IUC respeitante à viatura 20... no ano de 2015.
O Tribunal justificou tal resposta da forma seguinte: “(…) foi ponderado o documento de fls. 163 para demonstração do facto 31., cuja exactidão não foi impugnada e o qual evidencia essa factualidade (reconhecendo a autora inclusivamente que não pagou o IUC durante um ano (no artigo 8.º da sua petição aperfeiçoada, a fls. 98), o qual terá que corresponder, logicamente, ao período em que o veículo permaneceu na detenção do réu. (…).”

É inteiramente correta a resposta constante deste ponto 31.

A A. limitou-se a impugnar, no dito artigo 13º da sua resposta à contestação de 23.11.2015, por não ser do seu conhecimento, que o R. tivesse pago o imposto único de circulação (IUC) e o seguro respeitante ao 20...

Mais tarde, é a própria A. quem, em 2.6.2016, a fls. 146 a 165, junta diversa documentação da qual consta o comprovativo do pagamento do IUC respeitante àquela viatura no ano de 2015 em nome do R., Hugo... (cfr. fls. 163).

Acresce que, como resulta provado no ponto 4 supra que não foi impugnado, a A. não pagou aquele imposto no ano de 2015.

Sendo o titular do veículo quem tem de proceder ao pagamento do imposto devido, e encontrando-se o 20… inscrito a favor do R. desde 19.9.2014 (ponto 5), razão não há para contestar que tenha sido o mesmo a proceder ao referido pagamento.

É de manter a resposta dada ao ponto 31 supra.
– Aparentemente, pretende ainda a apelante que seja dado como provado que “existia uma condição suspensiva no contrato de compra e venda de veículo automóvel, In casu, o recebimento efectivo do dinheiro em troca da declaração de compra e venda” e que “não ocorreu a perfeição do contrato de compra e venda do veículo automóvel em causa, uma vez que se verificou a tal condição suspensiva estabelecida entre as partes”. Invoca o depoimento de A.R., filho da A..

O apelado contrapõe que se trata de matéria que a A. não alegou, apenas tendo invocado que não vendeu a viatura dos autos ao R. e omitindo a existência de qualquer contrato de compra e venda a terceiros.

Cremos que a apelante coloca a questão em sede de impugnação da matéria de facto, mas o reclamado aditamento corresponde a matéria claramente conclusiva e de direito que jamais poderia constar do elenco dos factos assentes.

Ademais, a matéria apurada respeitante ao negócio da venda do 20... pela A. encontra-se suficientemente plasmada nos pontos 25 a 27 supra que não foram impugnados.

Destes consta que o filho da A., A.R., autorizado pela mãe, entregou o veículo a uma pretensa filha do interessado comprador, com as chaves, os respetivos documentos e uma cópia do cartão do cidadão da A., aceitando um cheque como meio de pagamento do preço da venda da mesma viatura, mas não entregando a declaração de venda subscrita pela A. que apenas seria entregue após recebimento do preço.

Assim, não se aditam os factos propostos.
Em suma, e pelas razões aludidas, procede em parte o recurso sobre a decisão da matéria de facto, devendo os pontos 28, 29 e 30 passar a ter a seguinte redação:
28)– Posteriormente, um comerciante de automóveis declarou vender a viatura de matrícula 20... à sociedade que explorava o Stand onde o R. trabalhava, que declarou comprar-lho, por preço não concretamente apurado, mas que rondava os € 6.750,00.
29)– Foi pago ao comerciante de automóveis o preço por ele pedido, tendo o mesmo entregue naquele Stand o veículo, as respetivas chaves e documentos do mesmo, bem como uma cópia do cartão do cidadão da A. e o requerimento referido em 23.
30)– Por acordo entre a referida sociedade que explorava o Stand e o R., foi decidido que a referida viatura seria registada em nome deste como sendo o adquirente, pelo que o R. procedeu ao registo referido em 5.
No mais mantém-se inalterada a factualidade fixada em 1ª instância.

B)– Do enquadramento jurídico: propriedade do veículo, falsidade da declaração de venda, nulidade e cancelamento do registo:
Da propriedade do veículo
Aqui chegados, requer a apelante, em primeiro lugar, a declaração de que é a única e universal proprietária da viatura 20..., sustentando que o contrato de compra e venda não se concluiu porque não chegou a entregar a declaração de venda ao adquirente, ato, por seu turno, dependente do recebimento efetivo do valor acordado.
Na sentença, entendeu-se, em súmula, que a A. representada por seu filho, celebrou um contrato de compra e venda respeitante à viatura em questão, transmitindo, por essa via, o seu direito de propriedade sobre a mesma, nos seguintes termos: “(…) Celebrou, pois, a autora com o seu filho um contrato de mandato com representação, o qual o mesmo cumpriu.
E, tendo ocorrido, como sucedeu no caso vertente, o encontro de uma proposta negocial de venda com uma aceitação negocial de compra, mediante a estipulação de um preço e a transmissão da propriedade de um veículo automóvel (com a entrega das chaves e respectivos documentos), teve, assim, lugar a celebração de um contrato de compra e venda entre aquele comprador e a autora, pois face ao que dispõe o art.º 874.º, do Código Civil, por contrato de compra e venda, deve entender-se o acordo através do qual uma das partes se obriga a transmitir à outra a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.
E, quando a propriedade é adquirida por contrato, o momento da sua aquisição é o que vem previsto nos art.ºs 408.º e 409.º, do Código Civil (cfr. art.º 1317.º, alínea a), do mesmo Código).
A compra e venda tem, pois, como efeitos, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa por parte do vendedor ao comprador e a obrigação de pagamento de um preço pelo comprador ao vendedor (art.º 879.º, do Código Civil).
Da noção de contrato de compra e venda antecedentemente facultada desde logo se extrai a existência de prestações correlativas que permitem conferir natureza sinalagmática ao contrato em causa: a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito juntamente com a obrigação de entrega da coisa por parte do vendedor ao comprador e a correspondente obrigação de pagamento pontual do preço estabelecido, pelo comprador ao vendedor.
Na medida em que a compra e venda de veículo automóvel não se encontra sujeita a qualquer forma especial, a transferência do direito de propriedade verifica-se por mero efeito do contrato nos termos previstos nos art.ºs 219.º, 408.º, n.º 1, 874.º e 879.º, alínea a), do Código Civil (neste sentido, vide o Acórdão do STJ, de 03-03-1998, in CJ do STJ, 1998, Tomo I, págs. 117-119).
(…)
E tanto é verdade que a transmissão da propriedade pelo vendedor para o comprador não fica dependente do pagamento do preço por parte deste àquele, que a lei sequer admite a resolução do contrato de compra e venda fundada no incumprimento da obrigação de pagamento do preço, excepto se existir convenção em contrário, conforme claramente estabelece o art.º 886.º, do Código Civil. 
Decorre de quanto ficou exposto que, tendo a autora adquirido a propriedade da viatura, de modo derivado, por contrato de compra e venda translativo (e não constitutivo) desse direito, veio a mesma, posteriormente a transmitir esse direito para terceiro, mediante celebração de um novo contrato de compra e venda, assim lhe transmitindo esse direito por via contratual, enquanto modo válido de aquisição da propriedade (art.ºs 1316.º, 1317.º, alínea a), 874.º e 879.º, alínea a), todos do Código Civil), contrato esse cuja validade a autora não questionou, pois não pediu a sua declaração de nulidade contra o adquirente, nem invocou tê-lo resolvido, antes tendo a autora simplesmente omitido a celebração de tal negócio jurídico, o qual foi o réu quem o invocou na sua defesa, no propósito de sustentar a sua boa-fé.
O que sucedeu foi que a autora, por não ter recebido o preço ajustado como contrapartida da transmissão da viatura, em consequência do incumprimento dessa obrigação por parte do comprador, também não cumpriu, por sua vez, a obrigação de entrega da declaração escrita de venda, que corresponde a um documento apto a fundar o registo da aquisição a favor do comprador, mas que não afecta a concretização e validade do negócio jurídico em questão, nos termos sobreditos.
Tendo entregue ao comprador o veículo, com as chaves, os respectivos documentos e uma cópia do seu documento de identificação e aceitando receber um cheque como meio de pagamento, tudo na sequência de ter publicitado uma proposta de venda da viatura, a qual foi aceite nas condições por ela propostas, apresenta-se inequívoco que a autora quis transmitir a propriedade do seu veículo, apenas não querendo entregar um documento necessário à efectuação posterior do registo da propriedade a favor do adquirente, enquanto não recebesse efectivamente o preço acordado, registo esse que não é, como se disse, constitutivo do direito.
Estando em causa o incumprimento de obrigações decorrentes do aludido contrato de compra e venda, esse incumprimento não afecta a validade do negócio, antes originando, pelo menos para a autora, um direito de crédito, nos termos do disposto nos art.ºs 879.º, alínea c), 406.º, n.º 1, 762.º, 804.º, 805.º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), e 817.º, do Código Civil. (…).”

Vejamos.

A questão está em saber, desde logo, se o contrato de compra e venda realizado entre a A. e o terceiro não identificado (pontos 25 a 27 supra) se completou e produziu os seus efeitos, não obstante a A. não ter recebido o valor do preço acordado, ou se a transmissão da propriedade afinal não se operou porque tal estaria dependente do efetivo recebimento pela A. da quantia indicada no cheque dado em pagamento.

De acordo com o art. 874 do C.C., a “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”

Tal contrato tem, por sua vez, como efeitos essenciais “a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) A obrigação de entregar a coisa; c) A obrigação de pagar o preço” (art. 879 do C.C.).

O momento da aquisição do direito de propriedade é, no caso de contrato, o designado nos artigos 408 e 409 do C.C. (art. 1317, al. a), do C.C.), dando-se a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei (art. 408, nº 1, do C.C.). Assim, o efeito translativo da propriedade opera por força do artigo 879, al. a), do C.C., exceto se tiver sido estipulada reserva de propriedade ou qualquer condição suspensiva.

Quer isto significar que a perfeição do negócio se atinge mediante o acordo de vontades das partes, sem prejuízo da observância da forma legal que no caso couber([2]).

Da compra e venda derivam, assim, o efeito real da transmissão da propriedade e os efeitos meramente obrigacionais, da entrega da coisa e da obrigação de pagamento do preço.

Como se explicou no Ac. do STJ de 29.10.2002([3]): “(…) O contrato aperfeiçoa-se, porém, independentemente da produção desses efeitos, mediante o mútuo consenso dos contraentes. A obrigação de pagar o preço, por exemplo (…), é apenas um efeito obrigacional do contrato, passe a redundância, em nada influindo na sua perfeição e tão-pouco condicionando a eficácia translativa.
Este efeito real, por seu turno, de transferência do domínio sobre a coisa, do vendedor para o comprador, verifica-se desde logo pela mera celebração do contrato e no momento desta - artigo 408º, nº. 1, aliás por remissão especialíssima do artigo 1317º, alínea a), a norma justamente vocacionada para a definição do momento de aquisição do direito de propriedade por modo de contrato. (…).”

Tratando-se, no caso, de um contrato de compra e venda de veículo, não sujeito a forma especial (arts. 219 e 875 do C.C.), cumpre saber se as partes, a A. e o terceiro interessado referido no ponto 26, concluíram o negócio e/ou se sujeitaram a eficácia real do contrato a uma qualquer condição suspensiva, como defende a apelante no recurso.

Provado ficou neste tocante que, posto o veículo à venda através da internet e recebida uma oferta de aquisição por parte de um interessado, o filho da A., A.R., em representação da A., encontrou-se com uma pessoa que se intitulou filha desse potencial comprador, na Estação de Comboios da Trofa, tendo-lhe entregue o veículo, com as chaves, os respectivos documentos e uma cópia do cartão do cidadão da A., mais aceitando um cheque como meio de pagamento do preço, mas não entregando a declaração de venda subscrita pela A., a qual apenas seria entregue após recebimento do preço.

Ao que tudo indica o contrato de compra e venda terá ficado perfeito e concluído por acordo entre as partes, pois, como vimos, o dever de pagar o preço constitui mero efeito obrigacional do contrato, não impedindo a sua perfeição ou a eficácia translativa do mesmo decorrente.

Questão é saber que significado deve atribuir-se ao facto do filho da A. não ter entregue ao interessado adquirente a declaração de venda subscrita pela A., a qual apenas seria disponibilizada, conforme se provou, após recebimento do preço (ponto 26 supra). Poderemos daqui retirar que as partes, a A., através do seu filho, e o terceiro adquirente, acordaram, afinal, que a eficácia real do contrato não se produziria sem que o preço fosse efetivamente recebido?

Como é evidente, não foi feita prova da vontade real das partes quanto ao sentido e alcance desta última estipulação, desde logo porque esse terceiro adquirente não é parte nesta causa.

De resto, há que relembrar que a A. não invocou sequer a existência de um tal contrato nem a sua invalidade, limitando-se a alegar na presente ação que não vendeu a viatura 20... ao R., não lho entregou nem recebeu qualquer preço em pagamento, nunca assinou nem entregou ao R. nenhum requerimento de registo automóvel para venda daquela viatura, pelo que são falsos os elementos que suportaram o registo do veículo a favor do R., sendo este, por isso, nulo.

Como interpretar, então, o que consta dos pontos 25 a 27 supra?
Dispõe o art. 236 do C.C. que: “1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.” Prevê ainda o art. 237 do mesmo Código que: “Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.”

Recorrendo ao art. 236 do C.C. há, pois, que apurar o sentido que um declaratário normal, alguém “medianamente instruído e diligente”([4]), colocado na posição do real declaratário poderia apreender do comportamento do declarante.

Ora, como vimos, acordado o preço, o filho da A., em nome desta, entregou o veículo a quem se intitulou filha do dito comprador, juntamente com as respetivas chaves e documentos, bem como cópia do cartão do cidadão da A., aceitando como meio de pagamento do preço um cheque. Mas não entregou a declaração de venda subscrita pela A. sua mãe, que seria apenas entregue após recebimento do preço.

Na circunstância, e retida precisamente a dita declaração de venda subscrita pela A. (para efeitos de registo), é razoável admitir que os intervenientes quiseram fazer depender a transmissão do direito real do efetivo pagamento do preço. É, de resto, comum uma tal estipulação na compra e venda.

Como nos refere Pedro Romano Martinez a propósito deste negócio jurídico: “(…) Por via convencional, a transmissão do direito real pode ficar diferida para momento posterior à celebração do contrato, dependendo de facto futuro, certo ou incerto (p.ex., condição ou termo, arts. 270º ss. CC).
É frequente que o efeito translativo fique na dependência do facto futuro e incerto, que é o pagamento do preço; tal ocorre, por exemplo, na compra e venda com reserva de propriedade (art. 409º CC).
(…)
Em todas estas situações, a transferência do direito real funciona sempre de modo automático; continua a ser efeito do contrato, mas completado por outro facto. Por isso, nestes casos, a transmissão ou constituição dos direitos reais não se dá no momento da celebração do contrato, mas posteriormente, sem carecer de subsequente negócio jurídico. Dito de outro modo, a transferência da propriedade pode não ser efeito imediato do contrato, mas será sempre efeito directo do contrato. (…).”([5])

Quer isto dizer que, nas circunstâncias referidas, não nos parece que a retenção da dita declaração para efeitos de registo até efetivo recebimento pela A. da quantia acordada tivesse apenas como desígnio garantir esse recebimento, como foi entendido em 1ª instância. Cremos que visou também obstar à própria transmissão da propriedade do veículo enquanto não estivesse efetivamente satisfeito o pagamento, já que fora recebido um cheque.

É certo que tal matéria não foi trazida à causa pela A., mas a verdade é que o R. veio invocar na contestação a existência de um tal negócio e a A. exerceu o contraditório.

Logo, em face da prova produzida, cumpre ao tribunal fazer a correspondente subsunção jurídica, sem estar sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5, nº 3, do C.P.C.).

Resultando demonstrado que a A. não recebeu a quantia respeitante à venda do veículo (ponto 17), não se verificou a condição prevista, pelo que não se operou o efeito translativo daquela compra e venda – independentemente da validade e/subsistência de tal contrato, que aqui não cumpre discutir. Manteve-se, assim, a A. como proprietária do indicado veículo marca Mercedes-Benz, com a matrícula 20....

Questão diversa é saber se pode, por via desta ação, obter tal reconhecimento, seja através da declaração da nulidade do registo, seja ilidindo a presunção de titularidade que deriva do mesmo a favor do R..

Mas disso nos ocuparemos a seguir.

Da falsidade da declaração de venda, nulidade e cancelamento do registo.

Passamos, então, aos demais pedidos formulados pela A., o da nulidade do registo realizado online a favor do R., por falsidade dos factos submetidos, e do seu consequente cancelamento.

Sustenta a apelante que, comprovada a falsidade da declaração de venda para efeitos de registo, é este nulo, prevalecendo o registo anterior a favor da A.. Esclarece que não peticiona a nulidade da declaração de compra e venda, mas apenas a nulidade do registo, uma vez que este foi realizado sem o seu consentimento, tanto mais que não assinou qualquer requerimento de registo automóvel respeitante ao 20....

Diz, por outro lado, que o R. não pode ser considerado de boa-fé, porque não identificou de forma concreta quem lhe vendeu o veículo automóvel nem o apresentou como testemunha, e não apresenta comprovativo do pagamento do preço supostamente por si pago, sendo certo que quem adquiriu a viatura foi uma sociedade e não o R..

Por fim, defende que o art. 17, nº 2, do C.R.P., se aplica a transmissões sucessivas que não advenham dum mesmo transmitente, em que esteja em causa o vício formal do registo, que gera a nulidade do mesmo, através duma acção de nulidade, pelo que deve conciliar-se com o disposto no art. 291 do C.C., porque a falsificação se apresenta como um vício mais grave, devendo ter, pelo menos, o mesmo tratamento que a invalidade dos negócios. Assim, argumenta, é de permitir, através duma interpretação analógica, a aplicação do prazo de três anos previsto no art. 291 do C.C. a situações de nulidade de registo com base em falsificação de títulos, atento o fim comum prosseguido por ambas as normas. Pelo que, conclui, tendo o registo da presente ação sido realizado no prazo de três anos após a conclusão do negócio inválido, deve ser forçosamente declarada a nulidade do registo a favor do R..

Na sentença, afirmou-se a tal propósito, no essencial: “(…) Questão diversa prende-se com a nulidade do registo invocada pela autora, com o pedido de sua declaração e de inerente cancelamento do registo a favor do réu, o qual terá sido efectuado com base num título falsificado, dado que a autora não subscreveu pelo seu punho o requerimento que fundou a inscrição no registo da propriedade da viatura a favor do réu, no qual foi aposta uma assinatura com o seu nome (factos 5. a 16. e 18. a 20.).
Neste âmbito, prevê o art.º 16.º, alínea a), do Código do Registo Predial, que o registo é nulo quando tiver sido lavrado com base em título falso.
Sucede que a declaração de nulidade do registo não pode prejudicar os direitos adquiridos por terceiro de boa-fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior à acção de nulidade - cfr. art.º 17.º, n.º 2, do Código do Registo Predial. (…).”
E, após discorrer sobre os arts. 5 do C.R.P. e 291 do C.C., afirma-se: “(…) Decorre de quanto se deixou expresso que, no caso de dupla venda do mesmo bem, pelo mesmo vendedor a dois (ou mais) distintos compradores, estes são “terceiros” na sua relação um com o outro, de acordo com a concepção registral do que são “terceiros”, que nos é presentemente facultada pelo art.º 5.º, n.º 4, do Código do Registo Predial.
Mas para o artigo 291.º, do Código Civil, só é “terceiro” aquele que adquire a coisa em segunda transmissão, isto é, de um adquirente do “primeiro” vendedor na cadeia negocial.
No caso que nos ocupa, tendo presente o regime do art.º 291.º, do Código Civil, constatamos que a autora não invocou a invalidade (substantiva) do primeiro negócio translativo da propriedade que se provou ter sido por si celebrado com um terceiro (pois foi o réu que alegou e provou a celebração desse contrato, que a autora omitiu), antes alegando a autora somente, contra o último adquirente, aqui réu, a nulidade do registo fundada num documento falsificado.
Daqui decorre que, não tendo sido invocada a invalidade substantiva do primeiro contrato (provado sob 25. a 27.), a autora não pretende obter a nulidade do registo com base na invalidade do negócio jurídico que o sustenta, não tendo, portanto, aplicação o regime legal plasmado no art.º 291.º, do Código Civil.
No caso, a autora limitou-se a invocar uma invalidade registral, fundada na falsidade do requerimento que deu causa ao registo, por motivo de nele ter sido abusivamente aposta uma assinatura com o seu nome, mas que não é da sua autoria.
Para efeito do disposto no art.º 16.º, alínea a), do Código do Registo Predial, conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.06.2009 (com texto integral acessível in www.dgsi.pt - processo n.º 8339/2008-6), a falsidade que funda a nulidade do registo corresponde à falsidade regulada pelas normas de direito substantivo. Nas normas de direito substantivo que regulam a falsidade, compreende-se, no que toca à falsidade da assinatura nos documentos particulares, o disposto no art.º 374.º, do Código Civil.
Não se provou, contudo, nem tal facto foi invocado, que foi o réu quem abusou da assinatura da autora, ou que dela sabia ou que utilizou o documento em causa sabendo de tal falsificação ou sequer se tendo apurado que o mesmo tenha tido qualquer intervenção na falsificação do documento que deu causa ao registo.
O pedido de declaração de nulidade tem que ser deduzido contra quem praticou o acto que funda a invalidade no registo e não contra o último titular inscrito no registo, no caso, o réu, pois apurou-se que a autora transmitiu o seu direito de propriedade para um terceiro que não réu, o qual, por sua vez, não registou essa aquisição a seu favor e transmitiu para o réu o mesmo direito (factos 5. e 25. a 30.).
E apurou-se, ante a factualidade julgada provada sob 3., 5., 23. e 29. a 36., que o réu recebeu a viatura de um comerciante de automóveis, com a respectiva documentação e chaves, bem como com uma cópia do documento de identificação da autora, que constava como última titular inscrita no registo automóvel e com um requerimento de registo já assinado (na parte destinada ao vendedor) com o nome da autora, coincidente com a cópia do seu documento de identificação, após o que o mesmo, tendo presente que é prática corrente no comércio de veículos usados a transmissão sucessiva da viatura sem que a mesma seja acompanhada das respectivas inscrições registrais, registou o seu direito, o que fez em data anterior à do registo da presente acção, não tendo o autor razões para pôr em causa a autenticidade do requerimento de registo e assim tendo que ignorar que lesava o direito de outrem, como não lesava, na medida em que a autora já havia validamente transmitido o seu direito de propriedade.
Constata-se, pois, que é clara e inequívoca a boa fé do réu e que este terá que merecer a protecção legal que o registo lhe confere mediante aplicação da disposição do art.º 17.º, n.º 2, do Código do Registo Civil, aqui se impondo uma concepção lata de terceiro para efeito do registo, mediante interpretação extensiva da disposição legal contida no art.º 5.º, n.º 4, do Código do Registo Predial, sob pena de o terceiro de boa fé jamais obter protecção oriunda do registo inscrito a seu favor contra quem a não tem.
(…)
Ante o exposto, não pode a autora, porque não é já a proprietária da viatura em causa, opor ao réu a nulidade do registo proveniente da falsidade do título que lhe serviu de base, dado que o réu tem inscrito no registo o seu direito, o qual adquiriu de boa-fé e figura como terceiro naquela ampla acepção precedentemente propugnada.
Não pode, pois, a autora obter contra o réu a nulidade do registo (por força da aplicação do art.º 17.º, n.º 2, do Código do Registo Predial) e, consequentemente, o seu cancelamento (nos termos do art.º 13.º, do Código do Registo Predial), improcedendo, pois, também estas suas pretensões. (…).”

Analisando.

Como se evidenciou na sentença recorrida e a apelante reitera no recurso, a A. não assenta a sua pretensão na invalidade do contrato de compra e venda por si celebrado, mas na falsidade dos elementos que sustentaram o registo do veículo 20... a favor do R.. Por outras palavras, a A. funda a sua pretensão na nulidade do registo e não na nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico que lhe subjaz.

Diga-se, por outro lado, que a A. também não teria de invocar a nulidade da compra e venda subsequente, do comerciante de automóveis à sociedade proprietária do Stand ou ao R., podendo avançar de imediato para a ação de reivindicação. Com efeito, a nulidade decorrente da venda de coisa alheia apenas se aplica na relação entre o alienante e o adquirente, e não no confronto com o efetivo proprietário daquela, perante o qual tal venda é ineficaz, insuscetível de produzir quaisquer efeitos sobre o seu património, nem operando a transferência do seu direito real([6]). Conforme se diz no Ac. do STJ de 16.11.2010 citado em rodapé: “(…) Neste sentido estabelece o art. 406º nº 2 que o contrato, em relação a terceiros (e o proprietário do bem é terceiro em relação à venda de coisa alheia) só produz efeitos nos casos e nos termos especialmente previstos na lei.
Sendo ineficaz em relação ao dono da coisa (a venda em relação a ele é “res inter alios acta”), este poderá reivindicar a coisa, directamente, do comprador, sem necessidade de promover a prévia declaração judicial da nulidade do aludido contrato. (…).”

O art. 1º, nº 1, do DL nº 54/75, de 12.2, que dispõe sobre o registo da propriedade automóvel, estabelece que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”, prevendo a al. a) do nº 1 do seu art. 5 que estão sujeitos a registo o direito de propriedade e de usufruto. Mais prevê o art. 29 do mesmo Diploma que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respectivo regulamento”.

O registo será nulo, designadamente, quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos (art. 16, al. a), do C.R.P.).
Segundo o art. 17 do C.R.P. que: “1.- A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado. 2.- A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade. 3.- A ação judicial de declaração de nulidade do registo pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público, logo que tome conhecimento do vício.”
Já o art. 291 do C.C. dispõe que: “1.- A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2.- Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. 3.- É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.”

Deste modo, nos termos do art. 291, nºs 1 e 3, do C.C., a declaração de nulidade do negócio jurídico respeitante a bens imóveis ou a móveis sujeitos a registo não prejudica os direitos adquiridos sobre eles a título oneroso por terceiro de boa-fé, desconhecedor do vício sem culpa no momento da aquisição, no caso do registo da aquisição ser anterior ao registo da respetiva ação de nulidade. Os direitos de terceiro não serão, todavia, reconhecidos se a ação for proposta e registada nos três anos posteriores à conclusão do negócio (art. 291, nº 2).

Este normativo visa proteger os direitos adquiridos, a título oneroso, por terceiro de boa-fé da declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico respeitante a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.

A noção de terceiro constante deste normativo é diversa da noção de terceiro constante do art. 5 do Código de Registo Predial. Como se afirma no Ac. do STJ de 21.6.2007([7]) sobre o referido art. 291 do C.C.:“(…) O terceiro a que este artigo se reporta é, pois, o sub-adquirente posterior à celebração do primeiro contrato afectado de nulidade por ilegitimidade substantiva, portanto no quadro de aquisição a non domino. (…).”

De acordo com o art. 1 do C.R.P.: “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”.
A transferência de direitos reais sobre coisas determinadas dá-se, em regra, por efeito do contrato (art. 408 do C.C.), mas o registo respeita à declaração e publicidade desses atos, tem por fim dar conhecimento da sua existência.
“(…) O registo dirige-se, pois, mais à publicidade do que à plenitude da garantia, o que se reporta ao seu caráter declarativo, buscando-se a publicidade da aquisição, competindo aos interessados tomar as respetivas precauções. O instrumento da precaução assenta em ser o registo condição de oponibilidade do direito, conforme o registo o demarcou, perante terceiros com pretensões colidentes ou contraditórias. Portanto, age acauteladamente quem regista, sob pena de consequências que sibi imputant. (…)”([8]).

Estabelece, por seu turno, o art. 5 do C.R.P., sob a epígrafe “Oponibilidade a terceiros”, que:
“1. Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo.
2. Excetuam-se do disposto no número anterior:
a)- A aquisição, fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º;
b)- As servidões aparentes;
c)- Os factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados.

3. A falta de registo não pode ser oposta aos interessados por quem esteja obrigado a promovê-lo, nem pelos herdeiros destes.
4. Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
5.- Não é oponível a terceiros a duração superior a seis anos do arrendamento não registado.”
De acordo com o art. 6, nº 1, do mesmo Código, “O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes”, estabelecendo ainda o art. 7 que “registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Ou seja, prevalece o direito primeiramente inscrito, valendo o registo definitivo como presunção, ilidível embora mediante prova em contrário (art. 350 do C.C.), de que o direito existe conforme registado.

Depois de grande controvérsia jurisprudencial, o já referido DL nº 533/99, de 11.12, aditou ao art. 5 do C.R.P. um nº 4, aí consagrando que “Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Diversamente do que dissemos com relação ao art. 291 do C.C., estamos aqui perante situações de conflito entre dois adquirentes de um mesmo transmitente.

Voltando ao Ac. do STJ de 21.6.2007 acima citado, o nº 4 do art. 5 do C.R.P. respeita a “(…) situações em que ocorre uma relação triangular consubstanciada em dupla transmissão pelo mesmo alienante de um bem imóvel ou de um bem móvel sujeito a registo a um primeiro transmissário, que não inscreve no registo a aquisição, e depois a um segundo, que opera a respectiva inscrição registal.
São situações de conflito entre dois adquirentes, é válido o primeiro negócio de transmissão e não o segundo, mas o primeiro adquirente não pode opor ao segundo a sua aquisição, porque ela não constava no registo, e o último não podia, dada a fé pública derivada do registo, conhecer que o alienante já não era o titular do direito em causa.
Mas este conceito de terceiro para efeito do registo, tal como acima se referiu, não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente.
Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, e aqui é protegida a estabilidade dos negócios jurídicos em termos de excepção ao disposto no artigo 289º, nº 1, do Código Civil. (…)”.
No caso, é forçoso concluir que não nos encontramos no domínio do art. 5 do C.R.P., não sendo o R. terceiro para efeito do registo predial.

Teremos ainda de afastar a aplicação do art. 291 do C.C. porquanto nem a A. pede nem se discute na ação a validade de qualquer contrato de compra e venda. Aliás, com relação à alienação alegada pelo R. e referida nos pontos 25 a 27 supra, não se suscita qualquer vício de nulidade.

Quando muito, na segunda transação, em que o R. surge como adquirente, a questão poderia colocar-se, porque estaríamos perante a venda de coisa alheia cuja nulidade a A. sempre poderia invocar, nos termos do art. 892 do C.C., mas o certo é que a não invocou. Nem o R., em rigor, a trouxe à causa nesses termos([9]).
Diga-se, por outro lado, que a nulidade que resulta da venda de bens alheios, invalidade atípica como a define Pedro Romano Martinez, não será sequer de conhecimento oficioso, podendo, no limite, levar até o tribunal a impor o cumprimento de um contrato nulo([10]).

Resta-nos, por conseguinte, a invalidade registral, fundada na falsidade do requerimento de venda que deu causa ao registo.

Provou-se que a A. não assinou e não entregou ao R. nenhum requerimento de registo automóvel - modelo único, para inscrição no registo automóvel da venda da viatura de matrícula 20... (ponto 16), sendo certo que o registo foi realizado a favor do R. nos termos que constam dos pontos 3 a 13 supra, com base no referido requerimento, tanto mais que a A. não conhece o R. nem a Solicitadora que procedeu ao registo (pontos 15 e 19).

Estamos, por conseguinte, perante um registo nulo, por ter sido lavrado com base em títulos falsos (art. 16, al. a), do C.R.P.).

Contra o que se entendeu na sentença recorrida, não cremos que a ação judicial de declaração de nulidade do registo, que pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público (art. 17, nº 3, do C.R.P.), deva ser dirigida contra quem praticou o ato de falsificação, nele interveio ou dele tenha tido conhecimento por qualquer forma.

Ainda que não tenha resultado apurado que foi o R., ou alguém em seu nome, que apôs a assinatura da A. no requerimento de registo automóvel de fls. 77/78 que baseou o registo (pontos 16 e 23), ou que tivesse conhecimento da falsificação, é ele o único titular inscrito a seguir à A., pelo que tem o mesmo plena legitimidade passiva para a causa.

Recordamos que não se discute aqui a validade do negócio que baseou o registo e, por isso, afastámos a aplicação do art. 291 do C.C..

Impõe-se, por isso, fazer aplicação do disposto no art. 17 do C.R.P..

Ora, de acordo com o nº 2 do art. 17 do C.R.P., “A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade.”

Nenhuma dúvida há, no caso, de que o R. registou o veículo a seu favor em data anterior ao registo da presente ação (cfr. pontos 5 e 36 supra).

Mas será que deve considerar-se o mesmo como terceiro de boa-fé para os fins previstos no nº 2 do art. 17 do C.R.P.?

A apelante sustenta no recurso que o R. não pode ser considerado de boa-fé, porque não identificou de forma concreta quem lhe vendeu o veículo automóvel nem o apresentou como testemunha, e não apresenta comprovativo do pagamento do preço supostamente por si pago, sendo certo que quem adquiriu a viatura foi uma sociedade e não o R..

Analisando.

A primeira questão tem desde logo que ver, de facto, com a circunstância do R. ser o titular inscrito no registo mas não ser, em rigor, o efetivo adquirente da viatura.

Na verdade, como vimos, o que resultou provado foi que, após a transação realizada pelo filho da A. (referida nos pontos 25 a 27), um comerciante de automóveis declarou vender a viatura 20... à sociedade que explorava o Stand onde o R. trabalhava, que declarou comprar-lho, por cerca de € 6.750,00, que foi pago o preço pedido e entregue naquele Stand o veículo, as respetivas chaves e documentos, bem como uma cópia do cartão do cidadão da A. e o requerimento referido no ponto 23 e, ainda, que por acordo entre a referida sociedade e o R., foi decidido que aquela viatura seria registada em nome deste como sendo o adquirente, pelo que o R. procedeu ao registo referido em 5 (cfr. pontos 28, 29 e 30 acima alterados).

Não sendo embora o real comprador da viatura, o R. registou-a a seu favor a pedido da verdadeira adquirente. Nessa medida, cremos que o R. não poderá prevalecer-se do nº 2 do art. 17 do C.R.P. uma vez que não adquiriu, realmente, quaisquer direitos a título oneroso sobre o veículo 20..., ainda que estivesse de boa-fé.
Acresce que seria ainda de ponderar se o R. poderia, de qualquer modo, ser considerado terceiro para efeito de registo, dado que não adquiriu, no confronto com a A., direitos incompatíveis de um “autor comum” (art. 5, nº 4, do C.R.P.).

Por outra banda, a invocação da boa-fé, requisito de verificação indispensável para que possa atuar a proteção conferida pela lei aos direitos do terceiro adquirente, integra matéria de exceção, fazendo recair sobre o demandado o ónus de alegação e prova da respetiva factualidade (art. 342, nº 2, do C.C.).

Por conseguinte, ao R., ao menos enquanto titular inscrito no registo com base no requerimento de que constava uma assinatura que não fora aposta pela A., competia alegar e provar que, aquando do negócio respeitante ao 20..., desconhecia, sem culpa, o vício do documento.

A boa-fé de que cumpre aqui cuidar nada tem que ver com a conduta processual do R., como sugere a apelante, mas apenas com a sua postura psicológica aquando da celebração do negócio.

E, recorde-se uma vez mais, essa boa-fé há-de ser dirigida à idoneidade e conformidade do documento, pois já concluímos que não se discute na ação qualquer vício substantivo. Isto é, não se trata de saber se o R., adquirente para efeitos de registo, desconhecia, sem culpa, que o comerciante de automóveis referido nos pontos 23 e 28 não era o efetivo proprietário do veículo 20....
Ora, com o devido respeito, analisando a factualidade apurada verificamos que não é também feita prova dessa boa-fé do R..

Na verdade, o que se provou, para além do atrás descrito, foi que o R. é funcionário de um Stand de comércio de automóveis, que é prática no ramo de comércio de automóveis usados que estes sejam consecutivamente vendidos sem inscrição no registo de todas as transações, por o número de registos determinar a desvalorização das viaturas, que o R. conhecendo essa prática, por via profissional, e por lhe ter sido entregue a descrita documentação necessária à inscrição no registo automóvel da propriedade do veículo 20... a seu favor, não estranhou que a propriedade estivesse inscrita a favor da anterior proprietária e que se assegurou, antes da aquisição, mediante consulta no registo, que não incidiam sobre a viatura quaisquer ónus ou encargos pendentes e considerando adequado o preço pedido, tendo em atenção o tipo de viatura, a sua idade e estado de conservação.  

Nada se diz quanto à idoneidade da documentação entregue e à sua verificação por parte do R., em nome próprio ou alheio, sendo insuficiente concluir que este agiu, desse ponto de vista, segundo o que lhe era exigível. A questão está em que não foi feita prova, como seria mister, de que, aquando do negócio no Stand, o R., ou a adquirente da viatura, desconhecia, sem culpa, qualquer vício do requerimento de registo automóvel que lhe foi apresentado.

Em suma, nem o R. adquiriu quaisquer direitos a título oneroso sobre o veículo 20..., nem provou que estivesse de boa-fé quanto à idoneidade e conformidade do documento que serviu de suporte ao registo a seu favor. Donde, não pode beneficiar do disposto no nº 2 do art. 17 do C.R.P..

Assim, deve ser declarado nulo o registo e cancelado o mesmo a favor do R., após transitado em julgado o presente acordão (arts. 13, 16, al. a), e 17 do C.R.P.).

Prevalece, por outro lado, o registo a favor da A. (art. 6 do C.R.P.) que, ademais, como acima vimos, logrou comprovar que não transferiu para terceiro o seu direito de propriedade sobre o veículo 20..., propriedade essa que, por sua vez, adquirira, mediante contrato de compra e venda, em 23.11.2012.

Em conclusão, terá de proceder a ação, sendo declarado nulo o registo feito com base na apresentação nº 9…, de 19.9.2014, pedido 7…/2014, respeitante ao automóvel, marca Mercedes-Benz, com a matrícula 20..., e, em consequência, ordenado o cancelamento da respetiva inscrição a favor do R., mais se declarando a A. como sua única proprietária.
***

IV–Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e a causa, revogando a sentença recorrida e, por consequência, em:
- declarar nulo o registo realizado com base na apresentação nº 9…, de 19.9.2014, a que corresponde o pedido 7…/2014, respeitante ao veículo automóvel, da marca Mercedes-Benz, com a matrícula 20..., referido no ponto 5 supra;
- ordenar o cancelamento da respetiva inscrição a favor do R., Hugo...;
- julgar a A., Cecília..., como única proprietária do referido veículo.
Custas pelo R./apelado.
Notifique.

***



Lisboa, 6.3.2018
                                   
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho                                                                                     
Luís Filipe Pires de Sousa

[1]Ver Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, págs. 128/129.
[2]Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, 4ª ed., págs. 161, 162 e 168, Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos”, 2ª ed., págs. 31 a 36, e Manuel Baptista Lopes, “Do Contrato de Compra e Venda”, Almedina, 1971, pág. 90.
[3]Proc. 03B1568, disponível em www.dgsi.pt.
[4]Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 223.
[5]Ob. cit., págs. 35 e 36.
[6]Cfr., a propósito, Pedro Romano Martinez, ob. cit., pág. 113, e o Ac. do STJ de 16.11.2010, Proc. 42/2001.C1.S1, em www.dgsi.pt.
[7] Proc. 07B1847, relatado por Salvador da Costa, disponível em www.dgsi.pt.
[8]J. A. Santos, “Novo Código de Registo Predial – 2002”, Anotado e Comentado, 2ª ed., pág. 16.
[9]Com efeito, na sua contestação o R. coloca como hipótese a verificação da venda de coisa alheia mas apenas na perspetiva de que o filho da A., AR..., teria alienado a viatura 20... sem autorização de sua mãe, a respetiva proprietária, e contra a vontade desta (cfr. arts. 30º a 41º da contestação).
[10]Cfr. Pedro romano Martinez, ob. cit., págs. 114/115.