Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15275/20.0T8SNT.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: CONTRATO DE FRANQUIA
DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A dissolução e liquidação de uma sociedade, parte contratante num contrato atípico de franquia, determina a extinção das prestações posteriores a essa liquidação por impossibilidade objectiva de cumprimento, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 790.º, do C. Civil.


(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.


1.RELATÓRIO


... - Mediação Imobiliária, ..., Lda propôs contra Jean … e Marie … esta ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a sua condenação a entregar-lhe a quantia € 24.467,35 acrescida de juros de mora até efetivo e integral pagamento, com fundamento, em síntese, na falta de pagamento de quantias relativas às prestações de um contrato de franquia celebrado com uma sociedade de que eram sócios gerentes e em que outorgaram como fiadores.

Citados, contestaram cada um dos RR dizendo, em síntese não serem devidas quaisquer quantias, pedindo a absolvição do pedido.
Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, julgando a ação improcedente e absolvendo os RR do pedido.

Inconformada com essa decisão, a A dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação, a procedência da ação e a condenação no pedido, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
I.O Tribunal a quo julgou a acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu os RR. do pedido deduzido pela A.
II.A Sentença recorrida começou por formular mal a “questão a decidir”, estabelecendo que “é a de saber se existe ou não fundamento de resolução do contrato de franquia, nos termos pretendidos pela Autora e, em caso afirmativo, as respectivas consequências”, quando na realidade, a questão a decidir é a de saber se os RR. deverão ser condenados a pagar as quantias peticionadas pela A.
III.A correta enunciação da “questão a decidir” tem uma influência determinante na análise do litígio e, consequentemente, na respectiva decisão. Ao enunciar a “questão a decidir” nos termos em que o fez, o Tribunal a quo condicionou o acerto da sua Sentença.
IV.Quanto ao alegado incumprimento do contrato, a Sentença recorrida entendeu que, a dissolução e a liquidação da franqueada (... Portugal, Lda.), perpetrada pelos seus sócios a meio da vigência do contrato de franquia, teve por consequência a caducidade do contrato de franquia, por impossibilidade objectiva/subjectiva superveniente da prestação, com a aplicação do regime previsto nos art.º 790.º a 795.º do CC. Salvo o devido respeito, tal entendimento não pode proceder.
V.Esta questão está estabilizada na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que, ocorre caducidade quando a cessação do contrato advém de um facto jurídico não dependente de uma declaração de vontade (Vide Acórdão do STJ de 30.04.2019, proc. 3271/15.4T8STR.E1.S1, www.dgsi.pt).
VI.A dissolução e o encerramento da liquidação da franqueada (... Portugal, Lda.), foram decididas pelos seus sócios, pelo que, a extinção da sociedade é um facto jurídico que foi dependente de uma declaração de vontade.
VII.A extinção da franqueada a meio do contrato de franquia não deverá determinar a caducidade do contrato de franquia, por impossibilidade objectiva/subjectiva superveniente da prestação, com a aplicação do regime do art.º 790.º a 795.º do CC, como decidiu o Tribunal a quo, configurando antes uma situação de impossibilidade culposa, com a aplicação do regime do art.º 801.º do CC.
VIII.Mas mais, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a fiança prestada pelos Recorridos à franqueada (... Portugal, Lda.) e não retirou as consequências jurídicas dessa fiança.
IX.A fiança prestada pelos Recorridos à franqueada no contrato de franquia, tinha por consequência a condenação dos fiadores, ora Recorridos, a pagarem à Recorrente as quantias peticionadas, correspondentes aos encargos financeiros da franqueada até final do contrato e que não foram pagos por esta devido ao facto de ter sido, entretanto, dissolvida e liquidada.
X.A Sentença recorrida violou, assim, o art.º 790.º a 795.º e o art.º 801.º todos do CC, assim como, a cláusula vigésima do contrato de franquia (doc. 2 junto com a pi).
XI.Face a tudo o que ficou sobredito, requer-se a V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, que revoguem a Sentença recorrida, com as legais consequências.

Cada um dos apelados contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

2.FUNDAMENTAÇÃO.

A)OS FACTOS.

O Tribunal a quo julgou:

A.1.provados os seguintes factos:
1.º-A A. é uma sociedade comercial que se dedica, entre o mais, à actividade de mediação imobiliária;
2.º-A A. concebeu, implementou e é titular de um sistema de franquia denominado “...”, por via da qual, desenvolve, gere e mobiliza uma rede de agências de mediação imobiliária, franchisadas, jurídica e financeiramente independentes, que actuam no mercado nacional.
3.º-Em 12.07.2018, os legais representantes da A. e da sociedade “...  Portugal, Lda.” outorgaram o documento de fls. 10 verso-27, o qual denominaram de “Contrato de Franquia”.
4.º-Por via do qual, concedeu à sociedade “... Portugal, Lda.” o direito de explorar uma unidade franquiada (loja de atendimento ao público) integrada no conceito e na rede “...”, mediante o pagamento de determinadas contrapartidas financeiras.
5.º-Os RR. intervieram no contrato referido em 3.º na qualidade de sócios gerentes da aludida sociedade “... Portugal, Lda.”.
6.º-E ainda como fiadores por força da fiança que prestaram conforme consta da cláusula vigésima do mesmo, com o seguinte teor: “Os sócios do franqueado respondem solidariamente por toda as obrigações que deste contrato resultam para o Franqueado, aqui se constituindo expressamente fiadores e assumindo a obrigação de principais pagadores perante o Franqueador por todas e quaisquer obrigações que resultem do presente contrato, prescindindo do beneficio de excussão prévia”.
7.º-O contrato foi celebrado pelo período de 5 (cinco) anos, com inicio em 12.07.2018 e termo em 12.07.2023.
8.º-Ficou estabelecido no contrato que, durante os 5 (cinco) anos da sua vigência, a franqueada pagaria mensalmente à A (i) uma “quota mensal de utilização da marca”, (ii) “royalties mensais” e (iii) uma “taxa de publicidade de contribuição mensal”.
9.º-A “quota mensal de utilização de marca” cifrava-se em 145,00€ (cento e quarenta e cinco euros), acrescidos de IVA.
10.º-Os “royalties mensais” cifravam-se em 5% da facturação da franqueada no mês anterior, com um valor mensal mínimo de 235,00€ (duzentos e trinta e cinco euros) no primeiro mês de vigência do contrato e de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) nos anos seguintes, independentemente da respectiva facturação.
11.º-A “taxa de publicidade de contribuição mensal” cifrava-se em 3% da facturação da franqueada no mês anterior, com um valor mensal mínimo de 115,00€ (cento e quinze euros), independentemente da sua facturação.
12.º-No dia 30 de Agosto de 2019, a sociedade “... Portugal, Lda.” remeteu email à A. com o seguinte teor:
“Boa tarde, Serve o presente email para informar da dissolução e liquidação da ...
Portugal, Lda., à data de hoje, 30 de Agosto de 2019.
Sem outro assunto, melhores cumprimentos.”


B)O DIREITO APLICÁVEL.

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).

Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, as questões submetidas ao conhecimento desta Relação pela apelante consistem em saber se a) se a extinção sociedade não deverá determinar a caducidade do contrato de franquia, por impossibilidade objectiva/subjectiva superveniente da prestação, em aplicação do nos art.ºs 790.º a 795.º do C. Civil, configurando uma situação de impossibilidade culposa, prevista no art.º 801.º do C. Civil (conclusões I a VII) e se b) a fiança prestada pelos Recorridos tem por consequência a sua condenação a pagarem à Recorrente as quantias peticionadas, correspondentes aos encargos financeiros da franqueada até final do contrato (conclusões VIII a X).

Vejamos.

1)Quanto à primeira questão, a saber, se a extinção sociedade não deverá determinar a caducidade do contrato de franquia, por impossibilidade objectiva/subjectiva superveniente da prestação, em aplicação do nos art.ºs 790.º a 795.º do C. Civil, configurando uma situação de impossibilidade culposa, prevista no art.º 801.º do C. Civil.
Como é pacífico nos autos, o contrato celebrado entre a A/apelante e a sociedade “...” configura-se como um contrato atípico, denominado de franquia, ao qual são aplicáveis as normas gerais dos contratos e as normas dos contratos que com ele apresentem afinidades.
A apelante estrutura a sua pretensão no seu ato de 13/04/2020, pelo qual “resolveu” o contrato, como declara no art.º 21.º, da petição inicial.
Acontece, todavia, que muito antes dessa data, como consta sob o n.º 12 da matéria de facto da sentença, já lhe tinha sido comunicada a dissolução e liquidação da sociedade, situação que a sentença recorrida, louvando-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/04/2019, publicado in dgsi.pt, e citando o disposto no n.º 2, do art.º 346.º, do Código do Trabalho[1], qualificou como caducidade do contrato objeto dos autos.
Com efeito, dispõe o n.º1, do art.º 790.º, do C. Civil que:A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor”
Pretende a apelante que a extinção da sociedade “...” se não configura como uma impossibilidade objectiva da prestação a cargo desta, mas não lhe assiste razão.
De facto, a dissolução da sociedade não constitui um ato da própria sociedade, mas dos seus sócios, que alegam nesta ação não ter celebrado qualquer negócio ou, pelo menos, não ter a sociedade celebrado qualquer negócio ao abrigo do contrato com a apelante, constituindo em relação a ela e no que respeita ao cumprimento do contrato dos autos no período após a dissolução, uma impossibilidade objectiva de cumprimento.
O ato de dissolução foi comunicado à apelante, que o não impugnou, do mesmo modo que não impugnou a alegação da ausência do contrato dos autos em qualquer ato da sociedade dissolvida.
A impossibilidade de cumprimento do contrato no que respeita às prestações a favor da apelante no período após dissolução configura-se, pois, como uma impossibilidade objetiva de cumprimento, prevista no art.º 790.º, n.º 1, do C. Civil, determinante da extinção da obrigação quanto a essas prestações futuras e não como uma impossibilidade de cumprimento que deva ser reconduzida a incumprimento culposo do devedor, como previsto no art.º 801.º, do C. Civil.
Improcede, pois, esta primeira questão.

2)Quanto à segunda questão, a saber, se a fiança prestada pelos Recorridos tem por consequência a sua condenação a pagarem à Recorrente as quantias peticionadas, correspondentes aos encargos financeiros da franqueada até final do contrato.
Atenta a decisão da questão anterior no que respeita à extinção da obrigação relativa às prestações após a liquidação da sociedade contratante, a resposta a esta segunda questão situa-se em saber se, ainda assim, os apelados, que são demandados nesta ação em razão da fiança prestada, a que se reporta o n.º 6 dos factos provadas da sentença, estão obrigados perante a apelante a entregarem-lhe tais prestações futuras, as quais se configuram como prestações sem contrapartida, uma vez que também não está demonstrado que a apelante tenha prestado o que quer que seja.
Sobre esta matéria a sentença limitou-se a declarar que uma vez que o contrato caducou “…não se vislumbra qual o fundamento legal ou contratual para o pagamento das reclamadas quantias por parte da A…”.
E com efeito assim é, pois, dispondo o n.º 2, do art.º 627.º, do C. Civil que “A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”, extinta a obrigação do devedor, extinta fica a obrigação do fiador como, aliás, dispõe expressamente o art.º 651.º, do C. Civil, segundo o qual “A extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança”.
Improcede, pois, também esta segunda questão, sem necessidade de mais considerações e com ela a apelação.

C)SUMÁRIO
A dissolução e liquidação de uma sociedade, parte contratante num contrato atípico de franquia, determina a extinção das prestações posteriores a essa liquidação por impossibilidade objectiva de cumprimento, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 790.º, do C. Civil.

3.DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa 28-04-2022


(Orlando Santos Nascimento)
(Maria José Mouro)
(José Maria Sousa Pinto)



[1]O qual dispõe que: “A extinção de pessoa colectiva empregadora, quando não se verifique a transmissão da empresa ou estabelecimento, determina a caducidade do contrato de trabalho”.