Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
688/16.0T9LRS-A.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIMENTO
Sumário: Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo a condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a acusação é manifestamente infundada e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. b) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1–No Departamento de Investigação e Acção Penal, 3.ª Secção de Loures, Processo n.º 688/16.0T9LRS, deduziu o Ministério Público acusação contra os arguidos A..., Ld.ª e B..., aos quais imputou a prática de um crime de “Abuso de Confiança contra a Segurança Social”, na forma continuada, p. p. nos termos dos artºs. 7.º, nºs. 1 e 3 e 107.º, nºs. 1 e 2, por referência ao 105.º, nºs. 1 e 4 a 7, do RGIT e 30.º, n.º 1, do Código Penal.

Porém, remetidos os autos à distribuição, com a informação de que “não obstante os esforços desenvolvidos não se logrou apurar o paradeiro dos arguidos”, foi a mesma acusação rejeitada, nos termos do art.º 311.º, nºs. 1, 2, al. a) e 3, al. d), do C.P.P., por haver sido considerada manifestamente infundada, pois que os arguidos não foram notificados nos termos e para os fins previstos no art.º 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.

Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o Ministério Público o presente recurso, alegando que a notificação prevista no citado no art.º 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT é uma mera condição objectiva da punibilidade, não integrando, por isso, o tipo de ilícito.
Assim, constando da acusação todos os elementos do tipo legal de crime imputado aos arguidos, não podia o tribunal “a quo” deixar de receber a mesma acusação.

Da respectiva motivação extraiu o recorrente, a final, as seguintes conclusões:
“(...)
1.A acusação deduzida nos presentes autos não se enquadra na previsão da alínea d) do n.º 3 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do C.P.P.;
2.A acusação não é manifestamente infundada, pois nela encontram-se descritos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de que estão indiciados os arguidos;
3.Logo, constando especificamente da acusação pública os
elementos objetivo e subjetivo do crime de abuso de confiança à Segurança Social não podia o Tribunal a quo deixar de a receber uma vez que se trata da peça definidora do objecto do processo e que, por seu turno, define e delimita o objecto da cognição e decisão do tribunal;

4.E, pese embora entendamos que as condições objetivas de
punibilidade não integram o tipo de ilícito ora em causa pelos fundamentos supra expostos, tais factos figuram na acusação pública - vide parágrafos 8 e 9 da mesma;

5.O Prof. Paulo Pinto de Albuquerque menciona, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, Editora U.C.P., pág. 779, «...o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação ...».
6.Ainda assim, caso entendesse não estar preenchida a
condição objetiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º ex vi artigo 107.º, n.º 2 ambos do R.G.I.T., o Tribunal a quo poderia e deveria ter sanado tal irregularidade de acordo com o disposto no artigo 123.º, n.º 2 do C.P.P.

7.Deste modo, o Tribunal a quo deveria ter oficiado à
Segurança Social I.P. para que efetuasse tal notificação junto dos arguidos, ao abrigo do artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT e aguardar pelo decurso do termo do prazo respetivo.

8.Caso se verificasse a regularização da situação tributária
dentro do prazo previsto na lei e nos termos e condições aí referidos, deveria ser considerada extinta a responsabilidade criminal dos arguidos; na negativa, deveriam os autos prosseguir para julgamento.

9.Violou, deste modo, o Mm. Juiz a quo o disposto nos artigos
105.º, nº 1 e 4 alínea b) e 107.º, ambos do RGIT e artigos 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), 118.º e 123.º, n.º 2 todos do C.P.P.

Como tal, pugnamos pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação, sujeitando-a ao debate público e contraditório do julgamento, resolvendo-se oportunamente, e livremente, a questão de facto e a questão de direito, na sentença.
Em alternativa, que o Tribunal a quo diligencie pela notificação dos arguidos nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do R.G.I.T., aguardando pela regularização da situação tributária no prazo aí previsto; findo tal prazo, caso tal não ocorra, o Tribunal a quo deve, então, designar data para a audiência de discussão e julgamento. (…)”.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito não suspensivo.
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Neste Tribunal, no que ao objecto do recurso diz respeito, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu “parecer” no sentido de o mesmo merecer provimento.
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Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, ao qual também foram correctamente fixados o efeito e o regime de subida.
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2–Cumpre apreciar e decidir:

É o objecto do presente recurso, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, o dever a acusação ser recebida, pois que a notificação prevista no art.º 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT é uma mera condição objectiva da punibilidade, não integrando o tipo legal de crime que foi imputado aos arguidos.

Vejamos:

Dispõe o art.º 105.º, nºs. 1 e 4, al. b), ex vi  art.º 107.º, da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, que quem não entregar às instituições de segurança social os montantes das contribuições legalmente devidas será punido.

Todavia, os respectivos factos só serão puníveis se: b) – A prestação comunicada à segurança social através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Esta alínea b) foi introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12 e veio dar como que um “tratamento de favor” ao agente que, apesar de não ter feito a entrega do imposto, apresentou, contudo, a “declaração” correspondente à respectiva prestação, dando-lhe, por isso, a oportunidade de pagar esta, ainda, no prazo de 30 dias, após a notificação para o efeito.

Neste caso, presume a lei que o agente, ao apresentar a referida “declaração”, manifestou o propósito de efectuar o pagamento de uma importância cujo montante reconheceu e que sabe ser devido.
Daí que, ante o não pagamento atempado da prestação, o que poderá ter subjacente um acto não premeditado do agente, v.g., o esquecimento ou uma razão de força maior, lhe dê a lei a possibilidade de o poder fazer no novo prazo concedido para esse fim.

Ora, esta nova oportunidade de pagamento no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, conforme jurisprudência pacífica e uniformizada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 09 de Abril, é tida como uma condição objectiva de punibilidade, isto é, como se diz no mesmo acórdão, ficando intocado o tipo de ilícito, que se consumou, a punição do mesmo terá lugar se, feita a notificação prevista no art.º 105.º, n.º 4, al. b), a prestação não vier a ser paga no novo prazo agora concedido.

Assim sendo, resulta daqui, desde logo, salvo melhor opinião, que a administração tributária não deverá denunciar o facto ao Ministério Público, para um procedimento criminal que não poderá ter lugar, enquanto não se mostrar verificada a notificação em causa. Denunciar para quê, se, como diz a lei, “os factos só são puníveis se (…)”. Enquanto não se verificar a condição que constitui um pressuposto material da punibilidade esta não poderá, nunca, vir a ter lugar.

Deste modo, tudo o que se fizer a partir de uma notificação que não foi efectuada, devendo-o ter sido, traduzir-se-á na prática, sempre em crescendo, de actos inúteis, seja porque, sem a referida notificação, o julgamento não poderá realizar-se, seja porque, repondo o agente a verdade sobre a situação tributária, não haverá, sequer, lugar a procedimento criminal.

Não devia, pois, a administração tributária ter denunciado os factos ao Ministério Público e, tendo-o feito, nunca a acusação poderia ter sido deduzida, como bem se diz no acórdão da Rel. de Évora de 25/10/2016, transcrito na decisão recorrida.

Na interpretação extensiva que não poderá deixar de ser feita do art.º 283.º, nºs. 1 e 2 do C.P.P., para a dedução da acusação não basta a existência, sem mais, de indícios suficientes da prática de um crime, exigindo-se, também, a existência de uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, o que nunca poderá acontecer nas circunstâncias verificadas nos presentes autos, pelas razões atrás expostas.

Assim, como se diz no citado acórdão, não só o Ministério Público deduziu uma acusação “sob condição”, pois que sabia, como expressamente o referiu no despacho em que ordenou a remessa dos autos à distribuição (fls. 492), ao dizer que “não se logrou apurar do paradeiro dos arguidos, não obstante os esforços desenvolvidos”, como da mesma acusação fez constar um facto que também sabia não corresponder à verdade, isto é, que “os arguidos foram notificados para proceder, no prazo de 30 dias, à entrega dos montantes mencionados, não tendo sido entregue a totalidade do valor em causa”.

Por outro lado, pese embora isso, veio o mesmo Ministério Público, na fundamentação do presente recurso, dizer, ainda, que a verificação das condições objectivas de punibilidade foram feitas constar da acusação e, também por isso, a mesma acusação haveria de ter sido recebida. Isto é, fundamenta o recorrente a sua motivação num facto que sabe não corresponder à realidade!

Remetidos os autos à distribuição, ante o circunstancialismo descrito, fez o Mm.º Juiz “a quo” aquilo que se lhe impunha fazer, isto é, rejeitar a acusação, desde logo, à luz do disposto no art.º 311.º, n.º 1, do C.P.P..

Segundo este dispositivo, recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.
Ora, a não notificação prevista no art.º 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, impedindo a punição dos respectivos factos, começa por ser uma questão que obsta à apreciação do mérito da causa, pese embora o crime se mostre preenchido nos seus elementos típicos.
Depois, nos termos em que a acusação se mostra formulada, também é a mesma manifestamente infundada, nos termos do n.º 3, al. b), do citado art.º 311.º.

Devendo constar da respectiva acusação, enquanto pressuposto necessário da punição dos factos, que a notificação acima referida foi efectuada, faltando essa referência na mesma acusação haverá esta de ser considerada manifestamente infundada, à luz do referido n.º 3, al. b).

É certo que o recorrente alega que, à luz da acusação formulada, a notificação em causa foi efectuada aos arguidos.

Todavia, como resulta dos autos e o Ministério Público não o pode ignorar, este facto não corresponde à verdade, pelo que a consequência necessária a extrair só pode ser a da equivalência à sua inexistência, preenchendo-se, assim, a citada al. b).

Deste modo, pelas expostas razões, impõe-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação de direito.

3–Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.




Lisboa, 15/fevereiro/2018



(Manuel Cabral)
(Fernando Estrela)