Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
268/10.4YRLSB-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
ARRENDAMENTO
INSTITUIÇÃO PRIVADA DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
CONHECIMENTO OFICIOSO
RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERAR A DECISÃO
Sumário: 1. São os tribunais administrativos, e não os judiciais, os competentes para o julgamento de uma causa em que uma pluralidade de titulares de «arrendamentos sociais» peçam, no confronto com uma IPSS, que o Tribunal remova a incerteza, em sentido negativo, quanto à aplicação do regime de renda apoiada constante do DL n.º 166/93, de 7 de Maio;
2. Não fica precludida a possibilidade de se conhecer oficiosamente, na fase de recurso, da existência da excepção de incompetência, quando essa questão não tenha sido concretamente apreciada no primeiro grau.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
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M e outros 39 autores instauraram, em 17 de Março de 2003, contra a F, acção declarativa, com processo ordinário, pedindo que:
a) seja declarada a inexistência do direito da ré a proceder às actualizações das compensações com base no DL 166/93, de 7 de Maio;
b) seja declarada a não aplicação do referido DL aos casos sub-judice;
c) sejam mantidos os valores de compensação anteriores a Maio de 2002;
d) seja declarada a inexistência de qualquer dívida dos autores à ré a título de compensação pelas habitações.
Alegaram, em síntese, que:
- em 1974, a ré recebeu da Câmara Municipal de , um terreno onde construiu várias habitações sociais, que cedeu, entre outros, aos ora autores, em virtude dos seus fracos recursos económicos;
- os ocupantes das casas passaram a pagar à ré uma compensação, calculada em função dos respectivos rendimentos, e que se manteve inalterada até ao ano de 2002;
- nesta última data, a ré, invocando o disposto no DL n.º 166/93, de 7 de Maio, comunicou aos moradores que tinha decidido proceder a aumentos no valor dessa compensação, que chegaram a valores da ordem dos 800%, ao mesmo tempo que os informava de que seria celebrado um aditamento à licença de ocupação;
- para além daquele diploma não ser aplicável, a ré nem sequer lhes comunicou os critérios usados para o referido cálculo, tal como não respeitou as restantes formalidades legais, tendo publicado anúncios que não cumprem o que ali se exige;
- em reunião entre as partes, foi decidido suspender o aumento das compensações até ao início das negociações para a venda dos fogos.
A ré contestou. Começou por colocar em dúvida a possibilidade legal de serem formulados os pedidos, quer por falta de interesse em agir, quer pela causa de pedir invocada pelos AA.
Depois alegou, também em súmula, que:
- previamente aos aumentos, obteve informação do Conselho Directivo do IGAPHE no sentido de que podia recorrer ao regime da renda apoiada, nos termos do diploma mencionado na petição inicial;
- procedeu aos aumentos em conformidade com o regime previsto nesse diploma e cumprindo todas as formalidades aí exigidas.
Em reconvenção, a ré pediu que os autores sejam condenados a reconhecer o seu direito a proceder aos aumentos.
Deduzindo a sua defesa quanto à reconvenção, os autores defenderam a impossibilidade de a mesma ser apresentada.
Depois de admitido o pedido reconvencional, foi proferido despacho saneador do seguinte teor:
«O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
Os AA (…) são dotados de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente patrocinados.
A Ré F é dotada de personalidade judiciária e está regularmente representada e patrocinada».
Passou-se, depois, no mesmo despacho a apreciar concretamente a (in)existência de interesse em agir e a invocada ineptidão da petição inicial, excepções dilatórias julgadas ambas improcedentes.
Retomando-se a anterior forma tabelar, consignou-se ainda:
« Os AA. e a R. são dotados de legitimidade ad causam.
O processo é o próprio.
Não existem nulidades, questões prévias ou outras excepções de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa»
Prosseguiu o processo seus ulteriores termos e, após julgamento, as partes apresentaram alegações escritas sobre matéria de direito.
Entendeu então o tribunal convidar as partes a pronunciarem-se sobre uma concreta questão, conforme despacho de fls. 1077/78.
Nesse despacho, depois de se ter considerado que «questões semelhantes àquelas que são suscitadas nos presentes autos, também têm sido colocadas perante a jurisdição administrativa», afirmou-se: «com esta referência não pretendemos suscitar qualquer questão relacionada com a competência do tribunal, mas apenas salientar que, salvo melhor opinião, as pretensões dos autores tendo sido apresentadas perante os tribunais comuns, deverão ser fundamentadas sobretudo em função das normas do direito civil e não segundo princípios e normas de direito administrativo».
Foi ulteriormente proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré dos pedidos formulados, e procedente o pedido reconvencional com condenação dos autores a reconhecerem o direito da ré a aplicar o regime de renda apoiada nos termos do DL n.° 166/93, de 7 de Maio.
Lê-se na motivação da sentença: «Na petição inicial, os autores alegaram que a preterição das formalidades que acabámos de referir, teriam como efeito a nulidade da comunicação e dos anúncios, não apresentado, porém, fundamentação legal para esta conclusão. Na sequência de despacho proferido nos autos, os autores foram convidados a apresentar essa fundamentarão, tendo-o feito nos termos que constam de fls. 1082 e segs. No essencial, os autores invocam diversas normas previstas no Código de Processo Civil, cujo âmbito de aplicação se circunscreve à tramitação processual, não sendo manifestamente aplicáveis à situação dos autos.
Conforme se escreveu naquele despacho, questões semelhantes àquelas que são suscitadas nos presentes autos também têm sido colocadas perante a jurisdição administrativa - cfr.. entre outros, o Ac. TCA do Sul. de 18.5.2006, no processo n.° 1620/06 (in www.dgsi.pt) com expressa concordância de doutrina - cfr.. Pedro Gonçalves, Entidades privadas com poderes administrativos, in Cadernos de Justiça Administrativa. n.° 58, Julho/Agosto de 2006. pág. 55.
Com esta referência não se pretende suscitar qualquer questão relacionada com a competência deste tribunal, o que neste momento se afigura fora de tempo, mas apenas salientar que as pretensões dos autores, tendo sido colocadas perante os tribunais comuns apenas poderão ser apreciadas e decididas segundo as normas do direito civil e não segundo as normas e princípios do direito administrativo» (sublinhado a negrito nosso).
Inconformados, interpuseram os autores competente recurso de apelação, cuja minuta concluíram da seguinte forma:
«1. É certo que os Recorrentes quando receberam as Licenças de Ocupação tomaram conhecimento das disposições dos estatutos.
2. Tomaram conhecimento das disposições constantes do Arto. 18.º, do Arto. 26.º e do Arto. 27.º.
3. Tomaram igualmente conhecimento, com relevância para a causa, das disposições do Arto. 19.º.
4. Os moradores nunca foram informados pela F relativamente às modificações legislativas mencionadas na douta sentença.
5. As compensações estabelecidas nas Licenças de Ocupação foram estabelecidas por proposta da Requerida, mas de acordo com as regras estatutárias.
6. A recorrida, apesar da evolução legislativa referida na douta sentença, nunca tomou qualquer iniciativa relativamente à modificação das compensações.
7. No caso presente, as compensações mantiveram-se inalteradas na sua totalidade.
8. Efectivamente, trata-se de uma situação diferente, porque todas as compensações tinham sido estabelecidas com carácter definitivo até à concessão do usufruto vitalício previsto no Art°. 19.º dos Estatutos, à sombra dos quais foram concedidas as Licenças de Ocupação.
9. As Licenças de Ocupação estavam excluídas do Regime Geral do Arrendamento Urbano, aplicável apenas subsidiariamente.
10. Dessa aplicação subsidiária nunca poderiam resultar aumentos das compensações na ordem dos 800%.
11. O Estado não tem, nem pode ter, dois pesos e duas medidas.
12. Um aumento do valor de uma compensação em cerca de 800% em arrendamento de carácter social é absolutamente aberrante.
13. Importava, pois, que tivesse sido analisada a razão de ser da manutenção do valor das compensações por mais de 20 anos.
14. O MM°. JUIZ entendeu que os aumentos astronómicos a que a F procedeu constituem matéria a merecer ponderação.
15. E que a F poderia ter feito ajustamentos há cerca de 9 anos.
16. Apesar de constatar essa necessidade de ponderação, o MM°.JUIZ não procurou encontrar a razão dessa falta de ponderação, em face da gravidade do caso.
17. A questão da ponderação poderia e deveria ter sido apreciada porque não devia escapar à censura do Tribunal.
18. Não é aceitável a teoria de que o argumento utilizado pelos Recorrentes só seria aceitável no caso de aumentos que se mostrassem relevantes.
19. Estando em causa o princípio era este que deveria ter merecido análise por parte de MM° JUIZ.
20. O processo "agressivo" vem referido desde logo na Petição Inicial (14°).
21. A questão encontra-se, assim, dentre da possibilidade de o Tribunal sobre ela se pronunciar.
22. O MM° JUIZ apenas mostrou estranheza pelo envio aos moradores de um aditamento à Licença de Ocupação.
23. Devia ter sido analisada pelo Tribunal a necessidade do envio de um aditamento à Licença de Ocupação, nomeadamente tendo em conta que a Recorrida pretendia que ele consignasse ser "expressão fiel" da vontade das partes.
24. Quando aparece esse Aditamento estava decorrido o lapso de tempo que permitia aplicação dos princípios consignados no Art°. dos Estatutos.
25. A noção dessa realidade teve-a o MM° JUIZ quando concedeu às partes uma suspensão da instância por três meses com vista à conversações destinadas a concluir o processo de negociação da venda dos fogos aos moradores.
26. Existem, pois, no processo, elementos que habilitavam o MM° Juiz a pronunciar-se sobre a questão do Aditamento.
27. O MM° JUIZ deu razão aos moradores no que concerne ao incumprimento pela Recorrida do prazo de 30 dias para comunicação.
28. 0 MM°JUIZ deu razão aos moradores no que concerne ao incumprimento que resulta da inexistência, nos anúncios, da data da deliberação.
29. Tais vícios deviam importar a nulidade do processo.
30. O MM° JUIZ não considerou o incumprimento relevante.
31. 0 MM° JUIZ devia ter considerado o incumprimento relevante e ter declarado a nulidade do processo.
32. A relevância do incumprimento não pode resultar apenas da produção de reflexos no exercício de direitos, como foi decidido.
33. A alteração dos Estatutos não afectou os direitos constituídos na versão em vigor quando foram outorgadas as Licenças de Ocupação.
34. Os direitos e garantias consignadas nesses Estatutos foram mantidos conforme consta do Art°. 27.º dos Estatutos da F de 31.12.1986.
35. O MM.º JUIZ devia ter-se pronunciado sobre a legitimidade das expectativas dos autores.
36. A decisão violou, assim, as alíneas: c) (conclusões 27,28,29,30 e 31) e d) (conclusões 13,14,15,16,17,18,19,20,21,22, 23 e 36) do no 1 do Art°. 668° do Código de Processo Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e ser a decisão recorrida substituída por outra que considere a acção procedente com a condenação da R e improcedente a reconvenção com a correspondente absolvição dos autores, assim se fazendo JUSTIÇA».
Foram oferecidas contra-alegações em que a recorrida pugna pela confirmação do julgado.
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A questão que, neste segundo grau, se suscita consiste em saber se são os tribunais comuns os competentes para conhecerem da presente acção, ou se, diversamente, são os tribunais administrativos os competentes.
Tal questão suscita uma segunda, que também analisaremos, e que se traduz em saber se está ou não precludida a possibilidade de se conhecer oficiosamente, nesta fase recursiva, da existência dessa eventual incompetência.
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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
A). A ré é uma instituição particular de solidariedade social.
B). Consta dos estatutos actuais da ré, cuja cópia consta a fls. 132 e segs., o seguinte:
"Art." 1° - A F é uma fundação de solidariedade social.
"Art." 2° - A F tem por objectivos concretizar os deveres de solidariedade entre as pessoas, e nomeadamente os seguintes:
a) Como objectivo principal a promoção assistencial, cultural e recreativa dos beneficiários.
b) Proporcionar habitação, em boas condições económicas, higiénicas e morais àqueles que a não possuam ou não possam pelos seus fracos recursos, consegui-la (...)
"Art.° 24° - 1. A F respeitará, no exercício das suas actividades, a tutela do Estado, nos termos da legislação aplicável.
"Art." 27" - O disposto nos presentes Estatutos não prejudica os direitos constituídos ou as expectativas jurídicas criadas anteriormente".
C). Em 05.08.1974, a ré pediu à Câmara Municipal de que lhe cedesse, gratuitamente, 2 lotes de terreno para neles construir 120 fogos, sendo 80 do tipo T3 e 40 do tipo T2.
D). Na sequência, mediante escritura pública outorgada em 27.12.1977. rectificada em 03.03.1978, a CM declarou vender à ré, com destino à construção de habitações para pessoas de fracos recursos, duas parcelas de terreno, com a área total de 1.224 m2, situadas no lugar da Torre, freguesia de , pelo preço total de 20500 por m2., venda que a ré declarou aceitar.
E). Em 19.07.1978, o Ministro da Habitação e das Obras Públicas autorizou o Fundo de Fomento ã Habitação, a conceder à ré uma comparticipação de 26.250.000$00 e, em 18.03.1982. o Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, autorizou aquele Fundo a conceder à ré um reforço de comparticipação de 4.602.000$00, destinada a fazer face aos encargos efectuados e a efectuar desde 01.01.1978 com a obra de construção de 52 fogos na Torre, , comparticipações que foram concedidas.
F) Nos 1224 m2 acima referidos, a ré construiu 3 edifícios. designados por lotes 1, 2 e 4, descritos na 1.ª conservatória do registo predial de sob os n°s 29335, 29336 e 29337, cada um deles com rés do chão, 1°, 2° e 3° andares, os lotes 1 e 2 com lados direito, esquerdo e frente, e o lote 4 com lado direito e esquerdo.
G) Entre 1981 e 1992, a ré declarou, por escritos que apelidou de "Licenças de Ocupação", ceder o gozo de andares referidos na alínea anterior aos autores ou a pessoas do seu agregado familiar cujos nomes constavam de documentos anexos a esses escritos, para habitação destes, pelo prazo de um ano, sucessivamente renovado por iguais períodos quando não denunciado por qualquer das partes com a antecedência mínima de 30 dias, mediante compensações mensais de 4.571$00 ou de 5.646500, o que foi aceite.
H) Mais constou de cada "Licença de Ocupação", cujas cópias constam de fls. 55 e segs. dos autos, o seguinte:
«III . 2 - Não sendo a compensação mensal paga no prazo estabelecido .. dispõe o Morador de quinze dias para o fazer, aumentada de 15% sobre o respectivo montante. Decorrido aquele período sem que o faça pode a F rescindir a presente Licença de Ocupação.
IV - 1. Quando o rendimento mensal do agregado familiar é inferior a três vezes o salário mínimo nacional, pode a F conceder ao Morador um subsídio para pagamento da compensação mensal.
IV - 2. O montante deste subsídio é fixado com base nos princípios estabelecidos nos números 4 a 10 da Portaria n.° 386/77. de 25 de Junho ... para a fixação da "renda social" das habitações promovidas pelo Estado e atribuídas em regime de arrendamento.
V - 1. O Morador declara formalmente ter tomado inteiro e completo conhecimento das disposições constantes do artigo 18.º do capítulo V e dos artigos 26° e 27° dos Estatutos da F e que se compromete a acatar e cumprir...
V - 2. No caso de desocupação compulsiva, quando não for cumprida a ordem de despejo no prazo fixado pela F, fica esta desde já autorizada a, sem prejuízo de outros procedimentos de ordem legal, retirar o recheio do fogo...
I) Os valores das compensações referidas, foram estabelecidos tendo em conta os recursos económicos daqueles a quem o gozo dos fogos era cedido e que se tratava de pessoas consideradas de fracos recursos.
J) As comparticipações antes referidas foram pagas até ao ano de 2002.
K) Em Março de 2002, a ré solicitou aos autores o preenchimento de questionário, cujas cópias constam de fls. 403 e segs. dos autos, referente à composição do agregado familiar e rendimento mensal, com comprovativos.
L) Por cartas registadas com aviso de recepção enviadas a 19.03.2002, a ré remeteu aos autores um "Comunicado" com "a alteração do Preço Técnico das rendas dos fogos», mais informando que "o valor actualizado da renda apoiada terá efeitos a partir do dia 1 de Maio de 2002".
M) Nesse "Comunicado", cuja cópia consta de fls. 159 ou 361, constava que o Conselho de Administração da ré deliberou, "de acordo com o Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio, art. 8°, n.° 6, a alteração do Preço Técnico das rendas dos fogos .. passando a ser de 204,86 euros o dos T2, e de 253,05 o dos T3", acrescentando-se que "para eventuais esclarecimentos, os interessados podem contactar a Sede da F ... ou no local de atendimento .. sito .... na Torre".
N) Por cartas registadas com aviso de recepção enviadas a 01.04.2002, cujas cópias constam de fls. 162 e segs., a ré comunicou aos autores o valor concreto do respectivo fogo, na sequência daquela alteração, bem como o seguinte:
"Mais se informa que o regime da renda apoiada baseia-se na determinação dos valores de um preço técnico e de uma taxa de esforço. nos termos do diploma acima referenciado, em que o valor da renda é o resultado da aplicação daquela taxa (de esforço) ao rendimento mensal corrigido do agregado familiar.
"Informa-se ainda que nos casos em que os rendimentos familiares tenham carácter incerto, temporário ou variável e não seja apresentada prova bastante que justifique essa natureza, a F presumirá que o agregado familiar aufere um rendimento superior ao declarado sempre que um dos membros exerce actividade que notoriamente produza rendimentos superiores aos declarados ou seja possuidor de bens não compatíveis com aquela declaração.
"Acresce que no âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.° 166/93, de 07 de Maio, à Licença de ocupação de que V. Exa. é titular, será feito um Aditamento à mesma (ver documento junto em anexo), a ser celebrado em data a combinar.
"Para eventuais esclarecimentos poderá contactar a sede da F ...».
O) O "Aditamento" que acaba de ser referido, cuja cópia consta de fls. 243, tinha o seguinte teor: "(...)
"Cláusula Primeira (Objecto):
"Este aditamento é celebrado nos termos do art.° 82° do Decreto-Lei n.° 321-B/90, de 15 de Outubro e visa a aplicação do Decreto-Lei n.° 166/93 de 7 de Maio. que tem por objecto o estabelecimento da renda apoiada.
`Cláusula Segunda (Preço Técnico):
«1. O preço técnico do fogo arrendado, no valor de ... foi calculado nos termos em que o é a renda condicionada, conforme estabelecido no art. 4° do Decreto-Lei n.° 166/93 de 7 de Maio.
2. O preço técnico é actualizado, anual e automaticamente, pela aplicação do coeficiente de actualização dos contratos de arrendamento em regime de renda condicionada.
"Cláusula Terceira (Renda Apoiada):
«1. A renda apoiada pelo morador é de ...
2. O valor da renda é determinado pela aplicação da taxa de esforço ao rendimento mensal corrigido do agregado familiar do morador, nos termos do art. 5° do Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio.
"Cláusula Quarta (Actualização da Renda Apoiada):
"1. O valor da renda, que não pode exceder o preço técnico calculado nos termos da cláusula terceira, é actualizado anualmente com base na variação percentual para esse ano, do salário mínimo nacional, sem prejuízo do disposto no n.° 3 do art. 8° do Decreto-Lei n.° 166/93 .
2. A entidade cedente pode, ainda, para efeitos de actualização da renda, solicitar ao morador, anual, bienal ou trimestralmente, a declararão dos seus rendimentos.
3. O valor da renda pode ainda ser reajustado com base nos rendimentos declarados pelo morador, aplicando o disposto no n.° 2 da cláusula terceira.
4. A falta da declaração de rendimentos ou a falsidade da mesma determina o imediato pagamento do preço técnico, sem prejuízo de constituir fundamento de resolução da Licença de Ocupação e de eventual responsabilidade do declarante (...).
"Este aditamento à Licença de Ocupação é celebrado em duplicado e vai assinado por ambos os contraentes
P) O "Comunicado" acima referido sob a alínea M), foi publicado no "J ", de 13.03.2002 e de 20.03.2002. bem como no "C", de 07.03.2002, 08.03.2002 e 09.03.2002.
Através de documentos juntos:
1. Os Estatutos da ré vigentes a partir de 1978 constam de fls. 1943 e segs.. e os que estiveram em vigor a partir de 1982, e antes dos actuais, constam a fls. 1052 e segs..
2. A comparticipação financeira do Estado acima referida sob a alínea E) constou de Despacho publicado no DR, a fls. 385 dos presentes autos, e ficou sujeita às condições aí mencionadas, entre as quais as seguintes:
3.ª As rendas a fixar nas habitações .. terão como base proposta da F .. que será submetida a Despacho do Secretário de Estado da Habitação..
4a. As habitações serão atribuídas de acordo com as normas aplicáveis às habitações promovidas directamente pelo Fundo de Fomento da Habitação.
5.ª A proposta referida no n.° 3 incluirá um plano de recuperação dos capitais investidos que permita a definição do montante das rendas que ficarão afectas ao Fundo de Fomento da Habitação.
6.ª Serão fixadas por despacho do Secretário de Estado da Habitação as condições adicionais ou as alterações necessárias ao determinado nesta portaria, de modo a tornar compatíveis os diferentes esquemas de intervenção do Estado no sector habitacional."
3. Através de ofício de 16.04.1982, cuja cópia consta de fls. 401, o Fundo de Fomento da Habitação comunicou à ré os valores das rendas técnicas fixadas para os fogos.
4.ª A ré encontra-se ainda a amortizar as comparticipações recebidas do Estado, nos termos que constam de fls. 387 e segs.
5. Em 5 de Fevereiro de 2002, através da carta cuja cópia consta de fls. 397, a ré, invocando problemas financeiros, derivados da referida amortização, despesas de conservação, com seguros e de electricidade, e o agravamento do seu défice, solicitou ao IGAPHE autorização para ser aplicado o regime de renda apoiada segundo o Decreto-Lei n.° 166/93.
6. Aquele Instituto respondeu, em 13.02.2002, nos termos que constam de fls. 402, no sentido de que:
"De acordo com o disposto no Artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio, essa Instituição poderá aplicar o regime de renda apoiada aos fogos comparticipados pelo Ex-FFH. Para o efeito, apenas terá que cumprir os procedimentos estabelecidos na referida disposição legal".
É de considerar ainda relevante a matéria constante do relatório supra, no que tange à matéria da competência do tribunal.
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Da competência do tribunal em razão da matéria
A divisão do trabalho entre os vários órgãos e entidades que integram o sistema de justiça, de que resultam diferentes âmbitos ou perímetros de intervenção, não é uma realidade sem importância.
Está em causa o interesse público na salvaguarda da adequação técnica desses órgãos e entidades e na boa administração da justiça.
Este interesse reflecte-se na exigência da competência (absoluta) como pressuposto processual.
Compreende-se assim que a incompetência absoluta seja insanável, que se lhe aplique a regra da prioridade e, por conseguinte, que, logo que constatada, deva o juiz declará-la com consequente extinção da instância (artigos 102.º, 105.º, e 288.º n.º 1, alínea a), CPC).
Por outro lado, a defesa do referido interesse não permite incluir no campo de aplicação do regime do artigo 288.º, n.º 3, CPC a falta de competência do tribunal em razão da matéria (Miguel Teixeira de Sousa, «Sobre o sentido e a função dos pressupostos processuais», ROA,49, Abril 89: 101 ss.).
Não colhe, pois, fazer apelo a um suposto princípio de economia processual para através dele «sanar» uma falta insanável, com invasão da esfera própria de actuação de outro órgão ou entidade, ainda que a decisão sobre essa competência implique maior dispêndio de actividade do que a exigida para conhecer de mérito ou que se preveja que a questão decidenda possa vir a ser submetida à jurisdição comum.
Sabido é que a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância (artigo 105.º, n.º 1, CPC).
Por outro lado, tem sido entendido, de forma pacífica, que a competência material de um tribunal se afere pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e causa de pedir (cfr., v.g., Acórdãos do Tribunal de Conflitos, disponíveis em www.dgsi.pt: de 10.02.1998 – processo 000319, de 18.06.2002 – processo 02/02, de 23.09.2004 – processo 05/04, e de 29.11.2006 – processo 016/03).
Dispõe o artigo 221.º, n.º 3, da Constituição da República que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Este princípio é reafirmado no artigo 3.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo DL n.º 129/84, de 27 de Abril, aplicável ao caso ocorrente, importando destacar os n.ºs 1 e 2 do artigo 9.º, com o seguinte teor:
«1. Para efeitos de competência contenciosa, considera-se como contrato administrativo o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo.
2. São designadamente contratos administrativos os contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de concessão de uso privativo do domínio público e de exploração de jogos de fortuna ou de azar e os de fornecimento contínuo e de prestação de serviços celebrados pela Administração para fins de imediata utilidade pública».
Comentando este novo regime esclarece I. Galvão Telles: «f) Este diploma trouxe, em relação ao Direito anterior, duas inovações do maior significado:
- formulou uma definição de contrato administrativo;
- imprimiu expressamente carácter exemplificativo à enumeração dos contratos administrativos, como evidencia o uso do advérbio «designadamente».
g) Quer dizer, contratos administrativos passaram a ser, inequivocamente, todos os referidos no n.º 2 do artigo 9.º do ETAF e os mais que caibam na definição constante do n.º 1 do mesmo artigo. Todos esses contratos, tanto os especificados como os não especificados, acham-se sujeitos ao contencioso administrativo, porque o citado artigo 9.º do ETAF assim o esclarece.
h) Vingou, pois, a opinião de MELO MACHADO e de FREITAS DO AMARAL, com a particularidade de o contencioso administrativo ser aplicável a todos os contratos administrativos, não havendo lugar à observância da jurisdição comum. Substituiu-se um sistema fechado, por um sistema aberto; e fizeram-se coincidir a dimensão substantiva e a processual.
i) A definição legal acima transcrita não é aliás, só por si, muito esclarecedora, pois resta saber o que deve entender-se por uma relação jurídica de Direito Administrativo. Sem preocupações de grande rigor, poderá dizer-se que uma tal relação é a que se traduz em poderes e deveres jurídicos da Administração em face dos particulares e dos particulares em face da Administração» (Manual dos Contratos em Geral, 2002:60).
Pois bem, no caso vertente, uma pluralidade de titulares de «arrendamentos sociais» vêm pedir, no confronto com a ré, que é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que o Tribunal remova a incerteza, em sentido negativo, quanto à aplicação do regime de renda apoiada constante DL n.º 166/93, de 7 de Maio.
Estamos perante uma acção de simples apreciação.
«Aqui a exigência de tutela ou de actividade jurisdicional é determinada por um fenómeno que pode ser em certo sentido assimilado à violação enquanto desta constitui uma premissa: a contestação, no duplo sentido de um outro direito que o titular considera existente ou de uma jactância (vanto) acerca de um direito próprio no confronto com um sujeito que o reputa inexistente. Pense-se no sujeito que, mesmo sem lesar outro direito de propriedade o contesta no sentido em que se vangloria de ser ele o proprietário; ou no sujeito que, ainda antes do vencimento da sua dívida, nega ser devedor ou, por fim no sujeito que se gaba de ser credor. Quando se verifica este fenómeno a que chamamos, com uma dimensão inclusiva do «vanto», contestação (e que naturalmente deve ser séria, objectivamente perceptível, sem se esgotar, por conseguinte, na simples expressão de uma opinião) determina-se uma situação que não é ainda de violação, mas que poderá ser, ou seja a incerteza objectiva acerca da existência de um direito. E é lógico que um ordenamento jurídico evoluído ofereça – directa ou indirectamente – o instrumento para eliminar esta situação, ou seja o instrumento para substituir a incerteza objectiva pela certeza objectiva» (Crisanto Mandrioli, Diritto Processuale Civile, I, 14.ª ed.:16/17).
Até à aprovação do RAU (DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) os imóveis sujeitos ao regime de arrendamento social encontravam-se vinculados a mecanismos vários de actualização de renda pouco funcionais, contribuindo para uma «acentuada e acelerada degradação do parque habitacional afecto ao arrendamento social» (cfr. Preâmbulo DL 166/93)».

O RAU pretendeu operar a racionalização do regime de rendas e, no artigo
77.º, n.º 1, dispôs que «nos contratos de arrendamento para habitação podem estabelecer-se regimes de renda livre, condicionada ou apoiada».
Relativamente a estas últimas preceitua o artigo 82.º:
1. No regime de renda apoiada, o montante das rendas é subsidiado, vigorando ainda regras específicas quanto à sua determinação e actualização.
2. Ficam sujeitos ao regime referido no número anterior os prédios construídos ou adquiridos para arrendamento habitacional pelo Estado e seus organismos públicos e autarquias locais e pelas instituições particulares de solidariedade social com o apoio financeiro do Estado.
3. O regime de renda apoiada fica sujeito a legislação própria, aprovada pelo Governo.
Na sequência deste normativo, surgiu o DL n.º 166/93.
Lendo este diploma conclui-se que «o regime de renda apoiada baseia-se na determinação dos valores de um preço técnico e de uma taxa de esforço» (artigo 2.º, n.º 1).
Quer isto dizer que o regime da renda aplicável não é fixada por acordo das partes, ao contrário do que acontece nos regimes de renda livre e de renda condicionada.
Acresce que o referido DL 166/93 confere à entidade locadora prerrogativas que inexistem nos arrendamentos de natureza jurídico-privada, a saber:
i) a entidade locadora pode, a todo o tempo, solicitar aos arrendatários quaisquer documentos e esclarecimentos necessários para a instrução e ou actualização dos respectivos processos, fixando-lhes para o efeito um prazo de resposta não inferior a 30 dias (artigo 9.º, n.º2);
ii) o incumprimento injustificado pelo arrendatário das obrigações referidas
dá lugar ao pagamento por inteiro do respectivo preço técnico (artigo 9.º, n.º3);
iii) nos casos de subocupação da habitação arrendada, a entidade locadora pode determinar a transferência do arrendatário e respectivo agregado para habitação de tipologia adequada dentro da mesma localidade (artigo 10.º, n.º 2);
iv) o incumprimento pelo arrendatário, no prazo de 90 dias, da determinação referida no n.º 2, dá lugar ao pagamento por inteiro do respectivo preço técnico (artigo 10.º, n.º 3).
Ora, perante este regime, não se pode afirmar estarmos na presença de normas de conteúdo civilístico.
Estamos antes em face de normas de conteúdo administrativo, ditadas por imperativos de ordem pública.
As referidas prerrogativas compreendem-se tendo em conta os fins sociais prosseguidos pelas entidades locadoras.
Sobre o caso dos autos, em que eram partes precisamente IPSS, pronunciaram-se, entre outros, os Acs. do TCAS de 18.05.06, de 01.06.2006 e de 08.06.2006.
Nesses arestos se destaca a formação de um entendimento dominante, a propósito da competência dos Tribunais Administrativos, no sentido «de que as relações jurídico-administrativas se definem pelo exercício, por banda de, pelo menos, uma das partes, de uma função pública, com prerrogativas de autoridade, ainda que não envolva o uso de meios de coerção, com a consentânea envolvência de normas de direito público a reger tais relações jurídicas».
Neles se refere que «(…) as marcas de administratividade dos contratos administrativos não residem (…) só na atribuição ou assunção explícita da
autoridade (se bem que ela seja, claro, factor iniludível de administratividade): há casos em que se chega à existência da prerrogativa, precisamente através da presença de outras marcas ou factores de administrativização da respectiva relação.
Pensamos, aliás, que essa proposta de trazer para o direito administrativo todos os contratos que tragam marcas de administratividade é a única compatível com a imputação constitucional (artigo 214.º, n.º 3) da jurisdição do direito administrativo e das relações jurídico-admnistrativas aos tribunais administrativos».
A ré, que é uma IPSS, não é uma mera entidades privada.
Compulsando os seus Estatutos verifica-se que:
- "Art. 1° - A F é urna F de solidariedade social ..
- "Art." 2° - A F tem por objectivos concretizar os deveres de solidariedade entre as pessoas, e nomeadamente os seguintes:
a) Como objectivo principal a promoção assistencial, cultural e recreativa dos beneficiários.
b) Proporcionar habitação, em boas condições económicas, higiénicas e morais àqueles que a não possuam ou não possam pelos seus fracos recursos, consegui-la (...)
"Art.° 24° - 1. A F respeitará, no exercício das suas actividades, a tutela do Estado, nos termos da legislação aplicável.
Quer dizer que a demandada se associa à prossecução dos «objectivos de desenvolvimento social global de que o Estado é o superior garante», para se utilizar uma expressão do preâmbulo do DL n.º 119/83, de 25 de Fevereiro.
Nesta linha de argumentação, que nos parece curial e de secundar, não restam dúvidas que deve ser atribuída competência, em razão da matéria, à jurisdição administrativa, para conhecer do presente pleito, ex artigos 3.º e 9.º, n.º 1, do ETAF, aprovado pelo DL n.º 129/84, de 27 de Abril.
***
Da oportunidade do conhecimento da excepção dilatória de incompetência em razão da matéria
O primeiro grau proferiu sanador tabelar em que afirmou que o tribunal era competente em razão da matéria.
Ulteriormente, em despacho interlocutório referiu que não queria suscitar a questão da incompetência, para mais tarde esclarecer, na sentença impugnada, que não o fazia, por se afigurar que a cognição da mesma estava «fora de tempo».
Vejamos o que se nos oferece dizer sobre o comportamento do primeiro grau a respeito desta matéria.
A questão consistente em saber se quando o juiz afirma, no saneador, - «o tribunal é competente em razão da matéria» - e este despacho não é impugnado, se forma ou não caso julgado relativamente a essa competencia
não é nova. É mesmo muito antiga (foi pela primeira vez colocada na vigência do Decreto n.º 12.353, de 12 de Setembro de 1926).
Como a história dos problemas é inseparável dos problemas em si mesmo considerados, convirá recordar como chegámos à formulação hoje constante do artigo 510º, n.º 3, primeira parte, do Código de Processo Civil: «No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas».
A referida alínea comete ao juiz o dever de, no saneador, conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente.
O despacho saneador tem origem no despacho regulador do processo, introduzido no nosso ordenamento pelo artigo 9.º do Decreto n.º 3, de 29 de Maio de 1907.
Na sugestiva expressão de um comentador do diploma, «a disposição do artigo 9.º é como que uma étape onde o julgador tem de reparar avarias ocorridas até esta altura da correria processual» (José Soares Nobre, O novo processo nas causas cíveis e comerciais de menor valor, Lisboa, 1907:33).
Pondo de parte os seus fins secundários, o despacho regulador destinava-se, no essencial, a conhecer das nulidades.
Foi este despacho que, ampliado nas suas funções, deu origem ao despacho saneador, criado pelo artigo 24.º do Decreto n.º 12.353, de 22 de Setembro de 1926, e que «representa a contribuição original dos legisladores português e brasileiro ao desenvolvimento geral e ao progresso do direito processual civil» (Enrico Tullio Liebman, Estudos Sobre o Processo Civil Brasileiro, Bestbook, 2001: 81).
Este despacho manteve-se no Código de 1939.
Findo os articulados, o juiz era (e é) obrigado a «limpar» o processo, designadamente de nulidades e excepções dilatórias, muitas delas de conhecimento oficioso.
Caso nenhuma delas tivesse sido expressamente suscitada, o juiz, na maior parte dos processos, emitia um despacho tabelar, com conteúdo idêntico ao que foi proferido nos presentes autos.
Qual o valor a atribuir a estas declarações genéricas no saneador? Envolve ou não decisão com força de caso julgado formal, obstando a ulterior reapreciação dos pressupostos processuais?
Foi este problema que durante décadas atormentou a nossa doutrina e jurisprudência.
O problema só se colocava nas hipóteses em que não havia regime próprio.
Ora, um dos domínios em que havia preceito especial era precisamente o da incompetência absoluta, cujo n.º 2 do artigo 104.º dispunha que «o despacho [saneador] só constitui, porém, caso julgado em relação às questões concretas de competência que nele tenham sido decididas».
A doutrina nunca questionou, a partir da interpretação que fez desta formulação normativa, que a declaração genérica relativa à competência absoluta, constante do saneador, deixava em aberto a apreciação deste pressuposto até à decisão final.
A questão que dividiu os autores consistiu antes em saber se o regime da incompetência absoluta era afloramento de um princípio geral aplicável a todos os despachos saneadores tabelares ou, se, pelo contrário, era norma excepcional, apenas ditada para o caso especial da incompetência absoluta, inaplicável, por conseguinte, às restantes excepções dilatórias.
José Alberto dos Reis, por exemplo, perfilhando a primeira tese, defendeu: «Dizer vagamente «não há nulidades», «não há excepções», «nada obsta ao conhecimento do mérito da causa», é emitir um juízo abstracto, de mero conteúdo geral e negativo. Quando o tribunal se limita a tal enunciação, não conhece de qualquer questão concreta e determinada; portanto não podem considerar-se resolvidas e arrumadas as questões que tenham sido suscitadas nos autos; essas questões ficam em aberto. Não há caso julgado sobre elas» (Código de Processo Civil, anotado, Vol. III: 200; cfr. também Comentário, Vol. I: 318 ss. e RLJ 82.º: 112 e 347).
No mesmo sentido se pronunciaram depois Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979: 185), Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, Vol II., Coimbra, 1982: 266 ss.) e Antunes Varela (Manual de Processo Civil, Coimbra, 1985:393 ss.).
Em favor da segunda tese pronunciou-se, entre outros, Paulo Cunha, que sustenta: «Quando (…) não houver disposição como as que acabamos de citar [artigos 104.º, 206.º e 207.º, CPC], cair-se-á na regra do artigo 672.º e portanto constituir-se-á caso julgado formal, mesmo que a fórmula da decisão seja genérica e o juiz não haja em concreto decidido, uma por uma, as questões abrangidas na fórmula genérica.
Assim, se o juiz no despacho saneador diz «não estão deduzidas nos autos quaisquer excepções dilatórias», e entende que na verdade nenhuma excepção dilatória existe, se este despacho saneador transitar em julgado, não se forma caso julgado formal a respeito da excepção de incompetência absoluta; se a houver, se houver essa incompetência absoluta, apesar desta decisão, poder-se-á conhecer dela mais tarde, mas faz caso julgado, por exemplo, a respeito da inexistência da excepção dilatória de litispendência, ou da excepção de ilegitimidade das partes» (Processo Comum de Declaração, T II, Lisboa, 1940: 26; também Fernando Luso Soares, Processo Civil de Declaração, Coimbra, 1985: 737 ss.).
Como argumentos suplementares a favor desta tese foi dito que:
1.º. Se para a incompetência absoluta o legislador dispôs expressamente, a contrario deverá concluir-se que em relação aos restantes pressupostos não deve prevalecer a mesma exigência;
2.º. O juiz só podia deixar de conhecer do saneador das excepções conducentes à absolvição da instância caso o processo o impossibilitasse de se pronunciar sobre elas; não se compreenderia por isso que se atribuísse um valor provisório à decisão aí proferida (artigo 510.º, n.º 2, CPC);
3.º. O saneador existe para limpar todo o processo de obstáculos à sua marcha. Não se compreenderia, então, que o magistrado pudesse fazer avançar o processo para uma fase subsequente, sem a segurança de que não voltaria para trás, por razões de forma.
Não interessa aqui desenvolver ou criticar estes argumentos.
Diremos apenas que o Assento do STJ de 1 de Fevereiro de 1963 (Diário do Governo, 1.ª série, de 21 de Fevereiro de 1963 e BMJ, 124:414 ss.) acabou por se inclinar para esta última tese ao fixar jurisprudência nos seguintes termos: «É definitiva, a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado relativamente à legitimidade salvo a superveniência de factos que nesta se repercutem».
Perante este assento, passou a discutir-se se poderia ser aplicada a doutrina dele constante aos outros pressupostos processuais, por analogia.
Castro Mendes, por exemplo, admitiu que a doutrina do assento fosse de alargar a qualquer outra questão de forma, introduzindo, no entanto, uma esclarecedora distinção entre decisões genéricas e decisões implícitas (Processo Civil, Vol. II., Lisboa, 1987: 425 ss., contra esta aplicação analógica do assento, Antunes Varela, op. cit: 395).
Na opinião deste autor «chama-se decisão implícita à que não é expressa, mas resulta do facto de o juiz nada dizer quando a lei lhe impunha que o fizesse. Assim, se o despacho saneador diz: «o tribunal é competente, as partes são legítimas, não há nulidades», não está abrangida no âmbito das questões a da capacidade judiciária, poder-se-ia dizer, o mandar seguir o processo determina implicitamente uma decisão no sentido de que as partes são judiciariamente capazes. O caso não é abrangido, porém, no regime do Assento; e parece-nos a solução exposta contrária ao espírito do artigo 673.º, aplicado por analogia (cfr. também artigo 666.º, n.º 3): «a sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga».
Esta distinção tem particular interesse no caso vertente. Se o juiz declara que o tribunal é competente em razão da matéria, sem mais, profere decisão genérica, não implícita (nem a fortiori expressa).
Abreviando razões, podemos, a propósito, registar que na nossa jurisprudência se fez uma interpretação restritiva da doutrina do assento, circunscrevendo-a ao pressuposto da legitimidade.
Pois bem, estando assim as coisas, procedeu-se, entretanto, à primeira grande reforma do Código de Processo Civil.
O artigo 104.º foi revogado e deu-se ao artigo 510.º, n.º 3 a redacção acima citada.
Qual o significado da alteração?
Na ausência de actas da Comissão Revisora, tem o maior interesse recorrer ao contributo teórico dos membros que a integraram.
Neste particular merece destaque o comentário de Carlos Lopes do Rego, quando frisa que:
«Estabelece-se claramente que o despacho saneador (artigo 510.º, n.º 3) só adquire força de caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas – generalizando-se deste modo a solução que, em sede de competência, constava do artigo 104.º, n.º 2, do CPC, na redacção anterior à reforma; e caducando, consequentemente a solução afirmada no âmbito da legitimidade, pelo Assento do STJ de 1/2/63 – cfr. Ac. STJ de 3/05/00, in CJ II/00, pag.41.
Deste modo – e por manifesta inutilidade – deverá deixar de ter lugar a genérica e tabelar declaração de «existência» de todos os pressupostos processuais, apenas cumprindo ao juiz apreciar as questões de natureza adjectiva suscitadas pelas partes ou que, por transparecerem do processo, entenda dever apreciar oficiosamente» (Comentários ao Código de Processo Civil, vol I, Coimbra, 2004: 442).
Este autor não está, bem entendido, desacompanhado na doutrina.
Vejamos.
Fernando Ferreira Pinto refere que «hoje, perante a primeira parte do n.º 3 do artigo 510.º (…) tem de se considerar revogado este assento [do STJ, de 01-02-1963] e seguir-se sempre a primeira orientação [o despacho saneador constitui caso julgado formal quanto às excepções que o juiz expressamente decide em concreto]» (Lições de Direito Processual Civil, Porto, 1997: 380).
Miguel Teixeira de Sousa, por sua vez, refere que «a referência genérica no despacho saneador à inexistência de qualquer excepção dilatória ou nulidade processual não adquire força de caso julgado (artigo 510.º, n.º 3, 1.ª parte) e, por isso, não impede que o tribunal venha a apreciar, na sentença final, uma dessas excepções ou nulidades (cfr. artigo 660.º, n.º 1). Portanto, se o tribunal, ao elaborar o despacho saneador, se limitar a afirmar que não existem quaisquer excepções dilatórias ou nulidades processuais que deva conhecer, esse julgamento não adquire força de caso julgado formal» (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997: 318).
António Abrantes Geraldes considera que «a partir da revisão do CPC ficou claro que o despacho saneador apenas constitui caso julgado formal em relação às questões concretamente apreciadas» (Temas da Reforma do Processo Civil, Coimbra, 2000: 128, nota 204).
Lebre de Freitas, por seu turno, sustenta que «se o juiz referir genericamente que determinados pressupostos, dos constantes do artigo 494.º (por exemplo, a competência, a capacidade, a legitimidade ou os da coligação) ou outros (por exemplo, os que tornam admissível a reconvenção, ou o pedido genérico: respectivamente, artigos 274.º, n.º 2 e 471.º, n.º 1), se verificam, o despacho saneador não constitui, nessa parte, caso julgado formal, pelo que continua a ser possível a apreciação duma questão concreta de que resulte que o pressuposto genericamente referido afinal não ocorre ou que há nulidade (artigo 510.º, n.º 3)» (A Acção Declarativa Comum, Coimbra, 2000: 156; cfr. também Código de Processo Civil, anotado, Vol. 2.º, Coimbra, 2001: 370 ss.).
Rodrigues Bastos regista que a reforma de 95/96 resolveu as dúvidas pretéritas dispondo que o saneador só constitui caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas.
«Concretamente quer dizer, neste caso, que se tenha apreciado alguma dúvida que dessas questões suscitasse, resolvendo-se num sentido ou noutro» (Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 2001: 69).
Também Montalvão Machado e Paulo Pimenta aludem a que só se constitui caso julgado formal, logo que o saneador transite, «relativamente à excepção concretamente apreciada, nos termos da primeira parte do n.º 3 do artigo 510.º do CPC» (O Novo Processo Civil, Coimbra, 2002: 204, nota 464).
José João Baptista refere que o despacho saneador «tem por finalidade normal apreciar e decidir sobre matéria de excepções dilatórias e nulidades processuais (não sanadas) suscitadas pelas partes (na maior parte pelo réu) ou que sejam do conhecimento oficioso e possam ser, face aos elementos de prova constantes do processo, conhecidas e decididas.
Caso o juiz tenha conhecido desta matéria e esta tiver sido objecto de apreciação concreta (e não apenas em termos genéricos), por ter sido suscitada concretamente pelas partes ou pelo juiz oficiosamente, a sua decisão sobre elas, logo que transite em julgado, produzirá o efeito de caso julgado formal» (Processo Civil, I, Coimbra, 2006: 412).
Jorge Pais de Amaral sustenta: «quando no despacho saneador o juiz conheça de qualquer excepção dilatória ou nulidade processual, o despacho, logo que transite, constitui caso julgado formal em relação às concretamente apreciadas – artigo 510.º, n.º 3.
Assim, não adquire força de caso julgado o despacho em que se diga de uma forma genérica, que não existem quaisquer excepções dilatórias ou nulidades, pois tais questões não foram concretamente apreciadas. Se o juiz, ao proferir despacho «tabelar», se limita a referir que «não existem nulidades, excepções ou quaisquer questões prévias que cumpra conhecer» não chega a apreciar concretamente qualquer destas questões, porque se limitou a uma referência genérica. Por isso, apesar de dizer que não existem nulidades ou excepções, nada o impede de se pronunciar em momento ulterior sobre uma excepção ou sobre uma nulidade concreta, visto que o seu despacho anterior não adquiriu força de caso julgado formal. Qualquer destas questões só depois de concretamente apreciada é
que, após o trânsito do respectivo despacho, adquire a força de caso julgado formal. Em suma, o despacho só aprecia concretamente as questões em relação às quais foram suscitadas dúvidas que teve de decidir, num ou noutro sentido, isto é, julgando-as procedentes ou improcedentes» (Direito Processual Civil, Coimbra, 2006:238).
Finalmente Remédio Marques escreve que as afirmações genéricas do juiz no saneador quanto às excepções dilatórias não formam caso julgado «já que o juiz não apreciou questões concretas respeitantes à verificação ou não verificação dessas excepções (artigo 510.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC). Já fará caso julgado, e nessa parte será imodificável, se e quando apreciar as questões concretas da falta de pressupostos processuais ou outras nulidades ou irregularidades da instância» (Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra, 2007: 350).
Este autor dá-nos um exemplo interessante de uma decisão que fará caso julgado, a saber, a afirmação do juiz, segundo a qual «o tribunal é competente por motivo de (…) já que está verificado o elemento de conexão (…)».
Como se vê, nem uma só voz acompanha a tese de que a decisão genérica no saneador sobre a verificação de determinado pressuposto processual forma, à luz do regime vigente, caso julgado.
Na verdade, a redacção do artigo 510.º, n.º 3, 1.ª parte, é muito clara e não deixa lugar a dúvidas.
O tribunal a quo, proferiu uma decisão genérica, não apreciou concretamente a questão da competência em razão da matéria.
Depois, não quis suscitar a questão, por entender «estar fora de tempo» a cognição de tal matéria.
Não podemos secundar esta posição do primeiro grau.
Na verdade, e além do que se disse, o Assento do STJ, de 27/11/92, in D.R. de 11/1/92, uniformizou doutrina no sentido de «o despacho a conhecer de determinada questão relativa à competência em razão da matéria do tribunal, não sendo objecto de recurso, constitui caso julgado em relação à questão concreta de competência que nele tenha sido decidida».
No caso vertente, o saneador não decidiu concretamente a questão da competência, como sobejamente demonstrámos.
Como dissemos, e agora se reitera, concretamente quer dizer, neste caso, que se tenha apreciado alguma dúvida que essa questão suscitasse, resolvendo-se num sentido ou noutro.
Tal cognição não foi feita in casu a partir do pressuposto, não explicitado, mas assumido, de que, ultrapassada a fase do saneador, já não se poderia conhecer de tal matéria.
Ora, como decorre, com clareza, do disposto no artigo 102.º, n.º 1, do CPC «a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa».
Queda evidente a não aplicação do disposto no n.º 2 do citado preceito que tão-só se refere à violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais, estando, por conseguinte, excluídos os tribunais administrativos, que pertencem a outra ordem de jurisdição.
A jurisprudência citada pela recorrida, no seu requerimento de fls. 1325, reporta-se a um regime que já foi alterado.
Nada impede, pois, que se conheça nesta fase da incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para conhecer da presente causa.
***
Uma última palavra para referir que não se verificam os vícios imputados à sentença, a que aludem as alíneas c) e d) do artigo 668.º, n.º 1, do CPC.
O primeiro grau não cometeu qualquer contradição entre o iter argumentativo da decisão e as inferências que retirou dessa argumentação.
Na verdade, a decisão apreciou de uma forma exaustiva e proficiente as questões decidendas e a partir das premissas de que partiu retirou, sem qualquer contradição, as conclusões que julgou em direito adequadas.
Se tais conclusões padecem de error in judicando é obviamente questão diversa, que não cumpre agora sindicar.
***

Pelo exposto, acordamos em julgar o tribunal judicial da comarca de incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, sendo competentes os tribunais administrativos e, consequentemente, em absolver a ré da instância.

Custas pelos autores/recorrentes.
***

Lisboa, 9 de Dezembro de 2010

Luís Correia de Mendonça
Carlos Marinho
Caetano Duarte