Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
512/22.5PTFUN.L1-5
Relator: MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA
Descritores: CONDUÇÃO SEM CARTA
PRISÃO EFECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sendo o passado criminal do agente eloquente no sentido do fracasso de todas as penas de substituição aplicadas, conexas com a prática de crimes idênticos, incluindo pena de prisão suspensa na execução, é impossível concluir por outro juízo de prognose que não o de que voltará a cometer mais crimes, a menos que receba o sério e enérgico aviso constituído pela pena de prisão efectivamente cumprida.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


Neste processo foi A condenado, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelos nos 1 e 2 do artº 3º do Dec.-Lei nº 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na execução por 1 ano, com regime de prova.
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Interpôs o Ministério Público o presente recurso concluindo:
4.-Da análise do CRC, para além da condenação proferida nos presentes autos, constam várias condenações pela prática de crimes estradais, e mais concretamente pelo crime de condução sem habilitação legal, por factos posteriores a abril de 2020, para além de condenações pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, violação de proibições ou interdições, desobediência qualificada, ou crime contra a segurança rodoviária .
5.-O arguido demonstra uma postura de total indiferença e desrespeito pelas normas vigentes.
6.-Diga-se aliás, este arguido desde o ano de 2001, vem praticando crimes de natureza estradal.
7.-As exigências de prevenção geral são elevadas relativamente aos crimes contra circulação rodoviária, na medida em que se trata de um tipo de crime praticado com bastante frequência.
8.-Quanto as exigências de prevenção especial são também elevadas, atendo os seus antecedentes criminais, o que revela uma personalidade profundamente desviante e resistente às sanções penais.
9.-Urge a resposta da Justiça, que deverá ser enérgica, pois só assim poderá desencorajar efectivamente o arguido de continuar a cometer crimes, que é o que se pretende.
10.-Concluindo, inexistem comprovadas circunstâncias que possam favorecer o arguido, e que tais circunstâncias impedem um juízo de prognose favorável.
11.-Pelo que o juízo de prognose formulado pelo tribunal quanto a este arguido, não foi o mais acertado, na medida que o arguido com os antecedentes criminais que tem, não é possível inferir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizem de forma adequada as finalidades da punição, ou seja, que este arguido não volta a delinquir.
12.-No caso, quer as exigências de prevenção geral, quer as exigências de prevenção especial, impõem a aplicação ao arguido da pena de prisão efectiva!
13.-Não o entendendo assim, o tribunal a quo pôs em crise a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais, e violou o disposto nos art.1)s 40.1), n. 1 e 71.1), n.1)s 1 e 2 e art.1) 50.1), todos do Código Penal.
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O arguido não respondeu.
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Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
1.No dia 29.09.2022, pelas 12 horas e 50 minutos, na Estrada ... ... ... o arguido A conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..., sua propriedade.
2.Nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, o arguido A conduzia o referido automóvel sem se encontrar devida e legalmente habilitado para o efeito, com um título de condução válido.
3.O arguido quis e conseguiu exercer a condução do mencionado veículo na via pública ou equiparada, como sabia ser o caso, apesar de saber que não se encontrava legalmente habilitado para o efeito com um título de condução válido.
4.O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente.
5.O arguido sabia que a sua conduta era punida por lei penal e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
6.O arguido confessou integralmente e sem reservas todos os factos.
7.Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
a)-No processo 23/01.2PTFUN do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial do Funchal, por sentença de 10/01/2001, transitada em julgado, relativa a factos ocorridos em 10/01/2001, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 700,00$ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 70 dias;
b)-No processo 627/01.3PTFUN do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial do Funchal, por sentença de 09-08-2001, transitada em julgado 01-10-2001, relativa a factos ocorridos em 09-08-2001, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 40 dias de multa à taxa diária de 1200,00$ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses;
c)-No processo 181/03.1PASCR do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Cruz, por sentença de 29-03-2003, transitada em julgado 08-05-2003, relativa a factos ocorridos em 29-03-2003, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 4,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses;
d)-No processo 732/03.1PBSCR do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Cruz, por sentença de 19-12-2003, transitada em julgado 21-01-2004, relativa a factos ocorridos em 14-12-2003, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 7,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 14 meses;
e)-No processo 311/04.6TAFUN do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial do Funchal, por sentença de 19-04-2005, transitada em julgado 04-05-2005, relativa a factos ocorridos em 2003, foi condenado pela prática de um crime contra a segurança das comunicações, Cassação da carta de condução, na pena de cassação da carta de condução de veículos motorizados e proibição de obter novo título de condução de qualquer categoria por um período de 2 anos;
f)-No processo 373/05.9PTFUN do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial do Funchal, por sentença de 17-01-2007, transitada em julgado 02-02-2007, relativa a factos ocorridos em 27-11-2005, foi condenado pela prática de um crime de desobediência qualificada e um crime de condenação de veículo em estado de embriaguez, na pena única de 9 meses de prisão suspensa pelo período de 2 anos;
g)-No processo 63/18.2PASVC do Juízo Local Criminal do Funchal - Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, por sentença de 20-11-2019, transitada em julgado 20-12¬2019, relativa a factos ocorridos em 20-10-2018, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 8,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 meses;
h)-No processo 184/20.1PBSCR do Juízo Local Criminal de Santa Cruz do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, por sentença de 11-05-2021, transitada em julgado 11-06¬2021, relativa a factos ocorridos em 14-04-2020, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na pena única de 11 meses de prisão, substituída por 140 dias de multa à taxa diária de 6,00€;
i)-No processo 500/20.6T9FNC do Juízo Local Criminal do Funchal - Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, por sentença de 13-12-2021, transitada em julgado 25-01¬2022, relativa a factos ocorridos em 20-10-2018, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 5,00€;
8.Também resultou provado os factos que constam do relatório social para determinação da sanção:
-O arguido reside com a progenitora, de 70 anos, aposentada, sendo que ambos descrevem um relacionamento positivo e de apoio mútuo.
-O pai faleceu há sensivelmente 11 anos e o irmão mais velho já se autonomizou do agregado.
-O arguido tem uma namorada e frequentemente pernoita junto daquela, mas mantém como morada de referência o imóvel da mãe.
-Possui o 9º ano como habilitações académicas, tendo prosseguido os estudos além da escolaridade mínima obrigatória para a sua idade.
-Profissionalmente refere experiências de apoio administrativo e como segurança privado, mas é sobretudo no ramo imobiliário que tem vindo a trabalhar, em regime de prestação de serviços. Ainda assim, tem realizado descontos para o sistema de proteção social, de valor variável ao longo dos anos.
-Atualmente refere auferir de um vencimento médio mensal na ordem dos 700 €, com os quais custeia as suas despesas, nomeadamente o pagamento de um crédito pessoal no valor de 150 € mensais.
-Também apoia a progenitora no pagamento das despesas domésticas, contribuindo com cerca de 150 € por mês.
-O arguido tem consumos pontuais de bebidas alcoólicas, que ocorrem num contexto recreativo.
-Teve consumos abusivos destas substâncias num passado longínquo, mas não atualmente, e não reconhece um padrão de dependência que justifique a sua sinalização para uma estrutura de tratamento.
-O arguido regista antecedentes pela prática de crimes estradais ao longo dos anos, atualmente está inscrito numa escola de condução a fim de obter novamente a carta de condução, situação de que apresentou documentação comprovativa, mas reprovou no exame de código que realizou a 02/11/2022.
-O arguido refere que não possui automóvel próprio, mas tem acesso ao veículo da sua namorada.
-O arguido mostra-se apreensivo com o desenrolar do presente processo. Consciente de que possui várias condenações pela prática desta tipologia de crime, receia a sua condenação a uma medida privativa da liberdade.
-Refere que as suas rotinas de trabalho, com horários variáveis, não são compatíveis com uma eventual aplicação de uma pena de prisão na habitação, mas mostrou-se disponível para colaborar numa medida de natureza probatória.
-Adota uma narrativa de desejabilidade social, relativamente ao bem jurídico em apreço, ainda que, a sua reincidência nesta tipologia de crime remeta para uma deficiente interiorização dos normativos sociais inerentes à condução de veículos motorizados e às regras de segurança rodoviária.
-O arguido tem 45 anos, apresenta um enquadramento sociofamiliar e profissional com características convencionais, não obstante, várias condenações pela prática de crimes estradais, manifestando lacunas ao nível da interiorização dos valores de segurança rodoviária.
As necessidades de intervenção do arguido, em caso de condenação, situam-se ao nível da responsabilização /consciencialização dos normativos sociais relativos à segurança rodoviária, tendo-se mostrado disponível para colaborar numa medida de natureza comunitária.

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Cumpre apreciar.

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
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Atendendo às conclusões apresentadas é questão a decidir a forma do cumprimento da pena imposta.
E designadamente, se a pena de 3 meses de prisão aplicada deve ser suspensa na respectiva execução.
Sobre este ponto, motivou a sentença recorrida pela seguinte forma:
No entanto, o arguido não foi sujeito, ainda, a nenhuma pena de suspensão na sua execução.
Estabelece o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Ora, in casu, considerando que o arguido se encontra familiar e socialmente inserido, consideramos ser possível, através de um juízo de prognose, afirmar que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Assim, a ponderação de todos estes elementos permite-nos concluir que o recurso à suspensão da execução da pena de prisão se revela no caso concreto suficiente para afastar o arguido, no futuro, da prática de novos crimes.
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O passado criminal do arguido é eloquente no sentido do fracasso de todas as penas de substituição que lhe foram aplicadas e todas elas conexas com a prática de crimes ligados à condução de veículos.
Já lhe foi inclusivamente aplicada pena de prisão suspensa na execução, voltando o arguido a delinquir.
Destarte e salvo o elevado respeito, é impossível concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (nº 1 do artº 50º do Código Penal) e fazer qualquer juízo de prognose que não o de que voltará a cometer idênticos crimes, a menos que receba o sério e enérgico aviso constituído pela pena de prisão efectivamente cumprida, não se vislumbrando, pelos mesmos motivos, qualquer outro tipo de substituição da pena, ou sequer cumprimento de pena em regime de obrigação de permanência na habitação, desde logo porque, tal como provado, o arguido não consente em semelhante forma de cumprimento de pena.
Consequentemente, procede o recurso.
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Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, indo A condenado, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelos nos 1 e 2 do artº 3º do Dec.-Lei nº 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 3 meses de prisão.
Sem custas.
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Lisboa, 7 de Março de 2023



(Manuel Advínculo Sequeira)
(Alda Tomé Casimiro)
(Anabela Simões Cardoso)