Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
614/15.4PCCSC.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: EXTORSÃO
INJÚRIA
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
CRIME CONTINUADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Perante «crimes praticados contra bens eminentemente pessoais», a que se refere o n.º 3 do art. 30.º, do mesmo Código, relativamente aos quais, o legislador de 2010 quis, através da Lei n.º 40/2010 de 3/9, excluir expressamente a figura do crime continuado, retirando da parte final do mesmo número a expressão «salvo tratando-se da mesma vítima».
Todavia, ainda que estivesse em vigor a redacção anterior àquela Lei, para que uma pluralidade de condutas criminosas, como a dos autos, se reconduza a um só crime na forma continuada, previsto no n.º 2 do mesmo art. 30.º, exige-se, para além da realização plúrima do mesmo tipo de crime e de uma execução por forma essencialmente homogénea - requisitos que, no presente caso, até estão presentes -, a verificação de outros pressupostos de ordem material, enunciados na mesma norma, que não decorrem da matéria de facto provada e que, por isso, não podem ser considerados, como seja a exigência de que aquelas condutas tenham tido lugar «no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente».
Inexistindo aqui qualquer situação exterior, estranha à vontade da arguida, que tenha determinado esta à prática daqueles factos ilícitos e que tenha a virtualidade de diminuir a respectiva culpa, muito menos de modo considerável, como exige a lei, não se verificam os pressupostos do crime continuado, não podendo a arguida ser condenada por um só crime continuado, remanescendo a solução normal do concurso de crimes de injúria, em número de seis, por estarmos perante seis acções típicas autónomas, ocorridas em dias diferentes, em que estiveram subjacentes outras tantas resoluções criminosas.
O constrangimento da assistente para fazer a entrega do dinheiro residiu nas verdadeiras ameaças «com mal importante» que a arguida lhe dirigiu, traduzidas na afirmação inicial da arguida, de que a assistente «iria ficar sem pernas e com o rosto desfigurado» e nas mensagens subsequentes em que a arguida anunciava que iria entregar ao namorado daquela «fotografias e vídeos» com ela «a praticar actos sexuais com diversos companheiros», caso não lhe entregasse os € 5000,00 pelo que a solução para a aludida pluralidade de condutas criminosas é, mais uma vez, a da regra geral do concurso real de crimes, decorrente do art. 30.º, n.º 1, do CP, não existindo um concurso aparente entre as injúrias e a extorsão e, considerando «que as “injúrias” consubstanciaram “ameaças” à assistente e, consequentemente, constrangimento no sentido da recorrente “obter benefício ilegítimo”, haverá consumação do crime de extorsão.
Estamos perante crimes cujas normas incriminadoras protegem bens jurídicos completamente diversos, o que, só por si, impediria aquela solução defendida pela arguida, ainda que se admitisse, como ela alega, que as injúrias foram um meio - complementar, pois, não fazem parte do processo causal exigido pela respectiva norma -, para o constrangimento, com vista à extorsão.
Decisão Texto Parcial:Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


1. Em processo comum, sob acusação do Ministério Público e da assistente M.  (que o MP acompanhou), foram os(as) arguidos(as) NE  e AS submetidos(as) a julgamento, perante tribunal singular (art. 16.º, n.º 3, do CPP), no Juízo Local Criminal de Lisboa, Comarca de Lisboa.

No final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo (transcrição):
“Pelo exposto:
Parte criminal:
a)- Absolve-se o arguido AS da prática do crime de que se encontra acusado.
b)- Condena-se a arguida NE:
- Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de extorsão, previsto e punido nos termos do artigo 223, n.° 1, do Código na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo;
- Pela prática, em autoria material, de seis crimes de injúria, previsto e punido nos termos do artigo 181°, n.° 1, do Código Penal, mediante convolação jurídica do crime continuado de injúria de que se encontrava acusado, e do qual se absolve, em seis penas de 60 (sessenta) dias de multa;
Em cúmulo jurídico das seis penas ante referidas, na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um total de € 800,00 (oitocentos euros).
Parte civil:
c)- Julga-se totalmente improcedente, por não provado, o pedido parcial de indemnização civil deduzido pela assistente M.  contra o mesmo arguido e, em consequência, absolve-se este do respectivo pedido.
d)- Julga-se o pedido parcial de indemnização civil deduzido pela mesma assistente contra a mesma arguida parcialmente procedente e, em consequência, condena-se esta a pagar àquela, a título de indemnização civil por danos patrimoniais, a quantia de € 3.000,00 (três mil euros).
Objectos:
e)- Levanta-se a apreensão que incide sobre o telemóvel descrito no auto de apreensão que constitui fls. 67/68.
f)- Relativamente ao objecto referido na alínea e), ordena-se a notificação da arguida, nos termos e para os efeitos do artigo 186°, n.° 3 e n.° 4, do Código de Processo Penal.
g)- Por conterem cópia dos ficheiros existentes no telemóvel referido na alínea e), determina-se que os 5 (cinco) DVD referidos no relatório de exame pericial que constitui fls. 281 sejam destruídos, devendo ser elaborado o respectivo termo de destruição.
h)- Considerando que, a assistente declarou prescindir da propriedade do envelope e dos recortes descritos no auto de apreensão que constitui fls. 67/68 e que estes artigos, face à sua natureza, não têm valor, determina-se ao abrigo do disposto no artigo 186°, n.° 4, do Código de Processo Penal, a sua destruição, devendo ser elaborado o respectivo termo de destruição.
Custas:
i) Condena-se, ainda, a mesma arguida:
- No pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, e no pagamento dos honorários do(a) Sr.(a) defensor(a) oficioso(a) que houve necessidade de lhe ser nomeado(a);
- No pagamento das custas cíveis, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 40,00%.
i)- Condena-se a mesma assistente, no pagamento das custas cíveis, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 60%.
…»      

2. Inconformada com a decisão, a arguida Nubia recorreu para este Tribunal de 2.ª instância, invocando, fundamentalmente, nas conclusões da respectiva motivação, que:
- A sentença padece de nulidade, por fundamentação insuficiente, ausência de exame crítico da prova e omissão de pronúncia (artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, do CPP);
-erro notório na apreciação da prova - art. 410.º, n.º 2 al. c) e 412.º, n.º 3, als. a) e b), do CPP - quanto aos factos provados n.ºs 1 a 15, os quais impugna;
- Houve erro na qualificação jurídica dos factos correspondentes ao crime de extorsão (art. 223.º, do CP);
- Verifica-se um só crime de injúrias, na forma continuada;
- Há uma relação de concurso aparente entre o crime de extorsão e o crime de injúrias, devendo a recorrente ser condenada apenas pelo primeiro dos crimes.

3. Admitido o recurso, responderam o Ministério Público e a assistente, ambos concluindo no sentido de que o mesmo deve improceder, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.
*

4. Após subida dos autos, na “vista” a que se refere o art. 416.º, do CPP, a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, acompanhando a resposta apresentada pelo MP em primeira instância, emitiu douto parecer, pugnando igualmente pelo não provimento do recurso.
5. Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do mesmo Código, nada mais foi acrescentado.
6. Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos a que se refere o art. 418.º, n.º 1, daquele Código e teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***

II.–Fundamentação.
1. Já elencámos supra as questões relevantes, que foram salientadas pela recorrente nas conclusões da sua motivação - as quais, como tem sido recorrentemente afirmado, delimitam e fixam o objecto do recurso -, e sobre as quais terá de se pronunciar este tribunal ad quem, sem prejuízo de, antes disso, verificarmos o que se mostra decidido em sede de matéria de facto e a fundamentação respectiva.
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2. Assim, passamos a reproduzir o respectivo conteúdo da sentença, na parte correspondente à fundamentação:

2.1)De facto:

2.1.1)- Factos relevantes para a existência ou inexistência dos crimes, punibilidade ou não punibilidade dos arguidos e determinação da pena (artigo 124°, n.° 1, do Código de Processo Penal), determinação da responsabilidade civil (artigo 124°, n.° 2, do citado código), respectiva motivação e exame crítico da prova (artigo 374°, n.° 2, do mesmo código):
Io) Em data não concretamente apurada, antes e cerca do dia 29.04.2015, à noite, a arguida realizou uma chamada telefónica para a assistente, anunciando que esta iria ficar sem as pernas e com o rosto desfigurado.
2o) Desde essa data, a arguida continuou com as ameaças e exigências através de mensagens, que enviou através da aplicação "WhatsApp", para a assistente, nas quais anunciava que iria entregar, ao namorado daquela, fotografias e vídeos, contendo imagens da mesma, a praticar actos sexuais com diversos companheiros, caso esta não lhe entregasse € 5.000,00.
3o) Assim, a assistente, receando pela sua integridade física, veio a anuir encontrar-se com a arguida, no dia 25.05.2015, no Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, junto à loja "Worten", às 18h30m, local indicado por esta, no sentido de lhe entregar os supra aludidos € 5.000,00.
4o) Para o efeito, a assistente colocou no interior de um envelope a quantia de € 200,00, bem como alguns reportes em papel.
5o) No dia combinado para o encontro, e perto da hora marcada, a arguida alterou o local do encontro para a cafetaria da loja "FNAC" do mesmo centro comercial.
6o) Passado algum tempo, a arguida, acompanhada do arguido, dirigiram-se a esse local, onde se encontraram com a assistente.
7o) Neste local, a arguida exigiu a entrega dos € 5.000,00, pelo que, a assistente, receando pela sua integridade física, entregou, à arguida, o envelope referido em 4) e o que encontrava no seu interior.
8o) Após, os arguidos abandonaram o local, sendo que, a arguida, o fez na posse do envelope referido em 4) e do que encontrava no seu interior.
9o)  Ao actuar nos moldes supra expostos em 1) a 8), a arguida:
- Agiu com o propósito de obter para si um enriquecimento ilegítimo, mediante uso de ameaças, de molde a determinar a assistente a lhe entregar € 5.000,00, bem sabendo que a mesma não lhe era devida e que, ao assim actuar, constrangia aquela, por meio de medo e inquietação, forçando-a a dispor dos seus bens patrimoniais, causando-lhe prejuízo;
- Agiu de forma livre, deliberada e consciente;
- Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
10°) No dia 01.05.2015, a arguida, através de conversa mantida, com a assistente, na aplicação "WhatsApp", dirigiu-lhe as seguintes expressões: "puta", "puta merdosa", "cabra", "uma parasita como você não se faz mal".
11°) E no dia 03.05.2015, as seguintes expressões: "cadela viciada", "cadela", "puta", "vaca", "pulha", "vaca merdosa", "cadela merdosa".
12°) E no dia 04.05.2015, as seguintes expressões: "Bom dia Vaca", "Acorda Cadela", "Cadela", "Cadela no Ciu".
13°) E no dia 05.05.2015, as seguintes expressões: "Cadela no Ciu", "Puta", "Cadela viciada".
14°) E no dia 20.05.2015, as seguintes expressões: "cadela viciada", "cadela sustentada aqui és tu parasita", "cadela", "vaca", "vives fechada como uma vaca", "prostituta que ele sustenta", "mostro a todos a grande porca vaca de merda que és".
15°) E no dia 25.05.2015, as seguintes expressões: "cadela no ciú", "sua vaca", "cadela", "vaca", "puta cala t", "cabra".

16o) Ao actuar nos moldes supra expostos em 10) a 15), a arguida:
- Sabia que as expressões eram ofensivas da honra e consideração da assistente;
- Agiu com o propósito de atingir a assistente na sua honra e consideração;
- Agiu de forma livre e consciente;
- Sabia que a sua conduta era proibida e punida por normas jurídico-penais, e não se coibiu em levá-la adiante.
17°) No certificado do registo criminal da arguida, nada consta.

18°) A arguida:
- Vive com o cônjuge e com uma filha com 12 anos de idade, em casa própria, tendo declarado que não sabe se pela mesma paga algum quantitativo a uma instituição bancária;
- Alegou que, por ser variável, não sabe quanto aufere da sua actividade profissional que diz exercer;
- Não dispõe de qualquer meio de transporte próprio;
- Tem o 12o ano de escolaridade.

21°) Em decorrência da actuação da arguida, a assistente:
- Sentiu-se profundamente ofendida na sua honra e consideração;
- Sentiu-se ameaçada;
- Sentiu vergonha, tristeza e medo.

2.1.1.2) Não provados:
22°) A chamada referida em 1) foi realizada no dia 27.04.2015, às 20h00m.
23°) Na chamada referida em 1) a arguida pediu à assistente que lhe entregasse €5.000,00.
24°) Na ocasião referida em 7), o arguido exigiu a entrega dos € 5.000,00 e que o envelope referido em 4) foi-lhe entregue.
25°) No momento referido em 8), o arguido abandonou o local na posse do envelope referido em 4) e do que se encontrava no seu interior.
26°) A actuação dos arguidos foi na execução de um plano conjunto, que previamente delinearam.
27°) O descrito em 9) é extensível ao arguido.
28°) Aquando da chamada referida em 1), a arguida proferiu para a assistente, as expressões "você é uma puta, vaca".
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2.1.1.3)Motivação e análise crítica da prova:


3. Conhecendo do objecto do recurso:
3.1. Invoca a arguida que a sentença padece de nulidade, por fundamentação insuficiente, por ausência de exame crítico da prova e ainda por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, do CPP.
Porém, sem razão.
Segundo aquele primeiro normativo, que estabelece acerca dos requisitos da sentença, «ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Ou seja, para além de indicar as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tem ainda de efectuar o exame crítico das mesmas, isto é, de explicitar o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas.
O objectivo dessa fundamentação é, no dizer de Germano Marques da Silva (In “Curso de Processo Penal”, 2ª ed., 2000, vol. III. pág. 294), o de permitir "a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina".
Como escreve Marques Ferreira (In Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 229), "estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência".
Impõe-se pois, que esse exame crítico das provas nas quais se alicerçou a convicção do tribunal, indique as razões de ciência e demais elementos que, na perspectiva do tribunal, tenham sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da respectiva convicção. «A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» - Ac. do STJ de 30/1/2002, proc. nº 3063/01-3ª; MAIA GONÇALVES in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 13ª ed., 2002, pp. 739-740).
Porém, «a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível» (Ac. do STJ de 30/6/1999 - proc. nº 285/99-3ª). Efectivamente, «a motivação da decisão de facto, seja qual for o conteúdo que se lhe dê, não pode ser um substituto do princípio da oralidade e da imediação no que tange à actividade de produção da prova, transformando-a em documentação da oralidade da audiência, nem se propõe reflectir nela exaustivamente todos os factores probatórios, argumentos, intuições, etc., que fundamentam a convicção ou resultado probatório» (Ibidem.). Daí que «a fundamentação a que se reporta o art. 374º, nº 2, do CPP, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de violar o princípio da oralidade que rege o julgamento feito pelo tribunal colectivo de juízes». De modo que, «não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo» (Ac. do STJ de 12/4/2000, proc. nº 141/2000-3ª).

Da transcrição que fizemos da decisão de facto proferida, ressalta claramente que esta contém todos os aludidos requisitos: foi feita a enumeração dos factos provados e dos não provados e foram indicadas as provas que serviram para formar a convicção do julgador, sem esquecer o respectivo exame crítico, na medida em que se dá a conhecer o conteúdo de cada uma dessas provas e como contribuíram para aquela convicção, bem como a razão de ciência das testemunhas que depuseram de forma relevante. Assim, da leitura da respectiva fundamentação da decisão de facto fica-se com uma ideia precisa do raciocínio e do caminho seguido pelo tribunal para chegar à conclusão a que chegou, bem como de quais as provas que em cada sector da matéria de facto assumiram relevância e porquê, não restando quaisquer dúvidas relativamente à questão de se saber como se chegou a tal decisão. Também se expuseram as razões pelas quais aqueles factos provados constituem os crimes por que foi condenada a arguida ora recorrente, fundamentou-se a escolha e a medida das respectivas penas, bem com a decisão do pedido de indemnização civil.
É certo que a recorrente faz incidir a sua crítica essencialmente na fundamentação da pena única, correspondente ao concurso de crimes, alegando que não são referidas as circunstâncias em que os factos ocorreram, a gravidade dos mesmos e a personalidade da arguida, não explicando em que termos a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo agente ou a influenciou, de molde a permitir que se afira se o ilícito global é produto de uma tendência criminosa do agente ou revela pluriocasionalidade. Segundo a recorrente não se descreveu a conduta factual delituosa da condenada, nem se enumeraram os factos provados atinentes à sua personalidade, pelo que, não foi feita uma apreciação em conjunto dos factos e da personalidade da arguida, como determina o artigo 77.º, n.º 1, do CP.
Obviamente que a questão suscitada se refere exclusivamente à pena única de multa, resultante do cúmulo jurídico das penas correspondentes aos vários (6) crimes de injúria.
O tribunal fundamentou a aplicação da aludida pena única, conforme decorre do parágrafo 2.2.4. (fls. 457/458) da sentença, citando os correspondentes dispositivos legais e remetendo, no que respeita às circunstâncias a ponderar, para o que já havia dito relativamente à medida das respectivas penas singulares, momento em que foram enumeradas todas as circunstâncias consideradas relevantes e que foram apuradas em julgamento, reflectidas nos factos provados. A conduta criminosa que lhe é imputada está claramente descrita na sentença (é a que decorre dos factos provados) e faz-se notar que a arguida não alegou quaisquer outros factos diferentes dos apreciados pelo tribunal, nem na altura própria, nem agora, assim como, não alega qualquer característica da sua personalidade que possa ser relevante e tenha reflexo na medida da pena a aplicar, sendo certo que, só compareceu no final da audiência, no dia da leitura da sentença, nunca tendo prestado declarações sobre os factos, mas apenas sobre as condições pessoais e patrimoniais. Por isso, se acha que a sentença é omissa sobre alguma dessas características relevantes da sua personalidade, cabia-lhe alegá-la expressamente e demonstrar que a mesma tinha influência na respectiva pena, coisa que não fez. O tribunal, perante os dados de que dispunha nessa matéria, não podia dizer coisa diferente do que disse, nem ter feito melhor. Se o tribunal não disse expressamente que aquela conduta ilícita revelava uma tendência criminosa da arguida, a conclusão a retirar só pode ser uma, a de que considerou que tal tendência inexiste e que se está perante uma mera pluriocasionalidade - opção que é a mais favorável àquela -, sem que haja necessidade de o afirmar.
Em suma, a pena está suficientemente fundamentada, cabendo à recorrente demonstrar a existência de eventual erro na determinação da respectiva medida.
Ainda em matéria de nulidades, aquela alega que o tribunal omitiu pronúncia a propósito da mesma questão, atinente à personalidade, o que faz com que a sentença incorra na nulidade do art. 379.º, do CPP (temos por não escritas as referências feitas na motivação do recurso à norma do artigo 660.º, n.º 2, do CPC, por nada ter a ver com esta matéria e este Código não ser aplicável à sentença penal; assim como, desconhecemos os números 2 e 3 do artigo 71.º, do CPP, que são referidos na mesma motivação e respectivas conclusões, ao abordar a nulidade aqui em causa).
Com o devido respeito, aquela nulidade de sentença verifica-se «quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar».
Constata-se, porém, que o tribunal se pronunciou sobre todas as questões que tinha de apreciar: deu como provados, ou não provados, todos os factos que tinham sido alegados, imputou os primeiros à arguida, fez o respectivo enquadramento jurídico-criminal, definindo os crimes cometidos pela mesma, escolheu e fixou as penas parcelares e a pena única correspondente ao concurso de crimes e decidiu quanto ao pedido de indemnização civil, quanto ao destino dos objectos e quanto a custas.
Por isso, nenhuma das questões enunciadas nos artigos 368.º e 369.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, ou qualquer outra sobre a qual tivesse de emitir decisão, ficou por decidir.
A não ponderação de alguma circunstância, atinente à personalidade da arguida ou a qualquer outra matéria, que a recorrente considere relevante para determinação da pena e que não foi relevada pelo tribunal, não constitui questão autónoma a decidir, para efeitos da norma em discussão, constituindo apenas mais um elemento, entre os demais valorados pelo tribunal, que pode fundamentar o entendimento de que a pena poderá ser, ou deveria ser, inferior à aplicada, matéria que tem de ser discutida em sede de impugnação da medida dessa mesma pena e não neste momento.
Razão pela qual se conclui pela não verificação das aludidas nulidades da sentença, ou de qualquer outra que devesse ser conhecida, neste momento, oficiosamente.
3.2. A arguida mistura duas realidades completamente distintas, ao alegar que impugna os factos provados 1 a 15, por, na sua perspectiva, existir erro notório na apreciação da prova, quanto aos mesmos, nos termos dos artigos 410.º, n.º 2, al. c) e 412.º, n.º 3, als. a) e b), do CPP.
Como sabemos, trata-se de dois modos distintos de atacar a decisão de facto, com pressupostos e modo de impugnação diversos, ainda que podendo ser alegados cumulativa, mas separadamente. Assim, a invocação de vícios da decisão, nomeadamente do invocado erro notório na apreciação da prova (aludido art. 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP), tem de assentar exclusivamente no texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, ou seja, sem recorrer a quaisquer elementos externos, ainda que constantes do processo. Diferentemente, a impugnação dos factos tem de partir necessariamente do conteúdo das provas e é com base no seu reexame ou na renovação da prova que tem de se demonstrar que houve erro na respectiva apreciação e que as mesmas impõem decisão diversa, tal como decorre do aludido artigo 412, n.ºs 3 e 4, do mesmo Código.
Diga-se, desde já, que o vício invocado não se verifica.
Na verdade, o mesmo ocorre quando, analisado o texto da decisão, «se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida» - Simas Santos e Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, 2.ª edição, vol.II, pág. 74.
Para ser notório, o erro em causa tem de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, facilmente perceptível, que seja denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias, das legis artis, ou das regras da experiência comum, ou ainda que denuncie que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios.
Ora, para sustentar a existência daquele vício, alega a recorrente que «dos testemunhos … não resulta uma identificação cabal de que fora a arguida a autora de tais comportamentos» e considera «existir acção provocatória para a consumação da prática de um crime o que não pode valer como meio válido de obtenção de prova, o que implica a inexistência de qualquer prova do crime provocado», concluindo que, por causa de tal provocação, a recorrente «concretiza algo que inexistindo, não sucederia».
Como dissemos já, o teor dos depoimentos só releva em sede de impugnação fáctica, matéria de que falaremos mais à frente. A desconformidade da matéria de facto provada relativamente à prova produzida e gravada, podendo consubstanciar um eventual erro na apreciação da prova, tal erro nunca será notório, mas encoberto, jamais configurando o aludido vício do citado art. 410.º, do CPP.
No que concerne à intervenção de agente provocador, a recorrente também não tem qualquer razão.
Não houve nenhum agente provocador que a tenha induzido à prática do crime de extorsão, muito menos aos crimes de injúrias. A execução dos crimes, pela arguida, foi levada a cabo sem que alguém tenha sugerido o que quer que seja. Foi a arguida que tomou a iniciativa de telefonar à assistente, de a injuriar e de lhe exigir a entrega de € 5000,00 sob a ameaça de ficar sem as pernas e o rosto desfigurado e de publicitar imagens íntimas, de cariz sexual, da assistente, assim como, foi a arguida que tomou a iniciativa de marcar o local de encontro para que aquela lhe entregasse a referida quantia em dinheiro, tendo-se limitado a assistente a cumprir as indicações que lhe foram dadas pela arguida, sem que ninguém tenha influenciado esta nas suas decisões ou lhe tenha sugerido para agir desse modo. A intervenção dos agentes policiais foi simplesmente acompanhar o desenrolar da entrega do dinheiro à arguida por parte da assistente, para que aquela fosse apanhada em flagrante delito. Antes disso, não houve quaisquer contactos dos órgãos de polícia criminal com a arguida.
Pelo que, não houve qualquer provocação de terceiros, nomeadamente, dos órgãos de polícia criminal, para que a arguida praticasse os factos ilícitos cometidos, não havendo, pois, razões para aqui discutir qualquer eventual nulidade da prova, com tais pressupostos. Conclui-se, pois, que a decisão condenatória, por um lado, não assenta em qualquer prova proibida, mas em meios que a lei processual penal admite, por outro, que aquela não padece do vício alegado, nem de qualquer outro dos previstos na mesma norma do n.º 2, do art. 410.º, do CPP, numa apreciação oficiosa destes.
3.3 Passemos, então, à questão da impugnação da matéria de facto:
Conforme se refere no Acórdão de 15/07/2014, proferido no Proc. 290/97.4 GGSNT.L1-5, deste Tribunal e Secção, «o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova (artigo 430°), uma nova ou suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento».
Segundo o disposto no art. 127.º, do respectivo Código processual penal, «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Não se vislumbra que a apreciação da prova, no presente caso, tenha infringido as regras da experiência, pois, nenhum dos factos provados, de per si ou no conjunto da matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo, viola tais regras.
Por outro lado, e como tem sido salientado pela jurisprudência e pela doutrina, a garantia de legalidade da "livre convicção" a que alude aquele normativo, terá de bastar-se com a necessária explicitação objectiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório em que assentou essa convicção, possibilitando a partir daí o necessário controlo da sua legalidade, como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efectuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meio de prova.
Sendo certo que convicção livre não é, nem pode equivaler, a livre arbítrio na formação dessa convicção, antes terá de ser o reflexo de uma apreciação objectiva das provas produzidas, permitindo um controle por parte dos interessados e do tribunal de recurso, é manifesto que o presente caso não revela qualquer arbítrio ou discricionariedade na análise da prova, tendo sido respeitados os princípios atinentes.
Na verdade, os factos considerados provados têm sustentação nos meios de prova produzidos em julgamento e concretamente indicados na respectiva fundamentação, submetidos ao correspondente exame crítico e que convenceram o tribunal de que as coisas se passaram desse modo.
Salienta-se, contudo, que, nesta matéria, intervém sempre uma componente subjectiva, com especial relevância no que concerne à credibilidade da prova pessoal, a qual será bem melhor aferida pelo tribunal de primeira instância, por força da imediação na produção dessa prova, do que pelo tribunal de recurso, onde falta tal imediação.
Por força dessa condicionante e dada a natureza do recurso em matéria de facto, ao tribunal de segunda instância caberá, essencialmente, verificar se o julgador, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do supra mencionado princípio da livre apreciação das provas, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar ao veredicto de facto, devendo tal apreciação ter por base a motivação que consta da decisão recorrida e que fundamenta a opção feita, no cumprimento do disposto o art. 374.º, n.º 2, do CPP.
Por isso, a censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” (Ac. do TC n.º 198/2004 – DR II série, de 2/6/2004; Ac. do TRL de 7/11/2007, Proc. 4748/07-3).
Dentro daqueles parâmetros e reafirmando o que já dissemos em anteriores decisões, a reapreciação da prova só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, não podendo ocorrer tal alteração quando aquela reapreciação apenas permita uma diferente decisão. Pois que, havendo, face à prova produzida, duas ou mais possíveis soluções para a questão de facto, se a decisão impugnada se mostrar devidamente fundamentada e a correspondente decisão constituir uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, essa decisão deve prevalecer, por não ser passível de crítica, na medida em que, nesse caso, não ocorrerá violação das regras e princípios de direito probatório.
A recorrente impugna os factos provados acima identificados com os números 1 a 15, com o argumento de que o tribunal não podia concluir pelo preenchimento do crime de extorsão, com base nas mensagens recebidas pela assistente, porquanto, inexiste prova «quanto à alegada autoria das comunicações pela arguida, inexistindo sustentação em perícia ao telefone da recorrente, pois, o telemóvel que lhe foi apreendido não foi examinado, nem alvo de qualquer análise com vista a determinar se tinha sido aquele dispositivo o emissor das mensagens».
Trata-se de alegação que não compromete o decidido, no que concerne aos factos impugnados.
Que a chamada telefónica e as mensagens aqui em causa foram recebidas pela assistente, não há quaisquer dúvidas, estando igualmente comprovado que partiram do telefone da arguida, o que é confirmado pela primeira, que deu as necessárias explicações quanto a essa sua convicção, apelando, nomeadamente, à relação de parentesco da arguida (irmã) com um amigo íntimo da assistente (J...F...), dando-se a “coincidência” de ter sido a arguida que compareceu ao encontro combinado e que recebeu o envelope com o dinheiro que lhe foi entregue pela assistente e que esta se havia comprometido a entregar a quem enviou aquelas mensagens.
Em processo penal «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º, do CPP), nada obstando que a autoria da chamada telefónica e das mensagens enviadas à assistente seja demonstrada mediante prova testemunhal e/ou por outros meios de prova, nomeadamente, através de presunções judiciais, sendo legítimo concluir que a pessoa que se apresentou a receber o dinheiro seja a mesma pessoa que exigiu a sua entrega, através daquela ameaça, salvo se tivesse sido apresentada outra justificação plausível para tal acto da arguida, o que não aconteceu no presente caso, em que a arguida nunca deu qualquer explicação.
Certo é que, para além daquelas dúvidas inconsistentes da recorrente, esta não indica quaisquer provas das quais se possa extrair conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal recorrido, ou seja, inexistem provas que imponham decisão diversa da proferida quanto aos factos impugnados - note-se que a arguida nunca se pronunciou sobre os factos imputados, remetendo-se ao silêncio no primeiro interrogatório judicial e não comparecendo em julgamento, inexistindo, por isso, versão diferente que possa explicar a sua presença no encontro com a assistente e a receber o respectivo envelope com o dinheiro -, o que, só por si, implica a improcedência da correspondente impugnação.
3.4. Outro ponto em que a recorrente manifesta a sua discordância relativamente ao que foi decidido, respeita à qualificação jurídica dos factos provados, invocando aquela que houve erro na qualificação jurídica dos factos correspondentes ao crime de extorsão (art. 223.º, do CP), que se verifica um só crime de injúrias, na forma continuada e, por último, que há uma relação de concurso aparente entre o crime de extorsão e o crime de injúrias, devendo a recorrente ser condenada apenas pelo primeiro dos crimes.
Vejamos:
3.4.1. Quanto ao pretenso erro na qualificação jurídica dos factos correspondentes ao crime de extorsão:
Este crime tem a sua previsão no artigo 223.º, do CP (e não no art. 233.º, referido na motivação e conclusões do recurso, seguramente por lapso), cuja redacção é a seguinte:
1- Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2-   Se a ameaça consistir na revelação, por meio da comunicação social, de factos que possam lesar gravemente a reputação da vítima ou de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
3-   Se se verificarem os requisitos referidos:
a)- Nas alíneas a), f) ou g) do n.º 2 do artigo 204.º, ou na alínea a) do n.º 2 do artigo 210.º, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos;
b)- No n.º 3 do artigo 210.º, o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
4- O agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias se obtiver, como garantia de dívida e abusando da situação de necessidade de outra pessoa, documento que possa dar causa a procedimento criminal.
Relativamente a esta questão, o tribunal recorrido fixou os elementos constitutivos do ilícito e analisou de seguida a factualidade provada, chegando à conclusão que aqueles se mostravam preenchidos, escrevendo o seguinte:
«São elementos constitutivos do ilícito em apreço (número 1):
- Emprego de violência ou ameaça de um mal importante;
- Constrangimento a uma disposição patrimonial que acarreta prejuízo para alguém;
- Intenção de conseguir para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (dolo específico).
Trata-se de um crime contra o património em geral.
Trata-se, igualmente, de um crime de resultado, na medida em que, o crime apenas se consuma com a obtenção por parte do agente de uma vantagem patrimonial ilegítima para o mesmo ou outrem, obtida à custa da pessoa que é constrangida, por meio de violência ou de ameaça com mal importante.
Trata-se, por fim, de um crime que apenas pode ser praticado como dolo, sendo exigido o conhecimento e vontade de realização dos elementos objectivos do tipo, com conhecimento da ilicitude da sua conduta.

No caso em apreço, encontra-se provado que, a arguida, num determinado dia, disse à assistente que iria ficar sem as pernas e com o rosto desfigurado, após o que, continuou com ameaças que iria entregar, ao namorado desta, fotografias e vídeos, contendo imagens da mesma, a praticar actos sexuais com diversos companheiros, caso esta não lhe entregasse € 5.000,00 (o que configura violência moral e ameaça com mal importante), o que determinou a assistente a entregar, à arguida, o envelope referido no facto provado n.° 4 e o que se encontrava no seu interior, nomeadamente € 200,00 (isto é, a arguida constrangeu a assistente a uma disposição patrimonial que acarretou prejuízo para a mesma, sendo irrelevante o facto do dinheiro ter sido recuperado, pois que, "IV - O crime de extorsão consuma-se quando alguém, tendo em vista obter enriquecimento ilegítimo, constrange uma terceira pessoa a fazer uma disposição patrimonial prejudicial por meio de violências, ameaças ou pondo-a na impossibilidade de resistir" - trecho do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.1989, processo n.° 040760, acessível na Internet, em www.dgsi.pt - no mesmo sentido, cf. Acórdão do mesmo tribunal de 06.05.1998, publicado na CJ/STJ, VI, Tomo II, página 197, cujo trecho do sumário igualmente se transcreve para alumiar a questão em apreço: "VI - O crime de extorsão consuma-se com a entrega do valor patrimonial pretendido pelo agente, o que constitui prejuízo para o ofendido." e Taipa de Carvalho, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, AAVV, dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999, página 359, ao defender que "«A consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta coagida»"), daí que, os elementos objectivos do tipo de crime em apreço se encontram verificados.
Mais se encontra provado que, ao actuar nos moldes ante descritos, a arguida:
- Agiu com o propósito de obter para si um enriquecimento ilegítimo, mediante uso de ameaças, de molde a determinar a assistente a lhe entregar € 5.000,00, bem sabendo que a mesma não lhe era devida e que, ao assim actuar, constrangia aquela, por meio de medo e inquietação, forçando-a a dispor dos seus bens patrimoniais, causando-lhe prejuízo;
- Agiu de forma livre, deliberada e consciente;
- Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Os factos provados evidenciam que a arguida agiu com dolo directo (artigo 14°, n.° l, do Código Penal).
Por conseguinte, encontram-se preenchidos os elementos constitutivos (objectivo e subjectivo) do crime em apreciação.
Inexiste qualquer causa que exclua a ilicitude da conduta ou a culpa.
Como tal, a arguida deve ser condenada pela prática do crime em apreciação pelo qual se encontra acusada.»
Perante o exposto, nada há a censurar ao tribunal recorrido quanto a esta questão concreta.
Os factos provados preenchem, sem dúvida alguma, todos os requisitos objectivos e subjectivos do aludido crime de extorsão, definidos no n.º 1 do citado normativo, porquanto, a arguida constrangeu a assistente, por meio de ameaça com mal importante – que esta iria ficar sem as pernas e com o rosto desfigurado e que aquela iria entregar fotos e vídeos com imagens da assistente a praticar actos sexuais com diversos homens -, a fazer uma disposição patrimonial - entregar-lhe dinheiro -, agindo aquela consciente e voluntariamente, com a intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo e com a consciência de que tal conduta era proibida.
Ou seja, cometeu a arguida, efectivamente, o crime em causa.
3.4.2. Verifica-se um só crime de injúrias, na forma continuada, como defendido pela recorrente, ou esta cometeu seis crimes de injúria, em concurso real, como defendido na sentença?
Vindo acusada de ter cometido apenas um dos aludidos crimes de injúria, na forma continuada, o tribunal de primeira instância procedeu à alteração da qualificação jurídica dos correspondentes factos, em audiência de julgamento, tendo sido cumprido o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, conforme consta das respectivas actas de fls. 433/434 e 464/466.
Não estando em causa a verificação de todos os requisitos do crime de injúria, p. p. pelo art. 181.º, n.º 1, do CP, em cada uma das seis situações que resultaram provadas, conforme demonstrado na sentença - tratando-se de matéria que a recorrente não discute no recurso e relativamente à qual também nada temos a acrescentar -, aquela alteração da qualificação jurídica seria devidamente explicada na mesma decisão final, nos seguintes termos:
«Pelo exposto, conclui-se sem qualquer margem para dúvidas, que a conduta da arguida integra o crime de injúria, restando apreciar se o crime é continuado ou se a mesma praticou seis crimes, tantos quantos os dias referidos compreendidos nos factos provados n.° 10) a 15).
Sob a epígrafe "Concurso de crimes e crime continuado", prescreve o artigo 30° do Código Penal:
"1- O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2- Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3- O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais", (este número foi introduzido pelo artigo 4o da Lei 40/2010, que entrou em vigor em 03.10.2010 - vide artigo 5o da citada lei).
Ou seja, por via do aludido n.° 3, o crime continuado restringe-se a bens não eminentemente pessoais.
Por conseguinte, o número de crimes de injúria determina-se pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
No caso, a arguida agiu em seis dias distintos.
Como tal, a arguida deve ser condenada pela prática de seis crimes de injúria.
A mesma conclusão é alcançável para quem entenda que, pode existir crime continuado, mesmo nos casos de crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, caso do crime de injúria, desde que tenham por objecto a mesma vítima.
Passa-se a explicar.
O segredo da conexão das actividades que formam o chamado crime continuado ancora na considerável diminuição da culpa do agente que lhe anda ligada e o fundamento desse menor grau de culpa deve ser encontrado no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. "Pelo que o pressuposto da continuação criminosa será assim, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito."

Os requisitos para que esteja perante um crime continuado são os seguintes:
- A realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico;
- A execução por forma essencialmente homogénea;
Que essa execução se coloque no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Salvo melhor opinião, de forma inequívoca, no caso em apreço, não resulta da factualidade provada que a arguida tenha agido no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a sua culpa, antes pelo contrário, uma vez que, durante o processo que conduziu à prática do crime de extorsão, injuriou a ofendida durante vários dias, donde a sua culpa é elevada.»

Perante a nomenclatura do Código Penal, os crimes contra a honra, dos quais se destaca o de injúria, constituem o Capítulo VI, do título I - crimes contra as pessoas -, do Livro II – Parte Especial – do referido Código.
Estamos, pois, perante «crimes praticados contra bens eminentemente pessoais», a que se refere o n.º 3 do art. 30.º, do mesmo Código, relativamente aos quais, o legislador de 2010 quis, através da Lei n.º 40/2010 de 3/9, excluir expressamente a figura do crime continuado, retirando da parte final do mesmo número a expressão «salvo tratando-se da mesma vítima».
Todavia, ainda que estivesse em vigor a redacção anterior àquela Lei, para que uma pluralidade de condutas criminosas, como a dos autos, se reconduza a um só crime na forma continuada, previsto no n.º 2 do mesmo art. 30.º, exige-se, para além da realização plúrima do mesmo tipo de crime e de uma execução por forma essencialmente homogénea - requisitos que, no presente caso, até estão presentes -, a verificação de outros pressupostos de ordem material, enunciados na mesma norma, que não decorrem da matéria de facto provada e que, por isso, não podem ser considerados, como seja a exigência de que aquelas condutas tenham tido lugar «no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente».
Inexiste aqui qualquer situação exterior, estranha à vontade da arguida, que tenha determinado esta à prática daqueles factos ilícitos e que tenha a virtualidade de diminuir a respectiva culpa, muito menos de modo considerável, como exige a lei.
Assim, não se verificando os respectivos pressupostos, não pode a arguida ser condenada por um só crime continuado, remanescendo a solução normal do concurso de crimes de injúria, em número de seis, por estarmos perante seis acções típicas autónomas, ocorridas em dias diferentes, em que estiveram subjacentes outras tantas resoluções criminosas.
3.4.3. A recorrente ataca também a decisão final por ter sido condenada pelos crimes de extorsão e de injúria, em concurso real, defendendo que «existe entre ambos os crimes um concurso aparente», considerando «que as “injúrias” consubstanciaram “ameaças” à assistente e, consequentemente, constrangimento no sentido da recorrente “obter benefício ilegítimo”, entenda-se, consumação do crime de extorsão».
Com o devido respeito, em nenhum momento da sentença se confunde as injúrias com as ameaças, ou se afirma que aquelas consubstanciam ameaça que tenha servido para constranger a assistente a entregar o dinheiro.
Ou seja, não é verdade que, na economia da sentença, as injúrias tenham constituído um crime meio para a prática do crime de extorsão, muito menos que aquelas sejam pressuposto deste. Assim como, não corresponde à verdade a afirmação da arguida no sentido de que os dois tipos de crime tenham resultado da mesma conduta. Antes pelo contrário, estamos perante acções ilícitas autónomas e independentes.
O constrangimento da assistente para fazer a entrega do dinheiro residiu nas verdadeiras ameaças «com mal importante» que a arguida lhe dirigiu, traduzidas na afirmação inicial da arguida, de que a assistente «iria ficar sem pernas e com o rosto desfigurado» e nas mensagens subsequentes em que a arguida anunciava que iria entregar ao namorado daquela «fotografias e vídeos» com ela «a praticar actos sexuais com diversos companheiros», caso não lhe entregasse os € 5000,00.
Pelo que, o pressuposto invocado pela recorrente não se verifica.
Logo, a solução para a aludida pluralidade de condutas criminosas é, mais uma vez, a da regra geral do concurso real de crimes, decorrente do art. 30.º, n.º 1, do CP.
Mas, para além disso, estamos perante crimes cujas normas incriminadoras protegem bens jurídicos completamente diversos, o que, só por si, impediria aquela solução defendida pela arguida, ainda que se admitisse, como ela alega, que as injúrias foram um meio - complementar, pois, não fazem parte do processo causal exigido pela respectiva norma -, para o constrangimento, com vista à extorsão.
Assim, improcede, também nesta parte, o recurso   
Concluindo, porque não há outras questões a decidir - porque não suscitadas, nem as havendo de conhecimento oficioso -, é o recurso da arguida totalmente improcedente.
***

III–DECISÃO:         
Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o recurso da arguida N. , confirmando-se a decisão recorrida.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) UC.
Notifique.


Lisboa,06/11/2018


José Adriano (Elaborado em computador e revisto pelo relator).
Vieira Lamim
Decisão Texto Integral: