Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
428/17.7T8MFR.L1-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VENDA DEFEITUOSA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1.Pretendendo impugnar a decisão sobre a matéria de facto, o Recorrente terá de fazer constar das conclusões pelo menos os factos relativamente aos quais se verifica a sua discordância aí pugnando pela sua alteração, exigência estabelecida pelo legislador no art.º 640.º n.º 1 al. a) do CPC e cuja inobservância determina a rejeição do recurso, conforme aí também previsto.

2.Não estando dado como adquirido nos autos que o A. já não possui o veículo cuja reparação peticiona, nem tendo o R. nem ninguém suscitado tal questão no processo, não tendo o tribunal de 1ª instância tomado qualquer posição sobre esta matéria, nada há que avaliar no presente recurso a esse respeito, já que o recurso visa o reexame da decisão proferida e não a tomada de decisão sobre novas questões anteriormente não suscitadas no processo, a menos que se tratem de questões de conhecimento oficioso.

3.Não pode de qualquer modo dizer-se que a decisão de determinar a reparação do veículo é impraticável, já que, de acordo com o disposto no art.º 4.º n.º 6 do Decreto Lei 67/2003, os direitos conferidos por este artigo ao consumidor transmitem-se a terceiro adquirente do bem.

4.Quando se avalia as qualidades e o desempenho habituais de um bem, com os quais o consumidor pode razoavelmente contar, por comparação com bens do mesmo tipo como refere o art.º 2.º n.º 2 d) do Decreto Lei 67/2003, na transposição da previsão desta norma para o caso concreto, não pode deixar de ter-se em conta as características específicas do bem adquirido.

5.Perante um veículo automóvel usado, em segunda mão, com cerca de 10 anos e de 140.000 km, o comprador não pode esperar com razoabilidade que o mesmo se apresente como se fosse novo, designadamente ao nível do conforto que lhe é dado com a sua utilização, ou até na sua durabilidade ou tempo expetável de funcionamento regular. Contudo, já não poderá deixar de esperar que o mesmo funcione como o meio de transporte que é, e que disponha das caraterísticas que permitem fazê-lo em segurança, na medida em que é essa a utilidade esperada por um consumidor comum que adquire um bem desta natureza.

6.Integra-se na previsão da al. d) do n.º 2 art.º 2.º do Decreto Lei 67/2003, que presume que o bem não é conforme ao contrato quando não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e com as quais o consumidor pode razoavelmente contar atendendo à natureza do bem, a circunstância de um veículo automóvel usado ser vendido: (i) com cintos de segurança que não recolhem e têm as molas frouxas, o que significa que não servem o seu propósito de contenção do passageiro em caso de travagem ou acidente; (ii) não tenha em funcionamento o dispositivo de entrada do ar à frente do condutor por estar partido; (iii) o painel de instrumentos não permitir ver a respetiva informação quando exposto ao sol, informação essencial para a circulação de qualquer veículo em segurança; (iv) o indicador do nível de gasóleo estar avariado, informando que há mais combustível do que o que efetivamente existe; (v) menos de um ano depois de ser adquirido e ainda no período da garantia, o motor apresentar problemas nos injetores e nas válvulas de admissão, com uma dimensão que exige que o motor seja desmanchado, por uma limpeza com azoto não ter permitido debelar os problemas.

7.Os danos não patrimoniais sofridos pelo A. com a inquietação e ansiedade pela necessidade de alteração das rotinas familiares com implicação nos seus filhos, bem como a frustração das expectativas que tinha quanto ao bem que adquiriu e que têm como causa o incumprimento contratual do R., interferiram de uma forma significativa com a vida do A. e o seu bem estar, assumindo gravidade suficiente para merecer a tutela do direito.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.–Relatório


Vem RH, intentar a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra LS, formulando a final os seguintes pedidos:

“Condenando-se o Réu à reparação do veículo do Autor, colocando-o conforme o contrato de compra e venda celebrado, numa oficina da marca Mercedes-Benz, e, ainda,
A)Ao pagamento ao Autor da quantia de € 409,00 (quatrocentos e nove euros), correspondente ao arranjo da suspensão do veículo e arredamento do espaço da oficina para proceder ao arranjo,
B)Ao pagamento ao Autor da quantia de € 93,00 (noventa e três euros) correspondente ao custo da orçamentação dos arranjos necessários da viatura pela Mercedes-Benz;
C)Ao pagamento ao Autor da quantia de € 500,00 (quinhentos euros) pelos transtornos causados pelo recurso a empréstimo de automóvel de familiar;
D)Ao pagamento ao Autor da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) pelos danos psicológicos que sofreu, pelo desgaste físico e emocional e pelos problemas causados na sua vida pessoal e familiar
E)Ao pagamento ao Autor da quantia de € 1.000,00 (mil euros) pelas despesas judiciais, administrativas e com advogados;
Aos qual acresce juros vencidos desde a data da citação, à taxa legal em vigor e até ao cumprimento integral do pagamento da indemnização.”

Alega, em síntese, para fundamentar os seus pedidos que comprou ao R. um veículo automóvel que identifica que veio revelar-se padecer de defeitos, estando o R. obrigado a eliminar os defeitos que elenca, bem como a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos na sequência do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda.

Citado o R., o mesmo veio contestar, excecionando a sua ilegitimidade processual passiva, bem como a prescrição do direito que o A. pretende exercer, impugnando os factos alegados e sempre concluindo pela improcedência do pedido.

Por despacho de fls. 52 e seguintes, foi o A. convidado a aperfeiçoar a sua petição inicial, o que fez, tendo o R. exercido o contraditório.

A convite do tribunal o A. exerceu o contraditório quanto à matéria de exceção, tendo o R. suscitado o incidente de intervenção acessória da Mapfre Asistencia, Compania Internacional de Seguros Y Reaseguros, S.A., o que foi admitido.

Citada a interveniente a mesma veio contestar a fls. 99 ss.

Foi proferido despacho saneador que julgou não verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva do R. e improcedente a caducidade dos direitos exercidos pelo A., invocada como prescrição, afirmando no mais a regularidade da instância.

Foi fixado o objeto do processo e os temas da prova.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal.

Foi proferida sentença que julgando parcialmente procedente a ação, decidiu a final o seguinte:
a)- condeno o R. a proceder à reparação dos defeitos referidos a 9. e 19 da decisão de facto, apresentados pelo veículo que vendeu ao A., melhor identificado nos autos;
b)- condeno a R. a pagar ao A., a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 1.000,00 € (mil euros);
c)- condeno ainda o R. a pagar ao A. o montante de 195,00 € (cento e noventa e cinco euros), a título de indemnização pela privação de uso do veículo que vendeu ao A. e melhor identificado nos autos;
d)- Absolvo o R. do demais peticionado.”

Por não se conformar com esta decisão, vem o R. dela interpor recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que o absolva dos pedidos contra ele formulados, apresentando para o efeito as seguintes conclusões que se reproduzem:
a)-O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos por incorreta interpretação e valoração da prova produzida e que conduziu ao entendimento de procedência parcial da ação, e consequente condenação do Apelante;
b)-Entendeu o Tribunal a quo que entre o A. e o R. foi celebrado um contrato de compra e venda de um veículo automóvel e que, para todos os efeitos, a relação contratual existente subsume-se à noção de relação de consumo à qual é aplicável o regime constante do DL n.º 67/2003 de 08.04, sendo a garantia pela conformidade da coisa vendida com o contratado regulada injuntivamente pelo disposto neste diploma;
c)-Concluiu, assim, o Tribunal a quo que o veículo vendido não possuía, no que respeita aos cintos de segurança, entrada de ar, painel de instrumentos, indicador de gasóleo, centralina e injetores e válvulas de admissão, as qualidades e desempenho habituais em bens do mesmo tipo e com as quais qualquer consumidor razoavelmente deve contar, condenando, por isso, o aqui Apelante na reparação desses mesmos defeitos;
d)-Ora, salvo o devido respeito, não pode o Apelante acompanhar esta decisão, desde logo porque, conforme ficou demonstrado em sede de audiência de discussão e julgamento, o Apelado já não possui a viatura em causa, o que torna impraticável a decisão de condenação de reparação dos defeitos apresentados pelo veículo vendido;
e)-Acresce que, se ainda assim fosse possível a efetiva reparação dos mencionados defeitos do veículo – o que apenas por mera hipótese de raciocínio se considera – não pode o Apelante acompanhar o entendimento do Tribunal a quo ao julgar que tais defeitos são desconformidades ao contratado;
f)-Ainda que o Apelado tenha adquirido o veículo com o intuito de ele circular, não podemos esquecer que o mesmo tinha quase 10 anos de idade, era em segunda mão e tinha mais de 140.000Km;
g)-Importa, assim, distinguir os defeitos que decorrem logicamente do desgaste normal da viatura e que não interferem com a sua capacidade de se locomover e de o fazer em segurança, daqueles que acarretam de facto um risco na respetiva circulação em segurança;
h)-Não se entente, pois, qual a base que sustentou a decisão do Tribunal a quo ao considerar que estes defeitos objeto de condenação de reparação retratam desconformidades com o contratado e que são qualidades que qualquer consumidor deve razoavelmente contar quando, atentas as caraterísticas do veículo usado, não podia o Apelante esperar que apresentasse caraterísticas de veículo novo;
i)-Neste sentido, a decisão tida em primeira instância deverá ser revogada e, por sua vez, substituída por outra que considere totalmente improcedente o pedido de reparação dos alegados defeitos do veículo;
j)-E, por consequência, deverá improceder a condenação do Apelante no pagamento ao Apelado, a título de compensação por danos não patrimoniais, da quantia de 1.000,00€ (mil euros), assim como no pagamento do montante de 195,00€ (cento e noventa e cinco euros) pela privação uso do veículo;
k)-Sem conceder, condenou o Tribunal a quo no pagamento da quantia de 1.000,00€ (mil euros) a título de compensação por danos não patrimoniais;
l)-Sustentou esta sua decisão nas alegadas perturbações de humor do Apelado e na frustração das legítimas expetativas de quem adquire uma viatura para com ela circular;
m)-Salvo o devido respeito, estamos perante uma consequência normal e expetável face a uma situação adversa e inesperada, que não pode revestir gravidade suficiente para configurar dano não patrimonial para efeitos de indemnização;
n)-Entende o Apelante que o montante de indemnização por danos não patrimoniais é manifestamente excessivo;
o)-Ora, as situações de desilusão, desgosto, depressão e perturbações de humor alegadas pelo Apelado são manifestamente de pouca gravidade, quando na verdade se desconhecem as respetivas consequências e duração, atendendo que face à prova produzido nos autos não foi possível apurá-las concretamente.
p)-Sendo assim, pecou o Tribunal a quo ao condenar o Apelante quando não se encontram concretamente verificados critérios equitativos para a determinação e aplicação de um quantum de indemnização por danos não patrimoniais;
q)-Termos em que deverá, igualmente, a decisão tida em primeira instância ser revogada e, por sua vez, substituída por outra que não condene o Apelante ao pagamento de qualquer quantia a título de indemnização por danos não patrimoniais.

O A. não veio responder ao recurso.

II.Questões a decidir

São as seguintes as questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC - salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da impugnação da matéria de facto;
- do incumprimento do contrato e obrigação de reparar os defeitos do veículo;
- da indemnização pelos danos não patrimoniais.

III.Fundamentos de Facto

- da impugnação da matéria de facto
Não obstante o Recorrente refira que o recurso que interpõe tem como objeto a matéria de facto e de direito por incorreta interpretação e valoração da prova produzida, verifica-se que a sua discordância sobre a decisão de facto não veio a ser minimamente vertida nas conclusões do recurso.

Como tem vindo a ser pacificamente entendido e decorre do disposto nos art.º 635.º n.º 4 e 639.º do CPC são as conclusões apresentadas pelo Recorrente que delimitam o objeto do recurso e fixam a matéria a submeter à apreciação do tribunal, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 608.º n.º 2 do CPC.

Neste sentido, escreve Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 85: Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que, além disso, não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal.
É nas conclusões que, de forma sintética, o Recorrente deve indicar os fundamentos que, no seu entender, determinam a alteração ou anulação da decisão, devendo estas conter, sendo o recurso sobre matéria de direito, de acordo com o disposto nas várias alíneas do n.º 2 do art.º 639.º, a indicação das normas jurídicas violadas, o diferente sentido como devem ser interpretadas ou a indicação das normas que, no seu entender, deveriam ter sido aplicadas.
Pretendendo impugnar a decisão sobre a matéria de facto, o Recorrente terá de fazer constar das conclusões pelo menos os factos relativamente aos quais se verifica a sua discordância aí pugnando pela sua alteração, exigência estabelecidas pelo legislador no art.º 640.º n.º 1 al. a) do CPC e cuja inobservância determina a rejeição do recurso, conforme aí também previsto.
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões, onde o Recorrente sintetiza as questões a submeter à decisão do tribunal, é apenas sobre estas que o tribunal de recurso se pode pronunciar, a menos, como se referiu, que surjam questões de conhecimento oficioso.
Tem sido questão controvertida e debatida na jurisprudência, a de saber quais os elementos que têm de constar não só da motivação do recurso, mas também das conclusões do mesmo, quando o Recorrente pretenda da impugnar da decisão sobre a matéria de facto, à luz das exigências previstas pelo legislador no art.º 640.º n.º 1 e n.º 2 do CPC.
A jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a firmar-se no sentido de que a exigência prevista no n.º 2 al. a) do art.º 640.º, relativa à indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso quando a prova tenha sido gravada, não tem de ser incluída nas conclusões do recurso, tendo o seu lugar próprio na motivação apresentada, devendo, no entanto, constar das conclusões do recurso pelo menos a exigência prevista na al. a) do n.º 1 deste artigo, ou seja, a indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados. Neste sentido, vd. entre outros o Acórdão do STJ de 29 de setembro de 2015 no Proc. 233/09 in www.dgsi.pt que de forma esclarecedora refere: “Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº 1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).”

Tendo em conta que as conclusões se destinam a delimitar o objeto do recurso, considera-se que pelo menos a indicação dos factos impugnados tidos como incorretamente julgados, deve constar das mesmas, sob pena de não estar definida a matéria a submeter à decisão do tribunal.

No mesmo sentido, de que pelo menos a indicação dos factos considerados incorretamente julgados tem de constar das conclusões do recurso, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 12 de maio de 2016 no Proc. 324/20.9TTALM.L1.S1; o de 19 de fevereiro de 2015, no Proc. 299/05; ou o de 22 de setembro de 2015 no Proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, todos in www.dgsi.pt

A necessidade do Recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, traduz uma opção do legislador que não admite o recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas a possibilidade de revisão de factos individualizados, relativamente aos quais a parte manifesta e concretiza a sua discordância.

Diz-nos Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 126, a propósito da impugnação da matéria de facto: em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.” Acrescenta a pág. 129: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.

O que se verifica no caso, é que o Recorrente nas conclusões do recurso não faz qualquer menção aos factos provados e não provados que considera incorretamente julgados, conforme é imposição da aludida norma, não enunciando nem fazendo corresponder aos pontos da decisão de facto da sentença proferida a sua discordância, não introduzindo assim tal matéria à apreciação do tribunal de recurso.

Por outro lado, também na motivação do recurso que apresenta, o Recorrente embora se refira ao recurso dos pontos 9 e 19 da decisão de facto não cumpre as restantes exigências estabelecidas no art.º 640.º n.º 1 al. b) e c) e n.º 2 al. a) do CPC para quem pretende impugnar a matéria de facto.

O art.º 640.º do CPC impõe um ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto dispondo:
1.Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o Recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2.No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
b)- (…)
3.(…)
Nas suas alegações o Recorrente não identifica nenhum meio de prova em concreto que imponha uma decisão diversa da proferida relativamente à matéria de facto que impugna, nem tão pouco indica a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas ou menciona qualquer excerto de gravação do depoimento de uma qualquer testemunha ouvida, limitando-se a mencionar os pontos 9 e 19 dos factos provados e a dizer, sem outra especificação, que ficou demonstrado em audiência de julgamento que o A. já não dispõe da viatura em causa, não cumprindo de uma forma mínima os requisitos necessários da impugnação da decisão da matéria de facto, assim inviabilizando a sua avaliação por este tribunal.
Ao não fazer a menção concreta, nem no corpo das alegações do recurso nem nas conclusões, dos concretos meios de prova que impõem decisão diversa da proferida, sem indicar também a decisão que pretende que seja proferida quanto aos factos que considera incorretamente julgados, o Recorrente não deu cumprimento à imposição legal prevista na al. b) e c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, o que determina, também por isso, a rejeição do recurso no que à impugnação da matéria de facto respeita, de acordo com o que dispõe essa mesma norma, o que se determina.
*

São os seguintes os factos que resultaram provados:
1.O aqui R. dedica-se profissionalmente ao comércio de veículos automóveis;
2.No âmbito dessa actividade, o R., a 29.04.2015, a solicitação do A. e contra o pagamento do valor de 12.900€, vendeu-lhe e entregou-lhe o veículo automóvel de marca Mercedez Benz B 180 CDi Autotronic, 109 cavalos, 1.992 cm3, diesel, matrícula …-…-…;
3.O veículo automóvel tinha, àquela data, 9 anos e 10 meses e 140.000 km, e já tinha sido propriedade de outrem;
4.Por acordo alcançado na data referida em 2., as aqui partes fixaram em doze meses o prazo dentro do qual o A. poderia exercer os direitos resultantes da falta de conformidade do veículo;
5.O A. entregou ao R., a título de preço, o valor referido em 2.;
6.O R. e a interveniente acessória, que se dedica à actividade seguradora, celebraram acordo pelo qual esta assumiu a obrigação de reembolsar as perdas pecuniárias que o demandado, vendedor de veículos automóveis usados, pudesse ter face a avarias dos bens vendidos, causadas por circunstâncias distintas de acidentes, roubo, furtos, incêndio ou quaisquer influências externas, abrangendo somente as reparações (peças e mão de obra) necessárias à ,... reposição no estado de funcionamento anterior à avaria, não cobrindo danos ou prejuízos indirectos causados por avaria ou funcionamento de qualquer peça, ainda que esteja abrangida pela Garantia;

7.Foi estipulada entre o R. e a interveniente a expressa exclusão das avarias que derivem directa ou indirectamente:
1.- Substituição, reparação ou ajuste de peças ou órgãos ocasionados pelo desgaste devido ao uso normal do veículo, como …: baterias, correias e tensores, filtros de partículas, sistemas de escape (catalisador, silenciadores, panelas e ponteiras de escape), amortecedores, embraiagem (disco, parto e rolamento), controlo e ajuste do eixo dianteiro ou traseiro, pastilhas e calços do travão, discos do travão, etc., assim como todos aqueles que não apareçam na rubrica “Peças Cobertas”;
2.-
3.- Controlos e afinações, incluindo alinhamentos de direcção, calibragem das rodas e regulação da suspensão, carregamento do circuito do ar condicionado (excepto quando a perda seja originada por uma peça coberta), filtro do habitáculo, filtro do ar, filtro do óleo (juntas vedantes e retentores), os lubrificantes, os aditivos de lubrificantes e outros aditivos;
4.-
5.-
8.Nos termos do acordo referido em 6., a interveniente obrigou-se a pagar ao R. ou ao proprietário do veículo as despesas efectuadas em cumprimento de prevenir ou limitar as consequências do sinistro;
9.A 27.06.2015, o A. comunicou ao R. que os cintos de segurança traseiros do … não recolhiam quando eram soltas por terem as molas frouxas, que a entrada do ar à frente do condutor estava partida e não funcionava e que o painel de instrumentos ficava sem luz ou com uma luz muito ténue quando exposta ao sol, o que não permitia ver a respectiva informação, e que o indicador do nível de gasóleo informava haver mais combustível do que o que efectivamente existia;
10.Nessa data, os cintos de segurança traseiros do … não recolhiam quando eram soltas por terem as molas frouxas, o indicador do nível de gasóleo informava haver mais combustível do que o que efectivamente existia e o painel dos instrumentos exibia as características referidas em 9.;
11.A 02.11.2015, o A. deixou o … para que este procedesse à reparação do referido em 9.;
12.O R. não procedeu à reparação dos cintos nem à luz do painel de instrumentos;
13.Após a intervenção referida em 11., a entrada do ar e o indicador do nível de gasóleo continuaram a apresentar os mesmos problemas referidos em 9.;
14.O … esteve a ser reparado durante 5 dias, não tendo o R. disponibilizado viatura de substituição ao A.;
15.Em Novembro de 2015, o A. informou o R. da existência de um barulho no motor que resultava de um problema deste, nomeadamente, de um erro da centralina;
16.Sendo que o R. disse que o A. deveria accionar o seguro referido em 6. e deu instruções para o efeito;
17.Nessa sequência, o A. contactou a interveniente que deu indicação da oficina onde se deveria dirigir, o que o A. fez, negando a interveniente assumir o risco por o defeito corresponder a um erro da centralina que não estava abrangido pela garantia;
18.Na sequência de prévia combinação entre as partes, a 20.02.2016, o A. deixou o … nas instalações do R. para identificação e conserto dos problemas que tivesse;
19.Durante a semana seguinte à data referida em 18., o A. foi informado pelo R. que o motor do … estava com problemas nos injectores e nas válvulas de admissão, que tinha procedido a uma limpeza com azoto sendo, contudo, necessário desmanchar o motor para solucionar o problema;
20.E que tal comportaria um custo entre os 350,00€ os 1.200,00 €, que o R. não suportaria;
21.O … esteve nas instalações do R. de 20.02.2016 a 27.02.2016;
22.O A. apercebeu-se, em Abril 2016, de um barulho no lado esquerdo da direcção e de problemas com a bateria;
23.Razão pela qual o A. levou o … à Mercedes Benz para orçamentar o custo das reparações necessárias, o que importou um custo de 93,00€;
24.O barulho referia-se a um problema da suspensão que, por colocar em causa a segurança do veículo, o A. mandou reparar;
25.Semelhante reparação correspondeu à substituição de dois amortecedores, dois apoios e dois batentes de amortecedores e duas rótulas, que, acrescido do arrendamento do espaço para realização da reparação, implicou um custo de 409,00€
26.O A. reside em Alcochete, e utilizava o … nas deslocações para e em trabalho, esta entre Setúbal, Lisboa e Montijo;
27.Era o A. quem, utilizando o …, ia colocar e recolher os filhos da escola que frequentam em Setúbal, o que não pôde fazer enquanto aquele esteve na posse do R. nos termos referidos em 11., 14. e 21.;
28.O que gerou ansiedade e inquietação não só no A. como na demais família, por ter aumentado a dificuldade em cumprir horários escolares e alteração da dinâmica familiar.

IV.Razões de Direito

- do incumprimento do contrato e obrigação de reparar os defeitos do veículo
Alega o Recorrente, em primeiro lugar, que a reparação dos defeitos é impraticável por ter ficado demonstrado em audiência de julgamento que o A. já não possui o veículo em causa e em segundo lugar, que estão em causa defeitos que decorrem da idade e desgaste normal do veículo vendido, não podendo o A. esperar que o veículo que adquiriu tivesse as características de um veículo novo.

A sentença recorrida depois de ter considerado que o contrato de compra e venda em questão está sujeito ao regime do Decreto Lei 67/2003 de 8 de abril, concluiu que o mesmo não dispunha das qualidades e desempenho habituais em bens do mesmo tipo e com as quais qualquer consumidor razoavelmente pode contar, condenando o R. a proceder à eliminação de alguns dos defeitos reclamados e considerando outros decorrentes do desgaste normal de um veículo usado.

No que se refere à primeira questão suscitada pelo Recorrente, a propósito da sua condenação na reparação de defeitos do veículo, na alegação de que o A. já não possui o veículo em causa, dizendo agora o R. que essa circunstância torna “impraticável a decisão de condenação de reparação dos defeitos apresentados pelo veículo vendido”, salienta-se desde já a sua irrelevância para efeitos de decisão do presente recurso.

É que, por um lado, não está dado como adquirido nos autos que o A. não possui o veículo em causa e por outro lado, nem o R. nem ninguém veio suscitar tal questão no processo, nomeadamente em audiência de julgamento onde o mesmo alega que ela surgiu, não tendo o tribunal de 1ª instância tomado qualquer posição sobre esta matéria. Não há, por isso, nada que avaliar no presente recurso a esse respeito, já que o recurso, como é sabido visa o reexame da decisão proferida e não a tomada de decisão sobre novas questões anteriormente não suscitadas no processo, a menos que se tratem de questões de conhecimento oficioso.

Além do mais, não deixa de referir-se que, de acordo com o disposto no art.º 4.º n.º 6 do Decreto Lei 67/2003, os direitos conferidos por este artigo ao consumidor transmitem-se a terceiro adquirente do bem, pelo que também por essa razão não pode dizer-se que a decisão proferida é impraticável.

Importa então saber se podemos dizer que os defeitos do veículo que o R. foi condenado a reparar são defeitos que decorrem do seu desgaste normal, por ser um veículo adquirido em segunda mão, com 10 anos e mais de 140.000 km e com os quais qualquer consumidor podia razoavelmente contar.

O Recorrente não contesta a sentença quanto à integração do contrato de compra e venda celebrado entre as partes na previsão do regime legal do Decreto Lei 67/2003 de 8 de abril, com as garantias acrescidas que este diploma confere ao consumidor nos contratos a ele sujeitos, apenas se insurgindo contra a mesma por entender que estão em causa problemas com os quais o A. podia razoavelmente contar.

No caso importa ter em conta o regime legal que introduz algumas especificidades relativamente ao regime geral do contrato de compra venda previsto no Código Civil, que resulta da Lei de Defesa do Consumidor – Lei 24/96 de 31 de julho e do DL 67/2003 de 8 de abril, diplomas que, na lógica de proteção ou defesa do consumidor, instituem um regime mais favorável para o comprador consumidor do que aquele que resulta do Código Civil para a compra e venda de coisas defeituosas.

Como se diz no Acórdão do TRP de 12 de outubro de 2017 no proc. n.º 392/13.1TVPRT.P1, in www.dgsi.pt que subscrevemos como adjunta: “O Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva nº 1999/44/CE, de 25.05.1999, aprovada pelo Parlamento e Conselho Europeu, veio definir um regime especial para a venda e outros contratos de consumo, visando assegurar a proteção dos interesses dos consumidores nesses contratos, reconhecendo a fragilidade da sua posição contratual em confronto com os operadores económicos com quem negoceia.”

É a circunstância de se estar perante uma relação de consumo que pode justificar o recurso a este regime legal, que na implementação de princípios de proteção do consumidor vem estabelecer um regime mais favorável ao comprador no que se refere ao exercício dos seus direitos em caso de defeito do bem adquirido, do que aquele que é previsto no Código Civil na regulação dos seus direitos e responsabilidade do vendedor.

Nos art.º 913.º ss. do C.Civil vem o legislador estabelecer o regime geral da venda de coisas defeituosas.

O art.º 913.º começa por estipular: “1.Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes. 2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.”

De forma clara ensina-nos a este propósito Luís Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Contratos em Especial, Vol. III, pág. 120: “A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato. Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.”

Da conjugação dos art.º 913.º n.º 1, 914.º e 915.º do C.Civil, resulta que o comprador do bem defeituoso tem o direito de exigir do vendedor, em alternativa, a reparação da coisa, a anulação do contrato ou a redução do preço. Esta obrigação, no entanto, é excluída se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou falta de qualidade de que a coisa padece.

Acontece, como se referiu, que beneficiando o adquirente de coisa defeituosa da proteção que lhe é conferida pela Lei de Defesa do Consumidor, bem como do regime de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, instituído pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, alterado e republicado pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de maio, é a este regime que lhe é mais favorável que temos de nos socorrer.

O legislador vem aqui consagrar um regime especial no que se refere ao exercício dos direitos por parte do comprador consumidor, que lhe é mais favorável, por lhe conferir um leque de opções que ficam ao seu critério exercer e que têm apenas como limite o abuso de direito.

O art.º 2.º n.º 2 do mencionado Decreto Lei 67/2003 estabelece:

“2.Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a)- Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b)- Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c)- Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d)- Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.”

O art.º 4.º deste mesmo diploma sob a epígrafe “direitos do consumidor”, dispõe:
1- Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.
2-Tratando-se de um bem imóvel, a reparação ou a substituição devem ser realizadas dentro de um prazo razoável, tendo em conta a natureza do defeito, e tratando-se de um bem móvel, num prazo máximo de 30 dias, em ambos os casos sem grave inconveniente para o consumidor.
3- A expressão «sem encargos», utilizada no n.º 1, reporta-se às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material.
4- Os direitos de resolução do contrato e de redução do preço podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador.
5- O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
6- Os direitos atribuídos pelo presente artigo transmitem-se a terceiro adquirente do bem.”

O Acórdão do STJ de 17 de outubro de 2019 no proc. 1066/14.1T8PDL.L1.S1 in www.dgsi.pt refere a respeito desta norma: “No DL 67/2003, de 8-04, os direitos conferidos ao consumidor são independentes uns dos outros, podendo exercê-los livremente, com respeito pelos princípios da boa-fé e dos bons costumes e da finalidade económico-social do direito escolhido (que se traduz, essencialmente, na satisfação do interesse do respectivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos), sendo as particularidades do caso concreto que enquadrarão as possibilidades de exercício dos diferentes direitos colocados ao dispor do adquirente consumidor – cf. art. 4º, n.ºs 1 e 5 do DL 67/2003, de 8-04.”

O legislador através do n.º 5 deste art.º 4.º, institui um regime especial no caso de falta de conformidade de bem com o contrato, que dá ao consumidor a possibilidade de exercer qualquer um dos direitos referidos nos números anteriores, de acordo com a solução que considere para si mais vantajosa, tendo apenas como limite o abuso de direito e que não tem como pressuposto necessário o conhecimento prévio do defeito por parte do vendedor.

Na avaliação deste regime diz-nos o Acórdão do TRG de 17 de janeiro de 2019 no proc. 201/15.7T8BAO.G1 in www.dgsi.pt : “Assim sendo, para que possa exercer os direitos que lhe assistem, compete ao comprador/consumidor alegar e provar o defeito da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato, na terminologia do referido Dec. Lei, e que esse defeito existia à data da entrega. (…)  Trata-se de uma verdadeira presunção específica que estabelece a responsabilidade do vendedor pela falta de conformidade do bem com o contrato, a qual, de acordo com o regime imperativo imposto pelo art. 10º do Dec. Lei n.º 67/2003, não poderá ser, em qualquer circunstância, afastada pelas partes. Uma vez provado o facto que dê origem à presunção de desconformidade, terá o vendedor o ónus de provar o facto concreto, posterior à entrega, que gerou a falta de conformidade, designadamente a prova do mau uso ou do uso incorreto do bem pelo consumidor. O mesmo é dizer que bastará ao consumidor alegar e provar os factos base da presunção e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta pelo Dec. Lei n.º 67/2003 (no caso, tratando-se de um bem móvel, 2 anos); já a 1ª ré (vendedora), para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador (designadamente por falta de diligência ou violação de deveres de cuidado), a terceiro ou devida a caso fortuito.”

Na sentença recorrida, não obstante ter-se considerado que os problemas detetados com a suspensão e amortecedores do veículo são inerentes a um desgaste normal de um veículo nas condições daquele que foi adquirido pelo A., entendeu-se que assim não é relativamente a outros problemas detetados, tendo o R. sido condenado a proceder à reparação dos defeitos do veículo descriminados nos pontos 9 e 19 da decisão de facto.

Os factos provados foram integrados na previsão do art.º 2.º n.º 2 al. d) do DL 67/2003 referindo na fundamentação da sentença o seguinte: “Ora, pese embora adquirido se tenha quedado que o objecto do contrato de compra venda era constituído por um veículo com quase 10 anos de idade, em segunda mão e com 140.000Km, certo é que quando se adquire uma viatura, ainda que antiga e no estado de usado, com o intuito de com ela se circular – dado ser esse o fim ou o destino habitual dado aos veículos automóveis e ao qual concretamente o A. ia destinar o por si adquirido -, é razoável esperar que a mesma esteja em condições de o fazer, desde logo mecanicamente e bem assim no que respeita aos componentes adjacentes que se destinem a informar e garantir a segurança da circulação, quer por se revelarem dispositivos activos para esse efeito, quer para controlo da actividade de condução e autonomia da viatura; é que estas são as características habituais dos automóveis e com as quais qualquer consumidor pode razoavelmente contar, atendendo à sua natureza – cfr. alínea d) artigo 2.º Dec. Lei n.º 67/2003. De resto, um vendedor profissional que se disponha a vender um veículo nas circunstâncias do dos autos, conhecedor como deve ser do regime legal que enforma a sua actividade comercial, nomeadamente da irrenunciabilidade à garantia de conformidade, legal e imperativamente estabelecida nos termos acima já mencionados, inelutavelmente assume os riscos de verificação de desconformidades que bulam com a possibilidade de circulação em segurança do veículo, não se podendo escudar no facto de ter informado o comprador da idade da viatura para se eximir à responsabilidade pelos defeitos que esta patenteie e que a impeçam de servir os propósitos para que foi adquirida e que coincidem com aqueles a que normalmente são destinados os bens da mesma natureza. Naturalmente que não responderá por quaisquer defeitos que não bulam directamente com a capacidade da viatura se locomover e de o fazer em segurança, v.g., o funcionamento de ar condicionado, estado e resiliência dos estofos e pintura, elevadores de janelas e demais acessórios, ou o desgaste de peças próprio de veículos em segunda mão e com utilização intensa, tais como baterias e amortecedores, já que não se pode razoavelmente esperar que uma viatura com praticamente dez anos e no estado de usada apresente as características de resistência desses materiais e consequente conforto patenteadas por uma com menos idade e/ou uso – o que, de resto, se reflecte no valor de venda da mesma, por decréscimo acentuado daquele. Donde, a garantia que o R. prestou por imperativo legal na situação concreta obviamente que não abrangia o que atrás se referiu – in casu, releva o pedido referentes aos amortecedores e que se sustenta na factualidade adquirida a 22. a 25. da decisão da matéria de facto. No entanto, não pode deixar de abranger tudo o que implique com viabilidade de circulação do veículo, segurança e controlo da navegação - na situação em julgamento, o que concretamente adquirido está a 9., 10., 12., 13., 15. e 19. do julgamento de facto, dado que todos os componentes em apreço bulem com a segurança e controlo da actividade e o fim a que normalmente se destinam os automóveis, a saber, a circulação, deslocação espacial por eles proporcionada – e que corresponde no caso aos propósito e fim prosseguidos pelo A. aquando da sua aquisição. (…) Conclui-se, então, por não possuir a dos autos, no que respeita aos cintos de segurança, entrada de ar, painel de instrumentos, indicador de gasóleo, centralina e injectores e válvulas de admissão, as qualidades e desempenho habituais em bens do mesmo tipo e com as quais qualquer consumidor razoavelmente deve contar.”

É certo que quando se avalia as qualidades e o desempenho habituais de um bem, com os quais o consumidor pode razoavelmente contar, por comparação com bens do mesmo tipo como refere o art.º 2.º n.º 2 d) do Decreto Lei 67/2003, na transposição da previsão desta norma para o caso concreto, não pode deixar de ter-se em conta as características específicas do bem adquirido, ou seja, que estamos perante um veículo automóvel usado, em segunda mão, com cerca de 10 anos e de 140.000 km.

Naturalmente que, atenta a natureza deste veículo, o comprador não pode esperar com razoabilidade que o mesmo se apresente como se fosse novo, designadamente ao nível do conforto que lhe é dado com a sua utilização, ou até na sua durabilidade ou tempo expetável de funcionamento regular, até porque adquire um bem usado por um valor substancialmente diferente de um novo. Contudo, já não poderá deixar de esperar que o mesmo funcione como o meio de transporte que é, e que disponha das caraterísticas que permitem fazê-lo em segurança, na medida em que é essa a utilidade esperada por um consumidor comum que adquire um bem desta natureza.

Não pode deixar de considerar-se anómala e inesperada para um comprador comum, a circunstância de um veículo automóvel usado e com as características daquele que aqui está em discussão, ser vendido: (i)-com cintos de segurança que não recolhem e têm as molas frouxas, o que significa que não servem o seu propósito de contenção do passageiro em caso de travagem ou acidente; (ii)- não tenha em funcionamento o dispositivo de entrada do ar à frente do condutor por estar partido; (iii)-o painel de instrumentos não permitir ver a respetiva informação quando exposto ao sol, informação essencial para a circulação de qualquer veículo em segurança; (iv)-o indicador do nível de gasóleo estar avariado, informando que há mais combustível do que o que efetivamente existe; (v)-menos de um ano depois de ser adquirido e ainda no período da garantia, o motor apresentar problemas nos injetores e nas válvulas de admissão, com uma dimensão que exige que o motor seja desmanchado, por uma limpeza com azoto não ter permitido debelar os problemas.

Esta situação integra-se manifestamente na previsão da al. d) do n.º 2 art.º 2.º do já mencionado Decreto Lei 67/2003 que presume que o bem não é conforme ao contrato quando não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e com as quais o consumidor pode razoavelmente contar, atendendo à natureza do bem, o que, em face do disposto no art.º 4.º n.º 1, n.º 3 e n.º 5 deste diploma, dá ao A. o direito à resolução daqueles problemas sem encargos para si, do que decorre a respetiva responsabilidade do R. vendedor.

Esta obrigação, uma vez que estamos no âmbito de um contrato de compra e venda de bem de consumo, prescinde da circunstância do vendedor ter efetivo conhecimento do vício ou desconformidade.

Como se viu, o legislador faz decorrer do incumprimento contratual positivo, no caso revelado através da venda de um bem que não dispunha das qualidades contratadas, diferentes direitos para o credor, que podem ser exercidos cumulativamente, atenta a sua finalidade diversa: por um lado a resolução dos defeitos; por outro lado, o direito do comprador ser indemnizado pelos prejuízos sofridos. A resolução dos defeitos visa repor o equilíbrio contratual com a equivalência das prestações, diferente é a indemnização pelos prejuízos sofridos com o ressarcimento dos danos causados por aqueles defeitos.

No seu recurso o Recorrente alega apenas não ser devido o pagamento de qualquer indemnização, designadamente pela privação do uso do veículo e pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A., por entender não ter existido incumprimento do contrato da sua parte, na sustentação de que as características apresentadas pelo veículo eram aquelas com que o A. podia razoavelmente contar. Improcedendo esta questão, como se referiu, carece de fundamento a sua pretensão de revogação da decisão nesta parte.

- da indemnização pelos danos não patrimoniais
Alega ainda o Recorrente que os prejuízos invocados pelo A. a título de danos não patrimoniais não revestem a gravidade suficiente para merecer a tutela do direito para efeitos indemnizatórios e que em todo o caso sempre é manifestamente excessivo o valor fixado.
A sentença sob recurso condenou o R. a pagar ao A. a quantia de € 1.000,00 a título de danos não patrimoniais correspondentes a perturbações de humor, impossibilidade de ocorrer às necessidades da família e frustração das legítimas expectativas que o A. tinha com a aquisição do veículo em questão.
Relativamente aos danos não patrimoniais, importa ter em conta o art.º 496.º do C.Civil que, no seu n.º 1 prevê a indemnização dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela o direito.

Como nos ensina Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, pág. 428: A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada); por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma indemnização de ordem pecuniária ao lesado.

Não é por isso qualquer dano não patrimonial que é indemnizável. Exige-se que o sofrimento da vítima seja grave e intenso, que resultará da imposição de uma alteração significativa na sua própria rotina de vida ou no seu bem estar.

A indemnização destes danos deve ser fixada com recurso a critérios de equidade conforme dispõe o n.º 4 do mesmo artigo, atendendo-se às circunstâncias referidas no art.º 494.º C.Civil, já que se trata mais de dar ao lesado uma compensação, uma vez que a reparação da situação anterior não é, na prática, possível, na medida em que o dano não é suscetível de equivalente.

Por esta razão, a indemnização é fixada equitativamente pelo tribunal- art.º 496.º n.º 4 C.Civil, tendo em conta o grau de culpa do responsável, a sua situação económica, bem como a do lesado, e outras circunstâncias que devam ser ponderadas- art.º 494.º C.Civil.

No que respeita a concretos danos não patrimoniais sofridos pelo A. em resultado do cumprimento defeituoso do contrato pelo R., resultou provado que o A. deixou o veículo para ser reparado por duas vezes e durante alguns dias, num total de 13 dias, sem  que lhe tenha sido disponibilizada viatura de substituição; que residindo o A. em Alcochete utilizava o AG nas deslocações para e em trabalho entre Setúbal, Lisboa e Montijo, bem como para colocar e recolher os filhos da escola que frequentam em Setúbal, o que não pôde fazer enquanto o veículo esteve na posse do R. o que gerou ansiedade e inquietação não só no A. como na demais família, por ter aumentado a dificuldade em cumprir horários escolares e alteração da dinâmica familiar.

Por outro lado, o A. viu frustradas as suas expectativas com o veículo que adquiriu, atentos os diversos problemas que o mesmo veio a revelar, que se revestem de alguma gravidade e com os quais não podia razoavelmente contar.

Neste contexto, afigura-se que os danos não patrimoniais sofridos pelo A. com a inquietação e ansiedade pela necessidade de alteração das rotinas familiares com implicação nos seus filhos durante vários dias em que o veículo permaneceu para reparação, bem como a frustração das expectativas que o mesmo tinha quanto ao bem que adquiriu e que têm como causa o incumprimento contratual do R., não se trataram de um mero incómodo ou contrariedade sem relevância, antes interferiram de uma forma significativa com a vida do A. e com o seu bem estar, assumindo gravidade suficiente para merecer a tutela do direito.

A propósito da fixação do valor indemnizatório a título de danos não patrimoniais, refere-se no recente Acórdão do TRP de 24 de janeiro de 2022 no proc. 271/20.6T8MLD.P1 que confirmou uma decisão da 1ª instância de atribuir €200,00 ao lesado a título de compensação por danos não patrimoniais numa situação de incumprimento de contrato de compra e venda de veículo, in www.dgsi.pt : “O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser calculado, sempre, “segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização”, “aos padrões da indemnização geralmente adotados na jurisprudência, as flutuações de valor da moeda, etc.”. Também no Acórdão do STJ de 13/7/2017, Processo 3214/11.4TBVIS.C1.S1, se refere Como ensina o Sr. Prof. Antunes Varela, e como vem sendo seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais, o juízo de equidade requer do julgador que tome «em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida», sem esquecer que sobredita “indemnização” tem natureza mista, já que visa não só compensar o dano sofrido, mas também reprovar, de algum modo, a conduta lesiva. Com efeito, ante a imaterialidade dos interesses em jogo, a indemnização dos danos não patrimoniais não pode ter por escopo a sua reparação económica. Visa sim, por um lado, compensar o lesado pelo dano sofrido, em termos de lhes proporcionar uma quantia pecuniária que permita satisfazer interesses que apaguem ou atenuem o sofrimento causado pela lesão; e, por outro lado, servir para sancionar a conduta do agente. Todavia, no critério a adotar, não se devem perder de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º do CC. Para tal efeito, são relevantes, além do mais: a natureza, multiplicidade e diversidade das lesões sofridas.”

Visto e isto e à luz dos critérios previstos no art.º 494.º do C.Civil, no que respeita ao valor da compensação atribuída pela sentença pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A., considera-se que a mesma é excessiva, dando-se nesta parte razão à Recorrente, levando em conta que as alterações da sua rotina familiar se verificaram por dois períodos com uma duração total de 13 dias, tempo em que o veículo permaneceu para reparação, não havendo um grande prolongamento da situação no tempo, bem como a circunstância de estarmos perante um veículo usado, relativamente ao qual a expetativa do comprador relativamente aos problemas que o mesmo pode vir a sofrer não pode ser a mesma do que se estivesse em causa um veículo novo.

Nestes termos, resta concluir pela parcial procedência do recurso, alterando-se a sentença recorrida apenas no quantum indemnizatório atribuído como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, reduzindo-o para a quantia de € 400,00 que se condena o R. a pagar ao A. a título de danos não patrimoniais pelo incumprimento do contrato, confirmando-se a sentença proferida no demais decidido.

V.Decisão:

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo R., alterando-se a sentença proferida no quantitativo que o condena a pagar ao A. a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, que se fixa em € 400,00 (quatrocentos euros) confirmando-se a mesma no demais decidido.
Custas por ambas as partes na proporção do decaimento.
Notifique.
*


Lisboa, 15 de setembro de 2022


Inês Moura - (relatora)
Laurinda Gemas - (1ª adjunta)
Arlindo Crua - (2º adjunto)
(assinado eletronicamente)