Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7136/19.2T8LRS.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: GINÁSIO
QUEDA
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Quando um facto representa, ao mesmo tempo, uma violação a um contrato e um acto ilícito extracontratual, a doutrina e a jurisprudência dominantes têm entendido que o lesado pode valer-se, à sua escolha, de qualquer um dos regimes - teoria do cúmulo.

2.Em ambos os casos a responsabilidade assenta no facto ilícito, na culpa, no dano e no nexo de causalidade entre o evento e o prejuízo.

3.Há, no entanto, importantes diferenças de regime entre os referidos tipos de responsabilidade, designadamente no que ao prazo de prescrição diz respeito, que naquele primeiro caso é de 20 anos.

4.Se, em lado nenhum da petição inicial, o autor revela a mínima intenção de seguir pelo carril da responsabilidade obrigacional, não pode, em sede de recurso, querer aproveitar-se do prazo prescricional reservado para diferente carril.

5.ão-pouco lhe aproveita o prazo do artigo 498.º, 3, CC, porquanto não se admite a possibilidade de o facto, para efeito de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos contados desde a data da sua verificação.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


A instaurou acção declarativa, com processo comum, contra B e a interveniente acessória C, pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia de €21.645,13, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, quantia esta acrescida dos juros de mora, contados à taxa legal em vigor, desde da data de citação até efectivo e integral pagamento;
Alega que, no dia 15/07/2016, durante a prática de actividade física, nas instalações da R., sob orientação das instrutoras habituais e colaboradoras desta, sofreu uma queda que lhe causou lesões graves no ombro e no membro superior, por “omissão dolosa de assistência por parte da R.
Em virtude do ocorrido a A. ficou com dores físicas e com uma incapacidade que a limita nas tarefas profissionais e do dia-a-dia, sofreu danos morais, bem como perdas salariais, decorrentes da não renovação do seu contrato de trabalho.
A R. e a interveniente apresentaram Contestações.
A R. invoca a excepção de prescrição do direito da A. - tendo em conta que o alegado facto ilícito ocorreu a 15/07/2016, a presente acção foi instaurada a 11/07/2019 e foi citada a 13/08/2019 – bem como a ineptidão da petição inicial.
No mais, impugna os factos alegados na petição inicial, por desconhecimento ou inveracidade.
Por seu turno, a interveniente acessória invoca a excepção de exclusão do contrato de seguro, invocando que o contrato celebrado com a R. não abrange a factualidade descrita na petição inicial, a qual assenta em responsabilidade civil por factos ilícitos.
Ademais, impugna os factos alegados na petição inicial, por desconhecimento ou inveracidade.
Foi proferido saneador sentença que julgou procedente a excepção peremptória de prescrição invocada e, em consequência, declarou extinto o direito pretendido fazer valer pela Autora nestes autos, assim absolvendo a Ré e a interveniente acessória do pedido.

Inconformada, interpôs a autora competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
a)-Veio o Tribunal a quo proferir despacho saneador-sentença nos presentes autos que julgou procedente a excepção peremptória de prescrição, absolvendo a Ré e a interveniente acessória do pedido formulado pela A. nos presentes autos.
b)-Fundamentou o Tribunal a quo a sua decisão por entender que tendo o acidente, relativamente ao qual a Apelante reclama pagamento de indemnização, ocorrido em 15/07/2016 e tendo a Ré sido citada para a presente acção em data não anterior a 16/07/2019, decorreram mais do que os três anos previsto no art. 498º, nº 1 do Código Civil, sem que tenha sido requerida a citação urgente da Apelada.
c)-Posição com a qual a Apelante não se conforma.
d)-Veio a Apelada, em sede de contestação, invocar excepção peremptória de prescrição, nos termos do disposto no art. 498º do CC, por ter decorrido mais de três anos, desde a data do acidente até à data em que citada para a presente acção, na medida em que, fundamenta a Apelante o seu pedido na responsabilidade civil por facto ilícito.
e)-Estabelece o art. 498º, nº 3 do CC que se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabelece um prazo de prescrição maior, é este que se aplica.
f)-Os factos descritos em sede de petição inicial e imputados à Apelada, designadamente, nos art. 1º, 2º, 3º e 24º da Petição Inicial, são passíveis de configurar um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art. 148º do Código Penal, sendo que este crime tem, por força do disposto no art. 118º, nº1 alínea c) do Código Penal, um prazo de prescrição de 5 anos.
g)-O direito da Apelante não se encontra prescrito, uma vez que, lhe é aplicável um prazo de prescrição de 5 anos, ou seja, apenas prescreveria em 15/07/2021, pelo que, tendo a Apelada sido citada em 13/08/2019, aquele prazo ainda não se havia esgotado.
h)-Não se poderá olvidar que atenta a descrição dos factos constante da petição inicial, conforme artigos acima indicados, designadamente o facto de a Apelante ter celebrado um contrato para a prática de actividade desportiva nas instalações da Apelada e sob a orientação dos funcionários da mesma, poderá configurar uma responsabilidade civil da Apelada, sendo que, neste âmbito o prazo de prescrição é o estabelecido no art. 309º do C.C., o qual não se encontra igualmente esgotado.
i)-Por conseguinte, deverá o presente recurso ter provimento e a sentença de que se recorre ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a excepção peremptória de prescrição e ordene o normal prosseguimento dos autos
Nestes termos, e face ao supra exposto deverão V.Exas. proceder à substituição da decisão do douto tribunal “a quo” substituindo-a por outra que se coadune com a pretensão ora exposta, fazendo assim a tão Costumada JUSTIÇA’’.

B apresentou contra-alegações em que pugna pela improcedência do recurso, e subsidiariamente pela procedência da excepção por si invocada em sede de contestação, uma vez que é patente que o contrato de seguro celebrado entre a Ré e a interveniente não cobre o ajuizado sinistro.
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Constituem questões decidendas saber:
i)-se é improcedente a excepção de prescrição, quer ex artigo 498.º CC conjugado com o artigo 148.º do CP, quer ex artigo 309 CC;
ii)-subsidiariamente, se procede a excepção invocada pela interveniente (não cobertura do contrato seguro).
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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
1)-No dia 15/07/2016, a A. sofreu uma queda.
2)-A presente acção foi instaurada no dia 11/07/2019.
3)-A R. foi citada para a presente causa em data não anterior a 16/07/2019.
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Da prescrição.
Ninguém põe em dúvida que o prazo de prescrição de três anos do n.º 1 do artigo 498.º do CC já se consumou. Discute-se sim se se pode aplicar ao caso o prazo de cinco anos que decorre da aplicação do n.º 3 do referido artigo conjugado com o artigo 149 CP ou o do artigo 309.º CC (vinte anos).
Quanto à primeira questão o primeiro grau pronunciou-se nos seguintes termos:
«Acresce que a argumentação expendida pela A. relativamente à aplicação do prazo de prescrição de 5 anos (cfr. art. 498.º n.º 3 do C.C. e arts. 118.º n.º1 al. c). e 148.º ambos do Código Penal) claudica desde logo, porque sendo a R. uma sociedade (pessoa colectiva) era necessário que esta pudesse ser responsabilizada criminalmente pelo tipo de ilícito que a A. invoca estar em causa – ofensa à integridade física por negligência (p.e.p. pelo art. 148.º do Código Penal).
Ora, o art. 11.º n.º 1 do Código Penal estabelece a regra de que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Consagra-se no n.º 2 do referido normativo a excepção a tal regime, estipulando-se que as pessoas colectivas e entidades equiparadas, com excepção do Estado, de pessoas colectivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.º-B, 152.º-A, 152.º-B, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 176.º, 217.º a 222.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285,º 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 376.º, quando cometidos: a) Em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.
Sendo que, no n.º 4 do citado art. 11.º explicita-se que “entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade”.
Acresce que, a imputação jurídico-penal dos entes colectivos assenta numa culpa erigida através do facto e da culpa das pessoas físicas e a responsabilidade da pessoa colectiva só existe quando a pessoa física (agente singular que detenha uma posição de liderança, ou um agente subordinado em virtude da violação de deveres de vigilância ou controlo) tenha agido (ou omitido o comportamento devido) em nome e no interesse colectivo.
Por isso, a existência de um nexo de imputação do acto ilícito típico (ou facto de conexão) a um elemento da sociedade com posição de liderança na organização constitui um pressuposto essencial para imputação do crime à pessoa colectiva e depende da "identificação funcional" do líder autor do facto ocorrido.
Mais, no que concerne ao alargamento do prazo prescricional no caso de o ilícito constituir crime, a jurisprudência tem sublinhado que tal possibilidade é concedida directamente ao lesado em congruência com a consagração do princípio da adesão do pedido cível ao processo criminal: se, por regra, será no processo-crime que o lesado terá de deduzir o seu pedido de indemnização cível, então terá todo o sentido que o prazo de prescrição referente ao procedimento criminal abranja aquele pedido cível.
De acordo com ANTUNES VARELA (in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, página 628.), “desde que se admite a possibilidade de o facto, para efeito de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos transcorridos sobre a data da sua verificação, nada justifica que análoga possibilidade se não ofereça à apreciação da responsabilidade civil.”
Do exposto resulta cabal que a R. não poderia ser responsabilizada criminalmente pelo tipo legal de crime invocado pela A. – ofensa à integridade física por negligência – pois o mesmo não se encontra previsto no elenco taxativo do art. 11.º n.º 2 do C.P.
Acresce que, a A. não alega que o “facto ilícito” tenha sido provocado por um qualquer elemento da R., que ocupe uma posição de liderança da respectiva organização.
Em suma, não se admite a possibilidade de o facto, para efeito de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos contados desde a data da sua verificação».
Afigura-se-nos que esta argumentação é irrepreensível, nada mais sendo necessário acrescentar. De resto, a recorrente insiste na argumentação que já viu derrotada no primeiro grau.
No que tange ao prazo de 20 anos diremos o seguinte:
Estamos perante uma acção de responsabilidade civil. Esta responsabilidade pode ser, como é consabido, contratual ou delitual.

Quando um facto representa, ao mesmo tempo, uma violação a um contrato e um acto ilícito extracontratual, a doutrina e a jurisprudência dominantes têm entendido que o lesado pode valer-se, à sua escolha, de qualquer um dos  regimes-teoria do cúmulo (sobre toda esta problemática, por todos cfr. Fernando A. Ferreira Pinto, O concurso entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, www.revistadedireitocomercial.com.2020-11-20).
Em ambos os casos a responsabilidade assenta no facto ilícito, na culpa, no dano e no nexo de causalidade entre o evento e o prejuízo (artigos 798.º ss e 483 ss CC). Há, no entanto, importantes diferenças de regime entre os referidos tipos de responsabilidade, designadamente no que refere ao ónus da prova (na responsabilidade contratual é ao devedor que cabe provar que o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, enquanto na responsabilidade delitual cabe à vitima demonstrar que houve culpa do agente – artigos 799.º, n.º 1 e 487.º, n.º 1, CC), ao regime aplicável em caso de pluralidade de devedores (artigos 513.º e 497.º, n.º 1, CC), à responsabilidade dos auxiliares do devedor (artigos 800.º, n.º 1, e 500.º CC), à possibilidade de graduação da indemnização (artigo 494.º CC) e ao prazo de prescrição (artigos 498.º, n.ºs. 1 e 2, e 309.º CC).
Do exame da petição inicial resulta que em lado algum a autora se refere a responsabilidade contratual.

Alega a autora:
1.º-
No dia 15/07/2016, cerca das 19h:30m, A. encontrava-se nas instalações da R, onde era frequentadora habitual para prática de actividade física.
2.º-
No decorrer de uma aula, sob orientação das instrutoras habituais, colaboradoras da R., a A. sofreu um acidente que lhe causou lesões graves no ombro e no membro superior.
3.º-
O acidente consistiu na queda da A. de uma altura equivalente a sua altura, sobre o seu ombro esquerdo, com abdução, que lhe causou fracturas, (Artropatia Traumática na Região do Ombro).
23.º-
Impende sobre a R. a responsabilidade danos decorrentes do acidente ora em apreço.
24.º-
Tendo o sinistro ocorrido nas instalações da R., competia a esta zelar e garantir a segurança e comodidade dos frequentadores, promovendo todas as acções necessárias com esse fim.
26.º-
Contudo, dado existir um contrato de seguro válido e eficaz celebrado entre a R. e companhia de seguros Seguradoras Unidas, S.A., a R. transferiu para esta a responsabilidade pela reparação dos danos ocorridos nas suas instalações, ao abrigo do mencionado contrato.
44.º-
Os danos não patrimoniais ou morais sofridos pela A. merecem a tutela do Direito (art. 496.º n.º1 do Código Civil).
46.º-
Viu a A., repercutida na sua esfera patrimonial e por manifesta falta zelo e omissão dolosa de assistência por parte da Ré perda significativa do seu património, o que não teria acontecido se esta tivesse adoptado um comportamento adequado e com cuidado a que estava obrigada, causando assim um dano, indemnizável nos termos legais.
47.º-
Verificam-se, in casu, todos os pressupostos legais exigidos para a efectivação da responsabilidade civil das RR., mormente, facto ilícito na forma de omissão, culpa, dano e nexo de causalidade.
48.º-
Pelo que, estava na posse das R. todos os elementos essenciais e necessários para que fosse efectuado a regularização do sinistro.
49.º-
Deste modo, e sem necessidade de maiores considerações, termos em que a R. se encontrava constituída na obrigação de se responsabilizar pelos danos, em caso de sinistro.
50.º-
Nestes termos, incorre a R. na obrigação de indemnizar a A., relativamente aos danos sofridos em consequência do sinistro ora em apreço.

DO DIREITO:
52.º-
De acordo com o princípio geral vertido no nº.1 do art. 483º do Código Civil, impende sobre todo aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito alheio a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa mesma lesão.
53.º-
Encontram-se preenchidos os requisitos da responsabilidade civil por facto ilícito, incorrendo a Ré no dever de indemnizar (art. 483.º n.º1 do Código Civil).
54.º-
A indemnização deve reconstituir “a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento” (art. 562.º do Código Civil).
55.º-
“A indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível” (art. 566.º n.º 1 do Código Civil).
56.º-
Os danos não patrimoniais ou morais sofridos pelo A. merecem a tutela do Direito (art. 496.º n.º1 do Código Civil.
57.º-
Face ao exposto compete a R. Indemnizar a A. pelos danos não patrimoniais sofridos nos termos do preceituado no art. 566º do C.C. e nº 1 do art. 564º, ambos do C.C.
58.º-
Tem ainda a A. o direito a receber, nos termos do n.º1 do artigo 559.º, do n.º1 do artigo 806.º, ambos do Código Civil e do n.º 3 do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, juros de mora, vencidos, contabilizados no dobro da taxa legal, desde a data do sinistro até integral e efectivo pagamento».
Pois bem: parece resultar claro que, como dissemos, em lado nenhum, o autor revela a mínima intenção de seguir pelo carril da responsabilidade obrigacional.
Não pode, pois, vir agora querer aproveitar-se do prazo prescricional reservado para diferente carril.
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Improcedendo o recurso, não cabe apreciar a pretensão da seguradora, formulada em termos subsidiários.
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Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Lisboa,15.07.2021


Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura