Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
223/19.9T8VFC.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CONFLITO DE DIREITOS
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Não se impõe a tolerância para com, pelo menos, dois cães, que, desde a data em que foram instalados no canil do réu, a menos de 20 m do prédio dos autores, ladram diariamente, durante o dia e a noite, de forma persistente e ruidosa, privando os autores de descanso, sossego e tranquilidade, nomeadamente entre as 23h e as 4h privando-os de sono.
II – E os autores têm direito à indemnização dos danos respectivos: de 2000€ para cada um, por uma situação que durou perto de 2 anos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A e mulher, B, intentaram uma acção comum contra C, pedindo que este seja condenado:
a) a remover o canil e respectivos animais do local onde actualmente se encontram de modo a que os animais não se aproximem a uma distância de pelo menos 100 metros do prédio dos autores.
b) [em relação a este foi declarada verificada a excepção dilatória do caso julgado e absolvido o réu do pedido, pelo que não importa referi-lo, nem, subsequentemente, aos factos que se lhe referem]
c) a pagar aos autores 15.000€ a título de danos provocados à integridade física dos autores;
d) na sanção pecuniária compulsória de 500€ por cada dia de atraso na remoção do canil e dos animais;
e) no pagamento de 250€ equivalente àquela que foi paga pelos autores pela rehospedagem dos hóspedes no seu alojamento local;
f) no pagamento da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos comerciais futuros que venham a ser causados aos autores pela recusa ou afastamento do alojamento local em causa.
Alegaram para tanto, em síntese, que: são proprietários de e residentes num prédio contíguo a um prédio de que o réu é dono e onde este tem a sua residência e um canil com vários cães junto ao muro que delimita ambos os prédios. Os cães ladram diariamente, dia e noite, de forma persistente ruidosa, privando os autores de descanso e sossego sobretudo entre as 23h e as 4horas, o que só começou a suceder depois de os cães serem para ali trazidos. A autora passou a usar tampões nos ouvidos e a saúde de ambos os autores tem vindo a gravar-se. Os autores exploram um edifício onde prestam serviço de alojamento local e têm recebido várias reclamações levando hospedes a abandonar o alojamento e a hospedar-se em hotel a expensas dos autores. O autor sofreu ataque cardíaco em 1999 e foi operado ao coração encontrando-se medicado para combater a pressão alta e a autora sofre de hiperacusia, situação essa agravada pelo ruído diário.
O réu contestou, impugnando alguns dos factos; diz que [tem] no canil - situado a cerca de 50 metros do apartamento dos autores - dois cães. Todos os vizinhos possuem cães, os quais de facto ladram, pois os gatos dos autores habitualmente saem do prédio destes e invadem os prédios vizinhos; conclui pela absolvição do pedido [o réu deduziu reconvenção, que não foi admitida, pelo que não interessa estar a referi-la].
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença condenando o réu:
1. A remover os animais de raça canina que se encontrem na sua propriedade, de modo a que não se aproximem a uma distância de pelo menos 100 metros do prédio dos autores; 2. A pagar aos autores 8000€ a título de indemnização por danos não patrimoniais provocados aos autores; 3. Na sanção pecuniária compulsória de 250€ por cada dia de atraso na remoção dos animais referidas em 1, a entregar aos autores; 4. No pagamento, aos autores, de 250€ a título de indemnização por danos patrimoniais. E absolvendo-o do demais.
O réu recorre desta sentença, impugnando a decisão de uma série de pontos de facto, arguindo pelo meio algumas nulidades e recorrendo da decisão sobre matéria de direito. 
Os autores contra-alegaram, levantam a questão prévia de falta de cumprimento pelo réu de um ónus de alegação e defendem a improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: a questão prévia; as nulidades invocadas; a alteração da decisão da matéria de facto; a improcedência dos pedidos.
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A questão prévia:
Dizem os autores que o réu não indicou que decisão deve, no seu entender, ser proferida relativamente a cada um dos factos que impugna, desrespeitando por isso o ónus consagrado no art. 640/1-c do CPC.
E acrescentam: “A jurisprudência é profícua no sentido de que não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento.
Em consequência, impõe-se aplicar a cominação prevista no corpo do referido preceito: rejeitar o recurso, na parte relativa à impugnação da matéria de facto.”
Decidindo:
Como se verá abaixo, o réu indica claramente que, relativamente aos pontos de facto que impugna, a decisão devia ter sido de não provado. Pelo que não se verifica o vício apontado pelos autores.
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Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão das restantes questões a decidir [os pontos 12 e 14 foram alterados com rasuras e sublinhados de modo a reflectir o que foi decidido na impugnação da decisão da matéria de facto]:
1\ Os autores são donos e legítimos proprietários do prédio misto sito em X, n.º 0, freguesia da Z, concelho de Z, descrito na Conservatória do Registo Predial de V sob o número 0000/19970312 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 0000 (parte urbana) e sob o artigo 00 da secção AT (parte rústica), conforme teor das certidões juntas aos autos e que se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.
2\ Os autores residem naquele prédio, pois ali fazem a sua vida, nele dormindo, recebendo os amigos, comendo e tudo o mais que diz respeito à vida de um casal.
3\ O réu é dono e proprietário do prédio misto sito em X, n.º 0, mesma freguesia e concelho e descrito na mesma Conservatória sob o número 0000/19841108 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 0000 (parte urbana) e sob o artigo 00 da secção AT (parte rústica), conforme teor das certidões juntas aos autos e que se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.
4\ O prédio dos autores e o prédio do réu são contíguos.
5\ No seu prédio, o réu tem o edifício da sua residência, outro edifício de destinação que não foi possível concretamente apurar (garagem ou armazém) e um canil, com vários cães, desde altura não concretamente apurada, mas situada no ano de 2018.
6\ Desde Março de 2020 que o canil está sem qualquer animal.
7\ O canil está construído a não mais de 20 m da delimitação dos dois prédios, sendo que essa é feita através de “abrigos” que impedem a visualização dos referidos cães, e noutra parte por muro de alvenaria.
8\ Os cães (em numero que não foi possível concretamente apurar, mas nunca inferior a dois), desde a data em que foram ali instalados, ladram diariamente, durante o dia e a noite, de forma persistente e ruidosa, privando os autores de descanso, sossego e tranquilidade, nomeadamente entre as 23h e as 4h, privando-os de sono.
9\ Antes da altura em que os cães foram trazidos para o canil, os autores sempre dormiram sossegadamente.
10\ A autora, por vezes, usava tampões nos ouvidos em virtude do latir dos cães que é audível não só no exterior da habitação dos autores, mas também no interior da mesma.
11\ A saúde dos autores, em consequência do ladrar dos cães tem vindo a deteriorar-se, quer pela falta de sono quer pelos sentimentos depressivos, tristeza e angustia que sentem perante a situação em causa.
12\ No prédio dos autores existe um espaço de utilização independente destinado a alojamento local, onde os autores A, Unipessoal, Lda, presta serviços de alojamento temporário, a turistas, mediante remuneração.
13\ O canil situa-se a distância não concretamente apurada, mas não superior a 20m do referido apartamento.
14\ Por força dos latidos dos cães durante o dia e noite, os autores têm recebido várias reclamações pelo barulho e desassossego provocado pelos cães, o que levou a que, por duas vezes, turistas decidissem abandonar o alojamento e hospedar-se num hotel, a expensas dos autores de A, Unipessoal, Lda, que pagou para o efeito a quantia de 98 e 152€ respectivamente.
15\ O autor sofreu um ataque cardíaco em 1999 tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica ao coração e desde essa altura é medicado para combater a pressão alta.
16\ A autora sofre de hiperacusia, doença que ocorre em indivíduos que têm uma maior sensibilidade ao ruído, razão pela qual o ladrar dos cães lhe provoca dores e desconforto de cada vez que ocorre.
17\ Os autores firmaram residência no local dos autos, por terem sido aconselhados a residirem em local calmo e sossegado em virtude da doença que a autora padece, ocasionado por trombose e que lhe determinou internamento hospitalar e a reforma.
18\ Devido ao latir dos animais, em data não concretamente apurada mas posterior a 2017, a autora regressou à Alemanha para descansar e recompor-se da exaustão em que se encontrava, ali permanecendo algumas semanas.
19\ O réu teve conhecimento por diversas vezes, das queixas que os autores apresentavam e tinham em consequência do latir dos seus animais.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
O tribunal escreveu 9 páginas e um pouco de fundamentação da decisão da matéria de facto, descrevendo as declarações, depoimentos e documentos e fazendo algumas observações críticas ao que vai descrevendo, sem separar a fundamentação da decisão em relação a cada ponto de facto.
Pelo que se passa a transcrever toda essa fundamentação, de modo a tê-la em conta e depois poder resolver as questões que o réu levanta a propósito.
Assim, diz a sentença:
“Do depoimento [ou melhor: declarações - TRL] de parte dos autores, resultou o limite temporal do início da estadia dos cães na propriedade dos Autores (desde 2018).
Relataram as distâncias em causa da sua propriedade e do canil bem como da sua residência e da do alojamento local. A persistência dos latidos dos animais durante o dia e a noite com agravamento durante o ano de 2019, referiram as queixas dos seus hóspedes e os pagamentos de hotéis que providenciaram, descrevendo ainda o comportamento dos dois gatos, sua propriedade.
Descreveram ainda com acerto e minucia de forma credível e exaustiva, as doenças de que padecem ou padeceram que os torna mais frágeis de saúde, designadamente o ataque cardíaco e intervenção cirúrgica e a medicação dali decorrente bem como a trombose sofrida pela autora no ouvido direito e que lhe determinou a doença denominada hiperacusia que lhe acarretou a situação de reforma e a recomendação médica de se estabelecer num local calmo. Referiu ainda que a solução não passa por tapar os ouvidos, o que na sua perspectiva agrava a sua situação.
Quanto a esta questão e socorrendo-nos da investigação pela internet, nomeadamente Wikipédia, resultam certas as informações dadas pela autora.
Na verdade, a hiperacusia é uma condição caracterizada por uma maior sensibilidade a certas frequências e volumes de som. É, pois, um aumento da acuidade auditiva. Uma pessoa com hiperacusia grave tem dificuldade em tolerar sons quotidianos que podem parecer desagradáveis ou mesmo serem experimentados por ela de maneira dolorosa, mas que são suportados pelas demais pessoas como normais. O tratamento da hiperacusia não é o silêncio, nem o uso de protector auricular, pois que com o silêncio ou um ruído mais baixo aumenta-se a intensidade de captação de sons externos, gerando incomodo ainda maior.
O tratamento envolve a dessensibilização com o uso de aparelhos ou instrumentos que emitem um som contínuo de pouca intensidade, abaixo do nível que provoca incómodo ao paciente o que ajudará o paciente a readaptar-se aos sons provenientes da natureza, de rádios, televisões, outros aparelhos domésticos, etc.
Assim para além do desconforto e dor que a autora relatou e exemplificou (por exemplo, o som de um talher a cair sobre a mesa) e que o tribunal não põe em causa, antes pelo contrário deu como provados aqueles efeitos dos ruídos na autora, não foi feita qualquer prova que em virtude da exposição a sons como os do latir dos cães, agrave a doença em si, daí que não se tivesse dado como provado esse facto, não resultando também provado que tivessem recorrido a serviços médicos, sendo certo que a prova dos mesmos não teria sido complicada ou difícil.
Quanto aos demais factos relatados pelos autores, os mesmos foram corroboradas pelas testemunhas trazidas a julgamento pelos autores, que na sua generalidade mereceram a credibilidade do tribunal, pela forma como demonstraram efectivo conhecimento do que afirmavam, dada a profusão de pormenores e descrições, todas elas coincidentes entre si.
Assim, HP, com dupla nacionalidade portuguesa e alemã, referiu que 3 a 4 vezes por ano frequenta a casa dos autores, desde os últimos 15/16 anos, em jantares e perante o barulho que os cães faziam ao latir constantemente e de forma muito ruidosa os questionou se não podiam fazer nada para obstar a isso. Perguntado se o ladrar era ininterrupto, referiu que não pode jurar que, se esteve lá cinco horas seguidas, os animais ladraram as cinco horas, mas que o barulho é sempre presente, sim. Também viu a autora de tampões os ouvidos e sabe que ela se reformou por questões de doença nos ouvidos.
Quanto à situação com os hóspedes, nada sabe directamente, embora os autores lhe tenham relatado a situação (da forma como o fizeram em audiência de julgamento).
Referiu que o autor se mostra muito preocupado com o estado de saúde físico e psíquico da sua esposa, sendo esse o aspecto com que o vê preocupado e não exactamente só com a sua própria saúde.
Não se recorda de ter ficado em casa dos autores depois das 23h e demonstrou saber que os autores têm dois gatos que vê pela casa.
PA, empregada domestica dos autores desde há 13 anos, ali trabalha de 15 em 15 dias, salvo quando têm hóspedes no alojamento local situação em vai também fazer limpeza ao apartamento antes e depois das estadias dos turistas, estimando que entre Abril e Setembro ali se desloque cerca de duas vezes por semana.
Descreveu a localização dos cães como sendo encostada à vedação da casa dos autores e referiu que viu a autora com auscultadores a trabalhar no jardim da sua habitação devido ao ladrar persistente e ruidoso, nas suas palavras, dos animais, que descreveu ainda como sendo um barulho incomodativo. Embora não saiba falar outro idioma que não o português, percebe que os hóspedes do alojamento local se sentem incomodados porque lhe fazem saber por sinais que deve manter fechadas todas as janelas do apartamento demonstrando-lhe gestualmente que a razão é o ruido dos animais a ladrar.
Apercebe-se de como a autora se sente deprimida, irritada, nervosa notando que esses sentimentos se foram acentuando quer nela, quer no autor, em virtude do comportamento dos cães do réu.
Quanto ao número de gatos referiu que eram dois e costumavam estar dentro de casa. O seu horário de trabalho situa-se entre as 8 e as 17h e quanto ao motivo pelo qual latem da forma descrita, julga que tem a ver com os veículos pesados que frequentemente entram na propriedade do réu ilustrando que cada vez que isso acontece ficam a ladrar, aí sim, ininterruptamente, durante meia hora.
A testemunha AV, engenheiro de electrotecnia, conhece os autores desde há 7 anos e estima que frequenta a casa deles 5 a 6 vezes por ano, para jantares, lanches, aniversários e o réu foi seu empreiteiro há 10 anos. Julga que o ladrar que ouve se deve a seis ou sete animais pela sua intensidade “alto e bom som” e frisou que durante as suas visitas a casa dos autores, surgiam sempre as conversas a propósito do ladrar dos animais e do incómodo que era para todos, exactamente por causa do barulho que se registava sempre.
Descreveu de que lado vem o barulho, pois que não consegue ver os cães por haver abrigos de permeio. Referiu que aconteceu refeições terem-se prolongado até à uma ou duas horas do dia seguinte e relatou que numa dessas festas (segundo julga recordar, comemorativa do aniversário da autora), os hospedes que ali se encontravam alojados no apartamento de alojamento local dos autores, se queixaram e não quiseram continuar ali hospedados devido aos barulhos dos cães a ladrar, razão pela qual o autor lhe pediu um lugar para eles na sua (da testemunha) quinta de alojamento local. Aconteceu que não tinha lugares disponíveis e por isso, o autor levou os turistas até Ponta Delgada para um hotel por eles se recusarem a continuar a pernoitar ali.
Recorda-se ainda que a autora foi para a Alemanha devido ao estado de extenuação em que se encontrava por causa da situação dos cães.
Costuma ver os gatos dos autores dentro de casa, referindo ainda que as casas dos autores e do réu são isoladas das restantes moradias da freguesia e relatou que a ultima vez que foi a casa dos autores (Agosto de 2020), não ouviu qualquer cão a ladrar.
Reiterou que os animais, durante as suas estadias ladravam permanentemente, eram mais do que um, mas não consegue precisar exactamente quantos.
LM, educadora, desde 2014 que conhece os autores e frequenta a casa destes cerca de 3 a 4 vezes por ano, com preponderância durante o Verão, para almoçar. Recorda-se de lá jantar uma vez, ouviu sempre os cães a ladrar de forma muito ruidosa, seriam vários, mas não conseguiu vê-los embora não tenha dúvidas face à direcção do barulho, que estão na propriedade do réu e classificou o ladrar como de “sofrimento”. Relatou ainda que os autores lhe telefonaram em data que não pode precisar, percebeu por ter ouvido que a autora estava a chorar pediram ajuda e, entretanto, através do telemóvel ouvia os cães a ladrarem continuamente.
Também tem conhecimento que a autora foi para a Alemanha por causa da situação em causa, sente os autores muito tristes, recorrendo aos amigos para que os ajudem a debelar a situação. Já viu a autora com tampões nos ouvidos, desesperada, a tremer e com as mãos na cabeça pelo ruído provocado pelos cães e quando esta foi uma temporada para a Alemanha o autor esteve em sua casa triste a chorar, pela partida da sua esposa e das razões pelas quais o teve de fazer (o barulho dos cães a ladrar).
Relatou ainda que mesmo dentro de casa com as janelas e portas fechadas se ouvia o latir dos animais e recorda que uns hóspedes dos autores abandonaram o apartamento em que estavam alojados na propriedade dos autores e sabe disso por ter sido chamada ao local pelos autores nessa altura e ter constatado esse facto.
Ouvido o réu empresário de construção civil, começou por referir que seguiu todos os códigos de conduta, mas que, no entanto, em Março de 2020, retirou os dois cães de caça que mantinha soltos, cada um no seu canil, que se situa, segundo ele, a cerca de 30 metros da propriedade dos autores delimitada com abrigos de altura superior a 3m, sem que no entanto, explicitasse as razões pelas quais o fez.
Mais referiu que em Setembro de 2019 pediu uma vistoria a todas as suas obras incluindo o canil e tudo se encontrava em ordem. É certo que reside no local e por vezes ouvia os cães a ladrar ininterruptamente, mas quando ali se deslocava para entender a razão dos latidos, percebia que os mesmos se deviam à passagem pelo local de vários gatos e cães. Começou o réu por atribuir aos autores a propriedade e responsabilidade pelo facto de recolherem gatos vadios (mas instado acabou por afirmar desconhecer a quem pertenceriam esses animais que via vaguear perto do canil) e por essa razão, disse, abordou o autor mas este referiu-lhe que os gatos eram selvagens. Embora sem o dizer expressamente insinuou que o latir dos animais provinha de outros que não os seus, referindo que “toda a gente tem cães” e negou que alguma vez tivesse sido chamado à atenção pelos autores, contornando assim o facto de ter tido conhecimento do desagrado deles pela situação em causa agora nesta acção, através das queixas que aqueles apresentavam e de que teve conhecimento, pelo menos através da GNR que se deslocava à sua residência por mor delas, por inúmeras vezes como ficou patente do depoimento do guarda da GNR. Por seu turno, embora não o tivesse referido, não custa perceber como a decisão de ter retirado os animais daquele local a partir de Março de 2020, teve o seu fundamento no conhecimento que tinha das queixas dos Autores e do facto de estes terem interposto a presente acção e do receio das consequências da mesma.
Quanto à matéria em decisão, para além da animosidade evidente de há anos (desde 2008 segundo afirmou, “nunca mais teve descanso”) para com os autores, nada mais revelou.
JT, mecânico, amigo do réu, costumava frequentar a casa deste 2 a 3 vezes por semana, referindo que os cães só ladravam quando chegava e se calavam logo de seguida, adiantando ainda que viu por ali alguns gatos o que tornava os cães agitados e que das vezes [que] esteve no local entre as 4 e as 5h, estava tudo calmo. Questionado sobre os motivos que terão levado o réu a retirar os cães do local se estes não incomodavam, respondeu que o réu lhe disse que o fazia porque os vizinhos se queixavam.
JS, camponês e vizinho do réu, começando por calcular a distância dessa vizinhança em cerca de 50m e acabando por admitir que a sua casa se situa a mais de 100 metros da residência daquele, referiu que os cães são dois, de caça e que nem sequer ladram…, só ouvindo latidos durante a noite mas provenientes de outros cães que não os do réu… Revelou-se esta testemunha, completamente falha de credibilidade, alias à distância que depois se veio a considerar encontrar-se, com paredes altas de premeio entre o canil e o local onde a sua casa se situa, seria quase impensável que ouvisse fosse o que fosse da casa do réu…
RA, disse ser vizinho do réu levantar-se pelas 5h todos os dias, conhece a delimitação entre as propriedades do réu e dos autores constituída por muro e abrigos, não sabe quantos cães o réu possui e acabou por referir quando se tentou concretizar a distância da vizinhança a que aludiu, que “não é bom em distâncias” …
DM, reformado, trabalha uma terra que se situará ao lado da propriedade do réu, onde se desloca entre as 8 e as 10 da manha de 4.ª a 6.ª feira e deu a saber que no seu entender é normal que os cães ladrem…
JR, pedreiro, trabalha fora da freguesia entre as 8 e as 17h e refere que “não ouve nada…” referindo-se ao ladrar dos cães, mas não se conseguiu precisar a distância a que a vizinhança que diz ter com o réu se contém.
JM, elemento da GNR, referiu que foi à propriedade do réu uma a duas vezes por semana e durante o Verão de 2019 com mais intensidade, a pedido dos autores e o réu dizia-lhe que estes se queixavam dos latidos.
JE, motorista, embora referisse que era vizinho do réu e nada ouvia do que aqui se discute, conseguiu apurar-se que para além de uma ribeira se situar a meio das duas propriedades, a casa da testemunha se situa a cerca de, pelo menos, 200m de distância da do réu…
ME, ajudante de cozinha, vive a mais de 150m de distância da do réu, e de nada sabe, tão-pouco se este tem ou não cães e se por ali cirandam gatos.
Assim a generalidade das testemunhas arroladas pelo réu, quiseram nitidamente favorecer a versão oposta à dos autores e pretenderam ter conhecimento de factos que ou distorceram ou de todo não sabem. Ficou-me a acentuada sensação, pela forma como os depoimentos foram prestados, que o facto de os autores serem estrangeiros, alemães e pouco conviviais com as pessoas da freguesia, que é pequena, rural, afastada da parte urbana da ilha e circular nas relações sociais, os tornou pouco queridos, estranhos, optando os ali residentes por defenderem os interesses do réu, pessoa bem conceituada, natural do lugar, conhecida pela sua profissão de empreiteiro de construção civil, empregador da zona e que a final, se comporta como a maioria das pessoas das freguesias, que têm cães, de caça, que os mantêm confinados em canis sem a atenção normalmente concedida a animais domésticos, meios de obter caça, durante o período dela ou seja, não concebendo sequer que a forma de expressão dos animais possa importunar alguém a ponto de fazerem intervir as autoridades e de tal comportamento dos animais lesar de forma não despicienda os direitos fundamentais de cada cidadão.
Para além disso, como se disse, em termos práticos dadas as distâncias, o isolamento das duas propriedades da restante freguesia a contiguidade dos prédios entre si, não poderiam aquelas pessoas saber com acerto dos factos sobre os quais eram inquiridas.
Assim, se por um lado se assistiu a esse desacerto, por outro e tendo em conta o que supra se referiu, aos seus depoimentos acresceu uma falta de imparcialidade que foi não só evidente, como notória.
Considerou ainda o tribunal, o teor dos documentos de fls. 8v a 13v, 14v e 15.
Uma ressalva especial se impõe da nossa parte, quanto ao documento de fl. 14, no que concerne à sua inserção nos autos e ao valor do mesmo até porque o réu o invocou em alegações como sendo demonstrativo da situação de má-fé em que se encontrariam os autores a litigar nestes autos, pedindo (ainda que só em alegações) a sua condenação nesses termos.
Ora, a lei não impõe que os documentos a integrar nos autos estejam escritos na nossa língua, pois que o artigo 134/1 do Código de Processo Civil, refere que quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira «que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte»
Da literalidade do preceito, resulta que a lei não enuncia qualquer critério pelo qual seja possível aferir dessa necessidade, pelo que se conclui que é ao julgador que compete o poder discricionário de decidir se demanda ou não tradução.
Já Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, II, Coimbra Editora, 1945, p. 41, escrevia a esse propósito: «[ficava], pois, ao prudente arbítrio do juiz mandar ou não fazer a tradução», ainda que a parte a requeresse, o juiz podia indeferi-la se a entendesse dispensável –.
Compreendo assim que se eu entender cabalmente o teor do documento, nomeadamente por ele se encontrar redigido numa das línguas que não só eu compreendo, como é uma das que são normalmente compreendidas, no caso a língua inglesa, sendo ele para além disso, escrito sem tecnicidade, numa linguagem simples, como tudo é o caso, não vejo qualquer razão atendível para que tivesse solicitado aos autores a junção da sua tradução.
Não estou sozinha neste entendimento das coisas, bastando para isso a consulta dos acórdãos do TRL de 10/05/2007, proc. 1612/2007-6; do TRP de 26/06/2010, proc. 73/1988.P1; e do TRC de 29/01/2013, proc. 2116/10.6TJCBR.C1 (e até no Código do Registo Comercial e do Código do Registo Predial, a esse propósito se dispõe que não carecem de tradução documentos redigidos em língua inglesa, francesa ou espanhola, se o funcionário competente dominar essa língua (artigos 32/2 do CRCom e 43/3 do CRPred).
Por todo o exposto, considerei o teor do documento de fl. 14, redigido em língua inglesa que devido aos meus conhecimentos daquela língua, traduzi e interpretei sem qualquer dificuldade, na íntegra e me serviu de arrimo à prova positiva por parte dos autores, sobre as queixas dos turistas hospedados na sua propriedade, às razões delas e ao posterior alojamento no hotel e pagamento pelo autor das estadias (a que se referem as facturas de fl. 14v - a da subscritora de fl. 14 - e fl. 15), conjuntamente com o depoimento das testemunhas arroladas pelos autores sobre essa matéria.
Posto isto,
O réu diz o seguinte contra a decisão de dar como provado o que consta de 7:
O facto em causa por importar elementos objectivos – edificação dum concreto espaço, dimensionamento e distância – exige um conjunto de elementos técnicos que não se compaginam com a simples prova testemunhal. E, a fundamentação da matéria provada - e não provada - deve ser feita com clareza, objectividade e discriminadamente de modo a que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo tribunal.
Ora, a este propósito temos que junto ao processo não existe qualquer documento legal que comprove que o canil está construído a não mais de 20 metros da delimitação dos dois prédios nem mesmo foi requerida qualquer perícia a fim de fazer prova dos fundamentos da acção (artigos 362 do Código Civil e 423 e 436 do CPC) baseando-se, apenas, a decisão recorrida nas declarações do autor.
Pelo que, por este concreto facto se encontrar afastado do poder cognitivo das testemunhas exigindo especial fundamentação deverá ser arredado dos factos dados por assentes.
Os autores respondem que:
A única questão contra a qual o réu se insurge é a distância a que está construído o muro.
Resulta das declarações de parte do autor, a que corresponde o ficheiro 2020/09/25 – 10h40m13s, o seguinte:
[00:05:13] Intérprete: The dog cage is how far from your house?
[00:05:18] Autor: About 20 m.
[00:05:19] Intérprete: 20 m.
Por outro lado, resulta das declarações do réu, a que corresponde o ficheiro 2020/09/18 – 15h06m07s, o seguinte:
[00:05:10] Ad. do réu: Dois. E diga-me uma coisa: esse canil fica mais ou menos a quantos metros da residência dos Autores?
[00:05:19] Réu: A legislação…
[00:05:20] Juiz: Não. Agora deixe lá a legislação.
[00:05:21] Ad. do réu: Fica a quantos metros? Deixe a legislação.
[00:05:23] Réu: 30 [imperceptível].
[00:05:26] Ad. do réu: OK. E na sua propriedade existem barreiras divisórias, o que é que existe lá?
[00:05:35] Réu: Tem abrigos que é eu próprio os criei. Tem abrigos [imperceptível] nos limites da propriedade. E tem um outro à frente um bocadinho que eu próprio é que o criei desde que comprei a propriedade. Já tem para aí uns 3m de altura. Funciona como barreira natural, segundo aquilo que os técnicos me disseram quando foram lá a propósito da vistoria.
Donde que a matéria de facto constante do ponto 7 foi correctamente dada como provado, devendo ser mantida.
Decidindo:
Tendo em consideração aquilo que a doutrina diz, com base no art. 607/4 do CPC, sobre a forma como a fundamentação da decisão da matéria de facto se deve fazer, a dos autos não é correcta.
Veja-se:
Miguel Teixeira de Sousa, embora para a redacção do CPC anterior à reforma de 2013, dizia: “A fundamentação da apreciação da prova deve ser realizada separadamente para cada facto […] Se o facto for considerado provado, o tribunal deve começar por referir os meios de prova que formaram a sua convicção, indicar seguidamente aqueles que se mostraram inconclusivos e terminar com a referência àqueles que, apesar de conduzirem a uma distinta decisão, não foram suficientes para infirmar a sua convicção (Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 2ª edição, 1997, pág. 348; mais ou menos no mesmo sentido, veja-se Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 653/655; e Remédio Marques, Acção declarativa à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2007, págs. 409 a 411).
E Lebre de Freitas diz (já depois da reforma de 2013): “Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes (…) e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.ºs 4, 1ª parte, e 5) (…). O juiz deve, pois, por exemplo, explicitar porque acreditou em determinada testemunha e não em outra, porque se afastou das conclusões dum relatório pericial para se aproximar das de outro, por que razão o depoimento de uma testemunha com qualificações técnicas o convenceu mais do que um relatório pericial divergente ou porque é que, não obstante vários depoimentos produ­zidos sobre certo facto, não se convenceu de que ele se tivesse realmente veri­ficado. A sua análise crítica constitui um complemento fundamental da gra­vação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importân­cia do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento (…). Por outro lado, a necessidade de fundamentação séria leva, indirectamente, o juiz a melhor con­frontar os vários elementos de prova, não se limitando à sua intuição ou às impressões mais fortes recebidas na audiência decorrida e considerando, um a um, todos os factores probatórios submetidos à sua livre apreciação, incluindo, nos casos indicados na lei (supra, n.º 19.2), os relativos à conduta processual da parte” (A acção declarativa,… 3ª edição, 2013, Coimbra Editora, págs. 315/316).
A verdade, entretanto, é que a forma de dar cumprimento a estas exigências pode ser variada dependendo de: como os factos foram alegados na petição inicial ou na contestação; como foram impugnados; como foi produzida a prova; bem como da importância relativa dos elementos de prova; da multiplicidade dos factos relevantes; da existência de unidade de sentido quanto a grupos de factos, etc.
Daí que, por exemplo, Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, especialmente págs. 659 a 662, não obstante o que acima foi transcrito, lembrem que: “A imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável.”
Mas, por mais formas que possa adoptar, a fundamentação deve dar a conhecer, de forma suficientemente clara, o que é que serviu para a decisão da matéria de cada ponto de facto, ou, pelo menos, em relação a conjuntos de pontos que se possam reconduzir a uma unidade de sentido, de tema ou de assunto, sob pena de poder não se vir a saber porque é que o tribunal decidiu dar como provado certo ponto impugnado pelas partes. E essa decisão deve fazer uma apreciação crítica dos elementos de prova utilizados para esse ponto, sendo que esta referência crítica não é o mesmo que um resumo completo da prova pessoal prestada indiscriminadamente para todos os factos objecto de prova.
No caso dos autos, já se disse, estas regras não foram observadas, sendo que só com diversas leituras da fundamentação de facto é possível perceber quais foram os elementos de prova que serviram para a convicção do tribunal sobre cada ponto.
Basta reparar que, por exemplo em relação ao que consta do ponto 7 dos factos provados, existem mais dois elementos de prova referidos na fundamentação da decisão da matéria de facto que podem ser utilizados para a questão da distância da casa dos autos para o canil – ou seja o que está aqui em discussão, no essencial -, para além daqueles que os autores, ao defenderem a decisão recorrida, referem (sendo que as contra-alegações, nesta matéria, partem do que foi dito pela fundamentação recorrida).
Mas, apesar dessa dificuldade, a verdade é que nesta impugnação e nas que se seguem se vê que o réu, tal como este tribunal de recurso, conseguiu perceber – e podia conseguir perceber - a fundamentação da decisão de facto relativamente a cada ponto impugnado e atacá-la com propriedade, pelo que não há consequências a tirar da incorrecta forma de fundamentação.
Posto isto,
Não tem qualquer fundamento legal a afirmação do réu de que “o facto em causa por importar elementos objectivos – edificação dum concreto espaço, dimensionamento e distância – exige um conjunto de elementos técnicos que não se compaginam com a simples prova testemunhal.” As normas legais que o réu invoca não dizem, nem de longe, nada de parecido, sendo evidente, pelo contrário, que uma testemunha pode convencer, com o seu depoimento, de que “um canil está construído a não mais de 20 m da delimitação dos dois prédios, sendo que essa é feita através de ‘abrigos’ que impedem a visualização dos referidos cães, e noutra parte por muro de alvenaria.”
Por outro lado, não é verdade que o que consta de 7 se baseie, apenas, nas declarações do autor, pois que o que a decisão recorrida refere das declarações do réu aponta no mesmo sentido (30m, dito pelo próprio réu, está significativamente próximo de 20m dados como provados), tal como aponta no mesmo sentido o que ela diz do depoimento da empregada doméstica dos autores, PA: “descreveu a localização dos cães como sendo encostada à vedação da casa dos autores”. Mais, a testemunha LM referiu que mesmo por telemóvel ouve os cães a ladrar continuamente, o que aponta claramente pela proximidade do canil à casa dos autores.       
Improcede a impugnação do réu, baseada numa impossibilidade legal inexistente e num pressuposto errado (a decisão não se baseou só nas declarações do autor).
*
O réu diz o seguinte contra a decisão de dar como provado o que consta de 8:
Mutatis mutandis, o que anteriormente ficou escrito, também aqui se aplica.
Com efeito, este facto dado por assente em 8 carece de falta de prova documental bastante pois a noção do ruido, reconduz-se imperativamente à emissão do parecer técnico de harmonia com o quadro legal estabelecido no Decreto Legislativo Regional 23/2010/A, de 30/06 e declaração de rectificação 26/2010, de 27/08, que aprova o Regulamento Geral de Ruído e de Controlo da Poluição Sonora, a seguir designado por RGRA, em vigor desde 01/07/2010.
Mas, para sustento do referido, a julgadora só atendeu a uma particular prova testemunhal ou seja, a apresentada pelos autores ignorando de forma ostensiva os depoimentos arrolados pelo réu. Mais grave, fez recair sobre estas testemunhas (do réu) suspeições de xenofobia vs. provincianismo referenciando que as declarações destas foram tendenciosas por envolverem... estrangeiros.
Porém, as testemunhas indicadas na decisão – tidas por admissíveis – não frequentavam com regularidade a casa dos autores, nomeadamente a testemunha HP referiu que só frequentou a casa dos autores cerca de 4 a 5 vezes nos últimos 15 a 16 anos ficheiro áudio 2020/09/18 – 10h27m17s [00:01:49] a [00:12:08]:
[00:01:49] Ad. dos AA: O senhor conhece aqui o autor e a autora, sabe que eles moram… sabe onde é que eles moram, na Rua X, n.º 0?
[00:01:55] T: Já fui lá a casa.
[00:01:56] Ad. dos AA: Já foi lá à casa deles, pronto. O senhor sabe que eles ali, nesse sítio onde eles moram eles recebem os seus amigos, dormem, comem, fazem a sua vida normal ali naquela casa? Vivem ali, não é?
[00:02:10] T: Vivem ali.
[00:02:12] Ad. dos AA: Pronto. O senhor já foi alguma vez a casa deles conforme aqui referiu, e em que altura é que o senhor foi lá? Desde que altura é que os conhece mais ou menos? Desde que altura é que frequenta a casa deles?
[00:02:26] T: 3, 4 vezes por ano.
[00:02:28] Ad. dos AA: 3, 4 vezes por?
[00:02:30] T: Por ano. Nos últimos 15 a 16 anos.
[00:02:34] Ad. dos AA: Desde os últimos 15 a 16 anos.
[00:02:38] T: Por cada ano, 3, 4 vezes talvez (uma vez?) 5 vezes.
(…)
[00:11:47] Ad. dos AA: O senhor há bocadinho, não percebi se o senhor não percebeu bem a pergunta ou eu é que não percebi bem a resposta, o senhor dessas vezes que esteve lá em casa deles alguma vez esteve para além das 23h, assim a passar um serão?
[00:12:01] T: Eu nunca estive…
[00:12:02] Ad. dos AA: Depois de jantar.
[00:12:04] T: Nunca estive a esta hora na casa deles.
[00:12:05] Ad. dos AA: Na casa deles...
[00:12:06] T: Depois de jantar é para ir para casa.
[00:12:08] Ad. dos AA: Pronto.
E, o mesmo se poderá dizer em relação à testemunha LM - ficheiro áudio 2020/09/18 – 11h18m07s - que começou por dizer que frequentava a casa dos autores cerca de 3 a 4 vezes por ano, ia almoçar e só por uma vez lá jantou:
[00:07:51] Ad. dos AA: Do livro. Por acaso recorda-se se esse jantar se prolongou mais um bocadinho? Se podem ter ficado lá a fazer mais um serãozinho?
[00:07:59] T: Não, não.
[00:08:01] Ad. dos AA: Até à...
[00:08:01] T: Não, fomos muito cedo porque tanto eu como a pessoa que me acompanhou deitamo-nos muito cedo, eu também sofro de muitas enxaquecas e normalmente aceitamos almoços, jantares não, este foi realmente muito especial, foi cedo, por volta das 18h e viemos embora 21h30, 22h no máximo.”
Mas, que da última vez que lá tinha ido – sensivelmente nos meses de Junho ou Julho de 2020 – ouviu os cães a ladrar freneticamente, como se estivessem em sofrimento. Ora, tal testemunho não é merecedor de credibilidade uma vez que, ficou assente no ponto 6 dos factos provados que desde Março de 2020 que o canil está sem qualquer animal – que também foi confirmado pelo próprio réu.
Merecendo a testemunha PA - ficheiro áudio 2020/09/18 – 10h42m05s - minutos [00:00:20] a [00:13:50], iguais reservas já que, sendo empregada de limpeza dos autores com horário de trabalho das 8 às 17h, de 15 em 15 dias, nunca permanecia na casa dos autores para além desse horário. E que inicialmente começou por referir que os cães ladravam insistentemente, ruidosamente durante o dia inteiro e, posteriormente, nos minutos infra identificados acabou por confessar que:
[00:12:05] Juiz: Olhe, a senhora sabe por que motivo é que os cães ladram? Como a senhora diz não estão sempre a ladrar, mas quer dizer, o ladrar deles se a senhora está lá desde as 8h às 17h (da tarde)?
[00:12:17] T: Sim.
[00:12:18] Ad. do réu: A senhora diz que eles ladraram durante quantas horas enquanto a senhora lá esteve? Consegue dizer ou quantos minutos enquanto a senhora lá esteve, entre as 8h e as 17h (da tarde) quanto tempo é que aqueles cães estão a ladrar?
[00:12:29] T: Por exemplo, assim é mais da parte da manhã, talvez mais da parte da hora de almoço, é aquele ladrar assim insistente.
[00:12:41] Juiz: Sim?
[00:12:42] T: E é quando assim tem alguém a andar na propriedade camiões ou coisas assim também senti o cão a ladrar insistentemente.
(…)
[00:13:45] Juiz: Sim. A senhora acha… nunca esteve lá depois das 17h (da tarde)?
[00:13:49] T: Não, não.
[00:13:50] Juiz: Sim senhora. Pronto.”
Mais, ainda, foi ignorado, melhor escrevendo, nem sequer ponderado pelo tribunal a quo, o documento junto aos autos pelo réu, que consiste num parecer/vistoria da Câmara Municipal de V, efectuado pela USIS (Unidade de Saúde da Ilha de S), datado de 04/11/2019, ou seja, data anterior à propositura da presente acção pelos autores, em que resulta uma certificação conjunta com a autoridade veterinária efectuada no dia 26/09/2019, que averiguou a situação do canil situado na Rua de X, freguesia de Z. E, a qual atestou que: “Foi vistoriado as condições de bem-estar animal do canil onde se encontravam dois cães de caça da raça galgo, sem encontrar anomalias. Por se encontrarem a uma distância considerável e a uma cota inferior da habitação do queixoso. Por existirem várias barreiras com sebes vivas. Pelas janelas da habitação não estarem voltadas para o lote em questão. É parecer desta delegação de saúde que o ruido existente do local será idêntico a outros canis da zona. Pelo que estão a ser cumpridas todos os requisitos legais para funcionamento do canil vistoriado.”
Resultando, igualmente, da prova documental apresentada pelo réu mas repudiada pelo tribunal recorrido, que em vistoria efectuada pelo Serviço de Fiscalização da Camara Municipal de V a 23/09/2019, foi possível: “evidenciar dois canídeos de raça podendo, em canil coberto (…). Nunca os ouviu ladrar. Não tendo confirmado qualquer ruído anormal e estando todos os animais devidamente identificados, vacinados e licenciados (…)”.
Mais à frente, no recurso sobre matéria de direito, o réu ainda diz:
Em suma não pode a julgadora dar como provado que os cães ladravam constantemente dia e noite e, em consequência do barulho provocado pelos cães do réu, os autores se encontrem privados constantemente do descanso e tranquilidade, conforme respostas negativas que passamos a transcrever pelas testemunhas:
DJ - ficheiro áudio número 2020/09/18 – 14h42m02s
[00:01:28] Ad. do réu: O senhor é vizinho do réu ou vizinho do autor?
[00:01:34] T: Eu sou vizinho de terreno. Eu faço uma terra mesmo ao lado da casa dele.
[00:01:38] Ad. do réu: O senhor cultiva um terreno ao lado da casa de quem?
[00:01:41] T: Do réu.
[00:01:42] Ad. do réu: Do réu.
[00:01:44] T: Sim.
[00:01:45] Ad. do réu: E o senhor cultiva esse terreno com que frequência? O senhor vai para lá com que frequência?
[00:01:49] T: Todos os dias.
[00:01:52] Ad. do réu: Todos os dias o senhor vai para lá?
[00:01:53] T: Sim.
[00:01:54] Ad. do réu: De que horas a que horas, mais ou menos, é que o senhor está nesse terreno?
[00:01:56] T: Eu vou de manhã.
[00:01:57] Ad. do réu: De manhã.
[00:01:59] T: Até às 10h. Das 08h às 10h.
[00:02:01] Ad. do réu: Das 08h (da manhã)?
[00:02:02] T: Sim.
[00:02:04] Ad. do réu: Às 10h.
[00:02:05] T: Da manhã. E depois vou de tarde às 16h até às 18h, 17h/18h.
[00:02:11] Ad. do réu: E, quando o senhor vai para esse terreno... esse terreno fica a quantos metros do canil? O senhor conhece o canil do réu?
[00:02:15] T: Sim, sim.
[00:02:17] Ad. do réu: Está a ver onde é que fica?
[00:02:18] T: Sim, sim.
[00:02:19] Ad. do réu: O seu terreno é mesmo ao lado?
[00:02:21] T: Só divide é a ribeira.
[00:02:22] Ad. do réu: Tem um ribeiro ao meio.
[00:02:24] T: Sim, entre a casa dele e o meu terreno.
[00:02:28] Ad. do réu: O senhor quando vai para cultivar o seu terreno, o senhor apercebe-se de algum barulho efectuado... algum ruído efectuado pelos cães aqui do réu?
[00:02:42] T: É normal. Quando eles vêem uma pessoa...
[00:02:44] Ad. do réu: E que tipo de barulho é que é? É um barulho muito ensurdecedor? Um latir constante, que dura... perpetuado por várias horas ou...
[00:02:53] T: Não.
[00:02:55] Ad. do réu: Como é que o senhor sente? Tente explicar.
[00:02:58] T: Um barulho normal. Se eles vêem pessoas começam a ladrar, mas depois logo em instantes também calam-se. Agora se virem um gato, um animal diferente... assim como o outro vizinho também tem os gatos e os gatos passam para um lado e para o outro, têm passado frequentemente, é normal que o cão [imperceptível], não é?
[00:03:20] Ad. do réu: Por exemplo o senhor chega ao seu terreno, os cães do réu ladram?
[00:03:24] T: Não. [imperceptível].
JM
Ficheiro 2020/09/18 – 14h56m10s
[00:01:23] Ad. do réu: Com a devida vénia. Boa tarde, Sr. J. O
Senhor é vizinho do réu, mora ali perto?
[00:01:30] T: Não sou vizinho. Somos colegas e fui muitas vezes cultivar o quintal dele.
[00:01:36] Ad. do réu: Ah OK. O senhor costumava frequentar aqui a casa do réu?
[00:01:41] T: Muitas vezes.
[00:01:43] Ad. do réu: O senhor fazia o terreno era?
[00:01:44] T: Cheguei a fazer muitas vezes o terreno dele.
[00:01:47] Ad. do réu: O terreno que está atrás da casa dele ou...
[00:01:48] T: Atrás da casa dele.
[00:01:50] Ad. do réu: OK, sim senhor. Então o senhor conhece o canil do réu?
[00:01:55] T: Conheço.
[00:01:57] Ad. do réu: Sabe se ele tem lá cães ou não?
[00:01:59] T: Agora não tem. Já tem... desde março que nunca mais teve lá os cães.
[00:02:04] Ad. do réu: Mas o senhor conhecia os cães, sabia que tinha ali
cães, certo?
[00:02:07] T: Sabia. E sabia da história. Eu disse-lhe a ele... ele disse que ia tirar os cães até resolver as coisas “Eh pá, não tens que tirar de lá os cães. Por lei podes ter até quatro cães.” E ele: “Eh pá para não ter chatices tirei os cães de lá.”
[00:02:20] Ad. do réu: Tirou os cães de lá em...? Quando é que foi que ele tirou os cães de lá?
[00:02:23] T: Mais ou menos em março. Nunca mais vi esses cães.
[00:02:25] Ad. do réu: Em março. Pronto. Quando o senhor cultivava... ia
ajudar a cultivar lá o terreno e os cães ainda lá estavam, o senhor notava que esses cães ladravam incessantemente, constantemente...?
[00:02:40] T: Não.
[00:02:41] Ad. do réu: Há pouco tivemos aqui testemunhas que disseram
Que os cães ladravam ininterruptamente, durante horas a fio.
[00:02:49] T: Cheguei a lá estar várias vezes no terreno e nunca vi isso.
[00:02:53] Ad. do réu: Com que frequência é que o senhor frequentava o
terreno? É que ia lá cultivar.
[00:02:57] T: Geralmente aquilo era nos meus dias de folga ia lá acima tratar do terreno. [00:03:02] Ad. do réu: Uma vez por semana, duas?
[00:03:03] T: Uma, duas. E às vezes à noite, depois do serviço, quando era verão, [imperceptível] lá acima.
RR
Ficheiro áudio: 2020/09/18 – 14h34m47s
[00:01:17] Ad. do réu: O senhor mora no X, certo?
[00:01:20] T: Exactamente.
[00:01:22] Ad. do réu: O senhor é vizinho do réu?
[00:01:23] T: Sim senhor.
[00:01:24] Ad. do réu: A sua casa fica mais ou menos situada a que distância da casa do réu?
[00:01:33] T: Eu metros não lhe sei dizer, mas tem uma casa só do lado de cima de onde eu moro e ele mora ao lado.
[00:01:41] Ad. do réu: O senhor conhece a casa do réu?
[00:01:43] T: Conheço sim senhor.
[00:01:45] Ad. do réu: E sabe se ele tem lá um canil implementado na casa?
[00:01:47] T: Sim.
[00:01:49] Ad. do réu: Sabe quantos cães é que ele tem?
[00:01:54] T: Não senhor.
[00:01:55] Ad. do réu: Diga-me uma coisa: já agora, o senhor tem cães na
sua casa?
[00:01:59] T: Tenho sim senhor.
[00:02:01] Ad. do réu: Quantos é que o senhor tem?
[00:02:03] T: Tenho dois.
[00:02:04] Ad. do réu: Em relação aos cães aqui do réu, o senhor ouve esses cães diariamente e insistentemente a ladrar? Está certo que o senhor trabalha. Qual é o seu horário de trabalho?
[00:02:17] T: Eu entro as... 05h30 (da manhã) saio de casa e chego por volta... quando faço o turno da manhã, saio às 05h30 e chego a casa por volta das 15h (da tarde).
[00:02:26] Ad. do réu: O senhor a que horas é que se levanta?
[00:02:27] T: 05h.
[00:02:28] Ad. do réu: O senhor levanta-se às 05h. Nesse horário, quando o senhor se levanta, ou até antes disso, o senhor ouve cães a ladrar que perturbem o sono ali das pessoas que vivem ali naquela rua?
[00:02:46] T: Não senhor. Isso é assim: todos nós temos cães e os cães quando identificam algo estranho ladram. Ladram, calam-se. Cães a fazer barulho toda a noite ou... não.
[00:03:01] Ad. do réu: O senhor a que horas chega a casa? Peço desculpa.
[00:03:04] T: Quando eu faço turno de manhã chego por volta das 15h (da tarde); quando faço turno da tarde, entro às 15h e saio às 23h (da noite), chego às 23h30, perto da meia- noite.
[00:03:12] Ad. do réu: Sim, por exemplo quando o senhor chega à meia-noite, o senhor ouve cães a ladrar sem parar?
[00:03:20] T: Não senhor. Não senhor.
Os autores respondem que:
[o facto provado sob 8] resulta do depoimento de HP - ficheiro 2020/09/18 – 10h27m17s:
[00:02:44] Ad. dos AA: O senhor tem conhecimento de existir, de eles terem ali algum vizinho que tem num prédio mesmo encostado ao deles que possui um canil, e que os cães ladram, essa história? O senhor já… o que é que o senhor sabe disso?
[00:02:59] T: Quando vou lá ou quando chego lá tem o barulho dos cães e às vezes eu perguntei “(que barulho é este?), não podes fazer nada para parar isso?” e eles também sofrem bastante e eles comunicam esse sofrimento.
Resulta ainda do depoimento de AV – ficheiro 2020/09/18 – 11h00m52s:
[00:02:42] Ad. dos AA: Destas vezes que vai lá a casa dele alguma vez se apercebeu de existirem alguns cães que ladram e fazem barulho de forma diária e persistente, ruidosa?
[00:02:52] T: Isso era sempre, quase sempre, um tema de conversa, o drama dos cães. Inclusive o réu… o autor tinha, portanto, um alojamento, transformou, portanto, um espaço que ele arrenda em alojamento local, e o ruído provocado pelos cães chegou a perturbar alguns dos hóspedes que frequentavam esse espaço, e ele pedia-me se era possível transferi-los para a quinta, portanto, a quinta que eu tenho nas F, também ligado ao turismo. E como a maior parte das vezes era impossível porque eu tinha sempre a quinta cheia, e ele era obrigado a mandar para hotéis. E, portanto, ele contava-me esses dramas.
[00:03:38] Ad. dos AA: Mas alguma vez… mas eu quero aqui saber é o que é que tenha assistido, se alguma vez assistiu, estava lá em casa do autor e assistiu os cães a ladrar?
[00:03:47] T: Sim, sim, sim, sim.
[00:03:48] Ad. dos AA: Como é que era esse barulho… se era um barulho… tem cães?
[00:03:50] T: Sim, perdão?
[00:03:52] Ad. dos AA: Tem cães?
[00:03:53] T: Eu tenho.
[00:03:54] Ad. dos AA: E eles ladram daquela maneira?
[00:03:55] T: Evidente que não. Eu tenho uma vizinha… aliás, eu acho que é uma falta de consideração pela vizinhança ter animais a provocar ruídos daquela ordem e com as respectivas consequências, depois afecta [impercetível] as pessoas não dormem, não descansam, não têm, portanto, o direito ao repouso que têm que ter durante a noite. Porque normalmente é durante a noite que estes ruídos são verificados, porque durante o dia... durante a noite não há barulho das pessoas a movimentarem-se, na sua vida quotidiana, e esse barulho dos cães… eu estou a falar porque eu vivi uma experiência própria, uma experiência análoga a esta, nas Furnas, na quinta tinha um fulano, portanto, um vizinho que era caçador e que tinha, portanto, uma data de cães, os cães ladravam como o autor, acabei por também envolver as autoridades nisso, não chegou a Tribunal porque entretanto ficou resolvido pacificamente.
Também resulta das declarações de parte do autor – ficheiro 2020/09/25 – 10h40m13s:
[00:06:14] Juiz: Sim senhora. Os cães ladram?
[00:06:24] Intérprete: The dogs bark, right?
[00:06:27] Autor: They bark. Very. I mean, we have the feeling…
[00:06:30] Intérprete (autor): Sim. Muito.
[00:06:31] Autor: …those dogs feel tortured. Because…
[00:06:34] Intérprete (autor): Eles sentem-se torturados.
[00:06:36] Autor: It was not a normal barking, it was constant. Constant.
[00:06:38] Intérprete (autor): Não é um ladrar normal. Porque era constante.
[00:06:41] Autor: And I actually, I felt sorry for them.
[00:06:44] Intérprete (autor): Eu até tive pena deles.
[00:06:47] Autor: But that’s not the main thing.
[00:06:49] Intérprete (autor): Mas não é esta a questão principal.
[00:06:51] Autor: The main thing is that B, my wife…
[00:06:53] Intérprete (autor): O mais importante é que a minha esposa, B…
[00:06:55] Autor: Suffered for the last 3 years…
[00:06:57] Intérprete (autor): Nos últimos 3 anos…
[00:06:58] Autor: … immensely.
[00:07:00] Intérprete (autor): …tem sofrido imenso.
[00:07:03] Juiz: Pergunte se os cães durante a noite também ladram continuamente.
[00:07:06] Intérprete: Do [sobreposição de vozes] continuously?
[00:07:09] Autor: Well, it’s not a constant, sometimes [sobreposição de vozes] 10 minutes and then start again.
[00:07:11] Intérprete (Autor): Às vezes não é constante. Às vezes eles param 10 minutos, depois voltam de novo.
[00:07:18] Juiz: E continuam a ladrar?
[00:07:20] Intérprete: But do they bark during the night?
[00:07:22] Autor: Absolutely.
[00:07:23] Intérprete (Autor): Sim, absolutamente.
[00:07:24] Juiz: Os cães continuam lá?
[00:07:25] Intérprete: Are they still there?
[00:07:27] Autor: Not in the moment.
[00:07:28] Intérprete (Autor): Não de momento.
[00:07:29] Juiz: Desde há quanto tempo é que os cães não estão lá?
[00:07:31] Intérprete: Since when?
[00:07:33] Autor: I am not quite sure, but I think the last 3, 4 months.
[00:07:36] Intérprete (Autor): Não tem bem a certeza, 3, 4 meses. [sobreposição de vozes]
[00:07:38] Autor: Probably they were taken somewhere else.
[00:07:39] Intérprete (Autor): Talvez foram levados para outros lugares.
[00:07:42] Autor: After he got the…
[00:07:44] Intérprete (Autor): Depois de ele ter recebido…
[00:07:45] Autor: The letter from the lawyer.
[00:07:46] Intérprete (Autor): A carta do advogado.
[00:07:49] Juiz: Eles ladram durante a noite, durante o dia também?
[00:07:55] Intérprete: Do they bark during the day?
[00:07:57] Autor: Oh yes.
[00:07:58] Intérprete (Autor): Sim.
[00:08:01] Autor: Without any reason.
[00:08:02] Intérprete (Autor): Sem qualquer tipo de motivo.
[00:08:05] Autor: I mean, they have a reason…
[00:08:06] Intérprete (Autor): Eles têm o seu motivo…
[00:08:07] Autor: They feel lonely.
[00:08:08] Intérprete (Autor): Sentem-se sozinhos.
[00:08:08] Autor: Sometimes, maybe on purpose, without food.
[00:08:11] Intérprete (Autor): Talvez de propósito sem comida.
[00:08:13] Autor: They are suffering, you know?
[00:08:15] Intérprete (Autor): Eles estão a sofrer, sabe?
[00:08:16] Juiz: Ele consegue… o autor consegue ver os cães, portanto, da propriedade dele?
[00:08:19] Intérprete: Can you see the dogs from your house?
[00:08:21] Autor: No.
[00:08:22] Intérprete (Autor): Não.
[00:08:22] Autor: Now the trees are all grown.
[00:08:24] Intérprete (Autor): Agora as árvores já cresceram.
[00:08:26] Autor: The years before, when they came, yes.
[00:08:28] Intérprete (Autor): Nos anos anteriores, quando eles chegaram, sim.
[00:08:32] Juiz: Há quanto tempo é que essa situação acontece dos cães ladrarem dessa maneira?
[00:08:36] Intérprete: How long has this been happening?
[00:08:39] Autor: I would say more than 3 years now.
[00:08:41] Intérprete (Autor): Eu diria há mais de 3 anos.
[00:08:44] Autor: And before we had the noise from the building, the construction.
[00:08:47] Intérprete (Autor): E antes disso tínhamos o barulho da construção.
[00:08:50] Juiz: Pronto, mas nós aqui estamos só com o barulho dos cães.
[00:08:52] Intérprete: But here we are only…
[00:08:52] Autor: Yes, yes, I know.

E o mesmo das declarações da autora - ficheiro 2020/09/25 – 10h08m11s
[00:04:32] Juiz: E durante a noite também ladram?
[00:04:33] Intérprete: How about during the night, do they bark?
[00:04:36] Autora: What?
[00:04:36] Intérprete: During nighttime.
[00:04:38] Autora: Yes, yes of course. That’s what’s the worst.
[00:04:39] Intérprete (Autora): Sim, claro, isso é o pior.
(...)
[00:18:08] Ad. dos AA: Espere! Mas o que está aqui em causa é que os cães ladram durante o dia e durante a noite, de tal forma que eles não conseguem dormir. O que eu quero saber é se ele não consegue dormir com isso…?
[00:18:16] Intérprete: OK. So, he can’t sleep during nighttime because…
[sobreposição de vozes]
[00:18:22] Ad. dos AA: Não é de manhã, de manhã…
[00:18:22] Intérprete (Autora): Ele acorda. Ele acorda de manhã.
[00:18:25] Ad. dos AA: Eu quero dizer é durante a noite se ela o vê acordado, se ele vem ter com ela...
[00:18:27] Intérprete: Do you see him wake up during nighttime?
[00:18:29] Autora: No.
[00:18:30] Intérprete (Autora): Não.
[00:18:30] Ad. dos AA: Então, como é que ela sabe se ele acorda?
[00:18:31] Intérprete: Then how do you know?
[00:18:33] Autora: Because he tells me.
[00:18:34] Intérprete (Autora): Porque ele me diz.
[00:18:34] Autora: Or sometimes I see that the lights are on.
[00:18:37] Intérprete (Autora): Porque eu vejo as luzes ligadas.
Não é necessário qualquer juízo técnico para dar como provado que os cães ladram de forma persistente e ruidosa quando resulta da prova testemunhal produzida que os cães ladram dessa forma.
E mais à frente, em apreciação geral do depoimento das testemunhas, os autores ainda escrevem:
Foi tão de favor o depoimento das testemunhas do réu que uma delas, JM, na sua inquirição gravada no ficheiro 2020/09/18 – 14h25m44s, chega mesmo a dizer que os cães do R. nem ladram!
Ora então:
[00:02:53] Ad. do réu: OK. Sim senhor. Diga-me uma coisa, Sr. JM: em relação aos cães do réu, o senhor ouve esses cães a ladrar intensivamente, fazem muito ruído, um ruído fora de normal que não…?
[00:03:06] T: Não senhor, esses cães nem ladram.
[00:03:09] Ad. do réu: Devem ladrar, como são cães ladram, não é? Todos os cães ladram, Sr. JM.
[00:03:10] T: Eles ladram quando vêem alguma coisa, algum gato, algum cão que passa por lá, eles ladram, mas durante o dia e durante a noite, eles estão sempre calados, que eu não os oiço.
[00:03:23] Ad. do réu: O senhor já disse que mora mais ou menos a 50/60m.
[00:03:25] T: Sim senhor.
Decidindo
O réu tem cinco argumentos:
O primeiro:
O ruído só se pode provar por prova documental, “pois a noção do ruido, reconduz-se imperativamente à emissão do parecer técnico de harmonia com o quadro legal estabelecido.”
Mas neste momento não se está a discutir o Direito, isto é, no caso, não se está a discutir se o nível de ruído é superior a um determinado nível de decibéis determinado por dada lei, mas sim a tentar saber se é ou não verdade que os cães do réu, desde a data em que foram ali instalados, ladram diariamente, durante o dia e a noite, de forma persistente e ruidosa, privando os autores de descanso, sossego e tranquilidade, nomeadamente entre as 23h e as 4h, privando-os de sono.
Ou seja, no ponto 8 não se diz que o ruído atingiu um determinado nível de decibéis, caso em que poderia dizer que só um aparelho poderia dar essa informação (mas mesmo isto não é correcto: por exemplo, nas acções de acidente de viação, sempre se considerou possível precisar a velocidade de carros com base no depoimento de testemunhas) – mas sim que esse ruído perturba os autores, tomados, para já, aqui, como qualquer outra pessoa, e não com eventuais características que, para já, não estão estabelecidas, e como isso não resulta de um nível específico de decibéis, pode ser provado por testemunhas. Se deste resultado, subjectivo, se podem ou não tirar consequências jurídicas, isso já é uma questão de direito.
O segundo:
O tribunal ignorou os depoimentos arrolados pelo réu, ou melhor, já que o réu o reformula logo a seguir, o tribunal não teria ignorado esses depoimentos, teria, isso sim, afastado o seu valor probatório “por fazer recair sobre estas testemunhas (do réu) suspeições de xenofobia vs. provincianismo referenciando que as declarações destas foram tendenciosas por envolverem... estrangeiros.”
Não é assim, como se pode comprovar da longa transcrição da fundamentação da decisão recorrida: o tribunal afastou o valor probatório de cada uma das testemunhas do réu por razões concretas ligadas a cada uma delas, especificamente indicadas, algumas vezes de forma muito sintética mas que, dado o conjunto do que se diz, é perfeitamente suficiente, a que depois ajuntou outras considerações, que também não são vagas, embora genericamente aplicáveis a todas as testemunhas, fundamentando devidamente o afirmado. E o réu, fazendo de conta que o tribunal não tinha indicado razões concretas, evitou discutir, mas com isso não impugnou, essas razões concretas e nem indicou, na altura própria, esses testemunhos para serem apreciados, fazendo-o só na parte da discussão da matéria de direito e apenas em relação a três dessas testemunhas. E em relação a estas nada invoca do respectivo depoimento que, por exemplo, localize onde é que as testemunhas normalmente estavam em relação ao canil quando se referem ao barulho ou à falta dele, nem qual a largura ou comprimento do prédio do réu, para se poder imaginar onde é que as testemunhas poderiam estar. Note-se que, nas cópias das certidões predial e matricial juntas aos autos, o prédio do réu tem mais de 5000m2 (docs.4, 5 e 6 juntos com a PI). Ora, já resulta do que se escreve acima, que o barulho a uma distância de 100 ou 200 m é diferente do barulho encostado à casa dos autores ou a 20 m dela. Daí aliás que a condenação da remoção só implique o afastamento para 100 m do prédio dos autores.
O terceiro:
As testemunhas dos autores aproveitadas pelo tribunal não frequentavam com regularidade a casa dos autores e não o faziam às horas indicadas no ponto 8, ou seja, entre as 23h e as 4h, e por isso não poderiam saber o que aí é dito.
Mas não é verdade que isso seja assim para todos os elementos de prova aproveitados pelo tribunal, para além das declarações dos autores, segundo as transcrições feitas pelas partes, pois que a testemunha AV afirmou que algumas refeições em que participou se prolongaram depois da 1h ou 2h [espec. 5:37 a 5:58 deste depoimento, nesta parte não transcrito pelas partes, mas já era invocado pela sentença recorrida].
Por outro lado, como foi dito pela sentença recorrida, mas sem a precisão temporal relevante que se segue, o próprio réu – a perguntas da sua advogada - disse ter ouvido o ladrar dos cães - às vezes eles ladravam um bocado - entre as 23h e as 4h [7:46 a 8:15], o que tentou justificar, entre o mais, dizendo que esse ladrar era provocado pelos gatos dos autores, o que não está sequer indiciado face ao que foi transcrito do depoimento das testemunhas PA e AV (gatos em casa).
Por outro lado, todas as testemunhas dos autores referiram o ladrar insistente dos cães, todas elas dando exemplos concretos de situações. Ora, se as testemunhas puderam constatar esse ladrar durante as outras horas (que não entre as 23h e 4h), é natural que os cães também ladrassem à noite, àquelas horas (23h e 4h), como o disse a testemunha AV e o próprio réu, pelo que o conjunto disto tudo já apontava claramente para a prova do que consta do ponto 8.
E aqui já podem entrar as declarações de parte dos autores: a prova do ladrar também a essas horas, não foi só produzida pelos próprios autores; o que foi por estes dito, tem assim, pelo que se acabou de dizer, suficiente corroboração. E o que eles disseram não deixa margem para mais dúvidas.
O quarto:
A testemunha Luísa Gomes disse ter ouvido os cães ladrar numa altura (Junho ou Julho de 2020) quando o réu já tinha tirado de lá os cães (Março de 2020).
A advogada do réu ouviu esta resposta dada pela testemunha à pergunta por ela feita no fim da instância e não tentou esclarecer a resposta que a testemunha deu. Se o réu queria retirar a credibilidade de todo o depoimento da testemunha por causa desta discrepância, teria que ter dado a possibilidade à testemunha de esclarecer a questão, tanto mais que, dado o momento em que a testemunha depôs e o que constava da contestação, a discrepância não seria perceptível para o tribunal, nem para os autores. Por outro lado, tendo em vista todas as referências a toda a restante prova produzida, não há dúvida de que os cães, antes de terem sido retirados de lá, ladravam nos termos dados como provados. Pelo que esta discrepância no depoimento da testemunha, não lhe retira a credibilidade quanto a tudo o resto que contou. Para além de que pode haver várias explicações plausíveis para a discrepância: por exemplo, a testemunha podia-se estar a referir ao ano passado, como fez a meio do seu depoimento, e por lapso referiu-se a 2020; o réu pode, naquele dia, ter voltado a trazer os cães para o local onde eles estavam antes de os ter retirado.
O quinto:
Uns dias antes do início do julgamento, o réu apresentou no processo um ofício com dois relatórios. Pediu para serem juntos ao processo sem multa. Dizia que o relatório [sic] foi elaborado na sequência de queixa apresenta, presume-se, pelos autores contra o réu no ano de 2019 e cuja cópia o réu requereu aos serviços da Câmara Municipal de V, o que é diferente do que o réu refere nas suas declarações de parte.
Os autores responderam que “impugna[m] o teor dos referidos documentos agora juntos aos autos, bem como a sua relevância probatória. Nem nos referidos documentos vêm referidos os pressupostos de facto que legitimam as considerações que são feitas. O que está em causa nestes autos não é o cumprimento dos requisitos legais para funcionamento do canil do réu, nem sequer saber se os animais estão bem tratados. O ruído que impeça o sono constitui sempre a violação do direito de personalidade, direito ao repouso. O que está em discussão nestes autos não são barulhos do dia-a-dia e, por isso, suportáveis por qualquer pessoa; antes, estamos perante situações de manifestações de um ladrar intenso, repetitivo e incomodativo, que impede e dificulta reiteradamente o descanso dos autores e dos seus hospedes. Aliás, nenhum dos documentos agora juntos sequer se refere a fiscalizações aos animais ocorridas entre as 23h e as 07. Por essa razão, e por nenhuma relevância terem, não deve ser admitida a sua junção aos autos.”
O tribunal deferiu a junção, sem multa. Não tem razão, pois, o réu, em dizer que o tribunal repudiou um dos documentos.
No primeiro documento, um funcionário do serviço veterinário municipal escreveu: Estive a 23/09/2019 pelas 10h30 na residência do [réu] a fim de averiguar as condições que são descritas pelo queixoso. Evidenciei 2 canídeos de raça podengo, em canil coberto, limpo, boa condição corporal e água abundante e disponível. Nunca os ouvi ladrar. O detentor apresentou os documentos dos canídeos, devidamente legalizados. Além destes, tem também no ambiente da sua casa, num terraço, um canídeo solto de raça cruzada de caniche o qual também licenciado e com toda a documentação legalmente obrigatória. Sendo apenas 3 canídeos, não tendo confirmado qualquer ruído anormal e estando todos os animais devidamente identificados, vacinados e licenciados, nada tenho a opor à manutenção dos animais nas condições vistas e tidas naquele local.
No segundo documento, o delegado de saúde concelhio de V escreve: No dia 26/09/2019 foi efectuada vistoria conjunta com a Autoridade Veterinária para averiguar situação de canil situado na Rua X, 2 A na freguesia de Z. Foi vistoriado as condições de bem-estar animal do canil onde se encontravam dois cais de caça da raça galgo, sem encontrar anomalias. Por se encontrarem a uma distância considerável e a uma cota inferior da habitação do queixoso. Por existirem várias barreiras com sebes vivas. Pelas janelas da habitação não estarem voltadas para o lote em questão. É parecer desta delegação de saúde que o ruido existente do local será idêntico a outros canis da zona. Pelo que estão a ser cumpridas todos os requisitos legais para funcionamento do canil vistoriado.
Os três dias de diferença que consta dos documentos, será um lapso. E será um erro a confusão entre podengos e galgos. Dando isto de barato, diga-se, desde logo, que não se sabe em que condições é que foi efectuada esta vistoria. É natural que o réu tenha sido avisado que ela ia ser feita, para combinar a hora e para que o funcionário e o delegado de saúde se sentissem à vontade em entrar no prédio do réu. Por outro lado, naturalmente, a vistoria não foi efectuada contraditoriamente. Mais: trata-se de uma única observação, num único momento, num único dia, provavelmente como se viu na presença do réu, pelo que é natural que os cães não se pusessem a ladrar, insistentemente ou não. Ainda: os termos utilizados são subjectivos: uma ‘distância considerável’, sem mais nada, não diz nada de concreto. Tal como um “cota inferior”.
Tendo isto em conta, nenhum destes relatórios cria a menor dúvida sobre a versão de facto comprovada pelos elementos de prova trazidos pelos autores para o que consta do ponto 8.
Improcede a impugnação do réu, baseada numa impossibilidade legal inexistente e num pressuposto errado (a decisão não se baseou só declarações do autor).
*
O réu diz o seguinte contra a decisão de dar como provado o que consta de 10, 11 e 16 (“agrupados uma vez que se referem ao alegado estado de saúde da autora”).
Segundo os autores, alegadamente, os problemas de saúde da autora têm a sua origem na hiperacusia que diz sofrer desde 2007 quando começou a utilizar tampões nos ouvidos.
Em primeiro lugar, os autores não apresentam qualquer prova documental que comprove a situação alegada. E é uma situação clinica que não se compagina com confissão e/ou declarações de testemunhas.
Em segundo lugar, é assaz estranho que sofrendo – como diz – a autora de hiperacusia que a faz sofrer constantemente e tendo prestado declarações no tribunal este mesmo tribunal não lhe tenha pedido prova desses tampões. Estranho, repete-se, muito estranho.
Em terceiro lugar e muito mais grave, foi o tribunal recorrido sustentar a sua motivação na Wikipédia. É uma fonte sem a mínima credibilidade principalmente para efeitos de fundamentação duma decisão judicial (quem o afirma, entre outros, é João Luís Bento dos Reis, Edgar Taborda Lopes e Joana Caldeira, in “ Fazer o Direito”, Fevereiro de 2016, Gabinete de Estudos do CEJ: […]).
Em quarto lugar, mas desta feita retirado dum site da conceituadíssimo Internacional Archives Of Otorhinolaryngology in http://arquivosdeorl.org.br/edicoes_anteriores.asp, ensina-se que, “A hiperacusia ocorre em indivíduos com audição normal e representa uma sensibilidade anormal, ou seja, intolerância a sons de baixa ou moderada intensidade 5-10,17. É causada por uma alteração no processamento central dos sons, estando a cóclea geralmente preservada. Como manifestação, provoca sensação de desconforto a inúmeros sons do meio ambiente, mesmo de intensidade baixa ou moderada, independente da frequência que os compõe, como por exemplo água corrente, ventilador, refrigerador, lava-louças, carro, telefone, campainha, portas fechando”.
A etimologia da palavra “híper” está associado ao conceito de excessivo ou de elevado e “acusia” diz respeito ao som. Múltiplas definições desde conceito foram utilizadas por diversos autores: Khalfa et al referiram-se a esta entidade como “hipersensibilidade auditiva patológica” e “desconforto” relativo a sons que seriam considerados aceitáveis pela maioria dos indivíduos” - (khalfa S, Dubal S, Veuillet E et al., “Psychometric normalization of a hyperacusis questionnaire,” ORL J Otorhinolaryngology Relat Spec, 2002).
Por sua vez, Dauman e Bouscau-Faure utilizaram a expressão “hipersensibilidade ao ruído” e Formby et al descreveram uma “intolerância ao ruído” (Formby C, Gold SL, Keaser ML et al., “Secundary benefits from Tinnitus Retraining Therapy: clinically signficant increase in loudness Discomfort level and expansion of the Auditory Dynimic Range”, Seminars in hearing, 2007).
Para Tyler et al classificam a hiperacusia em três categorias: Loudness Hyperacusis (hiperacusia associada à intensidade do som); Annoyance Hyperacusis (hiperacusia associada à irritabilidade) e Fear Hyperacusis (hiperacusia associada ao medo).
A hiperacusia associada à intensidade do som: considerada presente quando sons que seriam considerados de intensidade normal pela maioria da população provocam a sensação de serem desconfortavelmente elevados nos indivíduos com a patologia. Esta sensação de desconforto auditivo é descrita como sendo semelhante à que é experienciada por indivíduos normais em resposta a um som de intensidade muito elevada (Tyler R et al, “A Review of Hyperacusis and Future Directions: Part I. Definitions and Manifestations,” American Journal of Audiology, 2014).
O impacto no quotidiano e a relação destes doentes com o ambiente, segundo o que reporta Anari et al, entre os sons mais frequentemente referidos pela população adulta que sofre de hiperacusia encontram-se os ruídos de talhares e loiça, martelos, máquinas perfuradoras e crianças a chorar. Os ambientes que os doentes mais referem como sendo incomodativos foram encontros sociais, reuniões de negócios, restaurantes e locais com crianças. Os sintomas e sinais referidos tem um impacto muito significativo na vida dos doentes, apresentando consequências negativas no que diz respeito aos hábitos de sono, concentração, audição, comunicação e bem-estar emocional, estando descritos problemas de socialização, diminuição de rendimentos no trabalho, dificuldades de educação e maiores comorbilidades em saúde – Anari M, Axelsson A, Elies W et al., “Hipersensivity to sound – questionnaire data, audiometry and classification,” Scand Audiol, 1999.
Além disso, reportaram também que a relação do individuo com o vizinho influencia a reacção ao som – Levy-Leboyer, C., & Naturel, V., “Neighbourhood noise annoyance.,” Journal of Environmental Psychology, 1991.
Desta forma, pode aferir-se que qualquer ruido existente na natureza e/ou mesmo no interior da habitação dos autores provoca sofrimento na autora.
Aqui chegados temos que, a saúde dos autores, a deteriorar-se, deve-se sim, à sua idade avançada, bem como às suas pré-existentes condições de saúde: da autora mulher que sofreu trombose no ouvido direito e sofre de hiperacusia – doença sem tratamento – e do autor marido que sofreu ataque cardíaco em 1999 – facto dado como provado no ponto 15 da sentença recorrida.
Não é o ruido produzido pelos cães - sejam eles do réu ou de outros indivíduos – que é excessivo ou fora dos limites legais admitidos e patentes na Lei do Ruido. É sim, a intolerância ao ruído sofrida pelos autores, devido à sua idade avançada e aos seus problemas de saúde já existentes, nomeadamente a autora – ficheiro áudio 2020/09/25 – 10h08m11s – teve um trombose no ouvido direito em 2007, perdeu o seu emprego de um dia para o outro, foi internada, e os médicos acabaram por dizer-lhe que não havia cura para o seu problema, inclusivamente, teve de ser tratada durante um ano para ser capaz de sair do quarto e de casa, e fazer uma tarefa básica como: ir às compras.
E tanto o que ficou escrito corresponde à verdade, que a autora confessou ser um desafio o facto de sentar-se à mesa com outras pessoas:
“porque quando uma faca cai no prato… parece que a tua cabeça está a explodir” - minutos [00:05:31] a [00:06:38].
[00:05:31] Intérprete (Autora): Eu tive uma trombose no ouvido direito.
[00:05:34] Autora: And I lost my job from one day to the other.
[00:05:37] Intérprete (Autora): E perdi o meu emprego de um dia para o outro.
[00:05:40] Autora: And the doctors told me that…
[00:05:42] Intérprete (Autora): Os médicos disseram-me…
[00:05:44] Autora: That there was no cure…
[00:05:45] Intérprete (Autora): Que não havia cura…
[00:05:47] Autora: And I was hospitalized…
[00:05:49] Intérprete (Autora): E eu fui hospitalizada…
[00:05:51] Autora: And treated for one whole year.
[00:05:53] Intérprete (Autora): E tratada durante um ano.
[00:05:56] Autora: In order to be able to go out of my room, to go out of
my house…
[00:06:00] Intérprete (Autora): Para ser capaz de sair do seu quarto e da
casa.
[00:06:03] Autora: And to go shopping…
[00:06:04] Intérprete (Autora): E para ir às compras…
[00:06:06] Autora: I mean, I was in clinics, the clinic was full of people like
me.
[00:06:10] Intérprete (Autora): Fui a clínicas, e as clínicas estavam cheias
de pessoas como eu.
[00:06:14] Autora: And it’s a challenge…
[00:06:16] Intérprete (Autora): É um desafio…
[00:06:18] Autora: …to sit together at a table with other people…
[00:06:20] Intérprete (Autora): …sentar-me à mesa com outras pessoas…
[00:06:23] Autora: …because when they cut or a knife falls on a plate…
[00:06:29] Intérprete (Autora): … porque quando uma faca cai num prato…
[00:06:31] Autora: …it feels like your head is exploding.
[00:06:33] Intérprete (Autora): …parece que a tua cabeça está a explodir.
[00:06:35] Autora: It hurts you so much that you don’t want to go out
anymore.
[00:06:38] Intérprete (Autora): Dói tanto que não queremos sair mais.
Concluindo: as dores e incómodos sofridos pela autora não são da responsabilize de qualquer conduta do recorrente e/ou seus animais. São, sim, consequência duma condição (física) degenerativa da autora respeitante a uma intolerância ao som independentemente dos decibéis deste se conterem nos limites legais e serem aceitáveis ao cidadão comum.
Os autores respondem que:
Os factos – que repetem - ficaram provados em resultado das seguintes passagens que transcrevem:
Declarações da autora, cuja inquirição está gravada no ficheiro 2020/09/25 – 10h08m11s o seguinte [os autores engaram-se na identificação do elemento de prova de que transcrevem as passagens: são da testemunha HP e não da autora, embora o ficheiro, aqui, seja da autora – TRL]
[00:05:42] Ad. dos AA: E eles queixam-se disso?
[00:05:44] T: É só muito triste por causa desta situação, a autora e o autor, porque isso está incomodando bastante esse barulho.
[00:05:56] Ad. dos AA: Esse barulho acaba com o sossego ali, quando vocês estão ali o ambiente fica menos apetecível porque tem sempre esse barulho de fundo?
[00:06:08] T: (Ja?).
(...)
[00:08:11] Ad. dos AA: Mas o senhor já esteve lá em casa e ela está de tampões por causa do barulho dos cães?
[00:08:15] T: (Ja?).
[00:08:16] Ad. dos AA: Agora, a pergunta que eu lhe faço é: este barulho dos cães, este ladrar, ela não se queixa disso porque tem essa hiperacusia? Quer dizer, o senhor que não tem hiperacusia e qualquer pessoa normal que vá ali e ouça esse barulho dos cães, a forma como eles ladram é incomodativa?
[00:08:34] T: Muito.
[00:08:35] Ad. dos AA: Não é por ela ter essa doença?
[00:08:37] T: Não, se é incomodativa, está piorando a situação da (autora, Ja?).
A empregada doméstica dos autores PA, no ficheiro 2020/09/18 – 10h42m05s, diz o seguinte:
[00:04:30] Ad. dos AA: Portanto, a senhora via-a com tampões ou auscultadores?
[00:04:34] T: Sim, sim, sim.
[00:04:35] Ad. dos AA: Para evitar ouvir o barulho?
[00:04:37] T: O barulho, sim.
[00:04:39] Ad. dos AA: Muito bem. E para a senhora, portanto, a autora tem uma doença hiperacusia que é uma doença, mas para a senhora que não tem essa doença este barulho dos cães era incomodativo e anormal?
[00:04:53] T: É incomodativo que ele ladrava muitas vezes.
[00:04:59] Ad. dos AA: Era anormal? Não é um barulho normal?
[00:05:02] T: Não, não era um barulho normal.
[00:05:04] Ad. dos AA: A senhora tem cães?
[00:05:05] T: Eu tenho.
E também AV, cuja inquirição está gravada no ficheiro 2020/09/18 – 11h00m52s, diz o seguinte:
[00:09:14] Ad. dos AA: Sabe se ela costuma usar tampões, alguma vez viu ela com fones ou de tampões?
[00:09:17] T: Sim, sim, sim, mas isso não resulta, acaba por não resultar. Eu sei que ela foi para a Alemanha, ausentou-se aqui da ilha porque ela psicologicamente estava completamente arrasada com essa história dos cães.
Esclarecedor é o depoimento de LM, cujo depoimento está gravado em 2020/09/18 – 11h18m07s, ao dizer o seguinte:
[00:05:28] Ad. dos AA: Eles ficam desesperados com esta situação?
[00:05:31] T: Sim, e sobretudo ano passado a senhora estava em grande risco de suicídio. E chegou a ausentar-se da ilha, o autor esteve na minha casa também pedi ajuda a mais amigos, tentámos acalmar porque eles, notei sobretudo há 2 anos para cá que eles estão a ficar muito tristes e muito desesperados porque têm recorrido aos amigos todos, nós próprios temos recorrido inclusivamente ao SEPNA, foram muito amáveis mas não estamos a conseguir resultados.
[00:06:12] Ad. dos AA: A autora tem um problema de hipoacusia que já tinha, portanto, ela tem ainda mais sensibilidade ao ruído que uma pessoa comum?
[00:06:19] T: Sim, sim. Eu por acaso também tenho esse problema, não é tão grave como a senhora, porque o problema dela advém de outro mais grave e de facto…
[00:06:31] Ad. dos AA: Ela tem vindo a piorar a sua condição física?
[00:06:33] T: Sim, sim.
[00:06:35] Ad. dos AA: Alguma vez viu a autora lá em casa de tampões nos ouvidos ou fones para evitar o ruído?
[00:06:41] T: Sim, e mesmo uma vez estávamos a ver as aromáticas, que são voltadas para a casa do réu e ela tremeu toda e mesmo com os tampões ela fez isto.
[00:06:57] Ad. dos AA: OK, e a si estava a incomodá-la?
[00:06:59] T: Muito, muito. E dá-me vómitos e tudo, porque o ruído é muito intenso e desesperante, os animais parece que estão a sofrer, imagino que não, mas dá essa sensação.
Não há dúvida que a autora sofre de hiperacusia, condição médica debilitante que ocorre em pessoas com audição normal e se traduz em uma sensibilidade anormal a certas frequências ou volumes de som.
O tribunal a quo recorre à Wikipédia entre outras fontes – daí o advérbio ‘nomeadamente’ - sendo certo que na Wikipédia são citados, a este propósito, vários artigos científicos que merecem total credibilidade.
Decidindo:
Repare-se que o réu não põe em causa que as testemunhas invocadas na fundamentação do tribunal recorrido tenham dito o que o tribunal diz. O que o réu faz é argumentar contra a decisão por outras razões.
A primeira é que os autores não apresentam qualquer prova documental que comprove a situação alegada e esta é uma situação clinica que não se compagina com confissão e/ou declarações de testemunhas.
É uma demonstração clara do inconveniente de se juntaram argumentações para vários quesitos, quer na fundamentação da decisão, quer na impugnação. Objectivamente, é uma forma de evitar discutir, de facto, o que se dá como provado.
Veja-se: o ponto 10 não se refere a nenhuma situação clínica. O ponto 11 refere-se genericamente à saúde dos autores e ao deterioramento desse estado. Não se trata propriamente de uma questão de situação clínica. As testemunhas e os autores podem, claramente, dizer, com conhecimento de causa, se os problemas de saúde dos autores se estão a agravar, em termos genéricos, e isso em termos de convencer o tribunal. Pelo que afinal, esta razão não serve para todos os pontos. Diz só respeito ao ponto 16. Ora, quanto ao ponto 16, afinal, lendo a impugnação do réu, vê-se que não há impugnação nenhuma do que aí se diz. Pelo contrário, ele até tenta aproveitar o que aí consta como facto contra a procedência da pretensão dos autores.
A segunda razão é que o tribunal não pediu prova dos tampões que a autora disse ter usado. E consideram isso “estranho, repete-se, muito estranho.”
A crítica não tem qualquer razão de ser e o que seria estranho é que o tribunal tivesse pedido à autora que mostrasse os tampões dos ouvidos. Até porque à autora não foi pedido que os trouxesse para o tribunal, nem o réu sugeriu isso, e se o tribunal pedisse à autora que fosse buscar os tampões, nada evitaria que, se a autora não os tivesse, os fosse comprar a qualquer farmácia.
A terceira razão é “o facto muito grave” de o tribunal recorrido sustentar a sua motivação na Wikipédia.
Mas isto nada tem de grave nem de errado, pelo contrário. O tribunal, na fundamentação da decisão da matéria de facto socorre-se do que entender. E identificando, correctamente, as fontes de que se socorre, permite às partes criticarem a fundamentação.
A quarta razão é a única substancial. Diz o réu que “a saúde dos autores, a deteriorar-se, deve-se sim, à sua idade avançada, bem como às suas pré-existentes condições de saúde: da autora mulher que sofreu trombose no ouvido direito e sofre de hiperacusia – doença sem tratamento – e do autor marido que sofreu ataque cardíaco em 1999 – facto dado como provado no ponto 15) da sentença recorrida. Não é o ruido produzido pelos cães - sejam eles do réu ou de outros indivíduos – que é excessivo ou fora dos limites legais admitidos e patentes na Lei do Ruido. É sim, a intolerância ao ruído sofrida pelos autores, devido à sua idade avançada e aos seus problemas de saúde já existentes […] independentemente dos decibéis [do som] se conterem nos limites legais e serem aceitáveis ao cidadão comum.”
Com isto está, no fundo, a pôr a causa o que consta de 11 e da 2.ª metade de 16, mas também aqui não tem razão. Tendo os autores as doenças que têm é perfeitamente natural que aquilo que é descrito pelas testemunhas e por eles próprios, dado como provado nos restantes factos (o ladrar dos cães nos termos descritos), provoque a deterioração do estado de saúde dos autores e dores e desconforto. Ou seja, mesmo que eles não tivessem aquelas doenças, aquele ladrar provocaria tais consequências embora talvez de forma mais leve, não tão grave.
Também aqui improcede a impugnação deduzida pelo réu.
*
O réu diz o seguinte contra a decisão de dar como provado o que consta de 12, 13 e 14:
Também aqui, ignorou a decisão recorrida que o seu conhecimento exigia suporte documental bastante.
A acreditar no tribunal recorrido os autores são proprietários dum estabelecimento de alojamento local. Independentemente, contudo, do teor do artigo 1 da matéria provada atestar que os autores são donos de um prédio misto em que a parte urbana se destina à habitação, a verdade é que, a classificação dum espaço como destinado ao alojamento local obriga a um conjunto de condicionantes e legalização pelas entidades competentes deste tipo de alojamentos. Em harmonia com o disposto no DL 63/2015 de 23/04 (1.ª alteração ao DL 128/2014, de 29/08), que se estabeleceu o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local. E as facturas (documentos 8 e 9 da petição inicial) apresentadas para prova de despesa de realojamento suportada pelos autores, foram emitidas a favor de entidade (A, Unipessoal, Lda) que se desconhece, não sendo esta parte desconhecida do processo.
O que tudo reforça o entendimento que a decisão recorrida, erroneamente, deu por assentes factos cuja verificação apenas é possível mediante documento e, por isso, por violação do disposto nos artigos 362 e 364 do CC e 423 e 436 do CPC, devem ser remetidos para a matéria não provada.
Os autores respondem que:
A empregada doméstica dos autores PA, no ficheiro 2020/09/18 – 10h42m05s, diz o seguinte:
[00:05:36] Ad. dos AA: A senhora sabe que eles têm lá esse apartamento dos hóspedes sabe, se teve conhecimento de alguma vez alguns hóspedes terem-se ido embora ou terem reclamado por causa do barulho causado pelos cães?
[00:05:48] T: Eu sei que tinha pessoas, hóspedes que reclamavam devido ao barulho dos cães e diziam que não voltavam a ir mais por causa [imperceptível].
[00:05:59] Ad. dos AA: Disse? Eles diziam isso a si?
[00:06:02] T: Diziam. Não a mim porque eu não falo alemão, mas eu perguntava sempre à senhora se eles estavam a gostar ou iam-se embora e não tinha acabado ainda o tempo de irem-se embora e ela dizia-me porquê.
[00:06:18] Ad. dos AA: Mas eles a si alguma vez disseram: “oh isto está aqui barulho de mais, é muito barulho”? Alguma coisa assim?
[00:06:22] T: Eu via sempre as janelas fechadas, as janelas da casa de banho e da cozinha que é de onde vira para a casa do senhor.
[00:06:30] Ad. dos AA: Sim?
[00:06:31] T: As janelas fechadas e deviam manter-se por causa por causa do barulho.
[00:06:36] Ad. dos AA: Ah, eles diziam-lhe isso?
[00:06:37] T: Sim, sim.
[00:06:38] Ad. dos AA: Que mantinham as janelas fechadas por causa do barulho dos cães?
[00:06:41] T; Dos cães.
[00:06:42] Ad. dos AA: Isso os hóspedes, não é?
[00:06:44] T: Sim.
AV, cuja inquirição está gravada no ficheiro 2020/09/18 – 11h00m52s, diz o seguinte:
[00:06:57] Ad. dos AA: Esta questão relativamente aos hóspedes desse apartamento que eles lá têm de alojamento local alguma vez que tenha estado ali em casa do autor onde tem esse apartamento do alojamento local, assistiu a algum hóspede a vir ter com ele a dizer…
[00:07:11] T: Assisti, assisti. Assisti precisamente num aniversário, tenho impressão que foi da esposa, da autora, um casal que… aliás, essa foi uma das propostas para ir para a minha quinta, perguntou-me, o autor nessa noite mesmo se eu tinha um lugar na Quinta da M para os enviar para lá, nós estávamos cheios, não foi possível, mas os hóspedes não ficaram, eu sei que no dia seguinte ou quê, eles deixaram, abandonaram o local. E mais, depois escrevem, fazem publicidade negativa nas redes sociais e nas plataformas turísticas (que garantem que aquele espaço é um espaço muito mau?).
[00:07:52] Ad. dos AA: E nessa vez que eles vieram ter com o autor a perguntar se havia outro espaço para onde pudessem ir foi durante a noite? Foi à noite?
[00:07:59] T: Foi à noite foi.
[00:08:00] Ad. dos AA: Durante a noite, quer dizer...
[00:08:02] T: Foi uma festa de aniversários, foi à noite.
[00:08:03] Ad. dos AA: Foi entre as 23h00 e as 04h00?
[00:08:07] T: Para aí.
[00:08:08] Ad. dos AA: Não se recorda ao certo?
[00:08:10] T: [imperceptível].
[00:08:11] Ad. dos AA: Mas já era de noite?
[00:08:12] T: Mas era noite, portanto, era noite, noite.
[00:08:15] Ad. dos AA: Perto da 00h?
[00:08:17] T: Para aí.
[00:08:18] Ad. dos AA: Garantidamente, não é? Olhe, e nessa noite, portanto, eles não foram, esses hóspedes não foram para o seu alojamento, para a sua quinta e acabaram por ser hospedados num hotel?
[00:08:29] T: Num hotel, num hotel que o autor, portanto…
[00:08:33] Ad. dos AA: O autor saiu entretanto para ir levá-los
ao hotel? Recorda-se se o autor foi levá-los ao hotel, se teve que pagar um alojamento para eles?
[00:08:42] T: Não me lembro, sinceramente.
LM, testemunha cujo depoimento está gravado em 2020/09/18 – 11h18m07s, refere que:
[00:09:04] Ad. dos AA: Sabe que eles têm um apartamento que arrendam para alojamento local ali?
[00:09:07] T: Sim, sim.
[00:09:08] Ad. dos AA: Ali. Alguma vez a senhora assistiu aos hóspedes a queixarem-se do ruído?
[00:09:15] T: Sim, e houve uns sobretudo que abandonaram a estadia e eles próprios fizeram queixa à polícia.
[00:09:23] Ad. dos AA: E a senhora viu isso? Assistiu?
[00:09:25] T: Sim, sim, sim.
[00:09:26] Ad. dos AA: A senhora estava lá?
[00:09:28] T: Fui lá, fui chamada nessa sequência, pelo autor que ele comunicou comigo, com o Sr. AV, comigo ou com os amigos, com outros que têm a Quinta A na P. Comunicou logo.
[00:09:43] Ad. dos AA: A senhora esteve lá numa festa de anos da autora?
[00:09:48] T: Da autora não, do autor.
[00:09:50] Ad. dos AA: Em que os hóspedes vieram-se queixar e dizer que se queriam ir embora? Não esteve presente?
[00:09:56] T: Nessa vez não.
[00:09:57] Ad. dos AA: Olhe…
[00:10:07] T: E mais, eu queria referir que tanto este casal como o grupo de amigos que nos damos mais frequentemente, somos todos pessoas de certa idade, muito voltadas para o mundo da natureza, para o mundo dos animais, temos estilos de vida saudável, calma, ligadas à ciência, ao estudo e, portanto, este tipo de ruídos incomoda. Também sei que têm tentado falar pessoalmente com os senhores vizinhos e eles não permitem, não tratam com boa educação.
Também resulta das declarações de parte do autor a que corresponde o ficheiro 2020/09/25 – 10h40m13s, o seguinte:
[00:09:35]  Juiz: Aconteceu alguma coisa relativamente aos cães, claro, com as pessoas?
[00:09:38] Intérprete: Did anything happen between the guests and the dogs?
[00:09:43] Autor: Yes, they…
[00:09:43] Intérprete (Autor): Sim.
[00:09:44] Autor: They complained…
[00:09:45] Intérprete (Autor): Eles queixaram-se…
[00:09:47] Autor: And say “the place is so wonderful, the apartment is…”
[00:09:49] Intérprete (Autor): Disseram que o lugar era tão bonito…
[00:09:52] Autor: “…super nice…”
[00:09:52] Intérprete (Autor): …o apartamento é muito bom…
[00:09:55] Autor: “…and [imperceptível], you know? The owner is very nice, everything was perfect…”
[00:09:59] Intérprete (Autor): Os proprietários são simpáticos, tudo perfeito…
[00:10:02] Autor: “…except the dogs.”
[00:10:03] Intérprete (Autor): …à excepção dos cães.
[00:10:05] Autor: So, when they were taking tours in the island…
[00:10:09] Intérprete (Autor): Quando eles estavam a passear pela ilha…
[00:10:10] Autor: [impercetível] but at night…
[00:10:12] Intérprete (Autor): …não ouviram os cães, mas à noite…
[00:10:15] Autor: …they complained about not being able to sleep.
[00:10:16] Intérprete (Autor): …queixavam-se dos barulhos dos cães, não conseguiam dormir.
[00:10:19]  Juiz: Houve alguma situação com hóspedes…
[00:10:23] Intérprete: Was there any particular situation relating to your guests?
[00:10:27] Autor: Yes. 2 couples, 2 guests, they complained…
[00:10:30] Intérprete (Autor): Dois casais, dois hóspedes queixaram-se…
[00:10:34] Autor: And said “Mr., can you call a friend or can we stay somewhere else?”
[00:10:38] Intérprete (Autor): E pediram para ficar noutro lugar.
[00:10:40] Autor: “Because we would like to have before we go home, [impercetível] because we’d like to have one quiet night”.
[00:10:46] Intérprete (Autor): Gostaríamos de ter uma noite tranquila antes de regressar.
[00:10:49] Autor: So we can rest and sleep 100%.
[00:10:51] Intérprete (Autor): Para poder descansar e dormir.
[00:10:53]  Juiz: E foram embora? Ou o que é que aconteceu?
[00:10:55] Intérprete: Did they leave?
[00:10:56] Autor: Yes.
[00:10:57] Intérprete (Autor): Sim.
[00:10:58] Autor: I called one friend, because…
[00:10:59] Intérprete (Autor): Eu liguei a um amigo.
[00:11:01] Autor: …he has alojamento local nas Furnas.
[00:11:03] Intérprete (Autor): …que tem um alojamento local nas Furnas.
E o mesmo das declarações da autora, cuja inquirição está gravada no ficheiro 2020/09/25 – 10h08m11s:
[00:19:01] Ad. dos AA: Se eles alguma vez tiveram que pagar alojamento de turistas fora da propriedade, num hotel, por causa do barulho dos cães?
[00:19:05] Intérprete: If you ever had to pay [sobreposição de vozes] guests because they left?
[00:19:10] Autora: Yes.
[00:19:11] Intérprete (Autora): Sim.
[00:19:14] Ad. dos AA: E foram pagar num hotel?
[00:19:15] Intérprete: Did you pay a hotel?
[00:19:17] Autora: Yes.
[00:19:17] Intérprete (Autora): Sim.
Pelo exposto, os factos 12, 13 e 14 foram correctamente julgados.
Decidindo:
Os argumentos do réu não têm nada a ver, de novo, com a convicção do juiz formada com recurso à prova testemunhal, mas sim com o seguinte: “ignorou a decisão recorrida que o seu conhecimento exigia suporte documental bastante.”
Ora, se se reler a argumentação do réu, a única coisa que ele pode estar a defender nesta impugnação de factos, é que os proprietários do alojamento em causa não são os autores mas sim uma sociedade.
Sendo que o réu tem razão, pois que as facturas que são os documentos 8 e 9 são emitidas para pagamento por uma sociedade, não pelos autores. Sociedade que, como o próprio nome indica, será uma sociedade constituída pelo autor e que provavelmente o terá como único sócio, mas que não se confunde com este.
Assim sendo, tais documentos, juntos pelos próprios autores, provam suficientemente que não são os autores que prestam serviços de alojamento temporário e que a transferência de hospedagem não foi feita a expensas dos autores mas sim da sociedade em causa.
Isto implica a necessária alteração dos pontos 12 e 14 (onde está autores deve passar a constar a dita sociedade) e a manutenção do que consta do ponto 13.
*
Da alegada contradição insanável (art. 615/1-c do CPC)
O réu entende que existe contradição entre os factos dados como provados em 5, 9 e 18.
Ou seja, diz o réu:
O réu tem um canil com cães desde 2018. Antes disso os autores dormiam sossegadamente. Por não conseguirem dormir com o ruído dos cães foram para Alemanha em... 2017. Significa isto que, um ano antes (2017) de os cães serem colocados no canil (2018), os autores adivinharam e foram descansar duma dor futura.
Verifica-se contradição insanável de fundamentação quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Os autores respondem que:
O que o tribunal dá por provado no ponto 5 é que, desde altura não concretamente apurada que o réu tem instalado um canil e que tal no ano de 2018 se verificava. E o que o tribunal dá por provado no ponto 18 é que em data não concretamente apurada mas posterior a 2017, a autora regressou à Alemanha para descansar e recompor-se da exaustão em que se encontrava.
Em ambos os casos as datas são não concretamente apuradas, pelo que é chicana argumentativa dizer-se que se trata de uma dor futura. Como é evidente, não é antagónico ou inconciliável, no sentido de que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito, que se afirme, por um lado, que no seu prédio o réu tem um canil, com vários cães, desde altura não concretamente apurada mas situada no ano de 2018 e, por outro lado, que em data não concretamente apurada mas posterior a 2017, a autora regressou à Alemanha para descansar e recompor-se da exaustão em que se encontrava.
É que no “posterior a 2017” inclui-se o ano de 2018. É quanto basta para que tal nulidade seja improcedente.
Decidindo:
A apontada contradição, a existir, não seria causa de nulidade da sentença (art. 615/1-c do CPC), mas antes vício que implicaria o eventual recurso à solução do art. 662/2-c do CPC.
Seja como for, não se verifica a contradição em causa, pois que, como dizem os autores, no “posterior a 2017” inclui-se o ano de 2018.
*
Na conclusão 1 do recurso, o réu diz que “Os meios de prova utilizados para suporte da sentença recorrida, para além de erroneamente interpretados são insuficientes, ou até mesmo omissos, nomeadamente quanto aos factos dados como provados no ponto 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19.”
Transcreveu-se acima toda a matéria da impugnação da decisão da matéria de facto, e dela não consta, como se vê, qualquer impugnação concreta dos pontos 17 e 19, pelo que a matéria destes pontos não está impugnada.
*
Em suma: a impugnação da decisão da matéria de facto é procedente apenas no que se refere aos pontos 12 e 14 dos factos provados, o que implicou a alteração que já se fez nela.
*
Da alegada omissão do dever de fundamentação
Segundo o réu,
verificar-se-iam as nulidades previstas no art. 615/1-b-c do CPC, porque na motivação o Sr. juiz não discriminou os factos não provados e não enuncia os meios de prova em que se suportou para a sua formação e não explicou o percurso cognitivo que determinou a decisão sobre a matéria de facto e o motivo que o desencadeou a proceder à avaliação e valoração da prova documental junta ao processo.
Os autores respondem que:
a sentença recorrida tem tais requisitos de clareza e precisão na indicação da matéria de facto provada e não provada e na fundamentação dessa decisão e que apesar de [o réu] alegar tal vício não o factualiza, limitando-se a dizer que o tribunal não explicou o percurso cognitivo que determinou a decisão sobre a matéria de facto. Mas tal não é verdade, porque da sentença recorrida tal consta da seguinte forma:” [aqui os autores transcrevem as várias páginas de fundamentação da convicção do tribunal]. E concluem “Não há dúvida, pela fundamentação que se transcreve, que a sentença recorrida não enferma de nulidade.
Decidindo:
Antes de mais, não é verdade que o tribunal recorrido não tenha especificado quais os pontos de facto não provados. Fê-lo expressamente. Se o réu entende que havia outros que deviam ter sido dados como não provados, impugnava a decisão da matéria de facto nessa parte. E também não é verdade o mais que o réu diz sobre a falta de fundamentação, que já se viu acima qual foi e que, como se viu, é suficiente.
Quanto ao mais são considerações genéricas que o réu tece, em vez de concretizar, como referem os autores, qual ou quais dos pontos de facto sofre/m de falta de fundamentação. O relevo desta falta só tem sentido em concreto, em relação a cada ponto de facto, pelo que seria só perante essa concretização do eventual vício, que este TRL se teria de pronunciar.
*
Do recurso sobre matéria de direito
Quanto ao 1.º pedido e 1.ª condenação - remoção dos animais      
A sentença condenou o réu a remover os animais de raça canina que se encontrem na sua propriedade, de modo a que não se aproximem a uma distância de pelo menos 100 metros do prédio dos autores.
A fundamentação de direito da sentença
A sentença começou por esclarecer que:
Os autores tinham direito ao repouso, ao sossego/tranquilida- de e ao sono, como direitos de personalidade integrantes do direito geral de personalidade e referiu as normas que os previam como direitos fundamentais (arts. 16/2, 17, 18 e 25 da Constituição da República Portuguesa, 3, 24 e 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 70/1 do Código Civil). E referiu ainda que assumiam especial relevância o direito à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, de acordo com os artigos 64 e 66 da Constituição.
Neste sentido, referiu os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça:
de 29/11/2016, proc. 7613/09.3TBCSC.L1.S1: “Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade são emanação dos direitos fundamentais de personalidade, à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, corolários da dignidade humana.”;
e de 17/01/2002, proc. 01B4140 (apenas sumário) [que a sentença, por lapso, disse ser do TRL]: 1 - A produção ou emissão de ruído, seus efeitos lesivos para o homem e a sociedade e a tutela dos direitos e interesses envolvidos pode ser encarada por três ópticas:- a do direito do ambiente, enquanto causa de poluição (artigos 21 e 22 da LBA); - a do direito de propriedade, no domínio das relações de vizinhança, (art. 1346 do CC); - a dos direitos de personalidade, enquanto possível ofensa à personalidade física ou moral de alguém (art. 25 da CRC e art. 70 do CC). 2 - O direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono são aspectos do direito à integridade pessoal, que faz parte do elenco dos direitos fundamentais. 3 - A ilicitude de um comportamento ruidoso, que prejudique o repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros, está no facto de, injustificadamente e para além dos limites do socialmente tolerável, lesar tais baluartes de integridade pessoal.
Depois a sentença esclarece, com apoio em Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, 2006, págs. 71 e 72 [= P. Pais de Vasconcelos e P. L. Pais de Vasconcelos, Teoria geral do direito civil, 9.ª edição, 2019, Almedina, pág. 65 - TRL], que:
é uma orientação jurisprudencial constante e correcta, que o ruído que impeça o sono constitui violação do direito de personalidade, direito ao repouso, ainda que o nível do ruído não exceda os limites fixados no respectivo Regulamento do Ruído, dado que o direito de personalidade não pode ser restringido por um simples regulamento. A compatibilização jurídica deste com aquele “deve ser feita no sentido de que todos devem limitar e emissão de ruídos, em geral, ao estabelecido no Regulamento; mas desse Regulamento não resulta um “direito a fazer ruído” e muito menos a ilicitude do impedimento do repouso alheio. […] O direito de personalidade prevalece sobre o regulamento do ruído.”
No mesmo sentido, a sentença apontou ainda:
o ac. do STJ de 2002, já citado: 4 - A ilicitude, nesta perspectiva, dispensa a aferição do nível do ruído por padrões legais estabelecidos.)
Acrescenta que:
a relevância da ofensa a esses direitos também não é afectada pela circunstância de a actividade que o provoca se encontrar, ou não, devidamente licenciada (neste sentido, cfr Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeira Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, Volume II, pág. 79, em anotação ao artigo 651, e os acórdãos do STJ, de 15/05/2008 (proc. 08B779) e de 06/12/2012 (proc. 247/1998.C2.S1).
Depois, pressupondo o direito do réu em poder usar o seu prédio de modo pleno e exclusivo (art. 1305 do CC – embora dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas), tendo lá os seus cães que ladram, direito de propriedade que é um direito económico (art. 62 da CRP), direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, aplicando-se pois a ele também o regime destes, diz que há um conflito entre estes direitos, e invoca o que é dito pelo ac. do STJ citado acima, de 29/11/2016, isto é, que:
 “ambos ser assegurados, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.”, pois que os direitos fundamentais, enquanto princípios que são, não se revestem de carácter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam.
Ou seja, sempre seguindo o ac. do STJ de 29/11/2016:
III - Os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão-de ser solucionados mediante a respectiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de um em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.
IV - A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da otimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: (i) a sua adequação ao fim em vista; (ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade; (iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respetivas vantagens e desvantagens.
Tudo isto tendo em vista o que é disposto pelo art. 335 do Código Civil (Colisão de direitos):
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.
Depois, utilizando o estudo de Sandra Passinhas, Os animais e o regime português da propriedade horizontal, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, 2006, ano 66, II, págs. 833 e segs, esp. pág. 868,
Lembra a citação por Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, pág. 232, nota 491, de uma passagem de Hubmann, “cada um tem de suportar os pequenos aborrecimentos causados ocasionalmente pelos seus vizinhos, mas já não tem de suportar uma chicana sistemática”.
E continuando a seguir Sandra Passinhas diz que:
 “A vida em comum seria impossível sem cada um sofrer certas incomodidades, nas palavras de François Chabas, Biens, Droit de propriété et ses démembrements, Leçons de Droit Civil por Henri e Léon Mazeaud e François Chabas, tomo II, 10.º volume, 8.ª ed., Montchrestien, Paris, 1994, pág. 98.”
E então, aplicando ao caso dos autos, diz que:
 A lesão do direito dos autores, lesão ofensiva de direitos de personalidade, direitos fundamentais, imateriais que são […] jamais poderia ceder ao interesse egoísta do réu que não merece tutela legal por se traduzir em comportamentos violadores da lei, nos termos acima expostos.” Acrescentando, tendo em conta a tolerância acima referenciada, que se tal “justifica que latidos ocasionais não sejam objecto de reclamação, já quando os latidos são contínuos e pela sua intensidade impedem os vizinhos de descansar, então sim fica a reclamação plenamente justificada.”
E depois segue de novo de perto o estudo de Sandra Passinhas, páginas 868-869 dizendo:
“Na verdade, o poder-utilizar de um entra em colisão com o respeito pelo poder-ser do outro, na situação em que o réu tem na sua propriedade cães que ladram constantemente e pela noite dentro, impedindo ou dificultando o repouso e o sono dos autores. E que critério deve o julgador seguir na apreciação de tais efeitos nos lesados? Não será o critério [do tipo de] pessoa médio, cidadão normal e comum, mas a cada pessoa em concreto. Mesmo que o ladrar de um cão seja suportável por uma pessoa normal, mas habitando como é o caso uma pessoa com doença particular no campo auditivo, como acontece com a autora, a quem o ladrar causa prejuízos intoleráveis, então o tribunal deve agir de acordo com esta concreta ofensa à personalidade do vizinho. Deve prevalecer o direito de personalidade dos autores sobre o direito de propriedade, de carácter patrimonial, do réu detentor dos animais, devendo por isso, como já dissemos o conflito deve ser decidido a favor do direito de personalidade.”
E continua:
Do que deixámos escrito já se antevê a escolha que o tribunal faz entendendo que o fiel da balança pende decididamente a favor dos autores e que, portanto, a harmonização dos direitos conflituantes, em obediência ao princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18/2 da CRP, implica que o réu, tome as devidas providências para que o ladrar dos animais não se propague para o prédio dos autores, onde estes habitam.
Como decorre linearmente dos factos provados o ruído incomodativo, de carácter que embora intermitente, tem características de quase permanência, do ladrar de, pelo menos, dois cães, que se verifica durante dia e noite incluindo o período das 23h as 4 horas, ruido esse a que estão sujeitos os autores, quando se encontram no imóvel (que é a sua residência e para onde se deslocaram vindos do seu país para usufruírem de calma e sossego, até pela doença de que padece a autora), prejudica gravemente o seu uso como local destinado a habitação e convívio, a sua tranquilidade e o ambiente, razão pela qual entendo que deve prevalecer sobre o direito do réu de possuir na sua propriedade onde bem lhe aprouver, um canil com animais de raça canina no seu interior.
Por isso, a pretensão do réu de manter o canil e os cães a menos de 20 metros do imóvel dos autores, não pode proceder. A única forma dos direitos (de personalidade e de propriedade) dos autores não continuarem a ser lesados com o barulho produzido pelos animais ao latirem, ou seja, a cessação desta ofensa obriga necessariamente o responsável (o réu proprietário dos animais) a afastar os cães a pelo menos 100 metros da delimitação da propriedade dos autores, de forma a assim fiquem neutralizados os ruídos produzidos por aqueles animais.
E termina a esclarecer a restrição operada no pedido dos autores:
Não se vê qualquer nexo de causalidade entre a edificação canil, o latir dos cães e a violação dos direitos de personalidade dos autores, pelo que entendo que o réu pode manter a construção, ou melhor, não há qualquer fundamento para que seja obrigado a removê-la.
Contra isto diz o réu:
Só a violação ilícita e culposa dos direitos fundamentais dos autores (direito à saúde e ao repouso) é susceptível de fundamentar a condenação dos réus.
Para que se verificasse a ilicitude da sua conduta na premissa de que os seus cães ladrassem todos os dias e todas as noites, era necessário que os autores lograssem provar a relação de causalidade entre os latidos dos cães e a sua falta de sono quer pelos sentimentos depressivos, tristeza e angústia que sentem perante a situação em causa, o que não lograram provar, tanto mais que em 2017 a autora regressou à Alemanha para descansar e recompor-se da exaustão em que se encontravam, situação anterior à construção e introdução dos referidos cães no canil.
É que a convivência comunitária, como a que ocorre, implica real ou potencialmente, ex natura rerum, algumas contrariedades e incomodidades que os elementos do grupo social se sujeitam a suportar, para poderem continuar a viver no meio urbano que escolheram.
Trata-se da conhecida figura dogmática da área do Direito Penal, transponível, vantajosamente, para a jurídico-civil, designada por adequação social (do alemão sozial Adäquanz, expressão cunhada por Hans Welzel), que constata a tolerância comunitária para certas condutas que, em abstracto se poderiam considerar como infracções, mas que, em homenagem às concretas necessidades da convivência social e aos valores preponderantes na interacção comunitária, em dado momento histórico, são comummente suportadas como toleráveis.
Isto porque, como é sabido, na convivência social em núcleos populacionais [densos], impõem-se algumas restrições de interesses individuais, para que todos possam viver em conjunto em espaços necessariamente limitados.
Daí que não baste falar-se in abstrato na prevalência ou preponderância de uma espécie de direitos fundamentais em relação a outra, como parece ser a convicção da julgadora, antes se exigindo a avaliação concreta do circunstancialismo fáctico de cada situação, tendo em pauta os referidos princípios.
Por isso mesmo, no ac. do STJ de 15/03/2007, […] decidiu-se, na parte que ora interessa: “Caso a caso, importa averiguar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante.”
Apreciando:
Esta argumentação do réu é errada por uma série de razões.
Primeira, o réu esquece-se de dizer que está a transcrever, ipsis verbis, excepto nas partes sublinhadas ou rasuradas, o que consta dos pontos I, II e V a IX do ac. do STJ de 30/09/2010, proc. 1229/05.0TVLSB.L1.S1; esta omissão, para além do mais, tenderia a impossibilitar a comparação dos factos que estão na base do acórdão em causa e os da sentença recorrida.
Segunda, a posição daquele acórdão do STJ baseia-se na falta de prova do nexo de causalidade. Ora, no caso dos autos o réu tentou afastar essa prova e não o conseguiu, estando provados factos suficientes para afirmar o nexo de causalidade (são os factos dos pontos 8, 11 e 18).
O reu sugere que não se verifica esta prova porque se deu como provado que em 2017 a autora regressou à Alemanha para descansar e recompor-se da exaustão em que se encontrava; ora, também se provou que os cães só para lá foram em 2018. Esta questão já foi vista a nível da discussão da matéria de facto, pelo que se pode agora dizer que o réu não está a reproduzir factos, mas a distorcê-los, pois que no ponto 18 dos factos provados não se diz que a autora se foi embora em 2017, mas sim em data posterior a 2017.
Terceira, a sentença recorrida explicou que o caso estava para além dos limites da necessidade de tolerância e o réu nem sequer tenta afastar as razões da sentença, que são correctas.
Quarta, a situação no caso do ac. do STJ, dizia respeita a um núcleo populacional denso; o réu retirou essa palavra da transcrição do sumário do acórdão. No caso dos autos, as casas dos autores e do réu ficam num “local calmo e sossegado”, como decorre implicitamente do ponto 17 dos factos provados. No caso do acórdão do STJ, há muitos anos que os réus tinham animais em casa, muito antes de os autores irem viver para a moradia em causa; no caso dos autos, os autores já estavam a viver na casa deles antes de o réu levar para lá os cães; no caso do acórdão do STJ provou-se apenas que os cães ladram, em determinadas ocasiões, do dia e da noite e que os autores também tinham um cão, que por vezes também ladrava; no caso dos autos provou-se que os cães do réu, em número nunca inferior a dois, desde a data em que foram ali instalados ladram diariamente, durante o dia e a noite, de forma persistente e ruidosa, privando os autores de descanso, sossego e tranquilidade, nomeadamente entre as 23h e as 4h, privando-os de sono. Como se vê, um caso nada tem a ver com o outro.
Por fim, acrescente-se apenas que a expressão ‘culposa’ utilizada no sumário do ac. do STJ corresponde a um erro do autor do sumário, já que ela não tem qualquer correspondência com o texto do acórdão. E a doutrina e a jurisprudência concordam que, como resulta do próprio texto do art. 70 do CC, a culpa não é pressuposto para a protecção da lei nem para o recurso às providências adequadas às circunstâncias do caso (apenas por exemplo, veja-se Maria de Fátima Ribeiro, na pág. 173 do Comentário ao CC, UCE/UCP/FD, 2014, pág. 173: “(independentemente da existência de culpa)”). Será necessária apenas para a questão da responsabilidade civil, que não está, nesta parte, em causa.
O réu continua:
Importa, por isso, lançar mão dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Há que sopesar adequada proporção dos valores em análise aquilatando em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro, vedando-se o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva.
No caso em apreço não deveria ter ficado demonstrado que os cães pertença do réu estivessem constantemente a ladrar, de dia e de noite. Em suma não pode a julgadora dar como provado, conforme fora alegado pelos autores, que os cães ladravam constantemente dia e noite e em consequência do barulho provocado pelos cães do réu, os autores se encontrem privados constantemente do descanso e tranquilidade.
Mais se acrescenta que a intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações da vizinhança, há que tolerar, obviamente, algum ruído, e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros.
Os próprios autores, pese embora alegarem sofrer de alguma hipersensibilidade ao ruído provocado pelos cães do réu, eles próprios são igualmente produtores de ruído, como todas as pessoas que partilhem a vizinhança.
Portanto não é aceitável, atento ao circunstancialismo fáctico demonstrado no presente recurso, que o réu não possa utilizar plenamente a respectiva moradia e nela deter os seus cães, princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
Apreciando:
Aqui o réu utilizou - com um mínimo de adaptação no 4º§, sem qualquer base factual já que nos factos provados nestes autos não se fala em qualquer barulho provocado pelos autores, e com a introdução do 2º§, também sem qualquer base factual pois que a impugnação de facto que ele deduziu não produziu frutos - passagens do ac. do TRL de 01/10/2009, proc. 1229/05.0TVLSB.L1-2, algumas já transcritas pelo ac. do STJ citado acima, com o mesmo número base, ou seja, trata-se do mesmo caso, que levou àquelas consideração do STJ, seguindo idênticas conclusões da Relação.
Aplica-se, por isso, necessariamente, o que já se disse acima, acentuando-se apenas o seguinte: o caso julgado pelo TRL e STL no processo 1229/05 demonstra uma situação em que o limiar da tolerância necessária à convivência social não é ultrapassado, sendo que o caso destes autos, pelo contrário, trata de uma situação em que esse limiar está completamente ultrapassado.
No mesmo sentido da sentença recorrida, veja-se o ac. do STJ de 03/10/2019, proc. 3722/16.0T8BG.G1.S1:
III. Não obstante a vivência nos meios rurais, impor que nas relações de vizinhança seja de tolerar os ruídos provocados pelos animais domésticos legitimamente criados nos quintais das residências, tais como galinhas e galos, e a suportar algumas contrariedades e incomodidades daí advenientes, a verdade é que essa tolerância e limitação deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, para que todos possam continuar a viver em sociedade no ambiente rural que escolheram. IV. Assim, demonstrado que o direito dos autores ao sono e ao repouso está a ser interrompido e afectado, diariamente, entre as 3 e as 5 horas pelo barulho estridente dos galos e galinhas que os réus criam num anexo, que dista apenas 4,395 metros da casa dos autores, impõe-se ter por prevalecente o referido direito dos autores, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, sobre o direito de propriedade dos réus e os interesses destes em fazer criação de galinhas e galos.
Posto isto, e considerado já quase tudo o que o réu disse, conclui-se que a sentença recorrida, pelas razões que invocou, decidiu bem pela prevalência, no caso, dos direitos dos autores ao repouso, sossego e sono, sobre o poder de o réu ter, na sua propriedade, a 20 metros da casa dos autores, cães que ladram diariamente, durante o dia e a noite, de forma persistente e ruidosa, privando os autores de descanso, sossego e tranquilidade, nomeadamente entre as 23h e as 4h, privando-os de sono.
Acrescente-se apenas o seguinte, que, aliás, já decorre do que antecede:
i/ Os autores já viviam no local quando o réu levou para lá os cães; ii/ a sentença recorrida, aliás no seguimento do teor do pedido dos autores, não deixou de ter em conta os interesses e poderes de uso do réu, pois que apenas condenou o réu a remover os cães que se encontrem na sua propriedade, de modo a que não se aproximem a uma distância de pelo menos 100 metros do prédio dos autores, sendo que o réu não alegou nada no sentido de não ser possível manter os animais na sua propriedade respeitando esta condenação que corresponde ao pedido dos autores; iii/ assim, com a remoção dos cães, evitam-se prejuízos para os autores e não se demonstra, nem está minimamente indiciada, a provocação de qualquer prejuízo para o réu (com isto, está-se a ter em conta alguns dos critérios de resolução do conflito que são usados pela jurisprudência e sintetizados por Menezes Cordeiro, no CC comentado, I, 2020 CIDP/Almedina, págs. 945-947); iv/ por outro lado, perante os poucos factos alegados pelo réu, não há qualquer razão para dizer que no caso se esteja, quanto aos cães do réu, perante uma “propriedade constitutiva” da personalidade do réu, que devesse levar a uma ponderação especial do valor dela (caso, por exemplo, do animal que seja de facto um animal de companhia), caso em que se poderia dizer que não se estaria perante um conflito entre um poder de um direito de propriedade e um direito de personalidade, mas entre dois direitos de personalidade, a ser resolvido nos termos do art. 335/1 e não nos termos do art. 335/2 do CC (veja-se o referido estudo de Sandra Passinhas, págs. 869-871, desenvolvido em Propriedade e personalidade no direito civil português, Almedina, 2017, especialmente páginas 481 a 539), o que é mais uma razão para a prevalência, no caso concreto, do direito de personalidade sobre um dos poderes de usar do direito de propriedade.
*
Termina o réu esta parte dizendo que:
Mesmo que se entenda que a autora sofre da condição referida por facto imputável ao recorrente, não pode a mesma ser facto suficiente para condenar o réu, de forma totalmente desproporcional, na quantia de 8000€ a título de indemnização por danos não patrimoniais, uma vez que axiológica e normativa superioridade dos direitos de personalidade, sobre os direitos de propriedade, não se verifica no caso concreto, isto é, os contornos circunstanciais dos interesses dos autores, por um lado, e dos interesses dos réus, por outro, não justificam que se imponha a estes o sacrifício do seu direito, face à natureza da lesão do direito daqueles (principio da proporcionalidade), sob pena de uso de um meio intolerável para o réu, afectado pela medida restritiva de remover os animais de raça canina que se encontrem na sua propriedade, na sanção pecuniária compulsória de 250€ por cada dia de atraso na remoção dos animais referidos, e ainda e mais gravosa, ao pagamento de 8.000€ a título de indemnização por danos não patrimoniais, desprezando por completo o principio da razoabilidade.
Apreciando:
Esta parte do corpo das alegações do réu mistura tudo – a providência adequada às circunstâncias, a indemnização, a sanção pecuniária… -, com base num único argumento: mesmo que a situação da autora – o réu não justifica esta restrição à autora, deixando de fora o autor – fosse imputável ao réu, todas as condenações não se justificariam porque, no caso concreto, o direito de personalidade não prevaleceria sobre o poder de usar o prédio tendo lá os cães.
Como já se demonstrou o contrário, o argumento cai logo pela base, quanto à providência decretada.
Na altura própria discutir-se-á o argumento na sua aplicação às outras condenações.
Em suma: improcede toda a argumentação do réu contra a sentença.
*
Do 3.º pedido e 2.ª condenação: danos não patrimoniais
Da fundamentação da sentença
A sentença lembra que o art. 70/2 do CC inclui expressamente a responsabilidade civil entre os meios gerais de tutela da personalidade física ou moral (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, pág. 63 e 64 [= Coimbra Editora, 3.ª edição, 1985, páginas 87-88; = 4.ª edição, 2005, pág. 101 - TRL]: “Constituem os direitos de personalidade um círculo de direitos necessários; um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa”, cuja violação traduz um facto ilícito civil que desencadeia a responsabilidade civil do infractor (obrigação de indemnizar os prejuízos causados).
Depois diz que são aplicáveis, nos termos gerais, os artigos 483 e segs do CC, dizendo que “em princípio, para que se verifique a obrigação de indemnizar, impõe-se a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos aludidos no art. 483/1 do CC”, que passa então a analisar, tal como analisa as normas legais que falam dos danos patrimoniais e não patrimoniais, e conclui pela verificação daqueles.
A ilicitude, os danos e o nexo de causalidade já estão demonstrados acima.
Quanto à culpa e à fixação da indemnização dos danos não patrimoniais escreve a seguir a sentença, que se transcreve sempre em síntese:              
O artigo 496 do CC, referindo-se à tutela dos danos não patrimoniais diz no seu nº1 que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito» e no nº 3 que “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494”.
O art. 494, por sua vez, diz que “quando a responsabilidade se fundar em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem” e entre estas circunstâncias contam-se a natureza e gravidade do dano sofrido e os sofrimentos, físicos e psíquicos dele decorrentes, sendo certo que nestes casos a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, tal compensação deve ser significativa e não meramente simbólica.
Ora, provando-se a incomodidade do ruido para o descanso e sono dos autores, impõe-se atribuir aos lesados no direito ao repouso e a um ambiente sadio, uma indemnização, por danos não patrimoniais, com vista à tutela dos seus interesses, face aos prejuízos causados pelos ruídos provenientes dos cães propriedade do réu e que decorre de um seu comportamento no mínimo negligente e omissivo.
Na verdade, há culpa sempre que a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito, sendo certo que na negligência ou mera culpa, o juízo de censura funda-se na omissão de um dever de diligência ou de cuidado por parte do agente. Verifica-se quando este não procede com a diligência a que está obrigado e que, em face das circunstâncias do caso, seria exigível a um bom pai de família -artigo 487/2 do CC.
Ora, no caso em apreço, provou-se a omissão daquela diligência, face aos ruídos que o próprio verificava e que o levavam mesmo a procurar a causa, às deslocações da GNR ao local, a quem dava conta que sabia das queixas dos autores e por último ao facto de ter retirado entretanto os animais daquele local.
A privação do sono e do repouso da pessoa, quando assume carácter continuado, constitui um factor de extraordinária degradação do sistema psicossomático do ser humano, representando um prejuízo substancial para a sua estrutura física e mental, para o seu equilíbrio emocional, para a sua capacidade de realização pessoal e profissional, para a sua qualidade de vida, enfim, revestindo um dano essencial para a sua personalidade, face à sua manifesta gravidade.
Provados que foram os factos relativos à privação de sono, devido ao latir constante dos cães, bem como o estado psíquico de irritação e nervosismo, angustia e tristeza de que foram portadores os autores, desde 2018 e que se acentuou em 2019, em consequência do ruído e da impossibilidade de conseguir um sono retemperador e usufruírem da tranquilidade e sossego necessários à vida no dia-a-dia na sua residência, ademais pelas razões pelas quais aqui residem, ao convívio tranquilo com quem os visitava, constituem-se eles como danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, se não configuram como simples incómodos, atendendo a que tais situações se mostram susceptíveis de enquadramento no âmbito da violação do direito à saúde, devendo, consequentemente, esses danos ser objecto de ressarcimento pela via indemnizatória, atendendo-se, no respectivo cálculo, ao critério da equidade.
Intervindo aqui, na fixação do montante indemnizatório, a equidade, importa à realização da justiça do caso concreto, que vai implicada no juízo de equidade, que fundamentalmente se tenha em conta, para a valoração do dano em apreço, não só o acervo factual acima referido, mas também o grau de culpa do réu e as demais circunstâncias a que alude o já citado art. 494, designadamente a gravidade do dano e a situação económica e a condição social dos autores e réu.
Assim, considerados todos os referenciados factores, relevantes na formulação do juízo de equidade para a fixação do quantum indemnizatório, os padrões de indemnização que vêm sendo adoptados pela jurisprudência, que constituem também circunstância a ter em conta no quadro das decisões que façam apelo à equidade, temos que o montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais sofridos por eles, deve ser fixado na quantia de 8000€.
Já se viu acima o que é que réu disse sobre esta matéria, misturada com outra, e parte da argumentação já foi afastada.
Quanto ao mais, a questão tem que ser vista mais por tópicos: estará violado o princípio da proporcionalidade? A indemnização representará o uso de um meio intolerável para o réu? O valor de indemnização despreza o princípio da razoabilidade?
Decidindo:
A sentença recorrida invoca a jurisprudência sobre a matéria, mas não dá um único exemplo da mesma.
Alguns dos últimos acórdãos que se pronunciaram sobre a questão são os seguintes (numa síntese muito curta):
No ac. do STJ de 29/11/2016, proc. 7613/09.3TBCSC.L1.S1, já citado, diversos autores pediam, 6000€ para cada um a título de danos patrimoniais e não patrimoniais; estavam em causa, por parte da demandada, actividades que têm em vista o bem-estar público, a higiene e a salubridade pública, em instalações que são fundamentais para o cabal exercício desse serviço prestado aos munícipes; a sentença, confirmada pelos acórdãos do TRL e do STJ nesta parte, condenou a ré a pagar, segundo se entende a título de danos não patrimoniais, a um dos autores 2500€ e a cada um dos demais autores 1000€ (os prédios foram comprados no início de 2008 e a acção foi posta em 2009).
O acórdão do STJ de 29/06/2017, proc. 117/13.1TBMLG.G1.S1,  repôs a sentença recorrida que tinha condenado os réus a indemnizarem os autores em 5000€ e em 3000€, respectivamente, pelos danos não patrimoniais sofridos, entre 2008 e 2015, em consequência do ruído proveniente de uma discoteca que funcionava entre as 22h e as 7h.
No acórdão do STJ de 18/10/2018, proc. 3499/11.6TJVNF.G1.S2, confirmou-se o ac. do TRG que tinha confirmado a sentença recorrida, atribuindo-se uma indemnização, a cada um dos autores, de 10.000€, pelos danos não patrimoniais sofridos, durante mais de 10 anos.
No ac. do STJ de 03/05/2018, proc. 2115/04.7TBOVR.P3.S1, confirmou-se um ac. do TRP que tinha confirmado uma sentença que atribuiu uma indemnização, por danos não patrimoniais, a um autor, de 4000€ e a outro autor, de 6000€; estava em causa o funcionamento de uma subestação de electricidade durante mais de 20 anos e provocando inúmeros danos.
No ac. do STJ de 03/10/2019, proc. 3722/16.0T8BG.G1.S1, confirma-se o ac. do TRG que tinha atribuído 500€ para cada um de dois autores de indemnização pelos danos decorrentes de o direito dos autores ao sono e ao repouso estar a ser interrompido e afectado, diariamente, entre as 3 e as 5h pelo barulho estridente dos galos e galinhas que os réus criam num anexo, que dista apenas 4,395 metros da casa dos autores. O pedido tinha sido deduzido sem referência a um valor certo. O anexo foi construído no Verão de 2012.
No caso do ac. do STJ de 27/02/2020, proc. 2444/07.8TVLSB.L1.S1, julga-se adequada a indemnização de 7500€, atribuída pelo TRL, pelos danos não patrimoniais, correspondentes à lesão do direito ao sossego, que durante vários anos [de 2005 a 2014] sofreu, em consequência do ruído causado pelos réus, moradores no apartamento situado no andar por cima do seu.
*
No caso dos autos tem que se ter em conta que se trata de dois autores, não de um apenas, pelo que, a indemnização, como foi estabelecida, se traduz em dar a cada uma compensação de 4000€ por danos verificados no período de cerca de 2 anos.
Esses danos são graves, nos termos já caracterizados pela sentença recorrida.
O estado de saúde anterior dos autores, dado a conhecer nesta acção por eles próprios, agravou os danos, mas este agravamento não é imputável ao réu, para efeitos de fixação da indemnização, já que nem se prova que o réu tivesse conhecimento daquele estado de saúde.
A culpa do réu tem a forma de negligência consciente, já que no ponto 19 se dá como provado que “o réu teve conhecimento por diversas vezes, das queixas que os autores apresentavam e tinham em consequência do latir dos seus animais”. Com este conhecimento, tinha de admitir que podia estar a provocar danos nos autores e mesmo assim deixou a situação manter-se, só a tendo alterado em Março de 2020. Alteração esta que, por sua vez, como diz a sentença recorrida, serve de demonstração dessa negligência. Os outros factos referidos pela sentença recorrida para comprovar a negligência do réu, deixados sublinhados, não podem ser aproveitados, pois que não constam dos factos provados. A fundamentação dos factos provados serve para esta prova, não para a decisão de direito.
Quanto à situação económica do réu sabe-se apenas que não é a correspondente à de uma pessoa pobre, pois que tem pelo menos um imóvel misto, mas não sabe sequer se isto não tem como contrapartida um passivo para compra do mesmo. E o mesmo se passa com a dos autores.
Tendo em conta a comparação do caso dos autos, com os casos dos acórdãos do STJ sintetizados acima, em que normalmente quantias de valores próximos dos aqui atribuídos visavam danos prolongados por vários anos, e o mais que foi dito acima, considera-se que uma indemnização de 2000€ para cada um dos autores está mais conforme com a jurisprudência invocada pela decisão recorrida.
*
Do 4.º pedido, 3.ª condenação: da sanção pecuniária compulsória de 250€ por cada dia.
Fundamentação da sentença
A sanção pecuniária compulsória, prevista no art. 829-A/1 do CC, visa a obtenção de um meio que simultaneamente assegure o cumprimento das obrigações e o respeito pelas decisões judiciais, a favor do prestígio da justiça. O seu fim não é o de indemnizar os danos sofridos pelo credor com a mora, mas o de forçar o devedor a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição ou da sua inacção.
Na verdade, o art. 829-A do CC permite, ou até impõe, a condenação do devedor em sanção pecuniária compulsória, a requerimento do credor, nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, devendo tal condenação corresponder ao “pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso” (n.º 1), sendo a mesma “fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar” (n.º 2).
Por definição, a sanção pecuniária compulsória é a condenação pecuniária decretada pelo juiz para constranger e determinar o devedor recalcitrante a cumprir a sua obrigação. É, pois, um meio de constrangimento judicial que exerce pressão sobre a vontade lassa do devedor, apto para triunfar da sua resistência e para determiná-lo a acatar a decisão do juiz e a cumprir a sua obrigação, sob a ameaça ou compulsão de uma adequada sanção pecuniária, distinta e independente da indemnização, susceptível de acarretar-lhe elevados prejuízos.
Os autores pedem o pagamento de 500€ por cada dia de atraso.
Parece-nos excessivo o valor diário da sanção peticionada e estamos em crer que a quantia suficiente para constranger o réu a adoptar aquela atitude (no caso, a não a retomar, pois que os animais já foram dali removidos por ele desde Março de 2020), é a de 250€ por dia.
O réu diz que a condenação na sanção (astronómica) pecuniária compulsória de 250€ por cada dia de atraso na remoção dos animais, não tem qualquer sentido pois, está provado em 6 dos factos dados por assente que “ Desde Marco de 2020 que o canil está sem qualquer animal “.
Decidindo:
O autor pedia a condenação na remoção dos animais de modo a que não se aproximem a uma distância de pelo menos 100 metros do prédio dos autores. Os animais foram entretanto retirados e isso foi feito consignado nos factos provados sem impugnação. Mas não há nenhuma impossibilidade física demonstrada de que o réu não volte a levar os animais para lá, caso em que a situação renascerá. Uma sanção que, para essa hipótese, compila o réu a retirar os animais, continua, por isso, a justificar-se (como a sentença se deu ao trabalho de explicar, apesar disso não ter impedido o recurso do réu como se a sentença nada tivesse dito). Em suma, é uma forma de prevenir que o réu queira voltar a lá colocar os animais e não os queira depois retirar.
E, para a necessidade dela, e do seu valor não simbólico, mas ainda assim não astronómico, o recurso do réu, tendo em conta os argumentos usados, é a melhor justificação:
Uma condenação judicial numa obrigação, ou melhor, qualquer obrigação jurídica, existe para ser cumprida. O devedor não tem a alternativa de não cumprir, como decorre do art. 817 do CC: “Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento […].” O réu, ao recorrer, nos termos em que o faz, está implicitamente a dizer que quer um valor mais baixo, o que só pode querer dizer que ele está a ponderar não cumprir a obrigação em confronto com o valor da sanção para esse incumprimento, como se tivesse a alternativa de não cumprir. Isto demonstra a necessidade da sanção, e do valor fixado, para prevenir a vontade de o réu não cumprir a condenação. Para o réu não ter que pagar a sanção diária, basta-lhe não levar novamente os cães para perto da casa dos autores.
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Do 5.º pedido e 4.ª condenação: danos patrimoniais
Diz a sentença:
Relativamente aos prejuízos que ocorreram na esfera patrimonial dos autores, da matéria assente resulta também o dano patrimonial ou de cálculo, ou seja, o reflexo daquele dano sobre o património dos autores, medido por uma diferença: a diferença entre a situação real actual dos autores/lesados e a situação (hipotética) em que se encontrariam se não fosse o facto lesivo.
É este dano cujo ressarcimento os autores pedem e que entendemos ser-lhe devido.
Assim as despesas que suportaram com o realojamento dos seus hóspedes, constituem danos, da responsabilidade do réu, por serem consequência do dano real, tendo sido efectuadas para o remover (nos dias em que os hospedes não suportaram por mais tempo o ruído produzido pelos animais do réu, pela sua intensidade e continuidade), isto é, estamos perante um dano patrimonial que não se teria verificado se não tivesse ocorrido o facto lesivo praticado pelo réu.
Deste modo, decorrendo a obrigação de indemnização, no caso em apreciação, de um facto ilícito culposo do réu tal facto só poderia deixar de ser havido como causa do dano se, segundo a sua natureza geral, fosse de todo indiferente para a produção do dano e só se tivesse tornado condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequado para este dano, o que não manifestamente o caso.
Assim, dúvidas não temos quanto ao direito dos autores a serem indemnizados também pelas despesas, no montante de 250€ que suportaram com o alojamento em hotel dos hospedes, em consequência do ruído produzido, de forma ilícita e culposa pelos animais propriedade do réu em violação do direito daqueles ao repouso, descanso e sono.
Decidindo:
Contra isto, o que o réu limitou-se à impugnação de factos, como se viu acima.
Mas, apesar disso, a alteração decorrente da procedência dessa impugnação tem uma repercussão necessária na apreciação da condenação agora em causa.
É que, se não foram os autores que suportaram a despesa em causa, como não foram – tal decorre da alteração efectuada nos factos 12 e 14 -, ela não pode ser considerada um dano dos autores, pelo que estes não têm direito ao valor dela como indemnização.
Pelo que esta condenação deve ser revogada, procedendo, assim, parcialmente o recurso.
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Custas
No despacho saneador foi fixado à acção o valor de 45.250,01€, correspondendo à soma dos 30.000,01€ do pedido sobre interesses imateriais, + 15.000€ pela indemnização por danos não patrimoniais, e 250€ pelos danos patrimoniais.
A acção teve procedência em 30.000,01€ + 4000€. Logo, a procedência foi de 80,50% e a improcedência foi de 19,50%.
Na sentença, o réu foi condenado no que respeita a 30.000,01€ + 8000€ + 250€ = 38.250,01€. No recurso, o réu quis ser absolvido de tudo. Conseguiu ser absolvido de 4250€. Logo teve procedência em 11,11% e foi improcedente em 88,89%.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, alterando, no ponto 2, a condenação para o valor de 2000€ de indemnização para cada autor, e revogando o ponto 4 da sentença recorrida. Mantem-se a sentença no demais.
Custas da acção, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelos autores em 19,50% e pelo réu em 80,50%.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelos autores em 11,11% e pelo réu em 88,89%.

Lisboa, 11/03/2021
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas