Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14456/19.4T8LSB.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
PRESTAÇÃO ESPONTÂNEA DAS CONTAS
CONTESTAÇÃO DA OBRIGAÇÃO
APURAMENTO DO SALDO
ADMINISTRADOR DO CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– No caso de prestação espontânea de contas, tendo o R. contestado a obrigação de prestar contas, é aplicável o disposto no artº 942º, nº 3 do CPC, havendo que determinar se essa obrigação existe ou não, numa fase incidental, a que se seguirá, caso se conclua pela existência da referida obrigação, fase processual própria e distinta destinada ao apuramento do saldo (nos termos dos artºs 944º e 945, ex vi do artº 946º do CPC).

II– Na medida em que compete ao administrador do condomínio a administração das partes comuns do edifício, está obrigado a prestar contas (artº 1436º, al. j) do CC). Tal obrigação deve ser cumprida – rectius apenas pode ser cumprida – perante todos os condóminos, na respetiva assembleia (artºs 1431º, nº 1 e 1436º, al. j) do CC). Se as contas forem prestadas na ação especial correspondente (artºs 941º e ss. do CPC) devem sê-lo no confronto com todos os condóminos.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa



V.M. intentou ação especial de prestação de contas contra F.M., pedindo a citação da R., nos termos previstos no artigo 946.º n.º 1 do CPC, para, no prazo de trinta dias, querendo, contestar as contas apresentadas pela A.; a condenação da R. no saldo que se vier a apurar das contas apresentadas pela A. e que esta apresenta no montante de € 16.693,00 (dezasseis mil seiscentos e noventa e três euros), bem como no pagamento de juros civis, desde a data da citação até ao integral e efetivo pagamento.

Alegou, em síntese, que por partilha judicial da herança de A.M., pai da A. e da R., transitada em julgado em 06/10/1989, a Recorrente e Recorrida tornaram-se as únicas comproprietárias, sem determinação de parte ou de direito, entre outros, do prédio urbano sito na Rua X, números 20, 20 – A, 20 – B e 20 – C, freguesia de …, concelho de Lisboa, descrito na Sétima Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 0000 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia em apreço, sob o artigo 000º, composto pelas frações autónomas designadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J”, “L”, “M”, “N”, “O”, “P”, “Q”, “R”, e “S”. Por sentença transitada em julgado em 30/11/2009, foi o suprarreferido prédio objeto de divisão judicial, tendo sido adjudicadas à A. as frações autónomas designadas pelas letras “B”; “D”; “E”; “F”; “J”; “N”; “O”; “R”; “S”; e adjudicadas à R. as restantes frações, com uma permilagem total de 51,7214% para a A. e de 48,2786% para a R.. Desde finais de 2016, tendo a R. vendido uma das frações daquele prédio a terceiro, e em finais de 2017 uma outra, passaram a existir, assim, quatro condóminos naquele prédio. Entre janeiro de 2011 e abril de 2018, as despesas a titulo de gestão e manutenção do prédio supra referenciado, ascendeu ao montante de € 36.049,39, que a A. suportou, efetuando transferências bancárias regulares para uma conta bancária separada da sua, denominada “Condomínio do Prédio sito na Rua X”. As despesas de gestão e manutenção do prédio, no total de € 36.049,39, terão de ser suportadas nas respetivas quotas partes pela A. (51,7214%) e pela R. (48,2786%), tendo, no entanto em consideração, que no ano de 2017 a Ré só detinha 42,8814% (uma vez que vendeu a fração “Q”), e no ano de 2018 a Ré só detinha 36,6235% (uma vez que vendeu a fração “P”). Assim sendo, cabe à R., por conta das despesas e manutenção com o imóvel, o montante de €16.693,00. De acordo com o art.º 1405º nº 1 do Código Civil, os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular e separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas.

A R. apresentou contestação.

Alegou, em síntese, que nunca, após novembro de 2009, a Ré foi notificada pela A., para a constituição do condomínio do prédio, para a realização de qualquer assembleia de condomínio, conforme previsto no nº 1 do artº 1430 do Cód. Civil e nº 1 do artº 1432 do Cód. Civil. Nunca foi comunicado à Ré qualquer deliberação tomada em assembleia conforme previsto no nº 6 do artº 1432 do Cód. Civil. Nunca foi comunicado à Ré que esta devia à A., ou ao condomínio do prédio da Rua X, o valor do condomínio mensal ou anual de x, y ou z.  A Ré nada deve à A. Não é verdade que o condomínio do prédio tenha sido constituído em maio de 2018, já que do doc. 21 ao doc. 199, todos como alegados comprovativos das contas apresentadas pela A., na presente ação, são documentos relativos a despesas do condomínio do prédio sito na Rua X, sendo que o Doc. 21 junto pala A., tem a data de 24/06/2011. Ao contrário do alegado pela A., o condomínio não foi constituído em maio de 2018, mas sim em data anterior a junho de 2011, com a identificação fiscal WWWW, razão pela qual, a partir daquela data, de 2011, ao administrador do condomínio competia convocar a assembleia de condóminos, elaborar o orçamento de despesas e receitas para cada ano, cobrar as receitas e pagar as despesas comuns. Entre 2011 e maio de 2018 e, não obstante à A., pertencer a maior permilagem de frações, ter constituído o condomínio e ser provisoriamente administradora do condomínio nos termos do nº 1 do artº 1435 – A do Cód. Civil, o que é certo é que nunca convocou a Ré para qualquer assembleia anual do condomínio, nunca lhe comunicou qualquer orçamento anual, nem lhe exigiu a sua quota parte nas despesas. A A., não tinha que prestar contas das despesas do prédio à Ré. O que a A., devia ter feito, e não fez, enquanto administradora do prédio, nos termos do nº1 do artº 1435-A do C. Civil, era convocar a assembleia de condóminos, elaborar o orçamento anual, e exigir da Ré a quota-parte nas despesas aprovadas. Terminada a propriedade em comum e sem determinação de parte ou direitos, foi concretizada a propriedade de determinadas frações autónomas, sujeitas ao regime da propriedade horizontal.

Têm cada uma enquanto condómino a propriedade exclusiva das frações que lhe pertencem, e a compropriedade das partes comuns do edifício. A partir do momento em que cessa a relação jurídica da compropriedade do prédio, e se estabelece o regime da propriedade horizontal do mesmo, é este regime que passa a regular as relações entre ambas, cabendo a administração das partes comuns à assembleia de condóminos, e a um administrador (nº 1 do artº 1430 do Cód. Civil).

Não pode a A., vir alegar que suportava sozinha, pelo menos desde 2011 a gestão e a manutenção do referido prédio urbano, quando todas as faturas que juntou aos autos são emitidas em nome do Condomínio do Prédio sito na Rua X. E igualmente os documentos bancários juntos e que pretensamente deveriam demonstrar os pagamentos efetuados pela A., são documentos bancários relativos a uma conta bancária do condomínio da Rua X. Subsumindo a relação concreta existente, entre A. e Ré, no que ao prédio urbano referido diz respeito, ao disposto no artº 941 do Cod. Proc. Civil, facilmente se conclui que nem a A. pode propor a ação que propôs, porque não tem o direito de exigir as contas, nem a Ré tinha o dever de prestá-las.

Conclui pela improcedência da ação.

Em 01/06/2020 foi proferido o seguinte despacho:
“Analisados os autos verifica-se que a Ré não põe em causa que as despesas referidas nas diversas contas correntes reportadas aos diversos anos de administração do prédio tenham sido efectuadas parecendo centrar-se a sua defesa na alegação da falta de legitimidade substantiva da Autora para prestar contas e reclamar o pagamento da quota parte das despesas à Ré, alegando ainda esta que não foi convocada para qualquer assembleia de condóminos e, assim sendo, não aprovou orçamentos, nem contas.
Considerando que não foram peticionados quaisquer juros pela mora no pagamento, é indiferente para o destino da acção que tenha ou não sido convocada qualquer assembleia de condóminos ou que tenham ou não sido aprovadas contas, o que aliás, é o escopo da presente acção.
Por outro lado, a Autora alega que foi ela quem sozinha suportou as despesas das partes comuns do prédio numa época em que eram apenas a Autora e a Ré, que são irmãs, as proprietárias das fracções do prédio e as comproprietárias das respectivas partes comuns – art.s 11º e 12º da petição inicial.
Por fim, resulta do documento ora junto pela Autora que a prestação de contas a que se reporta a acção referida na petição inicial, não engloba as despesas a que se refere a presente acção, não permitindo à Ré que alegue nada dever à Autora por já ter pago integralmente a quantia em que ali foi condenada.
Assim, o destino da presente acção está dependente de saber se pode ser afirmado que foi a Autora quem realizou sozinha o pagamento das despesas de gestão das partes comuns do prédio identificado, não sendo claro se a Ré nega este facto ou se apenas defende que a Autora deveria ter interposto a acção na qualidade de Administradora do Condomínio e não em seu nome individual.
Pelo exposto, notifique a Ré para aperfeiçoar a sua contestação, devendo esclarecer a dúvida supra exposta. No caso de se tratar da última hipótese referida, notifique as partes para declararem se concordam que a acção está pronta para decisão sem necessidade de produção de outras provas.”

Em cumprimento do ordenado a R. alegou que:
“(…) dos documentos juntos como alegada prova dos factos por si articulados, o que resulta é que não foi a A. quem pagou os referidos montantes de despesas no prédio, mas sim o condomínio, com o N.P.C. WWWW.
6- A A. tem o NIF …., não tem o NIF WWWW.
7- Conforme a própria A. demonstra, com os docs. que juntou, existe condomínio do prédio desde 2011.
8- Só que à Ré nunca foi comunicado pelo condomínio qual o montante anual da comparticipação que esta teria que fazer.
9- Nunca lhe foram enviados quaisquer orçamentos.
10- Nem quaisquer contas anuais.
11- Daí que a Ré não sabe se foi a A. se quem foi, quem pagou as contas do condomínio,
12- Apenas sabe, e pela presente acção, que o condomínio do prédio sito na Rua X, em Lisboa, pagou nos anos 2011 a 2017, as verbas constantes dos docs.  juntos, e tão somente isso.
13- Daí que a acção não possa proceder, tanto no ponto de vista material como formal,
14- Já que a relação jurídica posta em causa pela A. deixou de existir, a partir do momento em que A. e Ré procederam à divisão de coisa comum, conforme aquela refere no artº 4º da sua p.i.
15- A partir de então as fracções do prédio que até aí eram coisa comum passaram a ser autónomas e pertença umas de uma, outras de outra.
16- Daí que, a partir de então, a relação jurídica relativa às fracções em causa passou a ser a de compropriedade, e as compropriedades passaram a ter obrigações para com o condomínio do prédio.
17- A Ré deixou de ter qualquer obrigação para com a irmã, relativamente às fracções em causa,
18- Passando sim a ter obrigações para com o condomínio.
19- Isto para reafirmar que, nem material, nem processualmente a acção possa proceder.
20- Porque, o que está em causa não é se a Ré tem que pagar a sua quota parte das despesas.
21- É o direito que a Ré tem, enquanto proprietária de determinada fracção do prédio, de poder apreciar em cada ano, o orçamento do condomínio, fiscalizar esse orçamento e aprová-lo ou não.
22- E a de poder opôr ao Condomínio do prédio todos os seus meios de defesa.”

Após inquirição da testemunha arrolada pela A. foi proferida decisão, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, nos termos das disposições legais citadas, decido que a Autora está obrigada a prestar contas da sua administração das partes comuns do prédio identificado nestes autos, desde 2011 até Novembro de 2016 perante a Ré.
No que respeita ao período posterior a Novembro de 2016 a Abril de 2018, julgo a Ré parte ilegítima na presente acção, por estar desacompanhada dos demais condóminos, absolvendo-a, nesta parte, da instância.
Custas por Autora e Ré, na proporção de 30% para a primeira e 70% para a segunda.
Fixo o valor da acção em 36.049,39 euros.
Registe e Notifique.”

A A. interpôs recurso desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A.–Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida em 20.01.2021, com a Ref.ª Citius 402134763, que, julgando parcialmente procedente a ação intentada pela aqui Recorrente contra a Recorrida, decidiu: “(...) que a Autora está obrigada a prestar contas da sua administração das partes comuns do prédio identificado nestes autos, desde 2011 até Novembro de 2016 perante a Ré. No que respeita ao período posterior a Novembro de 2016 a Abril de 2018, julgo a Ré parte ilegítima na presente acção, por estar desacompanhada dos demais condóminos, absolvendo-a, nesta parte, da instância.” - (cfr. douta sentença recorrida).
B.–Tal como decorre das normas legais citadas (artigos 941.º e 946.º do C.P.C.), a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de as prestar e tem por objeto o apuramento das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra os bens alheios, bem como a condenação do saldo que se venha a apurar.
C.–O Tribunal a quo, ao pronunciar-se e decidir, ainda que erradamente como diante se explanará, apenas e tão só pela obrigação de a Recorrente prestar contas no período compreendido entre 2011 e Novembro de 2016, com a consequente absolvição da instância da Recorrida no período que lhe seguiu,
D.–não conhece de questões que estava obrigado a conhecer em face dos pedidos que lhe foram dirigidos pela Recorrente, em particular os pedidos de condenação da Recorrida no saldo apurado de €16.693,00 (dezasseis mil seiscentos e noventa e três euros), bem como no pagamento de juros civis, desde a data da citação até ao integral e efetivo pagamento.
E.–Ao abrigo do artigo 946.º do C.P.C impunha-se ao Tribunal a quo que para além da pronúncia e julgamento da obrigação de prestação de contas pela Recorrente, tal como o fez (sem prejuízo da discordância quanto ao limite temporal) se pronunciasse sobre os pedidos de condenação da Recorrida no pagamento do saldo apurado e nos juros de mora respetivos.
F.–Salvo o devido respeito, que é muito, entende a Recorrente que na sentença recorrida não foram conhecidas questões que era obrigatório conhecer em face da causa de pedir e dos respetivos pedidos que a Recorrente formulou.
G.–A decisão agora em crise padece de nulidade por omissão de pronúncia e que para os devidos e legais efeitos aqui vai expressamente alegada – Cfr. artigo 615.º n.º 1 alínea d), do C.P.C.
H.–Deste modo, deve a referida nulidade ser julgada verificada e, por via dela, ser declarada nula a sentença, devendo ser substituída por outra decisão que julgue todos os pedidos formulados pela Recorrente na P.I.
Sem prescindir:
I.–Sempre com o devido respeito, que é muito, entende a Recorrente que, em primeiro lugar, andou mal o Tribunal a quo ao aplicar ao presente caso o disposto no artigo 942.º do C.P.C, quando, na verdade, deveria socorrer-se das normas ínsitas nos artigos 944.º e 945.º, ambos por remissão do artigo 946.º.
J.–O Tribunal a quo ao desatender ao estatuído no artigo 946.º do C.P.C. inquinou toda a solução jurídica dada à causa, porque estando a Recorrente obrigada a prestar contas à Recorrida, em virtude da gestão do património comum, foi ela quem deu início aos presentes autos e prestou voluntariamente as contas respetivas, tendo a final peticionado a condenação no saldo que apurou.
K.–Assim, os trâmites legais a seguir eram os constantes do disposto nos artigos 944.º e 945.º, ambos do C.P.C., com as devidas adaptações, o que impunha também o julgamento sobre a bondade das contas apresentadas pela Recorrente por um lado, e a condenação da Recorrida no saldo apurado pelo outro, o que não foi feito.
L.–Ora, da forma como vem dito na sentença recorrida - “Cabe nesta fase do processo apreciar apenas a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas – vd. Art. 942º, nº3 CPC” (cfr. Decisão recorrida) - o Tribunal a quo não atendeu ao facto de ter sido a Recorrente quem iniciou a presente ação em virtude da gestão do património comum, tendo prestado voluntariamente as contas respetivas.
M.–As normas legais constantes do artigo 942.º do C.P.C. são de aplicar quando em causa estiver uma ação em que o Autor exige a prestação e contas por terceiro e não o contrário, isto é, quando é o próprio Autor a prestar voluntariamente as contas e a solicitar a aprovação das mesmas pelo Réu, com a eventual condenação no saldo que venha a ser apurado a seu favor (Autor), que foi o que aconteceu nestes autos.
N.–A escolha deste quadro adjetivo (artigo 942.º do C.P.C.) pelo Tribunal a quo, levou, naturalmente, a não terem sido julgados os restantes pedidos formulados pela Recorrente nestes autos, em particular os pedidos de condenação no saldo apurado a seu favor no valor de €16.693,00 (dezasseis mil seiscentos e noventa e três euros) e no pagamento de juros civis, desde a data da citação até ao integral e efetivo pagamento, o que resultou a nulidade apontada,
O.–O que resulta também na violação de tais normas legais.
P.–Assim e nesta parte a sentença recorrida fez uma errada aplicação do disposto no artigo 942.º do C.P.C, em clara violação do disposto nos artigos 944.º, 945.º e 946.º, todos do C.P.C.
Além disso,
Q.–A sentença recorrida padece ainda de outro erro de julgamento, dado que, e no que respeita ao período posterior, de Novembro de 2016 a Abril de 2018, julgou a Recorrida parte ilegítima na presente ação, por estar desacompanhada dos demais condóminos, absolvendo-a, nesta parte, da instância - cfr. douta sentença recorrida.
R.–Ora, diferente das despesas do condomínio, são os pagamentos que a Recorrente suportou em nome da Recorrida para pagar as despesas daquele património comum na respetiva quota parte que lhe cabia.
S.–Tendo em que a Recorrente suportou em nome da Recorrida despesas com a gestão do património comum, sem que esta tenha deduzido qualquer oposição a tal gestão e representação, deve ser ressarcida dos valores pagos em seu nome, sem que para isso tenha de convocar para a ação os demais condóminos que nada lhe devem, nem fazem parte da relação material controvertida tal como carreada e configurada.
T.–De reiterar que a Recorrente e Recorrida são irmãs e que este procedimento foi sendo comum ao longo dos anos, igualmente, pelo facto de a Recorrida ter atravessado dificuldades financeiras, o que justificou aquela substituição nos pagamentos daquelas despesas (cfr. factos provados em 1, 5, 6 e 8).
U.–A Recorrente não está, assim, obrigada a prestar contas a qualquer um dos demais condóminos, à exceção da Recorrida, e muito menos solicitar que as mesmas tenham de ser aprovadas pela assembleia.
V.–Não pode considerar-se e/ou exigir-se que os restantes condóminos devem estar presentes, igualmente, nesta ação para que o Tribunal possa conhecer do objeto da mesma e condenar em conformidade com o peticionado, quando estes condóminos nada devem à Recorrente e em nome deles esta não praticou qualquer ato de gestão ou administração dos seus bens no período compreendido entre Novembro de 2016 e Abril e 2018.
W.–Na sentença recorrida e a respeito do seguimento decisório da ilegitimidade da Recorrida que aqui se coloca igualmente em crise, entende a Recorrente que a fundamentação estribada está errada e não foi considerada a matéria de facto relevante dada como provada.
X.–Assim, e nesta parte, deve a sentença recorrida ser revogada por este Alto Tribunal e substituída por outra que julgue a Recorrida como parte legítima nesta ação também no período compreendido entre Novembro de 2016 e Abril de 2018.
Y.–Por conseguinte, e em face dos factos considerados provados deve reconhecer-se que a Recorrente está obrigada a prestar contas à Recorrida até Abril de 2018, e não só até Novembro de 2016, pronunciando-se este Alto tribunal em substituição da 1.ª Instância sobre os demais pedidos ao abrigo do disposto no artigo 655.º n.ºs 1 e 2 do C.P.C., nomeadamente a condenação da Recorrida no pagamento à Recorrente do valor de €16.693,00 (dezasseis mil seiscentos e noventa e três euros), acrescido dos juros de mora à taxa legal a contar da data de citação, bem como nas custas.
Sem prescindir,
Z.–Para o caso de se entender que o seguimento decisório a respeito da ilegitimidade é de manter inalterado, ainda assim, deve então ser revogada a decisão em crise e substituída por outra que julgue verificada a nulidade apontada, condenando a Recorrida no pagamento à Recorrente das despesas suportadas por esta durante o período compreendido entre 2011 e Novembro de 2016 e que ascendem ao valor de €12.483,03 (doze mil, quatrocentos e oitenta e três euros e três cêntimos), acrescido dos juros de mora à taxa legal a contar da data de citação, bem como nas custas.

Nestes termos, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, que se impetra, deve o presente recurso ser admitido, julgado procedente, por provado, e, consequentemente, ser a referida nulidade julgada verificada e, por via dela, ser declarada nula a sentença e substituída por outra que:
1.-julgue a Recorrida como parte legítima nesta ação também no período compreendido entre Novembro de 2016 e Abril de 2018 e por conseguinte seja declarado que a Recorrente está obrigada a prestar contas à Recorrida até Abril de 2018, e não só até Novembro de 2016;
2.-condene a Recorrida no pagamento à Recorrente do valor de €16.693,00 (dezasseis mil seiscentos e noventa e três euros), acrescido dos juros de mora à taxa legal a contar da data de citação, bem como nas custas.
Sem prescindir e para o caso de se entender que o seguimento decisório a respeito da ilegitimidade é de manter inalterado, ainda assim, deve então ser revogada a decisão em crise e substituída por outra que
3.-condene a Recorrida no pagamento à Recorrente das despesas suportadas por esta durante o período compreendido entre 2011 e Novembro de 2016, no valor de €12.483,03 (doze mil, quatrocentos e oitenta e três euros e três cêntimos), acrescido dos juros de mora à taxa legal a contar da data de citação, bem como nas custas.

No caso de a matéria de facto julgada como provada não ser suficiente para fundamentar as soluções de direito apontadas deve a sentença recorrida ser revogada por a mesma padecer de insuficiência de matéria de facto e ordenada a baixa dos presentes autos à 1.ª Instância para inclusão nos factos provados daqueles que sejam essenciais em ordem à pronúncia sobre todos os pedidos de condenação formulados pela Recorrente nos termos expostos.”

A apelada não apresentou contra-alegações.

A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
1.–Por partilha judicial da herança de AM., pai da A. e da R., transitada em julgado em 6 de Outubro de 1989, A. e R., únicas irmãs, tornaram-se as únicas comproprietárias, sem determinação de parte ou de direito, entre outros, do Prédio urbano sito na Rua X, freguesia de …, concelho de Lisboa, descrito na Sétima Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 0000 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia em apreço, sob o artigo 000º.
2.–Por sentença transitada em julgado em 30 de Novembro de 2009, foi o supra referido prédio objecto de divisão judicial, tendo sido adjudicado à A. as fracções autónomas designadas pelas letras “B”; “D”; “E”; “F”; “J”; “N”; “O”; “R”; “S”; daquele prédio e à R. as restantes fracções, ou sejam as fracções autónomas designadas pelas letras “A”, “C”, “G”, “H”, “I”, “L”, “M”, “P” e “Q” do prédio primeiro identificado.
3.–Foi atribuída à aqui A. uma permilagem total de 51,7214% do prédio.
4.–E à aqui R. foi atribuída uma permilagem total de 48,2786% do prédio.
5.–Por sentença transitada em julgado em 15/04/2016, relativa ao processo de prestação de contas dos prédios que a A. e a R. tinham em comum, por herança dos seus pais, foi a R. condenada a pagar à A. a quantia de €152.130,62, acrescida de juros moratórios e custas de parte, o que veio a totalizar a quantia de €158.908,08.
6.–A R., por conta do montante em dívida, foi fazendo os seguintes pagamentos, por depósito em cheque ou transferência bancária para a conta bancária da A.:
€40.000, no dia 13/05/2016;
€10.000, no dia 06/09/2016;
€90.000, no dia 09/09/2016;
€18.908,08, no dia 20/10/2017.
7.–A R., em 2016, era proprietária das frações designadas pelas letras “A”; “C”; “G”; “H”; “I”; “L”; “M”; “P”; “Q”, do prédio em causa.
8.–Pelo menos, desde 2011, foi a A. que sozinha suportou a gestão e a manutenção do referido prédio urbano.
9.–Efectuando a A. adiantamentos por conta dos pagamentos das despesas com as partes comuns daquele prédio.
10.–Em Novembro de 2016 a Ré vendeu a fracção “Q” do referido prédio.
11.–Em Novembro de 2017 a Ré vendeu a fracção “P” do referido prédio.
12.–Em 19 de Outubro de 2017, os mandatários da A., por instruções desta, prestaram à então mandatária da R., Dra…., as devidas contas do que estava em dívida quanto ao referido prédio, tendo sido entregue àquela e no seu escritório, um dossier com cópias de todas as faturas, bem como um quadro resumo das mesmas e a devida repartição e quota parte nas despesas.
13.–Acontece que, desde aquela data, nem a R. nem a sua mandatária, apesar de insistências telefónicas e correios eletrónicos diversos, contactaram a A. ou os seus mandatários.
14.–Em 28 de Abril de 2018 foi requerida a Notificação Judicial Avulsa à aqui R., requerendo-se que esta efectuasse o pagamento da quantia de €18.633,06 que lhe correspondem nas despesas das partes comuns do prédio da Rua X desde 2011 até Fevereiro de 2018, não tendo esta recebido a notificação.
15.–Desde o mês de Maio de 2018, a gestão e manutenção do condomínio do prédio ficou a cargo da respectiva administração.
16.–Sucede que, e apesar de várias solicitações da A., a R. nunca efetuou o pagamento da quota parte que lhe competia, por conta das despesas com a manutenção do prédio desde 2011 até Abril de 2018.
17.–Assim, e porque por diversas vezes, sem sucesso, tentou a A. efectuar a prestação de contas das despesas do prédio em causa à R., não tendo esta lhe respondido ou manifestado qualquer iniciativa para cumprir com o acordado quanto ao pagamento das despesas;
18.–Na altura em que foi requerida a notificação judicial avulsa da Ré esta vivia numa vivenda, localizada em plena zona rural, nos limites da cidade de S., onde não possui qualquer habitante vizinho.
19.–Em 2018 a Ré recebeu uma carta da empresa de administração de condomínios, e na qual lhe era comunicado que a partir daquela data, era a C. quem administrava o condomínio, e qual a comparticipação que a Ré teria mensalmente que pagar atinente às fracções que possuia no mesmo.

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A sentença recorrida não consignou factos não provados.

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Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).

Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1.–Da nulidade da sentença
2.–Da tramitação processual dos presentes autos (v.g. aplicação do artº 942º do CPC)
3.–Da ilegitimidade da R. quanto às contas referentes ao período a partir de novembro de 2016 a abril de 2018

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1.–Da nulidade da sentença

A apelante invoca a violação do artº 615º, nº 1, al. d) do CPC, por considerar que a sentença recorrida comporta omissão de pronúncia, ao não ter apreciado os pedidos de condenação da recorrida no pagamento do saldo apurado e nos juros de mora respetivos.
Estabelece o artº 615º, nº 1 do C.P.C. que:
“É nula a sentença quando:
a)- Não contenha a assinatura do juiz;
b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

Este preceito está diretamente relacionado com o disposto no artº 608º do C.P.C., dele resultando que o juiz deve apreciar todas as questões que lhe são colocadas, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão daquelas, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

A nulidade de decisão por omissão de pronúncia apenas ocorre quando o Tribunal deixe por decidir qualquer questão temática principal, para o que relevam as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.

I-As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas no art. 615.º do CPC, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão ou a não conformidade dela com o direito aplicável.
II-A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objeto do recurso, em direta conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada.
III-A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respetivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.” - Ac. STJ de 03-10-2017, in www.dgsi.pt.
Importa apurar se a sentença omitiu pronúncia sobre questão submetida ao seu conhecimento, nos termos acima citados.
A A. instaurou ação especial de prestação de contas que se mostra regulada pelos artºs 941º e ss. do CPC.

Na sentença recorrida consignou-se que “cabe nesta fase do processo apreciar apenas a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas – vd. art. 942º, nº3 CPC”, tendo o tribunal a quo decidido que “a Autora está obrigada a prestar contas da sua administração das partes comuns do prédio identificado nestes autos, desde 2011 até Novembro de 2016 perante a Ré. No que respeita ao período posterior a Novembro de 2016 a Abril de 2018, julgo a Ré parte ilegítima na presente acção, por estar desacompanhada dos demais condóminos, absolvendo-a, nesta parte, da instância.

Ora, nos termos do artº 942º, nº 3 do CPC “se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º (…).”

E o nº 4 acrescenta que “sobre a decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.”

Foi este o formalismo processual aplicado, de acordo com o qual a decisão a proferir se devia apenas pronunciar sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas.

É certo que a apelante discorda deste entendimento, mas esta discordância, por constituir eventual erro de julgamento, terá de ser apreciada noutra sede.

Em consequência do entendimento sufragado pelo tribunal e de acordo com a norma que aplicou – artº 942º, nº 3 do CPC – não havia que conhecer, nesta fase, dos pedidos formulados pela A./apelante de condenação da recorrida no pagamento do saldo apurado e nos respetivos juros de mora.

Em conclusão, improcedem os fundamentos de nulidade da sentença invocados na apelação.

2.–Da tramitação processual dos presentes autos (v.g. aplicação do artº 942º do CPC)
Estabelece o artigo 941º do Código de Processo Civil que a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

No caso a A. prestou espontaneamente as contas, ao abrigo do disposto no artº 946º do CPC. Este preceito manda aplicar os artºs 944º e 945º, no caso de ser apresentada contestação.

A apelante entende que o tribunal a quo errou na aplicação do artº 942º, uma vez que se trata  de apresentação espontânea de contas e o artº 946º que rege essa situação não manda aplicar aquele preceito.

É certo que o artº 946º não remete para o artº 942º. Todavia, tal como já defendia Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. I, pág. 327-328 “pode, porém, suceder, em casos excecionais, que o réu tenha interesse em alegar que não impende sobre o autor a obrigação de lhe prestar contas. Quando isto se der, deve o réu ser admitido a levantar a questão prévia dentro do prazo marcado para contestar as contas. Levantada a questão, seguir-se-á o disposto no artº 1013º” – este preceito corresponde ao atual artº 942º do CPC.

Neste sentido A. Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC Anotado, vol. II, pág. 399-400:
“Apesar de este preceito não remeter para o artº 942º, em casos excecionais, deve ser admitido ao réu que, no prazo da contestação, argua que não impende sobre o autor a obrigação de prestar contas, caso em que será de observar a tramitação do artº 942º, nº 3 (…)”.
“No âmbito do processo especial de prestação de contas, mesmo na situação de prestação espontânea de contas, com legal acolhimento no artº. 946º, do Cód. de Processo Civil, é licito ao demandado réu contestar a obrigação de prestação daquelas a que o autor demandante se considera constituído.” – Ac. RL de 20/02/2020, www.dgsi.pt.
O caso dos autos é exemplo da situação – quiçá pouco comum - de contestação da obrigação em caso de apresentação espontânea de contas.

E dúvidas não restam que a R. contestou a obrigação de prestação de contas, uma vez que alegou quea A., não tinha que prestar contas das despesas do prédio à Ré; o que a A., devia ter feito, e não fez, enquanto administradora do prédio, nos termos do nº1 do artº 1435-A do C. Civil, era, conforme já referido, convocar a assembleia de condóminos, elaborar o orçamento anual, e exigir da Ré a quota-parte nas despesas aprovadas;  a A., embora tenha levado a cabo a constituição do condomínio em 2011, nada disto fez; e daí que a Ré não tenha conhecimento da convocação de qualquer assembleia de condóminos, nem dos orçamentos anuais de 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 (cfr. artºs 30º a 33º da contestação).

De todo o exposto se conclui que é aplicável o disposto no artº 942º, nº 3 do CPC, havendo que determinar previamente se existe ou não obrigação de prestar contas, numa fase incidental (cfr.  remissão para os artigos 294.º e 295.º, que regem os incidentes da instância) a que se seguirá, caso se conclua pela existência da referida obrigação, como ocorre nos presentes autos, fase processual própria destinada ao apuramento do saldo.

Consequentemente não podia a decisão recorrida ter apreciado os demais pedidos formulados na petição inicial, que devem ser conhecidos na fase subsequente do processo, de acordo com o disposto no artº 945º ex vi do artº 946º do CPC.

3.–Da ilegitimidade da R. quanto às contas referentes ao período a partir de novembro de 2016 a abril de 2018
A prestação de contas decorre da obrigação geral de informação prescrita no art. 573.º do Código Civil, que pode resultar da lei, de negócio jurídico ou do principio geral da boa fé, e ocorre sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias. A obrigação de prestar contas impende sobre quem administra bens ou interesses (total ou parcialmente) alheios, mesmo que se trate de mera administração de facto (nesse sentido v. Ac.R.E. de 26-03-2015 e de 20-10-2016, e S.T.J. de  13-11-2003, in www.dgsi.pt).

E como se refere no Ac.R.G. de 18/01/2018, base citada, “abarca, pois, os casos em que, com consequências patrimoniais, alguém trata de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios, relevando mais a existência factual de atos de gestão de bens e interesses do que a sua fonte.”

Assim, para que nasça a obrigação de prestação de contas, não importa tanto se na sua base encontramos um determinado negócio jurídico, mas se efetivamente ocorreram atos de gestão de bens e interesses alheios ou próprios e alheios, uma vez que é da prática destes que emana a obrigação de prestação de constas.

É que pode entre as partes ter sido celebrado, um determinado contrato, como o de mandato, sem que exista obrigação de prestação de contas, se nenhum ato de gestão foi praticado; e pode a obrigação de prestação de contas emanar de mera administração de facto, sem que exista um negócio “causal”, “subjacente”, obrigação que decorre do princípio geral da boa fé.

Dado o trânsito em julgado da sentença no que respeita à obrigação de prestar contas desde 2011 até novembro de 2016, resta apreciar a referida obrigação no que respeita ao período posterior a novembro de 2016 até abril de 2018, relativamente ao qual a Ré foi absolvida da instância, com fundamento em ilegitimidade.

A apelante discorda desta parte da decisão por ter continuado, até abril de 2018, a suportar a quota parte da responsabilidade da recorrida nas despesas das partes comuns do prédio em questão; nas contas que apresentou na presente ação não foram considerados os custos que seriam imputáveis às frações que se venderam no mês de novembro dos anos de 2016 e 2017, pelo facto de tais frações já não pertencerem à Recorrida. Mais alegou, no recurso interposto, que no período em causa “passaram a  existir outros condóminos no prédio em questão, (…) foram efetuadas várias despesas na gestão e manutenção das partes comuns dos mesmos, com a repartição dos custos por cada um em função das respetivas permilagens, (…) todos eles, incluído a Recorrente, com a exceção da Recorrida, procederam ao pagamento da parte das despesas que lhes couberam; foi a Recorrente que, como até então vinha fazendo, procedeu ao pagamento da parte que cabia à Recorrida nas despesas comuns do prédio em questão e apuradas segundo o somatório das permilagens que esta detinha no mesmo. Ora, diferente das despesas do condomínio, são os pagamentos que a Recorrente suportou em nome da Recorrida para pagar as despesas daquele património comum na respetiva quota parte que lhe cabia. (…) Entende a Recorrente não estar obrigada a prestar contas a qualquer um dos demais condóminos, à exceção da Recorrida, e muito menos solicitar que as mesmas tenham de ser aprovadas pela assembleia, pois só por aquela e em seu nome, a Recorrente procedeu ao pagamento das despesas relativamente às partes comuns em função das permilagens correspondentes às frações que de a Recorrida foi proprietária naquele período. Os demais condóminos nada devem à Recorrente e em nome deles não praticou qualquer ato de gestão ou administração de bens. Em face da causa de pedir dos pedidos formulados pela Recorrente, a Recorrida é parte legítima na presente ação”. (sublinhados nossos).

A ilegitimidade constitui exceção dilatória determinante da absolvição do R. da instância, de conhecimento oficioso – cfr. artºs. artigos 278.º, nº 1, alínea d), 576.º, n.º s 1 e 2 e 577.º, alínea e) do CPC.

Nos termos do artigo 30.º, n.º 1 do CPC o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação (nº 2). E o nº 3 deste preceito legal dispõe que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante, para o efeito de legitimidade, os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurado pelo autor.

Com efeito, como refere Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra, 1999, pág. 51 a 52), a legitimidade como pressuposto processual geral exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste, apurando-se a partir do pedido e da causa de pedir.

“Casos há ainda em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso, como ocorre designadamente em certas relações com pluralidade de sujeitos ou nos casos de legitimidade extraordinária ou indireta que é atribuída ao cabeça de casal ou ao administrador do condomínio urbano. Apesar de não serem titulares exclusivos ou diretos do interesse em discussão, prevalece o que emerge dos precitos legais que sustentam a sua intervenção.” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 64.

Na petição inicial a apelante articulou factos que integram a causa de pedir nos seguintes termos:  
23.º- De salientar que em 2017, atento que a fração designada pela letra “Q” foi vendida em Novembro de 2016, só foram contabilizados 11 meses de despesas relativas àquela fração e imputáveis à responsabilidade da R.;
24.º- Bem como, quanto à fração designada pela letra “P”, atento que foi vendida em Novembro de 2017, só foram contabilizados 11 meses de despesas relativas àquela fração e imputáveis à responsabilidade da R.
25.º- As despesas referentes à gestão e manutenção do prédio, desde o mês de Maio de 2018, deixaram de ser suportadas pela aqui A., porquanto foi constituído o Condomínio do referido prédio, ficando, partir dessa data, a responsabilidade pela gestão e manutenção do mesmo a cargo da respetiva administração.
26.º- Sucede que, e apesar de várias solicitações da A., a R. nunca efetuou o pagamento da quota parte que lhe competia, por conta das despesas com a manutenção do prédio desde 2011 até Abril de 2018.
27.º- Assim, e porque por diversas vezes, sem sucesso, tentou a A. efectuar a prestação de contas das despesas do prédio em causa à R., não tendo esta lhe respondido ou manifestado qualquer iniciativa para cumprir com o acordado quanto ao pagamento das despesas;
28.º- E isto apesar de, atualmente, morar no prédio em causa.
29.º- Pelo que, vem a por esta via, a aqui A., voluntariamente, apresentar as contas, do prédio supra referido, do período compreendido entre Maio de 2011 até Abril de 2018, como a seguir se discrimina (…)” – sublinhado nosso.

Verifica-se, assim, que na alegação de recurso a A. enquadrou a causa de pedir em termos diferentes do que havia feito na petição inicial.

A legitimidade deve ser aferida pela causa de pedir e pedido – ou seja, perante a petição inicial, não assistindo à A. a faculdade de alterar a causa de pedir na alegação de recurso.

Não restam dúvidas de que a p.i. foi estruturada com base na administração do prédio urbano identificado nos autos, pois a A. alegou ter suportado sozinha as respetivas despesas de gestão e manutenção, desde 2011 até abril de 2018, data em que alega ter sido constituído o Condomínio e ter ficado, a partir dessa data, a responsabilidade pela gestão e manutenção do mesmo a cargo da respetiva administração.

Funda, assim, a sua obrigação de prestar contas na qualidade de administradora do condomínio e por referência a todo o período de 2011 a abril de 2018.

Resulta dos factos provados que A. e R. foram as únicas proprietárias do referido prédio, em regime de compropriedade, até ao trânsito em julgado da sentença de divisão de coisa comum, em 30 de novembro de 2009, em que foram adjudicadas as frações designadas pelas letras “B”; “D”; “E”; “F”; “J”; “N”; “O”; “R”; “S” (na permilagem de 51,7214%) à A. e as frações “A”, “C”, “G”, “H”, “I”, “L”, “M”, “P” e “Q”(na permilagem de 48,2786%) à R.. E desde então até à venda pela R. da fração “Q” (em novembro de 2016) - e em novembro de 2017, a fração “P” - eram A. e R. as únicas condóminas. Desde o mês de maio de 2018, a gestão e manutenção do condomínio do prédio ficou a cargo da respetiva administração.  

Assim, se no período de 2011 a novembro de 2016, a A. e a R. eram as únicas proprietárias das frações que compõem o prédio urbano - logo, únicas condóminas -, tal realidade jurídica alterou-se com a venda das frações pela R..

Como se refere na decisão recorrida, não consta que tenha existido convocação de assembleia de condóminos ou que tenha sido nomeado administrador, assistindo à A. o direito de atuar como administradora provisória, por ser a titular das frações que representam a maioria do capital – art. 1435º A, nº1 CC.

Na propriedade horizontal as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício são da responsabilidade dos condóminos na proporção do valor das suas frações, nos termos do artº 1424º do C.C..

Compete à assembleia de condóminos e a um administrador a administração das partes comuns do edifício (artº 1430º, nº 1 do C.C.). Incumbe ao administrador, designadamente, cobrar as receitas e efetuar as despesas comuns; exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas;
a realização dos atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns
(artº 1436º, als. d), e) e f) do CC).

Na medida em que lhe compete a administração das partes comuns do edifício, está obrigado a prestar contas – artº 1436º, al. j) do CC. Tal obrigação deve ser cumprida – rectius apenas pode ser cumprida – perante todos os condóminos, na respetiva assembleia – artºs 1431º, nº 1 e 1436º, al. j) do CC.

Se as contas forem prestadas na ação especial correspondente (artºs 941º e ss. do CPC) devem sê-lo no confronto com todos os condóminos.

É indiferente que os demais condóminos tenham pago a respetiva parte, como vem a apelante alegar em recurso. Inequívoco é que as contas não podem ser prestadas separadamente aos condóminos.

Assim, a R. carece de legitimidade, por a ação não ter sido interposta também contra os demais condóminos, no que se refere ao período a partir de novembro de 2016 a abril de 2018.

Neste sentido v. Ac. RL de 15/10/2009, www.dgsi.pt :
II.–Invocando a sua qualidade de titulares de 7 das 42 fracções autónomas em que se desdobra o condomínio os autores exigem do réu a prestação de contas relativamente ao exercício das funções de administrador desse condomínio.
III.–Sendo certo que o administrador – enquanto gestor de bens alheios e por força do disposto na alínea j) do artigo 1436º do Cód. Civ. – tem obrigação de prestar contas, o que é facto é que essa obrigação deve ser cumprida perante a assembleia de condóminos (alínea citada e nº 1 do artigo 1431º do Cód. Civ.).
IV.–E se apenas perante ela se pode o administrador desonerar dessa obrigação, a mesma só pela assembleia de condóminos lhe pode ser exigida.
V.–Em se tratando de exigir judicialmente a prestação de contas (artigo 1014º nº 1 do Cód. Proc. Civ.), a acção deve, consequentemente, ser proposta por todos os condóminos – ou, ao menos, suscitada a respectiva intervenção – ou pelo administrador, se tal tiver sido expressamente deliberado pela assembleia de condóminos, enquanto representante desta (artigo 1436º, proémio, e 1437º nº 1 do Cód. Civ.)”.

E Ac. RL de 19/10/2010, www.dgsi.pt:
I–Prestar informação aos condóminos é, entre outros, um dever geral do administrador, em cujo âmbito se inscreve o dever, especificamente enunciado na alínea j) do art. 1436º do Código Civil, de prestar contas à assembleia.
II–Esta obrigação do administrador, no que à prestação de contas respeita, tem como beneficiário, não cada um dos condóminos individualmente considerados, mas o corpo colectivo por todos eles formado, reunido em assembleia, cabendo à assembleia de condóminos, e não a cada um deles, a titularidade do correspondente direito.
III–Um condómino não tem legitimidade activa para pedir ao administrador a prestação de contas da sua administração do condomínio.”

E se a situação se cingir a mera assunção de dívida – como parece resultar da alegação de recurso – não será mediante o processo especial de prestação de contas que a A. deve fazer valer o seu crédito contra a R., mas sim mediante ação declarativa.

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da apelante.


Lisboa, 20 de janeiro de 2022


Teresa Sandiães
Octávio Diogo
Cristina Lourenço