Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
485/16.3GDTVD.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A censura dirigida à convicção do julgador «não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».

Por isso, para que a impugnação de facto proceda, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham, quanto à matéria impugnada, uma decisão diversa da proferida, não bastando que permitam uma diferente leitura, consoante a pessoa que as analisa e valora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa.


IRelatório:


1.Em processo comum e sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, perante tribunal singular (art. 16.º, n.º 3, do CPP), no Juízo Local Criminal de Torres Vedras, Comarca de Lisboa Norte, o arguido A..

No final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, julgo parcialmente procedente, por provada, a acusação deduzida nos presentes autos e, consequentemente decido:

I–Parte Criminal
a)- ABSOLVER o arguido, A., da prática de um (1) crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos Arts.º 153º, nº 1 e 155.º, nº 1, al. a) do Código Penal;
b)- Condenar o arguido, A., pela prática em autoria material e na forma consumada, de um (1) crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo Art.º 153º, nº 1 e 155.º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de  multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
c)- Condenar o arguido, A., pela prática em autoria material e na forma consumada, de um (1) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo Art.º 143º, nº1 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa,  à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
d)- Condenar o arguido, A., pela prática em autoria material e na forma consumada, de um (1) crime de injúria, previsto e punido pelo Art.º 181º, nº1 do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
e)- Condenar o arguido, A., pela prática em autoria material e na forma consumada, de um (1) crime de coacção agravada, previsto e punido pelo Art.º 154º, nº1 e 155º, nº1, al. a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, nos termos do Art.º 50.º, nºs 1 e 5 do Código Penal na redacção vigente à data dos factos;
f)- Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas em b), c) e d), e nos termos previstos pelos Arts.º 30.º, n.º 1 e 77.º do Código Penal, condenar o mesmo arguido na pena global e única de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à mesma taxa diária supra referida de € 5,00 (cinco euros), no montante global final de €1.300,00 (mil e trezentos euros);
g)- Condenar ainda o arguido no pagamento das custas do processo, com 3 U.C. de taxa de justiça (cfr. Arts.º 513.º e 514.º, todos do Código de Processo Penal e Art.º 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo de eventuais isenções de que beneficie.

II–Parte Civil
h)- Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente e demandante civil e em consequência, condenar o arguido e demandado a pagar ao demandante, a título de danos não patrimoniais a quantia global de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa supletiva legal civil, desde a data da notificação para deduzir contestação e até integral e efectivo pagamento;
i)- Custas cíveis a cargo de demandante e do demandado, tendo em consideração o decaimento e o valor do pedido, sem prejuízo de eventuais isenções de que possam beneficiar - cfr. Art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Civil e Art.º 523.º, do Código de Processo Penal.
j)- Julgar o pedido de indemnização cível deduzido pelo “Centro Hospitalar do Oeste” contra o arguido e demandado procedente, por provado, e consequentemente, condenar o arguido/demandado a pagar ao demandante cível a quantia global de  €192,31 (cento e noventa e dois euros e trinta e um cêntimos), por conta da assistência médica, acrescida dos respectivos juros moratórios à taxa legal civil, desde a notificação do pedido cível e até integral pagamento;
k)- Custas cíveis a cargo do demandado, sem prejuízo de eventuais isenções de que possa beneficiar - cfr. Art.º527.º, n.º1 e n.º2, do Código de Processo Civil e Art.º523.º, do Código de Processo Penal.
…»
*

2.Inconformado com a decisão, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, formulando as seguintes conclusões:
1.- O recorrente fundamenta o seu recurso nos seguintes pontos:
2.- por violação da norma do artigo 127.º do C.P.P. e do princípio da livre apreciação de prova, e, em consequência ser a Douta Sentença recorrida, revogada, no que concerne à condenação do recorrente pela prática dos crimes,
3.- Factos que foram dados como provados e que não deveriam ter sido dado a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento,
4.- Factos dados como provados com base nas declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento,
5.- Foram dados como provados factos em sede de audiência discussão e julgamento, que não correspondem à verdade.
6.- Não pode o Tribunal a quo, apenas por mera convicção, afirmar que os crimes cujo arguido não confessou, mas que o tribunal considera por provados, apenas e só por mera convicção, e por entender que a postura do arguido em Tribunal não foi correta.
7.- pelas declarações do assistente, as quais não foram coerentes,
8.- Pelos depoimentos das testemunhas,
9.- Sendo que, nenhuma viu a agressão a ser praticada pelo arguido, tendo apenas e só visto o ofendido sangrar da cabeça.
10.- De todas as testemunhas inquiridas, nenhuma de forma perentória e inequívoca.
11.- Não havendo qualquer justificação para que os crimes de que vem o recorrente acusado e que foram dados por provados pelo tribunal a quo e que o recorrente nega perentoriamente.
12.- O silêncio do arguido foi valorado negativamente e utilizado contra ele.
13.- Pelo que, deverá a decisão condenatória ser declarada nula, procedendo-se a absolvição do arguido.

Termos em que,
Deve o presente recurso ser liminarmente admitido por legal e tempestivo e a final merecer o mesmo provimento e alterando a decisão recorrida no sentido da absolvição do arguido.

3. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, concluindo pela improcedência do mesmo.
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4.Subidos os autos, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer (fls. 234), «pugnando igualmente pela improcedência … e pela consequente manutenção do decidido na sentença recorrida».
5.Cumprido o disposto no art. 417.º, n. º 2, do CPP, veio o recorrente responder àquele parecer, reforçando que houve violação do princípio in dubio pro reo, devendo o non liquet da prova ter conduzido à sua absolvição.
6.Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos a que se refere o art. 418.º, n.º 1, do mencionado Código, teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***

IIFUNDAMENTAÇÃO:

1– Vejamos o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne à matéria de facto (transcrição):

A)Factos Provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a sua decisão.
1.- No dia 18 de Outubro de 2016, cerca das 18.00 horas, no estabelecimento “Grupo Desportivo Recreativo e Cultural de AN”, sito na R. P., n.º., AV área do município de T. V., o arguido A. dirigiu-se à esplanada, onde se encontrava sentado o assistente RV, atirando-lhe “beatas” de cigarros para os pés.
2.- O arguido voltou a entrar no café e regressando à esplanada e antes de terminar a cerveja despejou o conteúdo da garrafa para cima do assistente, dizendo-lhe “eu corto-te o pescoço, filho da puta”, fazendo o gesto de cortar o pescoço com a garrafa.
3.- O assistente respondeu-lhe, dizendo-lhe “filho da puta és tu”, dirigindo-se-lhe o arguido que ergueu a perna para lhe desferir um pontapé, não logrando o seu intento, porquanto o assistente agarrou-lhe o pé, encostando-o à parede, que se desequilibrou e agarrou as fitas que pendiam sobre a porta, que caíram sobre o assistente.
4.- Aproveitando que o assistente estava “enrolado” nas fitas, o arguido desferiu-lhe várias pancadas na cabeça com a garrafa de cerveja que empunhava, caindo o assistente ao chão.
5.- Em consequência da descrita conduta do arguido, o assistente RV sentiu dores na zona atingida e sofreu “três feridas ligeiramente arciformes, encerradas com agrafes metálicos no couro-cabeludo: duas na região frontal, cerca da linha média, uma na concavidade para a direita com 3 cm, e outra de concavidade para a esquerda e ligeiramente para diante com 3,5 cm, e uma terceira na região parietal esquerda “alta”, de concavidade para trás e para a esquerda também com 3,5 cm; escoriação com crosta na região rectro-auricular direita, oblíqua para baixo e para diante, linear com 6,5 cm; equimose arroxeada, com edema associado, na região temporal esquerda, contornando a inserção superior do pavilhão auricular (arciforme, portanto, de concavidade inferior) com 6,5 cmx0,6cm de largura média, que, em condições normais, determinarão 10 dias para a consolidação médico-legal, sem afectação significativa da capacidade de trabalho”.
6.- Em consequência das descritas lesões, resultou para o assistente, como “consequência de carácter permanente, três cicatrizes no couro-cabeludo as quais, pelas suas características, não deverão consubstanciar o conceito médico-legal de desfiguração grave”.
7.- No dia 18 de Novembro de 2016, cerca das 15.30 horas, o arguido dirigiu-se novamente ao estabelecimento “Grupo Desportivo Recreativo e Cultural de AN, sito na R. P., n.º . AV, deparando-se com o assistente que, imediatamente, fugiu pela porta dos fundos, dirigindo-se a quem ali se encontrava dizendo num tom de voz alto, e visando o assistente disse “podem chamar a polícia”.
8.- O arguido e assistente desentenderam-se em data anterior às acima enunciadas, em momento não concretamente apurado, mas situado um ano e meio a três anos antes, sendo que o arguido desferiu golpes no assistente com uma faca, dizendo a este que “se apresentasse queixa que o matava”.
9.- O assistente, receando o arguido, não formalizou denúncia pelos referidos factos.
10.- Agiu o arguido de modo livre e voluntário, com o intuito de molestar fisicamente RV, o que logrou alcançar.
11.- O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, ciente de que, no contexto em que foi proferida a referida expressão, a mesma era adequada a causar medo, inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do assistente, como causou.
12.- Agiu ainda o arguido de forma livre e com o propósito, alcançado, ao proferir a referida expressão, evitar que RV denunciasse às autoridades os factos que havia cometido, assim procurando limitar a sua liberdade de determinação pessoal, o que representou.
13.- O arguido ao proferir tal expressão visou atingir a honra e consideração social do assistente, como causou.
14.- Tal expressão foi ainda proferida em voz alta e de forma a ser escutada por terceiros, como efectivamente sucedeu, sendo proferida em local público e num meio pequeno.
15.- Nas circunstâncias supra descritas, o arguido agiu de modo livre, deliberado e conscientemente, sabedor do carácter reprovável das suas condutas, e que as mesmas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se provou,
16.- O assistente apenas veio a queixar-se dos factos aludidos em 8. com os presentes autos.
17.- Em consequência da actuação do arguido o assistente careceu de tratamento hospitalar, no valor de € 192,31.
18.- Em consequência da conduta do arguido o assistente ficou desgostoso, triste, humilhado e perturbado.
19.- Ficou ainda envergonhado.
20.- Ficou com receio e medo do arguido, sentindo intranquilidade.
21.- O assistente é pessoa educada, sensível e recatada.
22.- O assistente vive num meio pequeno.
23.- O assistente desde tais factos sofre de dores de cabeça persistentes.

Provou-se ainda,
24.- Do teor do relatório social junto aos autos, e que aqui damos por integralmente reproduzido, consta que o arguido vive sozinho em casa arrendada, tem uma namorada de nacionalidade portuguesa, com quem mantém uma relação estável há cerca de 13/14 anos e dois filhos e familiares no Brasil, com quem mantém parcos contactos.
25.- Vem mantendo trabalhos indiferenciados em Portugal na jardinagem, agricultura e construção civil, sem que a mesma se mostre legalizada. Actualmente tem contrato de trabalho a termo certo, com duração de um ano, para uma firma que faz churrasqueiras e casotas para animais, auferindo o salário mínimo nacional.
26.- Em termos sociais apresenta comportamento cordial e pacífico.
27.- Do relatório social acima aludido conclui-se que “… o processo de desenvolvimento do arguido decorreu em contexto familiar com condições de vida modestas e com pouca capacidade para prover adequadamente as suas necessidades de segurança afectiva e orientação…., afigurando-se uma pessoa com algumas dificuldades ao nível da condução da sua vida pessoal e familiar…. Apresenta baixa qualificação escolar/profissional, historial de vínculos laborais precários, … evidencia hábitos laborais … o que lhe permite adquirir os proveitos necessários à sua subsistência. Como factores de protecção o facto de estar integrado em contexto laboral actual e que se revela gratificante, dispondo de suporte familiar da namorada, o qual se afigurou consistente. Como maior vulnerabilidade destaca-se a dificuldade ao nível da resolução de conflitos, temperamento impulsivo, principalmente quando alcoolizado, baixa capacidade critica relativamente a alguns dos seus comportamentos. … Em caso de condenação, existem condições para a aplicação de uma medida comunidade …”.
28.- O arguido está em Portugal com visto caducado desde o ano de 2003.
29.- Do seu certificado do registo criminal nada consta.

B)Factos Não Provados.

Não se provou que:
- O arguido entrou no estabelecimento regressando à esplanada com uma cerveja, atirando novamente uma “beata” de cigarro para junto dos pés do assistente.
- Assim que terminou a cerveja, o arguido foi buscar uma segunda cerveja.
- O arguido desferiu cinco pancadas.
- O arguido disse ao assistente “antes de ir preso vou matar o gajo que fez queixa de mim”.
- O arguido e assistente eram amigos há cerca de três anos.
- O arguido proferiu diversas expressões similares àquelas dos pontos 2 e 11.
- O assistente sofreu choque emocional.
Não deixaram de se provar quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa.

C)Motivação da Matéria de Facto.

O Tribunal gizou a sua convicção atendendo ao conjunto das diligências realizadas em audiência, analisando-as global e criticamente, segundo as regras da experiência comum e segundo a livre convicção do julgador, nos termos do Art.º 127.º do Código de Processo Penal.
Em sede de audiência o arguido optou pelo silêncio e consequentemente o depoimento do assistente e demandante e das testemunhas de acusação revelou-se determinante, sendo que todas prestaram declarações de forma credível e isenta, sendo por isso os mesmos valorados, confirmando o circunstancialismo de tempo, modo e lugar dos factos.
Em especial o assistente confirmou a situação da agressão na cabeça com a garrafa, as expressões ameaçadora e injuriosa então proferida, bem como o circunstancialismo em que os factos ocorreram. Mais confirmou a segunda situação em que se cruzou com o arguido no café e que evitou o contacto. Confirmou ainda que não era a primeira vez que era agredido pelo arguido, sendo que o mesmo já o havia agredido com uma faca e que nessa ocasião o ameaçou de morte caso o mesmo apresentasse queixa. Disse também que tem receio do arguido, ficou envergonhado e que desde então tem dores de cabeça permanentes e ficou com cicatriz, carecendo de tratamento hospitalar.
A versão do assistente quanto aos factos foi confirmada pelas testemunhas presenciais, JS e BR, sendo que o primeiro viu o arguido a agredir o assistente com a garrafa na cabeça, ficando ferido e a escorrer sangue, ouvindo este dizer que o assistente era um “filho da puta”. Mais viu o assistente com pontos na cabeça, tendo-o visto com as fitas enroladas sobre si, confirmando que o assistente é pessoa pacata e que tem medo do arguido. Já a testemunha BR confirmou ter visto o assistente com pontos na cabeça e que presenciou a segunda situação em que viu o assistente desassossegado, denotando medo do arguido. Ambas as testemunhas confirmaram que a situação foi comentada na terra, sendo que não era a primeira vez que ouviam falar de agressões entre ambos, denotando igualmente receio do arguido.

A prova documental foi igualmente valorada e a mesma não foi posta em crise, em especial os autos de fls. 2 e ss., 35 e ss. e 11. e ss., bem como na informação clínica de fls. 15, quanto à data dos factos, circunstâncias e ocorrências.

Quanto às lesões sofridas e ao nexo de causalidade foi ainda valorado o teor do relatório pericial de fls. 18 e ss., o qual não foi posto em crise e o qual se presume subtraído à livre apreciação do julgador, sendo que as lesões são compatíveis com a situação descrita.

Cumpre igualmente adiantar que eventuais discrepâncias pontuais e dos depoimentos são mínimas não são suficientes para os colocar em causa, mas antes conferem-lhe credibilidade uma vez que não foram preparados. E neste ponto, seguimos e demos especial atenção ao depoimento do assistente, que na sua generalidade confirmou a queixa apresentada, admitindo como possível, até pelas regras da experiência que nesta data as testemunhas não recordassem com rigor todas as expressões proferidas e todos os actos do arguido, até porque não foram as vítimas da situação.

Por outro lado a versão do assistente foi corroborada por testemunhas presenciais e pelo teor do relatório pericial junto aos autos, sendo consentâneos entre si e revelando-se críveis até à luz das regras da experiência e perante o circunstancialismo apurado. E apesar da alegação da defesa dizendo que o arguido foi provocado com expressões referentes à sua etnia e raça, ou ainda que o assistente estivesse alcoolizado e tivesse originado o desacato, a verdade é que nenhuma prova foi feita ou requerida nesta parte, sendo que o arguido optou pelo silêncio, o que só por si não permite inviabilizar a versão da acusação.

Desta forma, provando-se a agressão com a garrafa, a expressão injuriosa e ameaçadora então proferida pelo arguido e dirigida ao assistente, bem como o facto de dias depois se terem cruzado no local, denotando o assistente medo, e ainda a ocorrência mais antiga, não se provou que na segunda situação o arguido tenha proferido qualquer ameaça, pois a mesma não foi confirmada pelo próprio assistente ou por outras testemunhas.

Os danos morais sofridos pelo assistente foram confirmados pelo próprio e genericamente pelas testemunhas AM e SS, cujos depoimentos se revelaram credíveis, isentos e com conhecimento directo dos factos.

O valor do tratamento hospitalar é atestado pelo valor da factura de fls. 119 e que não foi posta em crise.

A situação jurídico-penal do arguido está devidamente plasmada no teor do certificado do registo criminal junto aos autos, sendo que o mesmo não foi posto em crise.

A situação pessoal do arguido foi apurada tendo em consideração o teor do relatório social junto aos autos, o qual não foi posto em crise.

A factualidade negativa resulta da ausência de prova cabal da sua ocorrência, assente no depoimento do assistente, nos moldes acima expostos.»
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2Perante as conclusões da respectiva motivação - as quais, como se sabe, delimitam e fixam o objecto do recurso -, o recorrente pugna pela sua absolvição, invocando que houve violação dos princípios da livre apreciação da prova (art. 127.º, do CPP) e do in dúbio pro reo, manifestando discordância relativamente à matéria de facto provada, para a qual, do seu ponto de vista, inexiste prova suficiente, para além de o silêncio do arguido ter sido «valorado negativamente e utilizado contra ele», gerando a nulidade da decisão condenatória.
***

3– Apreciemos, então, os ditos fundamentos do recurso:

3.1. Antes, porém, não podemos deixar de constatar que a sentença não padece de qualquer das nulidades referidas no art. 379.º, n.º 1, do CPP, nem há outras nulidades do procedimento de que cumpra neste momento conhecer, sendo certo que, também não foram concretamente invocadas.
Vigorando em matéria de nulidades o princípio da legalidade, previsto no art. 118.º, n.ºs 1 e 2, do mencionado Código, é para nós perfeitamente claro que a conclusão do arguido no sentido de que «deverá a decisão condenatória ser declarada nula» tem por fundamento uma situação que não se enquadra em nenhuma das previstas naquela norma como sendo geradoras de nulidade, antes se enquadra num eventual erro na apreciação da prova ou em hipotética violação de algum dos princípios atinentes a essa valoração, matéria que abordaremos mais à frente.
Por outro lado, não se vislumbra - numa apreciação oficiosa, porquanto, não foram expressamente referidos nas conclusões do recurso - que a mesma decisão padeça de algum dos vícios previstos nas várias alíneas do n.º 2, do art. 410.º, do mesmo Código, os quais, conforme decorre do mesmo normativo, teriam de resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», sem que, para tal, seja possível o recurso a elementos estranhos à sentença, ainda que constantes do processo, nomeadamente, ao conteúdo das provas produzidas e valoradas pelo tribunal, porquanto, o conteúdo destas apenas assume relevância em sede de impugnação da matéria de facto.

3.2. Passemos, pois, à apreciação dessa impugnação:
Para atacar a decisão proferida em matéria de facto, o recorrente centra a sua argumentação em dois vectores essenciais. São eles, a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dúbio pro reo e a alegação de que a prova é insuficiente para o tribunal decidir pela condenação, porquanto, o assistente foi incoerente nas suas declarações e as testemunhas que, segundo a decisão, confirmaram a versão apurada não presenciaram a suposta agressão, «tendo ambas apenas e só afirmado ter visto o assistente já sentado a sangrar da cabeça», para além de que o tribunal não teve especial cuidado ao analisar o teor do relatório pericial, não se entendendo como poderia haver «escoriações com crostas», se o ofendido foi assistido no próprio dia, nem como poderia «uma simples garrafa, desferida na cabeça e sem partir» ter alcançado tanta zona afectada, só se podendo, por isso, «concluir que as mesmas já teriam pelo menos um ou dois dias de existência».

Segundo o art. 127.º, do CPP, «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Não se vislumbra que a apreciação da prova, no presente caso, tenha infringido as regras da experiência, pois, nenhum dos factos provados, de per si ou no conjunto da matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo, viola tais regras.

Por outro lado, a garantia de legalidade da "livre convicção" a que alude aquele normativo terá de bastar-se com a necessária explicitação objectiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório em que assentou essa convicção, possibilitando a partir daí o necessário controlo da sua legalidade, como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efectuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meio de prova.

Sendo certo que, no seguimento do que tem sido recorrentemente afirmado, convicção livre não é, nem pode equivaler, a livre arbítrio na sua formação, antes terá a mesma de ser o reflexo de uma apreciação objectiva das provas produzidas, permitindo um verdadeiro controlo por parte dos interessados e do tribunal de recurso, é manifesto que, da fundamentação da respectiva decisão de facto, o presente caso não revela qualquer arbítrio ou discricionariedade na análise da prova, mas antes, respeito pelos princípios aplicáveis nesta matéria.

Por outro lado, manda o princípio in dubio pro reo que, em sede de decisão da matéria de facto, em caso de dúvida se decida a favor do arguido.

Como explica o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 84): «A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência».

Se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, tiver conduzido «à subsistência no espírito do Tribunal de uma dúvida positiva e invencível», outra alternativa não é deixada ao julgador senão aplicar o aludido princípio. O in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).

Todavia, no caso em apreciação, não resulta da fundamentação da decisão de facto que o julgador tenha ficado com quaisquer dúvidas quanto à verificação dos factos que julgou provados, de molde a justificar a aplicação do aludido princípio, antes tendo aquela decisão sido proferida no pleno convencimento de que os factos ocorreram nos moldes relatados, com base nas provas produzidas e que são concretamente mencionadas na fundamentação e sujeitas ao respectivo exame crítico.

Contrariamente ao afirmado pelo recorrente, em nenhum momento da sentença se surpreende qualquer afirmação da qual se possa concluir que o tribunal foi influenciado na sua decisão por factores como «o passado do arguido» e a sua «personalidade», que valorou, para credibilizar as declarações do assistente, estando estas repletas de contradições e de imprecisões.

Acresce ainda que a impugnação de facto tem de respeitar determinadas exigências, obrigando o artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 a que o recorrente especifique as referências aí mencionadas, tais como: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa, a indicação das concretas passagens das gravações em que funda a impugnação e, se for caso disso, as provas a renovar e respectiva justificação.

Em bom rigor, o recorrente não cumpriu devidamente nenhuma dessas especificações, nem nas conclusões, nem na própria motivação, limitando-se praticamente a afirmar a insuficiência da prova e referir as declarações do assistente e depoimentos de algumas testemunhas (JS e BR), sem concretizar os segmentos que lhe deveriam dar razão e respectivo teor.

Constituindo o recurso em processo penal um verdadeiro «remédio jurídico», com vista à reparação de eventuais erros cometidos pelo tribunal a quo na apreciação da prova, ao tribunal de recurso competirá aferir da legalidade das provas que foram relevantes, bem como certificar-se que o raciocínio que conduziu à convicção que foi formada e permitiu chegar à decisão de facto proferida não se mostra viciado.

Deverá ainda ter-se presente que, em matéria de apreciação da prova, intervém sempre uma componente subjectiva, nomeadamente quanto à credibilidade da prova pessoal, e que os próprios depoimentos em audiência são frequentemente condicionados pelo modo como são recebidos. Tal componente «implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação» (G. Marques da Silva).

Seguindo-se de perto, nesta matéria, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 (DR - II série, de 2/6/2004), diremos que a censura dirigida à convicção do julgador «não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».

Por isso, para que a impugnação de facto proceda, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham, quanto à matéria impugnada, uma decisão diversa da proferida, não bastando que permitam uma diferente leitura, consoante a pessoa que as analisa e valora.

Por um lado, não vemos razões para retirar credibilidade às declarações do ofendido, assim como, aos depoimentos das aludidas testemunhas.

Crédito ao arguido é que não pode ser concedido, porque não quis prestar declarações sobre os factos, em julgamento, na medida em que aquele se remeteu ao silêncio. Por isso, o tribunal desconhece qualquer outra versão dos factos, diferente da que foi declarada provada.

Isso não quer dizer que o tribunal tenha valorado, seja de que forma for, o silêncio do arguido. Apenas refere esse silêncio, precisamente para justificar que inexiste outra versão que se contraponha à do ofendido. Afirmação que, porém, não implica que a versão deste seja necessariamente a verdadeira. Razão pela qual, o tribunal recorrido teve a necessidade de explicitar as concretas provas com base nas quais formou a respectiva convicção e como chegou a esta, valorando criticamente as aludidas provas.

Certo é que o assistente confirma a factualidade apurada e esta foi corroborada, no fundamental, pelas referidas testemunhas JS e BR, nos termos referidos na fundamentação da sentença, para a qual remetemos nesta parte.

Também nos parece óbvio que os vários ferimentos na cabeça do ofendido se deveram às várias pancadas dadas com a garrafa, pelo arguido. Da factualidade provada não resulta que a garrafa se tenha partido com tais pancadas, nada de estranho havendo nesse facto.

Segundo a factualidade provada, a agressão ocorreu no dia 18/10/2016, resultando do relatório pericial de fls. 18 que o ofendido foi examinado em 21/10/2016, ou seja três dias depois, tendo sido assistido no Hospital de Torres Vedras na sequência do evento, onde lhe foram suturadas feridas no couro cabeludo, tendo alta no mesmo dia. Não é, por isso, de estranhar que houvesse feridas que apresentassem já crosta, passados três dias.

Em suma, na fundamentação da decisão de facto constante da sentença, nada se surpreende no sentido de que o tribunal recorrido possa ter ficado com quaisquer dúvidas, sérias e razoáveis, quanto à autoria dos factos provados por parte do ora recorrente. Em recurso e perante o conteúdo das provas que foram objecto de reexame, também não se suscitam tais dúvidas, pelo que, inexistiam à data da sentença e continuam neste momento a não existir razões para fazer funcionar o princípio in dubio pro reo, o qual, por isso, não se mostra violado no caso sub judice.

Nessa conformidade, não se vislumbrando que tenha ocorrido qualquer violação das regras ou dos princípios respeitantes à prova, nomeadamente do in dubio pro reo, e porque nenhuma censura há a fazer à decisão que incidiu sobre a matéria de facto submetida a julgamento, improcede a correspondente impugnação e considera-se aquela matéria definitivamente fixada, a ela devendo ser aplicado o direito.

3.3.O arguido não questiona a qualificação jurídica dos factos provados, nem a mesma nos merece qualquer reparo.
Nenhuma outra questão foi abordada nas conclusões do recurso, nomeadamente, a respeitante à medida das penas parcelares e única, apesar de referida na motivação do recurso, sem, porém, adiantar qualquer razão que justifique uma eventual redução das penas aplicadas, para além de referir o princípio da culpa e a sua importância nesse campo.
De qualquer modo, numa apreciação sumária do problema, não vemos razão alguma para mexer nas aludidas penas, as quais foram fixadas em obediência aos critérios legais atinentes, respeitando os princípios decorrentes dos artigos 30.º, n.º 1, 40.º, 41.º, 47.º, 50.º, 70.º, 71.º  e 77.º, todos do Código Penal, as quais, por isso, se mantêm.

Assim, perante a inexistência de outras questões que se imponha apreciar, porque não suscitadas pelo recorrente, improcede o recurso.
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IIIDECISÃO:
Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o presente recurso do arguido , confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC.
Notifique.


Lisboa,10-07-2018


José Adriano
Vieira Lamim