Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
328/12.7TBPTS-B.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: INCOMPETÊNCIA MATERIAL
REMESSA DO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Dispõe o art. 99º, nº2, do C.P.Civil que, decretada a incompetência depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada.
-Demandadas pessoas diversas, e reportando-se a incompetência do tribunal comum apenas a uma delas, deve considerar-se inaplicável o disposto no citado preceito.
-Uma vez que, assim se não entendendo, efectuada a remessa, e mantendo-se a mesma na causa, viria o pedido deduzido contra a restante demandada a ser apreciado por tribunal que, nessa parte, careceria de competência material.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.-S... Lda, propôs, contra APRAM - Administração dos Portos da Região Autónoma da Madeira e C... Lda, acção sob a forma ordinária, a correr termos na comarca da Madeira - Instância Central, pedindo a condenação das RR. a reparar os prejuízos alegadamente decorrentes do encerramento do cais onde se situa o respectivo estabelecimento comercial.

Proferida decisão, julgando o tribunal incompetente em razão da matéria, relativamente ao pedido formulado contra a R. APRAM, veio a A. requerer a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal.

Indeferido o requerido, dessa decisão interpôs a A. o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :

-Viola o disposto no n°2 do art. 99° do CPC a decisão de indeferimento de remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal por atender aos motivos não justificados apresentados na oposição da R.
-Admitindo, sem conceder, que a oposição venha a ser considerada justificada, entende a A. que a decisão do tribunal quando afirma que "nos presentes autos mantém-se estabilizada a instância quanto à Ré C... Lda, a qual não foi afetada pela referida declaração de incompetência", pretendendo prosseguir os autos só em relação a esta, é violadora de princípios de direito internacional, constitucional e processual.
-No exercício da sua actividade o Tribunal deverá respeitar o disposto no art. 6º, nº1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que assegura o direito a um processo equitativo - ali estabelece-se que qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativamente por um tribunal imparcial que decidirá sobre a determinação dos seus direitos civis.
-Tal decisão de prosseguir os autos contra uma das duas demandadas viola também o disposto no n°5 do art. 20° da Constituição da República Portuguesa que garante a efectiva tutela jurisdicional.
-A Constituição impõe que "para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos".
-Este princípio de efectiva tutela jurisdicional encontra-se também plasmado no art. 26º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, mas é posto em causa por aquela decisão.
-O Código de Processo Civil consagra no seu art. 2° aquele princípio ao referir o seguinte: "a proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar".
-A decisão do tribunal de se arrogar competente para uma R., impedindo a remessa dos autos para o tribunal administrativo, violou o disposto no art. 3°, nº4, e 4° do C.P.Civil, na medida em que se consubstanciou na produção de uma decisão surpresa que violou o estatuto de igualdade substancial das partes na aplicação de uma sanção processual.
-De forma a permitir um equilíbrio entre as partes e a fazer valer o princípio da economia processual o art. 99°, nº2, do CPC dispensou o acordo entre aquelas no reenvio do processo para o tribunal reputado competente, mas permitiu que o réu apresentasse oposição, desde que justificada.
-Com isto pretendeu o legislador impedir que o réu, mediante a remessa dos autos para outro tribunal, ficasse prejudicado na sua defesa, já que a fase dos articulados encontrava-se encerrada.
-No caso concreto, a APRAM, na fase de articulados apresentou a sua defesa, a mesma que apresentaria caso o processo tivesse inicialmente sido proposto no tribunal administrativo, pelo que os motivos que alegou - estabilização da instância quanto à outra R., a C..., e a situação de desaforamento - não são justificados.
-Para que seja atendida a oposição da R. e, por via disso, indeferido o pedido de remessa dos autos para o tribunal competente, é necessário que a mesma mostre que tal acto a prejudicará na sua defesa, que no novo tribunal não será exercida ou será de forma limitada, o que não aconteceria no tribunal onde foi absolvida.
-Só se o motivo mostrar que a remessa para outro tribunal acarretará prejuízos para a sua defesa, em virtude desse reenvio, é que a oposição da R. pode ser atendida.
-Nenhum motivo ligado à perda de direito de defesa apresentou a APRAM na sua oposição, pelo que esta não deveria ter sido atendida.
-Se o requerimento para declaração de incompetência absoluta em relação à R. APRAM foi apreciado de forma positiva pelo tribunal, a partir do trânsito em julgado desta decisão está aberta a possibilidade à A. de fazer uso da faculdade do n°2 do art. 99º do C.P.Civil.
-A decisão do tribunal de considerar-se competente para julgar somente uma das duas RR. inicialmente demandadas limita à A. o exercício do seu direito substantivo: o de ver ressarcidos todos os prejuízos decorrentes do encerramento do cais onde se localiza o seu estabelecimento comercial.
-Requerido o envio do processo para o tribunal administrativo, ao tribunal a quo não assiste o direito de levar a A. a limitar o número de RR. que esta demandou, convidando-a a escolher contra quem quer prosseguir os autos.
-Tendo a A. manifestado a intenção de ver o processo tal como o arquitetou - com a PI formulada nos termos em que o fez - não pode o tribunal decidir prosseguir os autos somente em relação à R. C....
-Ao decidir desta forma, o tribunal está a prejudicar a possibilidade da A. de fazer valer do direito substantivo subjacente à presente situação, negando uma tutela efectiva do seu direito de ser indemnizada.
-Dispondo a lei (art. 498°, n°1, C.Civil) que o prazo para reclamar o direito de indemnização prescreve passados três anos sobre a data em que o lesado teve conhecimento dos factos geradores de responsabilidade civil, tal prazo já há muito se extinguiu, já que aqueles ocorreram em Fevereiro de 2012.
-Estando-se já no mês de Maio de 2016 sem que o processo tenha chegado a um fim, não é da responsabilidade da A. o decurso deste longo período superior a três anos.
-Não pode a A. aproveitar os efeitos civis desta ação para propor nova acção, ao abrigo do disposto no art. 279° do CPC, pois já passaram 30 dias após o trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância - trânsito esse necessário para fazer uso da faculdade expressa no art. 99°, n°2, do CPC, que a A. pretendia exercer e exerceu.
-Se é verdade que a A. poderia ter solicitado o envio dos autos para o tribunal administrativo após o trânsito em julgado do acórdão da Relação, que absolveu da instância as chamadas, não quer dizer que fosse obrigada a fazê-lo.
-Tanto mais que, antes do trânsito em julgado de tal decisão a R. APRAM, que havia, em contestação, alegado que "a referida parte superior da falésia constitui zona costeira, cuja conservação e reabilitação é da responsabilidade da Câmara Municipal da Ponta do Sol e da Direção Regional do Ambiente" (as chamadas), veio reconhecer o seguinte: a APRAM "trata-se de uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, a quem compete, v.g., administrar o domínio público hídrico na sua área de jurisdição, área que está em causa nestes autos".
-A atitude do tribunal acabou por consubstanciar-se na produção de uma sentença surpresa, pois nada levava a crer que, exercendo, como a lei permite, a faculdade do disposto no nº2 do art. 99° do C.P.Civil, a A. fosse surpreendida com a atitude do tribunal em dividir uma única acção com duas RR. em duas acções, mantendo parte contra uma R. e ignorando outra parte.
-Se é certo que o muro pertence à C..., sendo esta responsável pela sua manutenção, no entender da A., também certo é que a escarpa, área sujeita à jurisdição da APRAM, havia sido alvo de trabalhos encomendados pela APRAM, que responde pela manutenção da mesma.
-Ao julgar somente a C..., deixam de ter utilidade os factos trazidos aos autos relativos à APRAM, com a agravante de a A. jamais poder deduzir qualquer pedido contra esta a este respeito.
-Mesmo que pudesse deduzir qualquer pedido contra ela em sede de jurisdição administrativa, desacompanhada da C..., a mesma contestaria que a responsável era esta e estava a ser demandada pela A. no tribunal judicial.
-Porque a instância não se encontrava estabilizada em termos de competência - estabilizada estaria se o tribunal fosse competente para apreciar a acção tanto em relação a uma ré como a outra - o tribunal não pode escolher uma ré para prosseguir os autos quando a outra foi absolvida, recusando ao autor a possibilidade de exercer a faculdade do nº2 do art. 99° do C.P.Civil.
-Termos em que deverá a presente apelação proceder, revogando-se a decisão ora recorrida, que deverá ser substituída pelo deferimento dos autos para o Tribunal Administrativo do Funchal.

Em contra-alegações, pronunciou-se a apelada APRAM pela confirmação do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente. 

A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação da requerida remessa dos presentes autos ao tribunal administrativo.

Dispõe o art. 99º, nº2, daquele diploma que, decretada a incompetência depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada.

No caso, tendo sido demandadas pessoas diversas, a declarada incompetência do tribunal comum reporta-se, todavia, apenas à R. APRAM - pelo que, independentemente da oposição desta, desde logo, se deve considerar inaplicável o disposto no citado preceito.
Sob pena de, assim se não entendendo, efectuada a pretendida remessa, e mantendo-se a mesma na causa, vir o pedido deduzido contra a restante demandada a ser apreciado por tribunal que, nessa parte,   careceria de competência material.

Irrelevando as demais considerações a tal respeito expendidas, forçoso se torna, pois, concluir pela improcedência da pretensão da apelante.

3.Pelo acima exposto, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa,27.10.2016



Ferreira de Almeida - relator
Catarina Manso - 1ª adjunta
Alexandrina Branquinho - 2ª adjunta
Decisão Texto Integral: