Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
329/17.9PALSB.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ROUBO
BURLA INFORMÁTICA
CONCURSO REAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A arguida, ao enviar à ofendida, várias mensagens ameaçadoras, nos termos que constam dos factos provados, incorre numa conduta que, de forma grave, pôs em causa não só a integridade física propriamente dita, mas a saúde da pessoa ofendida, na sua globalidade e enquanto tal, atingida no seu bem estar físico, psíquico e mental.

Desde as alterações introduzidas ao art.152, do Código Penal, pela Lei nº59/07, de 4Set., ao passar a prever “…a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação …”, o legislador reconheceu que o fenómeno da violência doméstica não é uma questão de género.

Por detrás da violência doméstica nem sempre está a força física ou a cultura machista, mas relações de poder, em todas as relações humanas sendo possível encontrar hierarquias, manifestadas numa relação entre duas pessoas com um dos elementos a lançar mão de mecanismos que lhe permitam controlar o(a) parceiro(a).

Se, entre os actos suportados pela ofendida, se destaca a ofensa à sua própria autodeterminação sexual, através da introdução pela arguida de um pénis artificial na sua vagina, mostra-se integrada a previsão da alínea b, do nº1, do art.164º, do Código Penal (crime de violação), punição mais grave aplicável no caso (art.152º, nº1, CP).

E, se a arguida imobilizou a ofendida (amordaçou-a com uma meia, prendeu-lhe os pés e os braços), estando impossibilitada de resistir, a arguida retirou da carteira da ofendida o cartão de débito identificado nos factos provados e dele se apropriou, estão preenchidos todos os elementos do crime de roubo, p.p., pelo art.210º, nº1, do Código Penal.

O crime de burla informática e nas comunicações distingue-se do de burla geral previsto no art.217, que pode ser cometido por qualquer meio de erro ou engano sobre os factos, enquanto o crime do art.º221º tem que ser cometido através de algum dos meios descritos nos nºs1 e 2, nomeadamente “… utilização de dados sem autorização …”, como aconteceu no caso em apreço pela arguida, ao levantar da conta da titular a quantia de €280,00, assim tendo praticado o crime de burla informática e nas comunicações, p.p., pelo art.221º, nº1, do Código Penal, preceito incriminador que protege bens jurídicos distintos dos subjacentes ao crime de roubo, justificando-se a condenação pelos dois crimes, em concurso real.
Decisão Texto Parcial: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.No Processo Comum (Tribunal Colectivo)nº329/17.9PALSB
da Comarca de Lisboa Oeste (Juízo Central Criminal de Sintra), A. , foi pronunciada pela autoria material de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.152, nº1, al.b), e nºs 2, 4, 5 e 6, e art.164, n.º 1, al. b), do Código Penal e um crime de roubo simples, p. e p. pelo art.210, nº1, do Código Penal, em audiência tendo sido alterada a qualificação jurídica dos factos, com imputação cumulativa à arguida de um crime de burla informática.

A assistente APO deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização, por danos não patrimoniais no valor de € 5 000,00 e por danos patrimoniais no valor de €700,00, acrescida de dos juros de mora legais desde a notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento.

O lesado CENTRO HOSPITALAR DE LISBOA CENTRAL, E.P.E. deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais no valor global de €287,64, acrescida de juros de mora legais vencidos e vincendos desde a notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento.

O Tribunal, após julgamento, por sentença de 9F e v.18, decidiu:
“…
A)Julgar a pronúncia totalmente procedente e, consequentemente:
1. Condena a arguida A. , pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.152, n°1, al. b), e n°s 2, 4, e 5, e art.164, n°1, al. b), do Código Penal (redacção dada pela Lei n°59/2007), na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
2. Condena a referida arguida, pela prática de um crime de roubo simples, p. e p. pelo artigo 210, n°1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
3. Condena a referida arguida, pela prática de um crime de burla informática simples, p. e p. pelo artigo 221, n°1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
4. Procede ao cúmulo jurídico das penas ora aplicadas ao arguido e condena-o na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
5. Condena também a arguida na pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida APO pelo período de cinco anos, a fiscalizar por meios técnicos de controlo à distância;
6. ...
7. Determina a devolução à arguida do telemóvel e cartão SIM que lhe foram apreendidos (art. 186, n°s 3 e 4, do CPP).

8. B)-Delibera julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante APO parcialmente procedente e, consequentemente:
9. Condena a arguida a pagar à referida demandante a importância de €306,08, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento;
10. Condena a arguida a pagar à aludida demandante a importância de € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento;
11. Absolve a referida arguida de tudo o mais peticionado;
12.
13. E delibera julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante CENTRO HOSPITALAR DE LISBOA CENTRAL, E.P.E totalmente procedente e, consequentemente:
Condena a arguido a pagar à referida demandante o montante global de € 287,64, a título de indemnização por danos patrimoniais, quantia a que acresce juros de mora legais vencidos e vincendos desde a notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento;

...”.

2. Desta decisão recorre a arguida A. , motivando o recurso com as seguintes conclusões:
2.1 Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a acusação, e
Condenou a arguida pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.°, n.º 1, al. b), e n.ºs 2, 4, e 5, e art. 164.º,n.º 1, al. b), do Código Penal (redacção dada pela Lei n.º 59/2007), na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
Condenou a referida arguida, pela prática de um crime de roubo simples, p. e p. pelo artigo 210.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1(um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
Condenou a arguida, pela prática de um crime de burla informática simples, p. e p. pelo artigo 221.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
Em cúmulo jurídico das penas ora aplicadas à arguida condená-la na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
2.2 Não pode a arguida conformar-se com tal decisão.
2.3 A Recorrente não se conforma com os factos julgados provados, pelo que o presente recurso visa a reapreciação desses mesmos factos.
2.4 Entendeu que da prova produzida em audiência de julgamento, não resulta prova suficiente de todos os factos julgados provados pela douta sentença recorrida, pelo que entende a ora Recorrente que ocorreu erro notório na apreciação da matéria, de acordo com o previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410.º do C.P.P.
2.5 O tribunal a quo alicerçou o seu entendimento no confronto e/ou compatibilização das versões apresentadas pela assistente e testemunhas.
2.6 Precisamente no referido confronto das versões apresentadas pelos intervenientes nos autos que verificamos, com o devido respeito, a fragilidade da posição sufragada pelo Tribunal a quo.
2.7 São várias as passagens existentes nos depoimentos gravados em sede de julgamento que se nota a fragilidade da prova em relação a alguns factos mormente, nos que agravam a actuação da arguida ora recorrente.
2.8 São várias as passagens existentes nos depoimentos gravados em sede de julgamento que sustentam a posição assumida pela Recorrente, e que não foram sequer valoradas
2.9 Em bom rigor, os factos que resultaram provados na douta sentença aqui colocada em crise, tiveram unicamente como sustento as declarações prestadas pela assistente e gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, sustentada pelos depoimentos das testemunhas de acusação mas a que nada assistiram com excepção do alegado “ estado débil” da assistente-estado este que nunca foi negado pela arguida.
2.10 Por outra banda, a posição assumida pela arguida e aqui Recorrente, que prestou declarações no dia 05/04/2018 gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal de forma clara e absolutamente coerente, e diametralmente oposta à da assistente em alguns factos importantíssimos dos autos não foram devidamente valoradas pelo Tribunal a quo, que de forma errada não lhe deu qualquer credibilidade.
2.11 Estranhando-se efectivamente da prova produzida como ficou provado o uso de replica de arma ou arma ou/e facas por parte da arguida- uso esse que a ter sido possível da forma descrita pela assistente teria sido seguramente alvo de investigação pormenorizada pelo núcleo de investigação competente dada à gravidade de tais factos- o que não foi, nem sujeitos tais factos a exames periciais no local.
2.12 Deve ser feita tábua rasa das declarações da arguida? Foi o que sucedeu....
2.13 Afigura-se ainda à aqui Recorrente que, salvo o devido respeito, a presente condenação carece de fundamento de facto e de direito.
2.14 O Tribunal a quo não efectuou, no que se refere aos crimes imputados àquela (mormente no de violência domestica), uma criteriosa e cuidada apreciação da prova validamente junta aos autos e produzida em julgamento, nem valorou como deveria a confissão por parte da arguida do que assumiu e a evolução da sua personalidade e todas as circunstâncias que depõem a seu favor.
2.15 Apesar da arguida ter confessado ter sido a autora das mensagens constantes do libelo acusatório, optando por prestar declarações, desde o início da audiência de discussão e julgamento, e de ter assumido e verbalizado arrependimento, tal não foi valorado como se pode constatar da leitura dos pontos dados como provados e não provados constantes da douta sentença.
2.16 Trata-se de matéria relevante para a decisão da causa, designadamente para a determinação da medida concreta da pena posto que a lei manda atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor da arguida, considerando, nomeadamente, a conduta posterior aos factos na qual se integra o eventual arrependimento alínea e) do n.° 2 do artigo 72.° do Código Penal.
2.17 Os factos ocorreram em circunstâncias irrepetíveis e num período de desorganização pessoal, psicológica e mental da arguida.
2.18 Da condenação pela pratica do crime de burla informática: no caso, os factos constantes da acusação e da prova existente nos autos não se integram no quadro de tipicidade específica do artigo 221º, nº 1 do Código Penal, rigorosamente interpretado.
2.19 Com efeito na utilização de dados não existiu qualquer erro, engano ou, nos limites da descrição típica, artifício pressuposto no contexto à própria utilização abusiva ou sem autorização.
2.20 O conhecimento dos dados pela arguida não resultou de qualquer acção que se destinasse à intervenção, manipulação ou engano do sistema, ou por acto de indução própria, avulsa ou incidente para conhecimento de dados e intervenção abusiva.
2.21 A posição com possível e potencial relevo patrimonial, resultante do conhecimento dos dados, foi obtida alegadamente sem qualquer interferência no sistema, e a própria obtenção dos dados anterior a qualquer intervenção, constitui já, por si, uma possibilidade de intervenção patrimonial que integrava um plano, e que assim criava desde logo o risco de utilização e de causar prejuízo patrimonial. Tal risco ou possibilidade (a situação de domínio sobre os dados) teve origem num facto que é, por seu lado, típico, porque constitui, mesmo em linguagem comum, alegadamente um roubo (artigo 210º do Código Penal), conforme os demais elementos de conformação.
2.22 Na verdade, a ter existido como consta da decisão, o que existiu foi uma acção de violência contra a assistente, constrangendo-a à entrega de um título e de elementos adjacentes que permitiam o acesso a coisa móvel – dinheiro, que integra tipicamente um roubo (artigo 210º), mais especificamente do que o constrangimento, por meio de violência, a uma disposição patrimonial (artigo 223º).
2.23 Não se vê, nesta perspectiva, diferença valorativa entre a obtenção do cartão e dos dados através de violência, com a sequente e imediata utilização dos dados, e um eventual uso do título e dos dados pelo próprio titular sob ameaça grave ou coacção.
2.24 Nestas circunstâncias, mesmo tendo em conta os factos dados como provados apenas estão integrados os elementos do crime de roubo, perdendo qualquer autonomia, ou estando mesmo tipicamente excluída, a integração do crime de burla informática.
2.25 E quanto a este a arguida só podia ter sido absolvida.
2.26 Entende a recorrente que a pena aplicada é manifestamente desproporcionada.
2.27 O Tribunal recorrido desconsiderou a confissão da prática dos principais factos.
2.28 Desconsiderou o arrependimento nessa parte.
2.29 Levou a cabo uma interpretação redutora dos relatórios de avaliação na parte que estes evidenciam por parte da arguida, dos distúrbios que sofria e sofre, aliás só amenizado com medicação diária, défices de auto critica quanto aos factos que lhe são imputados, dificuldade de valorização do bem jurídico em causa, dificuldade de reconhecimento dos danos que causou na pessoa da ofendida, evidencias de ideação paranóide, distorções cognitivas, desorganização pessoal que parecem toldar à recorrente a capacidade de auto – crítica tudo de tal forma evidente que o mesmo relatório aponta para a possibilidade de existir uma correlação entre o seu estado emocional e adopção de comportamentos agressivos.
2.30 Nessa medida e apenas no que concerne ao quantum da pena aplicada pelo Tribunal a quo à arguida, houve, salvo o devido respeito, violação do disposto no Artigo 71.° do Código Penal.
2.31 A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71º, nº1 e 40º, nº 2, do CP).
2.32 Na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, n.º 2, do CP, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que, a título exemplificativo, estão enumeradas naquele preceito. Por outro lado, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, n.º 1, do CP).
2.33 Na determinação da medida da pena, o tribunal a quo, desconsiderou esta avaliação psicológica (negativa) que resulta do relatório, e por consequência, valorizou de forma elevada o grau de ilicitude dos factos praticados e não teve em linha de conta as motivações (ainda que idealizadas e reprováveis) da recorrente.
2.34 Se é verdade que o fundamento legitimador da pena é a prevenção na sua dupla dimensão geral e especial e que a culpa do infractor desempenha o duplo papel de pressuposto (não há pena sem culpa) e de limite máximo da pena a aplicar e se a convicção do tribunal a quo segundo é que - dos factos e as suas consequências lesivas, não revestem, em termos relativos, especial gravidade – condenar o recorrente a pena efectiva é inviabilizar a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa).
2.35 Por tal motivo é nosso entendimento que o tribunal a quo na determinação da medida da pena não ponderou esta circunstância (atenuante) em concreto – consciência do recorrente do grau de ilicitude do facto e a motivação do agente, – facto que parcialmente contribuiu para a incorrecta determinação que desta faz.
2.36 O tribunal a quo condenou a arguida pela prática de um crime de violência doméstica agravada, contudo face ao estado emocional e psicológico que consta do relatório técnico transcrito na sentença, é premente avaliar se este “quadro” pode e deve ser considerado para determinação de erro sobre as circunstâncias do facto, nos termos do art.16, do C. Penal, com consequente exclusão do dolo, ou, pelo contrário, de um erro sobre a ilicitude, nos termos do art.17, do C. Penal, tendo que se averiguar se lhe é ou não censurável.
2.37 Se não for censurável não é punido, se for censurável a recorrente deve ser punida com a pena aplicável ao crime doloso, que pode ser especialmente atenuada, sendo esta última a posição pela qual se pugna.
2.38 No caso sub judice e considerando que a recorrente esteve exposta a alguns episódios de agressão verbal e física pelos seus ex-maridos, que delimitaram negativamente a sua personalidade, que denota sentimentos de tristeza e vulnerabilidade psicológica, que revela défices de autocritica em relação aos factos que lhe são imputados, que apresenta um quadro de desorganização pessoal pautado, que demonstra ter a capacidade de autocritica toldada, tudo ao ponto de ser considerada a possibilidade de existir uma correlação ente o seu estado emocional e a adopção de comportamentos agressivos, forçoso é concluir, na nossa opinião que estamos perante um erro sobre a ilicitude, nos termos do art.º 17.º do C. Penal, erro que lhe é censurável, mas cuja pena pode comportar especial atenuação.
2.39 A imposição de medidas injuntivas de proibição de contacto pessoal e telefónico, tudo acompanhado de regime de prova, seriam suficientes, por um lado, para salvaguardar a integridade pessoal, emocional, psicológica da assistente e por outro para garantir a “recuperação” emocional e psicológica da recorrente, mediante a sujeição compromissada a um acompanhamento médico especializado a par da manutenção do acompanhamento do plano individual de reabilitação social seguido pela DGRSP.
2.40 Por outra banda, e salvo o devido respeito por opinião diversa, sempre que sobrem dúvidas acerca da conduta do arguido deve, em obediência aos mais elementares princípios do direito penal, ser aquele condenado (principio in dúbio pro reo).
2.41 Qualquer terceiro imparcial na qualidade de homem médio teria ficado com dúvidas, ao assistir à audiência de discussão e julgamento, acerca da prática dos factos não assumidos pela arguida, nomeadamente na utilização de armas e/ou facas e da violação sexual da assistente, e até da forma como a arguida conseguiria transportar a assistente contra a sua vontade no seu carro e até sua casa.
2.42 Deverá pois, o Tribunal a quo fazer um juízo segundo as regras da experiência comum aplicada, às circunstâncias concretas da situação, tendo em vista o teor literal do preceito que define os tipos de crime e os princípios relativos à interpretação e aplicação da lei penal.
2.43 A sentença recorrida violou ali, nomeadamente, o princípio in dubio Pro reo, bem como as normas constantes do art. 71º do Código Penal.
2.44 E por isso entendemos que da prova produzida em audiência de julgamento, resultaram fundadas dúvidas acerca do cometimento daqueles factos concretos por parte da recorrente.
Impunha-se assim ao tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da douta sentença recorrida, a absolvição da arguida dos factos que não assumiu e repudiou.
2.45 Impõe-se uma decisão diferente da proferida, devendo o arguida, ora recorrente, ser absolvida da acusação contra si deduzida quanto ao crime de burla informática, e, do agravamento pela utilização e exibição de armas à assistente e da violência sexual sob a forma de introdução vaginal de objectos.
2.46 O douto acórdão recorrido tem pois que ser revogado pelo menos naquela parte, o que colocaria a arguida numa posição mais favorável quanto à medida da pena a ser aplicada, tudo isto não só por força da prova feita em audiência mas também pelas muitas dúvidas quanto à prática do crime de burla informática e no restante, duvidas quanto á actuação agravada da recorrente dos crimes que foi condenada.
2.47 A aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa.
2.48 Analisadas as circunstâncias concretas do caso ora sub judice, entende-se que foi usado um critério desadequado na dosimetria da pena, quanto ao ora recorrente, pelo que se entende que a decisão fez errónea interpretação dos Arts.70 e 71 do CP.
2.49 Impõe-se a seguinte pergunta, não sendo a arguida condenada quanto ao crime de burla informática, e com a agravante da utilização e exibição de armas e da violência sexual qual a moldura penal? Que seguramente em cúmulo se situaria até aos cinco anos de prisão.
2.50 Regressando a arguida à liberdade daqui a 6 anos que perspectivas de vida se lhe oferecem? Obviamente, nenhumas.
2.51 Com esta punição, o douto Tribunal a quo está a admitir que a arguida constitui um grave “problema” para a sociedade e que, dadas as circunstâncias, o melhor será colocá-la, de vez, à margem da mesma.
2.52 Desta forma, o douto Tribunal a quo esqueceu completamente a reintegração do agente na sociedade, como uma das finalidades da aplicação das penas (cfr. art. 40º, n.º 1 do CP), tendo-se preocupado única e exclusivamente com a sua punição.
2.53 Ao condenar a arguida em cumulo juridico em 6 anos, a douta decisão violou, salvo melhor opinião, aquele princípio fundamental de Direito Penal - medida da culpa – (artigos 70º e ss. do Código Penal).
2.54 E, nessa medida, a decisão ora recorrida é nula e impõe-se a sua alteração.
2.55 Na hipótese da revogação parcial da pena aplicada e caso se optasse pela não aplicação de uma pena privativa da liberdade, permitiria à recorrente consolidar a sua estrutura familiar e profissional.
2.56 A suspensão da execução da pena será, assim, subordinada ao cumprimento de certos deveres e/ou regras de conduta por parte da recorrente e acompanhada de regime de prova (cfr. arts. 50º, n.º 2 e n.º 3 e 51º a 54º do CP).
2.57 Deste modo, a aplicação de uma pena à recorrente terá o efeito desejado, assegurando não só as exigências de punição, mas também as necessidades de prevenção (cfr. art. 71º, n.º 1 do CP). Sendo esta a melhor forma de assegurar que a recorrente não irá reincidir, o que nunca será conseguido com a aplicação de uma elevada pena de prisão.
2.58 Foram assim violados as disposições contidas nos artigos 72 n° 2 e), 152º n.° 1 do Código Penal, artigos 122º n.° 1, 374° n.° 2, 379° n.° 1 alíneas b) e c) e 410º n.° 2, todos do Código de Processo Penal, artigos 494° e 496° do Código Civil e ainda os artigos 205° e 32° da Constituição da República Portuguesa, e outras que V.ªs Exc.ªs sapientemente suprirão.
2.59 A sentença recorrida violou ainda, nomeadamente, o princípio in dubio pro reo, bem como as normas constantes do art. 71º do Código Penal.
Sem prescindir do Douto Suprimento de V. Exas deve ser concedido provimento ao presente recurso, devendo em consequência ser reformulado o douto Acórdão recorrido nos termos da Motivação e Conclusões antecedentes, julgando procedente o presente recurso absolvendo a arguida da pratica do crime de burla informática e absolvendo-a na parte do agravamento do crime de violência domestica pelo uso de armas e de violência sexual mantendo-se a condenação dentro do limite máximo dos 5 anos de prisão suspendendo-se a sua execução.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, após o que o Ministério Público e a assistente responderam, ambos defendendo o seu não provimento.

4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral Adjunta aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância e pronunciou-se pelo não provimento do recurso.

5. Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.

6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
-erro notório na apreciação da prova;
-impugnação da matéria de facto;
-qualificação jurídica dos factos;
-medida da pena;
-suspensão da execução da pena;
*     *     *

IIº A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, é do seguinte teor:

FACTOS PROVADOS

Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos com relevância para a decisão final:
1. A arguida, A. , e a ofendida, APO, começaram a namorar em Maio de 2016, e terminaram o relacionamento no dia 01.06.2017.
2. A ofendida APO residia na E. Sintra e a Arguida reside na Rua CC , Barreiro.
3. A ofendida e a arguida ficaram com as chaves das residências uma da outra.
4. No dia 10.06.2017, sábado, pelas 09h00 a arguida enviou do seu telemóvel com o n°9…5 uma mensagem para o telemóvel da ofendida com o n°9…2 marcando um encontro, pois haviam terminado o relacionamento há pouco tempo.
5. O encontro ficou marcado para dia 11.06.2017, domingo, pelas 17h00 na residência da ofendida.
6. No dia 11.06.2017, pelas 10h00 a arguida começou a enviar mensagens escritas à ofendida pressionando-a dizendo-lhe que já estava a caminho para se despachar.
7. Pelas 17h10 a ofendida chegou a sua casa no interior da qual, pelo menos desde as 15 horas, já se encontrava a arguida, a qual começou por dizer que tinham que reatar, mas a ofendida recusou.
8. A arguida disse à ofendida para irem para o quarto e perguntou-lhe o que é que é isto, apontando para um gel lubrificante íntimo existente na gaveta da mesinha de cabeceira.
9. A ofendida ficou indignada, pois percebeu que a arguida havia andado a remexer nas suas coisas, e quis sair do quarto.
10. A arguida nesse momento puxou de uma réplica de arma de fogo e apontou-a em direcção à ofendida, ordenando-lhe que se deitasse de barriga para cima, colocando-se sentada em cima das pernas e anca da ofendida, imobilizando-a.
11. Pousou a arma e exibiu duas facas de cozinha, apontando uma delas ao pescoço da ofendida dizendo-lhe: “estás calada e vais fazer aquilo que eu te mandar; não grites”.
12. A arguida também lhe apontou a faca para a zona do coração e do abdómen.
13. A ofendida tentou resistir, mas não conseguiu, pois a arguida desferiu-lhe várias bofetadas na cara.
14. A ofendida ainda conseguiu morder-lhe o braço, mas a arguida obrigou a ofendida a ingerir cerca de 10 comprimidos de marca não apurada com a ingestão simultânea de gin, que, primeiramente, ainda os conseguiu manter na boca, mas, depois, foi obrigada a engolir com mais gin.
15. E injectou-lhe no braço, com uma seringa, uma substância desconhecida, dizendo-lhe “para sentires menos dor na morte, para morreres mais rápido”.
16. Ao mesmo tempo que dizia à ofendida que a vida não fazia sentido se se separassem, pretendendo acabar com a vida de ambas.
17. A arguida dirigiu a seguinte expressão à ofendida “Se não és minha, não és de mais ninguém”.
18. E ordenou-lhe que se despisse enquanto a própria se despia.
19. Começou então, contra a vontade da ofendida, a introduzir-lhe um pénis artificial (strap-on dildo) na vagina.
20. A ofendida não resistiu, pois a arguida apontara-lhe a faca e, já se encontrava sob efeito dos comprimidos.
21. Após passarem para a sala, a arguida amordaçou-a com uma meia, prendeu-lhe os pés e os braços, para a imobilizar.
22. A arguida retirou da carteira da ofendida o cartão de débito pertencente à sua amiga, SF , com o n° …, associado à conta com o n° …, sediada no Banco Montepio Geral, obrigando-a a indicar o código, tendo a arguida, mais tarde, no dia 11 de Junho de 2017, efectuado levantamentos no valor de cerca de €280,00, o primeiro no valor de €130,00, o segundo no valor de €150,00.
23. Desde o dia 11.06.2017 a 13.06.2017 a ofendida não teve consciência de onde esteve.
24. Nesse período, a arguida pegou no telemóvel da ofendida e apagou neste todas as mensagens escritas que lhe tinha enviado.
25. No dia 13.06.2017 começou a voltar a si, da parte da tarde, encontrando-se ainda na companhia da arguida, mas estava com mobilidade reduzida e voz arrastada, tendo sido deixada sozinha em casa.
26. No dia 12.06.2017 como faltou ao trabalho, recebeu inúmeros telefonemas de colegas, mas o seu telemóvel estava em silêncio.
27. Os seus amigos MS e MP , deslocaram-se a sua casa, no dia 13.06.2017, e verificaram que a ofendida se encontrava apática, tendo-a transportado de imediato ao Hospital de S. José, Lisboa, dando entrada nos serviços de urgência pelas 17h16.
28. Em exame efectuado naquele hospital, a ofendida apresentou um resultado de exame positivo, revelando a presença de anfetaminas no seu organismo.

29. A arguida enviou à ofendida desde o dia 18.06.2017 até 22.06.2017 várias mensagens através do seu telemóvel com o n° 9…5 para o n° 9…2, tais como:
No dia 19.06.2017, pelas 13:37: “Tens até às 16:00 para responderes ao W. . Ele tem de entregar os trabalhos amanhã sem falta e não o vais prejudicar por pura estupidez. O teu problema é comigo e não com ele. Caso contrário vou à segurança social e denuncio-te por fraude”.
No dia 19-06-2017, pelas 19:46: “O W.  já me contou e mostrou o modo como agiste com ele. Acho bem leres o teu email. Eu avisei-te”.
No dia 20-06-2017, pelas 22:06: “ Nunca te vou perdoar a forma como tens tratado os miúdos. Agora entendo o que a L. quis dizer com não seres o anjo que todos pensam que és. Doeu ver a cara da tua mãe cheia de lágrimas ao dizer que não estavam cá tios nenhuns e que tinhas mentido. Ao saber que lhe mentiste por dizeres que não tinhas contacto com a L. Tu enganas toda a gente. Mas a tua mãe deu dó”.
No dia 20-06-2017, pelas 22:06: “ O teu pai a perguntar porque nunca me apresentaste, a fazer perguntas dos miúdos. Deu pena ver a cara deles ao saberem que a L. não era tua amiga, mas sim namorada. A tua mãe só disse: agora percebo porque nunca casou, gosta de mulheres. Coitados, são boas pessoas e não têm culpa da filha que tiveram.”
No dia 20-06-2017, pelas 22:45: “ Eu não te fiz nada. Já tu enganaste-me bem enganada e nem coragem tiveste para mo dizer na cara. Mentiste-me e trataste-me como uma qualquer. As tuas promessas não valem nada de nada. Até tios inventaste... A sério ? Tanto pudor, tanta amizade, tanto respeito para descobrir que só me enganaste? Nem para ti és boa... Mas não faz mal, vais sentir na pele o que me fizeste e aos miúdos”.
No dia 20.06.2017 pelas 23h00 “Entre domingo e terça-feira tomei conta de ti bêbeda e com merdas que tomaste. Trouxe-te para minha casa, que nem isso merecias depois de me teres encornado e enganado. De nem sequer teres sido capaz de ter tido uma conversa adulta cara a cara. Só tive direito a um “não tenho tempo para ti na minha vida” como se fosse um monte de merda. Mostraste quem realmente és. E eu avisei-te quando a prejudicarem o W. . Continua a fazer o teu papel de coitadinha para os outros. Sabes bem o que me fizeste”.
Pelas 23h06 “E não, não fiz tudo o que mereces que te seja feito. Vais aprender a respeitar e a não brincar com os sentimentos das pessoas. A não trair. A ser adulta. E a nunca fazeres promessas que não podes cumprir. Mas acima de tudo, vais aprender que nunca me devias ter traído nem enganado”.
No dia 20-06-2017, pelas 23:12: “Tanto amor pela S.,,, E nem dela queres saber... Típico quando é só álcool, tabaco e traição é que importam. Agora sei quem és... e tenho nojo e vergonha de alguma vez ter sido tua.”
No dia 21-06-2017, pelas 18:39: “Olha que depois de saber que me traíste não vai ser agradável o nosso encontro”.
No dia 23 de Junho de 2017, pelas 22:57, através do nº 919910875, a arguida enviou a seguinte mensagem à ofendida: “Vais mudar de casa?Que pena.... Gosto tanto daquela.... Não te preocupes.... Eu encontro-te... Deixa Cá ver se me lembro... Tens pavor de cair? Cuidado com os encontrões”.
No dia 24 de Junho de 2017, pelas 12:11, através do n° 919910875, a arguida enviou a seguinte mensagem à ofendida: “Bom dia alegria... Duas notícias... Encontrei a carta do tribunal de comércio em que te foi dada a insolvência... Not good!. Tem os dados do teu gestor de insolvência e, claro, todas as mentiras que contaste... Vais receber um e-mail e uma chamada. A outra notícia... Bem, não interessa porque tb não quiseste saber minimamente dela.. sim sera da S. Tudo de bom. A. ”.
No dia 25 de Junho de 2017, pelas 14:10, através do n° 9…5, a arguida enviou a seguinte mensagem à ofendida: “Caso não respondas ao W. , ele vai falar com os teus pais, explicar o que está a fazer. Caso não queiram saber, que é o mais provável, podes esperar a presença dele e dos tios numa das próximas sessões do projeto. Podes chamar a polícia mas não prejudicas mais. Da minha parte, não lhe respondes com uma solução urgente, amanhã contato com o teu gestor de insolvência e conto-lhe toda a verdade. Estás avisada. A.”.
No dia 28 de Junho de 2017, pelas 13:57, através do nº 9...5,
a arguida enviou a seguinte mensagem à ofendida: “ Vou à tua procura. O W. foi gravemente prejudicado no curso dele. Deste cabo da média dele e do futuro. Não te vou perdoar mais por isso. Ele, acima de tudo, não o merecia pois nunca te fez mal. Nunca. O Erasmus está em risco. Não te encontro a ti, encontro os teus pais. Ou amanhã no projeto. Estás avisada”.
30. Não obstante a arguida ter sido companheira da ofendida e sobre ela recair o dever de respeito em relação àquela, atuou da forma descrita, querendo sempre atingir, como atingiu, a ofendida APO, no seu corpo e saúde, bem como no seu bem-estar emocional, não se inibindo de ter relações sexuais com aquela, nos termos supra descritos, contra a sua vontade, não se coibindo de o fazer na residência onde a ofendida tinha a sua vida organizada, o que quis e alcançou.
31. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de obter o cartão multibanco de SF  e respectivo código pin, na posse de APO, com o propósito de levantar e fazer suas, como fez, as quantias de € 130,00 e € 150,00, no total de € 280,00 que a ofendida tinha na sua posse, bem sabendo que aquele valor não lhe pertencia, que atuava sem o seu consentimento e contra a vontade de APO  , o que quis e representou.
32. Ao actuar da forma descrita, agiu a arguida livre, voluntária e conscientemente, com o intuito de privar de liberdade a ofendida, nos termos supra descritos, bem sabendo que com a oposição da ofendida, o que quis e representou.
33. Agiu sempre voluntária e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
34. Mais se provou (pedidos de indemnização civil):
35. Em virtude de a arguida ter remexido nas gavetas da mesinha de cabeceira da assistente, a mesma sentiu que a sua privacidade tinha sido invadida.
36. Em virtude de a arguida ter empunhado armas contra a assistente e de a ter ameaçado de morte, esta sentiu que corria perigo de vida.
37. Em virtude da actuação da arguida, a assistente sofreu dores no corpo e enjoos.
38. A assistente só veio a descobrir mais tarde que a arguida a obrigara a ingerir anfetaminas.
39. Em virtude da actuação da arguida, a assistente passou a ter dificuldades em adormecer e descansar.
40. E passou a desconfiar das pessoas e a evitar novas relações afectivas.
41. Em virtude da actuação da arguida, a assistente viu-se obrigada a deixar a sua residência mais vulnerável sita no r/c onde ocorreram os factos sob julgamento e passou a residir na casa dos seus amigos mais próximos em virtude de não ter disponibilidade financeira para conseguir uma nova habitação;
42. E necessitou de tomar medicação permanente e de frequentar sessões de terapia no Gabinete de Apoio à Vítima de Cascais.
43. A assistente suportou o pagamento da despesa global de € 306,08 relativa ao custo da mudança de casa, deslocações às sessões de terapia e compra de medicamentos.
*     *     *

44. Em virtude da actuação da arguida, o Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. prestou a seguinte assistência à assistente:
a.- Cuidados de saúde em episódio de urgência no dia 13 de Junho de 2017, no valor global de € 287,64.
*     *     *

Mais se provou:
45. A arguida interveio no julgamento, prestando declarações parcialmente confessórias nas quais reduziu todo o mal causado à assistente a umas bofetadas e a uma ingestão forçada de dez comprimidos acompanhada de gin que a assistente veio a expulsar do organismo através do vómito.
46. A arguida minimizou as consequências dos factos confessados e não manifestou arrependimento relativamente às condutas dadas como provadas.
47. A arguida apresenta um quadro clínico compatível com Distúrbio de Personalidade Limítrofe.
48. A arguida não apresenta qualquer condenação averbada no respectivo certificado de registo criminal.

Mais se provou (condições socio-económicas da arguida):
49.–A arguida nasceu em 20 de Maio de 1978.
50. O seu processo de desenvolvimento foi condicionado negativamente pela disfuncionalidade do sistema familiar de origem.
51. O clima era conflituoso, caracterizado pela agressividade do progenitor para com a mãe e a arguida.
52. Esta situação piorou quando os pais se separaram, contava a arguida cerca de 11 anos, dinâmica que é recordada como traumática.
53. Contra a sua vontade, a arguida ficou aos cuidados do pai.
54. Cerca dos 16 anos de idade, a arguida decidiu fugir para casa da mãe, com quem passou a viver e cortou as relações com o pai, entretanto falecido.
55. No campo escolar, APO manifestou motivação e aproveitamento.
56. Abandonou a escola quando frequentava o 12º ano de escolaridade, devido a incompatibilidades entre o horário escolar e o profissional, bem como algum cansaço.
57. De modo a ajudar na economia doméstica, a arguida começou a trabalhar com 16 anos de idade, quando frequentava o 10.º ano de escolaridade, acumulando a vida escolar com a profissional.
58. Sem formação escolar específica, a arguida começou por laborar num café, trabalhou depois como operária fabril e como caixa num supermercado.
59. Mais tarde, começou a exercer funções de auxiliar administrativa, até emigrar para Londres, em 1998, já com 20 anos de idade, onde ficou cerca de três anos, numa situação sub-ocupacional, ao abrigo do apoio social do Estado inglês.
60. Quando voltou para Portugal, a arguida trabalhou em vários ramos e empresas, chegando a acumular duas colocações de oito horas, em horários distintos, mas não voltou a ter mais um emprego duradouro e contratualizado, à excepção daquele em que se encontrava quando foi presa, em 2017.
61. Inscrita no centro de emprego, a arguida recebeu algumas colocações temporárias, que preencheu, e em 2012/2013, fez um curso de preparação profissional como técnica de apoio à gestão, a partir do qual chegou a trabalhar na área de contabilidade, pelo menos por duas vezes.
62. No plano afectivo, de forma a manter o apoio e a união familiar, a arguida encetaria relacionamento amoroso com um indivíduo conhecido da família.
63. A gravidez inesperada precipitaria a coabitação do casal, em casa da progenitora da arguida.
64. A segunda gravidez na época do período de amamentação do primeiro filho acentuou a litigância entre o casal.
65. O segundo filho, nasceu em Inglaterra em 1998, para onde o casal emigrou, mas a relação não prosseguiu e após o regresso a casa da mãe, a arguida voltaria ainda a estabelecer uma segunda relação.
66. Casou em 2005, mas pouco depois o cônjuge fixou-se em Angola e rompeu a ligação.
67. O seu terceiro filho, nasceu no contexto desta relação, em 2002.
68. Estas duas relações afectivas são descritas como conflituosas, caracterizadas pela agressividade dos companheiros, que não contribuíram para as despesas dos filhos, após a separação.
69. Tudo indica que na sequência dos sucessivos abandonos dos companheiros e dos problemas pessoais decorrentes das dificuldades em assumir a sua orientação sexual, a arguida deprimiu e protagonizou a primeira tentativa de suicídio, aos 27/28 anos.
70. Não foi possível identificar, quer junto da arguida quer nos contactos com os familiares, qualquer tipo de conduta heteroagressiva ou aditiva, relacionada com bebidas alcoólicas ou com o consumo de estupefacientes.
71. Desde os 27/28 anos da idade, a arguida passou a ser acompanhada em consulta de psiquiatria e de psicologia no Hospital do Barreiro, mantendo mesmo assim condutas auto-agressivas e auto-mutilatórias ao longo dos anos.
72. Decidiu assumir a sua orientação sexual cerca dos 30 anos de idade, época em que se afastou dos familiares e passou a viver com os filhos, autonomamente.
73. Remonta a essa altura, a rejeição de que passou a ser alvo por parte de alguns familiares, que não aceitam a sua orientação sexual, a discriminam e a excluem do convívio alargado.
74. O primeiro relacionamento classificado como afectivamente gratificante foi com uma companheira, que se manteve por cerca de 4 anos, entre os 32 e os 36/37 anos de idade.
75. Vivenciou nessa altura algumas dificuldades na consecução de emprego, tendo recorrido ao apoio do Estado através do rendimento social de inserção para a subsistência do agregado, que incluía os três filhos da arguida.
76. À data dos factos relatados na acusação, APO residia na morada dos autos, na companhia dos seus três filhos, actualmente com 20, 18 e 15 anos de idade.
77. Tratava-se de um apartamento arrendado, desde há três ou quatro anos, entretanto agora entregue ao senhorio, onde a arguida chegou a residir com a primeira companheira.
78. Ao nível ocupacional, a arguida estava a trabalhar como administrativa numa empresa de transportes, “Ss ”, onde foi admitida em Maio de 2017, com o vencimento mensal de 640 €.
79. No campo afectivo, a arguida tinha mantido até ao início de Junho de 2017, durante cerca de um ano, o relacionamento com a vítima, Apo, que classifica como instável e conflituante.
80. A arguida é descrita pelos familiares como introvertida e isolada
81. Evitava os conflitos e oscilava entre depressividade e a euforia ao nível das manifestações afectivas positivas.
82. Esteve internada na Clínica Psiquiátrica do Hospital Prisional em Caxias até dia 8 de Março, quando foi admitida no EP de Tires.
83. Dado o seu historial de angústia e depressão é acompanhada nos serviços clínicos.
84. Cumpridora das regras em meio prisional, a arguida não tem incidências disciplinares.
85. Quanto às suas características pessoais, apresenta-se como uma mulher depressiva, sensível às emoções negativas que estão associadas à sua situação actual.
86. A morte da mãe, vítima de cancro, há cerca de 5 meses, é vivida com marcado luto.
87. Os planos de APO estão centrados em retomar a vida profissional e familiar, junto dos filhos.
88. No meio exterior tem o apoio de alguns irmãos, concretamente da irmã mais nova, referindo que a acolhe na sua morada, acima referenciada, pois dispõe de uma situação socio-económica estável que lhe permite auxiliar a arguida na sua reintegração social.
89. Integra o agregado desta irmã, o filho mais novo desta com 17 anos de idade.
90. A prisão provocou grandes alterações na organização e dinâmica familiar da arguida.
91. Os seus três filhos que viviam com a arguida ficaram ao cuidado dos familiares maternos e paternos.
92. Dois deles residem agora com os respectivos avós paternos na zona do Barreiro e o mais velho, emigrou para a Suíça, para residir com familiares da namorada.
93. Tem recebido o apoio de alguns irmãos, que a visitam, bem como dos dois filhos mais novos.

B)FACTOS NÃO PROVADOS
Ficaram por provar os seguintes factos constantes da pronúncia
com relevância para a decisão final:
1. No dia 11 de Junho de 2017, a assistente ingeriu, por duas vezes, forçada pela arguida, uma quantidade global de comprimidos não inferior a 20 unidades.
2. A assistente suportou o pagamento da despesa global de € 700,00 relativa ao custo da mudança de casa, deslocações às sessões de terapia e compra de medicamentos.

C)MOTIVAÇÃO DO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
(…)
*     *     *

IIIº1.A recorrente, inconformada com a decisão recorrida, invoca o vício do erro notório na apreciação da prova, da alínea c, do nº2, do art.410, do CPP.

Este preceito legal admite o alargamento dos fundamentos do recurso às hipóteses previstas nas suas três alíneas, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O Prof. Germano Marques da Silva[1], caracteriza o erro notório na apreciação da prova, como o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Ocorre quando a matéria de facto sofre de uma irrazoabilidade passível de ser patente a qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum[2].

A recorrente, invoca este vício de forma conclusiva, sem especificar qualquer ponto do texto da decisão que contenha conclusão ilógica, arbitrária, contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Este vício, como se referiu, tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a elementos estranhos a ela, ainda que constantes do processo[3].

Para ser notório, tem tal vício de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova – facilmente perceptível numa leitura minimamente atenta e ponderada, levada a cabo por um juiz com a cultura e experiência da vida que deve pressupor-se num juiz normal chamado a apreciar a questão – denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias ou das legis artis, ou ainda das regras da experiência comum, ou que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Relida a decisão recorrida, o texto da mesma apresenta-se lógico, conforme as regras da experiência comum, não decorrendo dele qualquer erro, muito menos notório, susceptível de integrar o vício invocado.

A recorrente, esquecendo que este vício tem de resultar do próprio texto da decisão, apela ao sentido de provas produzidas em audiência, o que revela intenção de impugnar a matéria de facto, admissível no caso pois, de acordo com o art.428, nº1, do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito”.

Não cumpre com rigor o exigido nas alíneas a, e b, do art.412, nº3, do Código Penal, através da especificação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e da menção das provas que impõem decisão diversa da recorrida.

Lidas as suas motivações e conclusões, porém, compreende-se que pretende impugnar os factos provados relativos ao uso de réplica de arma ou arma ou/e facas por parte da arguida, violência sexual, confissão e arrependimento.

Quanto a provas que impõem decisão diversa, apelas às suas próprias declarações em audiência, que alega não terem sido adequadamente valoradas pelo tribunal recorrido e devaloriza as provas em que o tribunal recorrido se apoiou (em particular declarações da assistente).

Em causa estão factos ocorridos na privacidade da casa da ofendida, no decurso de um encontro entre ela e a arguida, que aí se dirigiu depois da ruptura da relação de namoro que existiu entre ambas, assumindo a arguida que entrou na casa usando a chave que ainda mantinha na sua posse e que compareceu neste local cerca de duas horas antes da hora acordada entre ambas. Assumiu a arguida, ainda, que manteve nessa altura uma discussão acesa com a assistente por ter descoberto que a mesma tinha em casa gel lubrificante íntimo, tendo-lhe desferido bofetadas na cara antes de a imobilizar com os joelhos por cima dos braços e a obrigar a ingerir cerca de 10 comprimidos com benzodiazepinas acompanhados da ingestão igualmente forçada de uma quantidade indeterminada de gin.

A assistente, em declarações que o tribunal recorrido qualificou de verosímeis e credíveis, o que o este tribunal não tem razões para contrariar, descreveu de forma contida os factos no sentido em que foram considerados como provados, nomeadamente a exibição pela arguida de um objecto com aparência de arma de fogo para a obrigar a deitar-se na cama, a ulterior exibição pela arguida de duas facas (da cozinha da assistente) sem nunca ter saído de cima da assistente, a acção de encostar essas facas ao pescoço e ao peito da assistente, a colocação de comprimidos na boca da assistente sob a exibição das facas, a utilização pela arguida de uma almofada na cara para abafar os gritos da assistente e a introdução de um pénis artificial pela arguida na vagina da assistente.

Este relato contido da assistente, é perfeitamente compatível com a atitude agressiva da arguida para com ela, que a própria arguida assumiu e com o ciúme desencadeado pelo facto de ter encontrado na mesinha de cabeceira da assistente um gel lubrificante íntimo.

Este ciúme é corroborado, ainda, pelo depoimento da testemunha CJ, então senhorio da assistente, que referiu ter sido interpelado nesse dia pela arguida perguntando sobre visitas masculinas à assistente.

Por outro lado, o conteúdo das mensagens confessadamente enviadas pela arguida à assistente no período compreendido entre 18 e 28 de Junho de 2017, revelando um estado de espírito agressivo daquela em relação a esta, é compatível com a prática pela arguida dos factos descritos pela assistente.

Assim, em relação aos factos provados relativos ao uso de réplica de arma ou arma e facas por parte da arguida e violência sexual, o relato pela ofendida no sentido em que esses factos foram considerados como provados, aliado ao conjunto da prova produzida em audência, apresenta-se perfeitamente lógico e conforme às regras da experiência comum.

A arguida assumiu ter desferido bofetadas na assistente e tê-la obrigado a ingerir comprimidos com benzodiazepinas acompanhados da ingestão igualmente forçada de uma quantidade indeterminada de gin, mas perante as análises a que a assistente foi submetida no hospital e a prova testemunhal (em particular CJ que viu a assistente chegar a casa em estado perfeitamente normal e que antes fora interpelado pela arguida e MS, enfermeira de profissão, que foi a primeira pessoa a chegar a casa da assistente), não lhe restava alternativa a assumir esses factos.

A negação por ela dos outros factos, passados na intinidade das duas, só por si, não pode impor decisão diversa, quando são confirmados pela assistente, em depoimento verosímel e credível, compatível com as regras da experiência comum.

Quanto à confissão e arrependimento, o tribunal considerou provada a confissão parcial (nº45 dos factos provados), o que se apresenta correcto, insistindo a arguida em negar a utilização da réplica de arma de fogo e a introdução do pénis artificial na vagina da assistente.

Por outro lado, minizando as consequências dos actos que confessou (nº46, dos factos provados), não pode ser considerado provado o arrependimento, que não se basta com uma simples verbalização, antes se devendo traduzir num acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente, o que a prova produzida não demonstra.

Deste modo, em relação à matéria de facto considerada assente pelo tribunal recorrido, a recorrente não apresenta quaisquer elementos de prova que imponham decisão diversa, como exige a alínea b, do nº3, do art.412, CPP, antes se limitando a fazer apreciação diferente da prova, tentando fazer vingar a sua visão pessoal sobre a prova produzida o que, manifestamente, é insuficiente para pôr em causa a convicção do tribunal, formada com base no conjunto da prova produzida, apreciada segundo critérios objectivos e norteada pelo cumprimento do dever de perseguir a verdade material, o que corresponde ao cumprimento adequado do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127, do CPP.

Invoca o princípio do in dubio pro reo.

Contudo, tendo o tribunal formado a convicção no sentido em que os factos foram considerados provados, apoiado numa fundamentação que não deixa quaisquer dúvidas, não se justifica apelo a esse princípio.

Não se justifica, pois, qualquer alteração à decisão relativa à matéria de facto.

2. Atenta a matéria de facto provada, estão preenchidos todos os elementos típicos dos crimes por que a arguida foi acusada e condenada.
A arguida A. e a ofendida APO, mantiveram entre si um relacionamento de namoro entre Maio de 2016 e Junho de 2017.
Inconformada com o termo desse relacionamento, a arguida procurou a ofendida na casa desta em 11Jun.17 e perante a recusa desta em reatar a relação, apontou uma réplica de arma de fogo à ofendida, imobilizou-a (colocando-se sentada em cima das pernas e anca da ofendida), exibiu duas facas de cozinha, apontando uma delas ao pescoço e à zona do coração e do abdómen, disse-lhe “estás calada e vais fazer aquilo que eu te mandar; não grites”, perante a resistência da ofendida desferiu-lhe várias bofetadas na cara, obrigou a ofendida a ingerir cerca de 10 comprimidos com a ingestão simultânea de gin, injectou-lhe no braço, com uma seringa, uma substância desconhecida, dizendo-lhe “para sentires menos dor na morte, para morreres mais rápido”, ao mesmo tempo que dizia à ofendida que a vida não fazia sentido se se separassem, pretendendo acabar com a vida de ambas “Se não és minha, não és de mais ninguém”, ordenou-lhe que se despisse enquanto a própria se despia e, contra a vontade da ofendida, introduziu-lhe um pénis artificial (strap-on dildo) na vagina, depois amordaçou-a com uma meia e prendeu-lhe os pés e os braços, para a imobilizar.

Entre os dias 11.06.2017 a 13.06.2017 a ofendida não teve consciência de onde esteve, quando voltou a si no dia 13.06.2017, encontrando-se ainda na companhia da arguida, a ofendida estava com mobilidade reduzida e voz arrastada, tendo sido deixada sozinha em casa.

Entre os dias 18.06.2017 e 22.06.2017 a arguida enviou à arguida várias mensagens ameaçadoras, nos termos que constam dos factos provados.

Estamos, pois, perante uma conduta que de forma grave pôs em causa não só a integridade física propriamente dita, mas a saúde da pessoa ofendida, na sua globalidade e enquanto tal, atingida no seu bem estar físico, psíquico e mental, enquanto elemento essencial, indispensável à "mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade" (Figueiredo Dias, Direito Penal, Questões Fundamentais e Doutrina Geral do Crime, 1996, pág. 63)[4].

A ofensa à dignidade humana, bem jurídico com tutela constitucional (art.26, nº 2, da CRP), caracteriza o crime de violência doméstica que, desde 2007, com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei nº59/07, de 4Set., passou a prever “…a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação …”[5].

Com esta alteração o legislador reconheceu que a violência doméstica não é uma questão de género, mas de poder, com uma das pessoas da relação a lançar mão de mecanismos que lhe permitam controlar o(a) parceiro(a). Por detrás da violência doméstica nem sempre está a força física ou a cultura machista, mas, sim, as relações de poder, em todas as relações humanas sendo possível encontrar hierarquias[6].

No caso, entre os actos suportados pela ofendida, destaca-se a ofensa à sua própria autodeterminação sexual, através da introdução pela arguida de um pénis artificial na sua vagina, o que integra a previsão da alínea b, do nº1, do art.164, do Código Penal (crime de violação), punição mais grave aplicável no caso (art.152, nº1, CP).

Encontrando-se a ofendida imobilizada (amordaçou-a com uma meia, prendeu-lhe os pés e os braços), isto é, impossibilitada de resistir, a arguida retirou da carteira da ofendida o cartão de débito identificado nos factos provados e dele se apropriou, o que preenche todos os elementos do crime de roubo, p.p., pelo art.210, nº1, do Código Penal.

Em relação ao crime de burla informática e nas comunicações, alega a recorrente que não existiu qualquer erro. Contudo, este crime distingue-se do de burla geral previsto no art.217, que pode ser cometido por qualquer meio de erro ou engano sobre os factos, enquanto o crime do art.221 tem que ser cometido através de algum dos meios descritos nos nºs1 e 2, nomeadamente “… utilização de dados sem autorização …”, como aconteceu no caso em apreço pela arguida, ao levantar da conta da titular a quantia de €280,00, assim tendo praticado o crime de burla informática e nas comunicações, p.p., pelo art.221, nº1, do Código Penal.

Este preceito incriminador protege bens jurídicos distintos dos subjacentes ao crime de roubo, justificando-se a condenação pelos dois crimes, em concurso real, como fez o acórdão recorrido.

Ao contrário do alegado, da matéria de facto provada não resulta o mínimo indício de a arguida ter agido em erro sobre as circunstâncias de facto relativas ao crime de violência doméstica.

Tinha mantido com a ofendida um relacionamento amoroso, mas não poderia desconhecer que tal circunstância não justificava qualquer restrição à protecção devida à integridade física e dignidade da mesma, tal como a qualquer outra pessoa.

Também não é admissível qualquer erro sobre a ilicitude da sua conduta, pois está suficientemente cimentado na consciência social a protecção que é devida aos bens jurídicos atingidos pela sua conduta.

O fracasso das relações afectivas anteriores, não justificam, nem permitem compreender, a sua actuação provada nestes autos, antes a deviam ter levado a interiorizar a elevada censura desse tipo de comportamentos.

Não ocorre, pois, qualquer circunstância que exclua ou diminua a culpa ou a ilicitude dos factos.

3. A recorrente insurge-se contra a medida da pena, que qualifica de desproporcionada.

Como é sabido, a determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente e entrando em linha de conta com as exigências de prevenção de futuros crimes.

A culpa é um referencial que o julgador nunca pode ultrapassar. Até ao máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos que vai determinar a medida da pena, criando-se uma moldura de prevenção geral, cujo limite máximo é a protecção máxima pensada para os bens jurídicos da comunidade e cujo limite mínimo é aquele abaixo do qual já não há protecção suficiente dos bens jurídicos. Dentro destes limites intervêm, para a concretização, a prevenção geral e a ideia de ressocialização.

Quanto às exigências de prevenção geral, dizem respeito à confiança da comunidade na ordem jurídica vigente que fica sempre abalada com o cometimento dos crimes, têm a ver com a protecção dos bens jurídicos, com o sentimento de segurança e a contenção da criminalidade, em resumo, visam a defesa da sociedade.

Já as exigências de prevenção especial se prendem com a capacidade do arguido de se deixar influenciar pela pena que lhe é imposta, estão ligadas à reintegração do agente na sociedade.

No caso, o grau de ilicitude é especialmente acentuado.

Na verdade, não aceitando o fim de uma relação de namoro que durara cerca de um ano, a arguida marcou um encontro com a ofendida na casa desta, onde entrou sem ela estar. Remexeu nos pertences da mesma, encontrando na gaveta da mesinha de cabeceira um gel lubrificante íntimo, com o que confrontou a ofendida logo que ela chegou, de imediato passando às agressões físicas, imobilizou-a, sentando-se em cima dela e usando réplica de arma de fogo e facas, desferiu-lhe bofetadas, forçou-a a ingerir 10 comprimidos e gin, com uma seringa injectou-lhe no braço uma substância desconhecida, ao mesmo tempo que dizia “para sentires menos dor na morte, para morreres mais rápido” e “Se não és minha, não és de mais ninguém”.

A arguida, contra a vontade da ofendida, introduziu um pénis artificial (strap-on dildo) na vagina da mesma, deste modo a ofendendo na sua autodeterminação sexual, o que constitui um direito humano fundamental e acentua a gravidade da ofensa perpetrada, não dependendo a gravidade deste tipo de actos do género do agressor.

A ofendida esteve cerca de três dias sem consciência de onde estava, voltou a si com mobilidade reduzida e voz arrastada, altura em que foi procurada e ajudada por amigos.

Depois disso a arguida continuou a enviar mensagens ameaçadoras à ofendida durante vários dias.

É, pois, indiscutível o elevado grau da ilicitude da conduta da arguida, em particular dos factos integradores do crime de violência doméstica, com ofensa gravosa da dignidade humana da ofendida.

No caso concreto reforça a intensidade da ilicitude, ainda, o facto da arguida nas mensagens enviadas à ofendida a ter ameaçado de contactar com a sua família, assim colocando a ofendida numa situação de maior fragilidade.

É sabido que nas relações entre pessoas do mesmo sexo, em particular quando a vítima não assumiu perante a comunidade ou a família a sua orientação sexual, o preconceito e discriminação ainda existentes conduzem a um maior sofrimento da vítima de violência doméstica, já que dificultam a procura de apoio externo e a colocam em situação de maior vulnerabilidade, face à ameaça de revelação da orientação sexual pelo parceiro, comummente designada por ameaça de outing, circunstâncias que potenciam a invisibilidade da violência doméstica nos casais do mesmo sexo, o que no caso concreto aponta para um grau de ilicitude muito elevado[7].

O grau de culpa é também muito elevado, tendo a arguida se dirigido à casa da ofendida antes da hora que combinara com a mesma, aproveitando para remexer nos pertences pessoais desta (encontrando na mesinha de cabeceira da mesma um gel lubrificante íntimo) e revelando uma forte intensidade criminosa que levou a ofendida a estar cerca de três dias sem consciência de onde estava, só se libertando desse estado quando foi procurada e ajudada por amigos, mantendo depois disso a arguida persistência da sua intenção criminosa com envio de mensagens ameaçadoras.

As exigências de prevenção geral são muito acentuadas, com a comunidade cada vez mais sensibilizada para o fenómeno da violência doméstica, atentas as trágicas consequências que frequentemente daí resultam, como é noticiado pela comunicação social, exigências que merecem destaque no caso por estar em causa violência em casal do mesmo sexo que, com se referiu, coloca a vítima em posição de maior fragilidade, com maior risco de se tornar em fenómeno invisível.

As necessidades de prevenção especial são prementes, apesar da primariedade da arguida, atenta a prolongada e intensa resolução criminosa revelada pelos factos e a ausência de autocensura, não tendo assumido os factos mais graves e não revelando arrependimento.

Perante este quadro, considerando os elevados graus da ilicitude e da culpa, assim como as prementes exigências de prevenção geral e especial, tendo presente as medidas das penas abstractas (3 a 10 anos de prisão para o crime de violência doméstica, 1 a 8 anos de prisão para o crime de roubo e prisão até 3 anos para o crime de burla informática e nas comunicações), é manifesto que a pena concreta se terá de afastar dos limites mínimos, em particular quanto ao crime de violência doméstica, apresentando-se a pena fixada pelo tribunal recorrido para este crime (5 anos e 6 meses de prisão, abaixo do ponto médio entre os limties abstractos), moderada e proporcional.

As penas pelos crimes de roubo e burla informática e nas comunicações, graduadas pouco acima dos limites mínimos são reveladoras de moderação e preocupação com as necessidades de reinserção social da arguida.

A pena única de 6 anos de prisão (escassos seis meses acima do limite mínimo), corrobora a moderação do tribunal recorrido na graduação das penas.

A medida concreta da pena única, só por si, impede a suspensão da execução da pena (art.50, nº1, CP), que em hipótese alguma poderia ser admitida no caso concreto, atenta a elevada gravidade dos factos, em particular dos relativos ao crime de violência doméstica, pois uma pena cumprida em liberdade não satisfaria as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, não se podendo ignorar que uma das finalidades das penas é a protecção dos bens jurídicos (arts.50, nº1 in fine e 40, nº1).

Concluindo:

Desde as alterações introduzidas ao art. 152, do Código Penal, pela Lei nº59/07, de 4 Set., ao passar a prever “…a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação …”, o legislador reconheceu que o fenómeno da violência doméstica não é uma questão de género;
Por detrás da violência doméstica nem sempre está a força física ou a cultura machista, mas relações de poder, em todas as relações humanas sendo possível encontrar hierarquias, manifestadas numa relação entre duas pessoas com um dos elementos a lançar mão de mecanismos que lhe permitam controlar o(a) parceiro(a);
Numa relação entre pessoas do mesmo sexo, em particular quando a vítima não assumiu perante a comunidade ou a família a sua orientação sexual, o preconceito e discriminação ainda existentes conduzem a um maior sofrimento da vítima de violência doméstica, já que dificultam a procura de apoio externo e a colocam em situação de maior a vulnerabilidade, face à ameaça de revelação da orientação sexual pelo parceiro, comummente designada por ameaça de outing, circunstâncias que potenciam a invisibilidade da violência doméstica nos casais do mesmo sexo;
A autodeterminação sexual constitui um direito humano fundamental, não dependendo a gravidade da ofensa do género do agressor;
Numa situação, em que a agente inconformada com o termo da relação de namoro, agride fisicamente a vítima, a imobiliza com uso da força física e ameaça de armas, força a ingestão de comprimidos e gin, injecta-lhe uma substância que a deixa três dias sem consciência de onde estava e introduz, contra a vontade da vítima, um pénis artificial (strap-on dildo) na vagina da mesma, apresenta-se adequada a pena concreta de cinco anos e seis meses de prisão para o crime de violência doméstica;
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IVºDECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, negando provimento ao recurso da arguida, A. , acordam em confirmar o acórdão recorrido.
Condena-se a recorrente em três UCs de taxa de justiça.



Lisboa, 6 de Novembro de 2018


(Relator: Vieira Lamim)
(Adjunto: Ricardo Cardoso)



[1]Curso de Processo Penal, III, pág.341.
[2]Neste sentido, Ac. do S.T.J. de 06-04-00, no B.M.J. nº496, pág.169.
[3]Germano Marques da Silva, ob. cit., pág.367; Ac. do STJ de 4Dez.03, Pº nº3188/03, in verbojuridico.com/jurisprudência/stj;
[4]O Ac. deste Tribunal de17-04-2013 (3ª Secção, Relator Maria da Graça Silva) refere "1-O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo: visa essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrange também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. E, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge".
[5]Como refere Cátia Sofia Ribeiro Fernandes, no estudo Violência nas relações de intimidade entre pessoas do mesmo sexo, Dissertação de Mestrado em Sociologia, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2016, pág.25 e segs., um dos mitos mais básicos e frequentes na literatura baseia-se na ideia da VRI (violência nas relações de intimidade) ser exclusiva de casais de sexo diferente, onde o perpetuador da violência é a pessoa do sexo masculino e a pessoa vítima é do sexo feminino, mito que assenta em dois pressupostos distintos: o de que o homem nunca é vítima de violência e o de que as mulheres não são violentas.
[6]Como se refere no IV PLANO NACIONAL CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, aprovado por Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2010 (DR 1.ª série — N.º 243 — 17 de Dezembro de 2010) “…o conceito de violência doméstica abrange todos os actos de violência física, psicológica e sexual perpetrados contra pessoas, independentemente do sexo e da idade, cuja vitimação ocorra em consonância com o conteúdo do artigo 152.º do Código Penal. Importa salientar que este conceito foi alargado a ex -cônjuges e a pessoas de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem co –habitação…”.
O V PLANO NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DE GÉNERO 2014 -2017 (aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 102/2013 (DR 1.ª série — N.º 253 — 31 de Dezembro de 2013), reafirma que “A violência de género, onde se inclui, entre outras, a violência doméstica, é uma grave violação dos direitos humanos, em particular das mulheres, tal como foi definido na Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1995. É também um grave problema de saúde pública, como afirmou a Organização Mundial da Saúde, em 2003…”, definindo como objectivos estratégicos, entre outros, “Sensibilizar/formar os(as) profissionais para intervenção junto de pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgéneros)”, “Reforço do conhecimento e da qualificação dos(as) profissionais da rede pública para as especificidades de intervenção junto de pessoas LGBT”.
[7]O site Saúde e Violência da ARS Algarve, IP (acessível em https://www2.arsalgarve.min-saude.pt/saudeeviolencia/exemplo/index.php?option=com_content&view=article&id=67&Itemid=76), que tem como missão informar os profissionais de saúde e população em geral sobre o fenómeno da Violência a partir de uma perspectiva do ciclo vital das famílias, refere que estudos recentes desenvolvidos em Portugal e que reforçam indicadores já encontrados em outros países, revelam que a violência em casais do mesmo sexo é tão frequente como a violência em relacionamentos entre pessoas de sexo diferente., apontando alguns aspectos distintivos na violência doméstica nos casais de gays e de lésbicas, em particular:
- O outing como instrumento de intimidação - Esta é uma estratégia de violência psicológica específica dos casais de gays e de lésbicas: revelar ou ameaçar revelar a orientação sexual do seu parceiro. Assim, se um/a dos parceiro/as não fez ainda o "outing", ou seja, não revelou a sua homossexualidade no seio da sua família, rede de amigos e/ou no trabalho, o/a agressor/a pode utilizar a ameaça de o denunciar como gay ou lésbica como um poderoso instrumento de controlo e de intimidação da vítima.
- O isolamento e a confidencialidade da comunidade LGBT - Muitas vezes, a reduzida dimensão da rede e das comunidades LGBT a que agressor/a e vítima pertencem pode dificultar o pedido de ajuda por parte da vítima. Existe também o receio de ser estigmatizado/a no seu grupo ou do isolamento relacional por parte do/a agressor/a: dificultar ou proibir o contacto com família, amigos e colegas ou mesmo de sair. Isto pode ser especialmente verdade para vítimas que estão envolvidas em dinâmicas de violência no seu primeiro relacionamento.
- O estigma na procura de ajuda - Pelo receio do estigma na procura de ajuda e no contacto com organizações públicas e privadas as vítimas gays e lésbicas poderão ter dificuldade acrescida em procurar e obter ajuda. Isto, associado a experiências anteriores de discrimina seu isolamento e,
consequentemente, a sua vulnerabilidade.

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