Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
813/10.5TBSCR.L1-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
CONTRATO DE MÚTUO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
CLÁUSULA CONTRATUAL
VALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – A venda a prestações, o principal domínio de aplicação da reserva de propriedade à data da elaboração do Código Civil, já não corresponde à realidade sócio económica presente.
II – A reserva da propriedade, sendo tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objecto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem.
III – Estamos nesses casos perante uma relação triangular, decorrente da celebração de dois contratos conexos: um, de compra e venda de veículo automóvel, e, outro, de mútuo, pelo montante necessário ao pagamento do preço
IV - A reserva de propriedade tem por escopo assegurar ao vendedor o pagamento do preço. E o mesmo sucede com o financiador. Mas, recebendo o vendedor imediatamente a totalidade do preço, a reserva de propriedade a seu favor não faz qualquer sentido. Pelo contrário, faz todo o sentido que se mantenha a favor do financiador.
V - De acordo com os cânones de uma boa interpretação, o intérprete tem de tomar em consideração as circunstâncias do tempo em que a lei é aplicada, estando a interpretação actualista legitimada pelo Código Civil e pela teoria do direito.
VI – A referência feita ao "contrato de alienação" no artigo 18º, nº 1 do DL nº 54/75, é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade.
VII – Assim é de considerar válida a estipulação, no contrato de crédito de financiamento, de uma cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador.
(A. M.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório:

“B…P” intentou a presente acção com processo sumário contra “NA..”, pedindo que:
a) Seja reconhecida judicialmente a resolução do Contrato de Crédito junto como doc. 1;
b) Seja reconhecida judicialmente a propriedade da Autora sobre o veículo automóvel marca…, modelo.., com a matrícula XT;
c) Seja ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré sobre este veículo automóvel.
Alegou para tanto, e em síntese, que, no âmbito da sua actividade, celebrou com a R., no dia 11-10-2006, o contrato de crédito ao consumo nº 301794, que teve por objecto o financiamento de € 24.306,86, com destino à aquisição do veículo automóvel marca.., modelo…, com a matrícula …XT; este veículo foi vendido com o encargo de reserva de propriedade a favor da A., que se encontra devidamente registada; por força do referido contrato, a Ré assumiu a obrigação de pagar à Autora uma prestação mensal no valor de € 602,16, por um período de 48 meses; a Ré não efectuou o pagamento das prestações 30, 31, 32, 33 e 34, no valor total de € 3.010,90.

A Ré foi citada e não deduziu oposição.

Por despacho de fls. 28 foram considerados confessados os factos articulados na petição inicial, e foi dado cumprimento ao disposto no art. 484º/2, ex vi do art. 463º/1 do CPC.
Seguidamente foi proferida a decisão final com o dispositivo que se transcreve:
«Com fundamento no atrás exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção, e, em consequência, decido:
a) Reconhecer judicialmente a resolução do Contrato como doc. 1 à data de 27-01-2010;
b) No mais, absolvo a Ré do restante pedido».

Inconformada, apelou a autora, terminando as alegações em síntese conclusiva:
1. O artigo 409º do Código Civil, constituindo uma excepção à regra prevista no artigo 408º do mesmo diploma legal, tem como efeito suspender a transmissão do bem, permitindo ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador;
2. A verdade é que a reserva da propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objecto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem, ou seja, quando existe uma clara interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda.
3. O próprio diploma legal que regula o crédito ao consumo (DL 359/91, de 21 de Setembro), prevê no número 3 do seu artigo 6º que “O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento de aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda: (…) f) O acordo sobre a reserva de propriedade”;
4. Neste sentido, e como tem sido defendido pela mais ampla e recente Jurisprudência, impõe-se uma interpretação actualista da Lei, designadamente do disposto no n.º 1 do artigo 18º do DL 54/75, de 12.02;
5. Do disposto no artigo 9º do Código Civil resulta que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas, devendo o intérprete atender à vontade do Legislador, tendo sobretudo em conta, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, as condições específicas do tempo em que é aplicada;
6. É firme entendimento da ora Recorrente, e assim tem sido admitido pela Jurisprudência, a admissibilidade da constituição da reserva da propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de financiamento cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço do bem ao alienante;
7. Com efeito, é na relação pagamento integral do preço da coisa vendida/ transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominni encontra a sua razão de ser;
8. Tal entendimento encontra acolhimento na própria Lei, a qual permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda (cfr. artigo 409º, n.º 1, in fine);
9. Por outro lado, não se pode também olvidar, a este propósito, o princípio da liberdade contratual previsto no artigo 405º do Código Civil;
10. Na verdade o comprador do veículo associa o pagamento do preço do bem ao cumprimento do contrato de financiamento (mediante o pagamento mensal da prestação), aceitando, por essa razão, que a garantia da reserva da propriedade seja constituída como garantia de cumprimento desse contrato;
11. Resulta claramente dos autos que a reserva da propriedade sobre o bem objecto dos mesmos foi constituída para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, e não do contrato de compra e venda;
12. Por outro lado, sempre terá de ter presente que a própria Lei expressamente determina que se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode subrogá-lo nos direitos do credor (cfr. artigo 591º do Código Civil), sendo que, de acordo com o disposto no artigo 582º do mesmo Diploma Legal, aplicável ex vi do artigo 594º, a sub-rogação importa a transmissão, para o sub-rogado, das garantias e acessórios do direito transmitido;
13. Atento o exposto, é de entender que a referência ao contrato de alienação contida no n.º 1 do artigo 18º do DL 54/75 é extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda;
14. O entendimento de que apenas o incumprimento e resolução do contrato de alienação determinariam a possibilidade de se requerer a apreensão do veículo alienado, acarretaria a inutilidade da cláusula de reserva da propriedade nos casos em que a aquisição do veículo é feita através de financiamento de terceiro, mostrar-se-ia destituída de cabimento legal a resolução do contrato por parte do alienante e, nessa medida, a possibilidade de executar a seu favor a cláusula de reserva da propriedade;
15. A não se entender assim, chegaríamos à situação absurda de, incumprido o contrato de mútuo e sendo vedado ao financiador invocar o incumprimento e resolução do contrato de mútuo como causa do accionamento da reserva da propriedade constituída a seu favor, o mutuário – adquirente do veículo remisso não poder ser desapossado do veículo de que não é efectivamente proprietário, o que se traduziria num escandaloso e inaceitável efeito pernicioso que certamente os princípios subjacente ao nosso Ordenamento Jurídico rejeitam ou não podem mesmo deixar de rejeitar.
16. O accionamento da reserva da propriedade pode, pois, ter lugar em consequência do incumprimento do contrato de financiamento, no âmbito do qual foi constituída;
17. Por outro lado, e fazendo uma interpretação actualista do disposto no n.º 1 do artigo 18º do DL 54/75, interpretação essa que se impõe, sempre se terá de concluir que a ora Recorrente terá igualmente legitimidade no âmbito da acção de resolução de que este procedimento cautelar é instrumental.
18. Em última análise, sempre se dirá que, atento o disposto no artigo 12º do DL 359/91, de 21.09, sendo as obrigações que originaram a reserva da propriedade respeitantes ao contrato de mútuo, o não cumprimento de tais obrigações (requisito de accionamento do presente procedimento cautelar) corresponderá ao incumprimento do contrato de mútuo e a consequente resolução deste último afectará a eficácia do contrato de compra e venda.
19. Por último, e ainda que se admita que a cláusula de reserva de propriedade é nula, sempre terá de se considerar o facto de tal direito se encontrar registado;
20. Em face do exposto, deverá ser reconhecida a propriedade da ora Recorrente sobre o veículo objecto dos presentes autos e, consequentemente, ser ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor da Recorrida.
E termina dizendo que deve o presente recurso ser julgado procedente e  reconhecida a propriedade da Recorrente sobre o veículo identificado e, consequentemente, seja ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor da ora Recorrida

II-
1. Foram dados como provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade que tem por objecto o exercício, entre outras, da actividade de concessão de crédito.
2. No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com a Ré, em 11-10-2006 um contrato de crédito ao consumo nº 301794, tendo por objecto o veículo automóvel marca…, modelo…, com a matrícula XT, e chassis nº….
3. Através do mencionado contrato foi concedido um financiamento no valor de € 24.306,86.
4. A Ré ficou obrigada ao pagamento do montante correspondente ao financiamento através da realização de 48 prestações mensais no valor de € 602,16.
5. Para garantia do mencionado pagamento pela Ré foi constituída a favor da Autora reserva de propriedade do mencionado veículo.
6. A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo de Lisboa.
7. Sucede que a Ré não pagou, nem na data do seu vencimento nem posteriormente, as prestações a seguir discriminadas, que somam o valor total de € 3.010,90:
Nº da Prestação Data de Vencimento Valor da Prestação
30 05-09-2009 602,18
31 05-10-2009 602,18
32 05-11-2009 602,18
33 05-12-2009 602,18
34 05-01-2010 602,18.
8. A Autora comunicou à Ré através de carta registada datada de 12.01.2010, que deverá proceder à liquidação das prestações vencidas e não pagas no prazo máximo de 8 dias, sob pena de se considerar automaticamente rescindido nessa data.
2. É pelas conclusões que se determinam o âmbito e os limites do recurso (art.º 639.º do CPC).
No início da sentença recorrida foi salientado serem duas as questões que importava decidir:
- a resolução do contrato de crédito, por incumprimento definitivo pela Ré;
- a validade da estipulação inserida no contrato de crédito de reserva de propriedade a favor da autora enquanto entidade financiadora.
E está agora em causa somente esta última questão.
Com efeito, na sentença recorrida foi declarado resolvido o contrato de crédito celebrado entre autora e ré, “por incumprimento definitivo” por esta.
Mas a autora requereu ainda que seja reconhecido judicialmente que o aludido veículo lhe pertence e que seja ordenado o cancelamento do registo de propriedade em nome da Ré.

III-
1. Como decorre dos factos provados, a autora concedeu à ré um empréstimo para esta adquirir o dito automóvel da marca….
Estamos perante uma relação triangular, decorrente da celebração de dois contratos conexos: um, de compra e venda de veículo automóvel, e, outro, de mútuo, pelo montante necessário ao pagamento do preço. O financiador, nos termos clausulados, reservou para si a propriedade do veículo até ao cumprimento pelo mutuário das suas obrigações contratuais.
E no caso sub judice a reserva da propriedade a favor da autora foi constituída para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, e não do contrato de compra e venda.
Portanto, toda a questão está em saber se é válida a estipulação (no aludido contrato de crédito) da reserva de propriedade a favor do financiador.
Na sentença recorrida foi entendido que não. E foi dito nomeadamente que “[s]endo legalmente impossível o objecto da estipulação em análise, a mesma [a cláusula de reserva de propriedade] é nula, nos termos do art. 280.º/1 do CC”. E ainda: “[s]endo nula a cláusula de reserva de propriedade, incluída no contrato de financiamento, a A. não tem qualquer direito sobre a viatura automóvel.”
Para fundamentar o assim decidido foi citado, além do mais, o acórdão do STJ de 02.10.2007 [N.º do documento SJ200710020026806], segundo o qual «ao dissertar sobre a apreensão de veículos automóveis ao abrigo do DL 54/75, de 12.02, entendeu que os seus art.s 15º, 16º e 18º têm o campo de aplicação no incumprimento das obrigações do contrato de compra e venda por parte do comprador, havendo cláusula de reserva de propriedade, o que impede que o financiador da aquisição dele beneficie, invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo automóvel a cláusula de reserva de propriedade, pelo que, em caso de incumprimento do contrato de mútuo, não pode quem financiou a aquisição requerer aquele procedimento cautelar, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade».
No mesmo sentido citou-se GRAVATO MORAIS (“Cadernos de Direito Privado n.º 6”, pp. 49-53): «não restam dúvidas que literalmente (...) só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda é lícita a estipulação" sendo certo que "[a] finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão-só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre um objecto que não produziu nem forneceu - apenas em razão do fraccionamento das prestações.»
E concluiu-se no sentido de que, «em princípio, não é admissível uma interpretação actualista que radique no mutuante, no contrato de crédito ao consumo, a possibilidade de inscrever a seu favor a reserva de propriedade sobre o veículo cujo financiamento concedeu, mas de que não é dono, à revelia do que dispõe o n.º 1 do art. 409.º do CC».
No sentido de que não é válida a estipulação no contrato de crédito de reserva de propriedade a favor do financiador, foram citados [mas referindo-se a existência de outros] os Acórdãos do STJ, de 17-07-2010, de 10-07-2008, do TRP, de 13-10-2010, de 26-04-2010, do TRL, de 12-03-2009, 31-03-2009, 4-03-2010 e de 26-11-2009, 15-04-2008 e 12-03-2009, www.dgsi.pt).
No sentido de que é válida a estipulação no contrato de crédito de reserva de propriedade a favor do financiador, foram citados [mas referindo-se também a existência de outros] os Acórdãos do TRL, de 18-03-2004, de 12-02-2009, 26-01-2009, 3-12-2009, 26-04-2007 e do TRC, de 9-03-2010, ww.dgsi.pt).
2. Posição diferente da expendida na sentença é defendida pela apelante, começando por afirmar: [n]a verdade, a sentença em crise, evidenciando uma interpretação claramente restritiva, limita o âmbito de aplicação do artigo 409º do Código Civil, e não se adapta à realidade da prática comercial actual, particularmente no âmbito do sector de venda de veículos automóveis, a qual, ao invés, impõe uma interpretação actualista e mesmo correctiva da referida norma, com vista a dar resposta jurídica adequada às várias situações contratuais que entretanto se instituíram na prática comercial». E acrescenta que nesse sentido tem vindo a desenvolver-se uma corrente jurisprudencial “que considera admissível a constituição de reserva da propriedade tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro”. E cita, a título de exemplo, os seguintes Acórdãos proferidos nesta Relação, todos disponíveis em www.dgsi.pt:
- Acórdão de 20.10.2005, Processo: 8454/2005-6, Relator: Fátima Galante;
- Acórdão de 30.05.2006, Processo: 3228/2006-7, Relator: Isabel Salgado;
- Acórdão de 22.06.2006, Processo: 3629/20006-6: Relator: M. Gonçalves;
- Acórdão de 22.06.2006, Processo: 4667/2006-6, Relator: P. Rodrigues;
- Acórdão de 01.02.2007, Processo: 733/2007-6, Relator: Manuela Gomes.
E prossegue: «[d]e facto, e como tem sido amplamente reconhecido pela Jurisprudência, é necessário ter presente a evolução social no que respeita às novas modalidades de contratação susceptíveis, pela sua peculiar estrutura, de alargar os tradicionais modelos processuais, em termos de englobarem nos mesmos as novas realidades contratuais, sobretudo quando se está perante, como no caso dos presentes autos, de contratos intensamente conexionados».
No entanto, a apelante começou por citar em abono da sua tese o Acórdão desta Relação, de 04.05.2007 (Processo n.º 3928/07-7/ 7ª Secção), relatado pela ora primeira adjunta, cuja doutrina seguiremos, por entendermos que deve ser sufragada.
Foi dito neste acórdão:
«Nas situações, como a dos autos, estamos perante uma relação triangular, decorrente da celebração de dois contratos conexos: um, de compra e venda de veículo automóvel, e, outro, de mútuo, pelo montante necessário ao pagamento do preço. Neste contexto, o financiador, nos termos clausulados, reservou para si a propriedade do veículo até ao cumprimento pelo mutuário das suas obrigações contratuais, sendo certo que, neste quadro factual, recebendo o vendedor imediatamente a totalidade do preço, a constituição da reserva de propriedade a favor deste, não faria qualquer sentido.
Ora, o Direito não pode deixar de ter em conta esta nova realidade, marcada pela interdependência contratual, e sobretudo, no que agora nos importa, muito mais centrada no contrato de crédito que funciona – como todos sabemos – como verdadeiro motor de arranque do mercado de aquisição de bens de consumo.
Por seu turno, importa ter presente que o D.L. 54/75, encontra a sua justificação na necessidade sentida pelo legislador de acautelar, por via da apreensão, o interesse dos credores, beneficiários de reserva de propriedade, que, em caso de incumprimento do contrato, assistiam ao natural (e rápido) desgaste dos veículos, vendo, por esta forma, prejudicada a possibilidade de recuperar o seu crédito».
Estas razões justificariam, só por si, e em boa parte, que se optasse pela solução defendida pela apelante.
3. Os defensores da tese da invalidade da cláusula de reserva de propriedade no contrato de mútuo consideram que o artigo 409.º do Código Civil circunscreve a sua aplicação aos contratos de alienação e, não sendo o contrato de mútuo um contrato de alienação, o texto da lei não comporta a possibilidade de o alienante transferir a cláusula de reserva de propriedade para o financiador.
Ainda segundo esta corrente jurisprudencial, só o vendedor, titular do direito de propriedade sobre uma coisa, pode manter na sua esfera jurídica, por determinado lapso de tempo, a propriedade da coisa que vendeu, sendo juridicamente impossível que alguém reserve para si a propriedade de uma coisa que não lhe pertence (seria o caso do financiador).
Esta tese tem sido defendida, na doutrina, por GRAVATO MORAIS, para quem só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda, é lícita a estipulação de reserva de propriedade, considerando que «a finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão-só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre um objecto – que não produziu nem forneceu — apenas em razão do fraccionamento das prestações»[1]. Na jurisprudência foi esta solução adoptada no acórdão do Supremo Tribunal, de 12-07-2011, que decidiu que “a cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa vendida pelo fornecedor é, pois, contrária a uma norma de natureza imperativa, e, por isso, nula por força do artigo 294º do Código Civil, não produzindo, em consequência, o efeito da transferência da propriedade do bem da vendedora para o financiador.
Porém, uma parte muito significativa da jurisprudência dos Tribunais da Relação defende a tese da validade da cláusula, fazendo apelo a uma interpretação actualista da norma do art. 409.º do Código Civil, e entendendo que a expressão “qualquer outro evento” permite abarcar a satisfação do crédito de terceiro que não o reservatário originário, bem como invocando a interligação dos contratos em causa e o princípio da liberdade contratual.
Na doutrina, a tese da validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador foi defendida por ISABEL MENÉRES CAMPOS, na sua tese de doutoramento: «(…) a afirmação de que a reserva de propriedade a favor do financiador é nula por corresponder a um negócio contrário à lei não colhe, por não conseguirmos descortinar qual a norma jurídica imperativa violada. Como tivemos oportunidade de rever ao longo deste trabalho, a regra da consensualidade, constante do artigo 408.º do Código Civil, não corresponde a nenhum princípio de natureza imperativa e inderrogável. As partes podem convencionar o afastamento dessa regra, colocando, convencionalmente, o momento da transferência do contrato. A letra da lei, ao admitir a possibilidade de as partes nos contratos de alienação subordinarem a transferência do direito real ao pagamento do preço ou à verificação de um qualquer outro evento, comporta, a nosso ver, a possibilidade de a posição do vendedor resultante da cláusula de reserva de propriedade se transmitir ao financiador que, no âmbito de um contrato de compra e venda financiada por terceiro, empresta os fundos necessários ao pagamento do preço dessa aquisição».
Entretanto, neste sentido foi recentemente (30.09.2014) proferido o acórdão do STJ (rec. 844/09) publicado na Internet, e que seguiremos de perto.
4. Como se diz neste douto aresto, a questão não se coloca nos casos em que o vendedor é simultaneamente o financiador da aquisição. Contudo, nos casos em que o financiador é um terceiro, como dissemos, uma parte da jurisprudência e da doutrina tem entendido que a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador é nula por impossibilidade legal do objecto da estipulação (art. 280.º do CC) ou por violação de normas imperativas (arts 408.º, 409.º e 294.º do CC).
E nele pode ler-se a este propósito: «a tese da invalidade assenta no argumento gramatical de interpretação: a letra do art. 409.º, n.º 1 apenas confere ao alienante a possibilidade de reservar para si a propriedade da coisa, não se referindo ao financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação. Por outro lado, constituiria uma impossibilidade jurídica que o financiador reservasse uma propriedade da qual nunca tinha sido titular e que nunca alienara. Trata-se de um obstáculo conceitual e terminológico, que, contudo, não assume um relevo decisivo na solução dos problemas jurídicos, que deve atender, sobretudo, a critérios teleológicos e valorativos, desde que compatíveis com a letra e com o espírito da lei».
Põe-se então um problema de interpretação da lei, que há-de ser resolvido segundo os critérios constantes do artigo 9.º do Código Civil que se passa a citar:
«1. A interpretação não deve cingir-se à letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.» 
A interpretação, segundo a concepção tradicional, com o apoio expresso deste artigo, é fundamentalmente semântica: o texto da lei é o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe desde logo, como assinala J. BAPTISTA MACHADO[2], «uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei» .
Porém, a fixação do sentido e o alcance com que deve valer uma norma jurídica não pode limitar-se ao «sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal» .
Escreveu-se a propósito no parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 70/99:
«Para a determinação do sentido prevalente das normas, deve levar-se em consideração a letra da lei - simultaneamente ponto de partida e limite da interpretação -, e a componente lógica da interpretação, que engloba os elementos racional ou teleológico, sistemático e histórico.  
A teleologia da norma reclama a análise das situações reguladas, do interesse que se pretendeu proteger e do âmbito de tal protecção.
Qualquer norma jurídica faz parte de um sistema global que se pretende coerente, não podendo deixar de ser interpretada no âmbito do complexo normativo em que se insere.  
As circunstâncias políticas, culturais e sociais em que as normas foram elaboradas, eventualmente constantes de trabalhos preparatórios ou dos preâmbulos dos diplomas legislativos, podem facilitar a sua compreensão.  
(…)
Em qualquer caso, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não podendo ser considerado um resultado que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9º, nºs 2 e 3, do Código Civil)».
É certo que o legislador teve sobretudo em vista com o artigo 409.º garantir que o alienante com reserva de propriedade pudesse resolver o contrato de alienação e recuperar a coisa, na hipótese de incumprimento da obrigação de pagamento do preço pelo comprador.

Mas, pode ler-se neste acórdão do STJ:
«O panorama das relações jurídico-económicas da época, nestes casos, era praticamente limitado à venda a prestações, suportando o vendedor o risco do crédito. Todavia, essa não é a realidade actual. Hoje, o financiamento de aquisições a crédito é geralmente assegurado por uma instituição financeira especializada. Esta modalidade de negócio trilateral veio substituir a tradicional venda a prestações, não sendo habitual que seja o vendedor a assumir o risco do crédito. A venda a prestações, o principal domínio de aplicação da reserva de propriedade à data da elaboração do Código Civil, já não corresponde à realidade socioeconómica presente. E, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, o intérprete tem de tomar em consideração as circunstâncias do tempo em que a lei é aplicada, estando a interpretação actualista legitimada pelo Código Civil e pela teoria do direito.
Na prática, a cláusula de reserva da propriedade mais não é, afinal, do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito, desde a data em que foi elaborado o Código Civil».
Com efeito, a reserva da propriedade, sendo tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objecto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem.
Pelo que muito bem foi salientado no citado acórdão do STJ de 30.09.2014 que vimos seguindo:
«Com efeito, a nulidade da cláusula em discussão conduziria a um resultado insólito, que não pode ter sido pretendido pelo legislador, cuja razoabilidade se presume: ou a propriedade reservada se mantém na titularidade do vendedor, que fica enriquecido por manter a propriedade e receber a totalidade do preço do financiador; ou a propriedade se transfere para o comprador, no momento do pagamento pelo terceiro, adquirindo aquele a propriedade plena sem ter pago o preço, resultado contrário ao fim visado pelo legislador. Nas duas hipóteses, o terceiro financiador fica impedido de beneficiar da função de garantia visada pela reserva de propriedade. Ou seja, esta cláusula perde as suas virtualidades.
(…)
Por último, também não pode dizer-se que o sentido proposto para o art. 409.º não tenha qualquer correspondência no texto da lei: o Código Civil admitiu a cláusula de reserva de propriedade com grande amplitude e a expressão contida na norma “qualquer outro evento”, pela sua abertura, é susceptível de incluir o pagamento das prestações de um contrato de mútuo ao financiador, afinal, o credor do preço da venda».
Assim, não vemos qualquer razão (bem pelo contrário) para recusar a aludida interpretação actualista.
Consequentemente, há que concluir que a referência feita no "contrato de alienação" ao artigo 18º, nº 1 do DL nº 54/75, é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade.
E não há qualquer justificação para que se mantenha a garantia da reserva de propriedade a favor do vendedor, pois já recebeu a totalidade do preço da venda, precisamente das mãos do financiador, sendo então este que corre o risco de não vir a receber do comprador o pagamento das prestações acordadas.
A reserva de propriedade tem por escopo assegurar ao vendedor o pagamento do preço. E o mesmo sucede com o financiador. Mas, recebendo o vendedor imediatamente a totalidade do preço, a reserva de propriedade a seu favor não faz qualquer sentido. Pelo contrário, faz todo o sentido que se mantenha a favor do financiador.

**

Por todo o exposto, acorda-se em revogar a decisão recorrida na parte em que absolveu a ré dos restantes pedidos (que fosse reconhecida judicialmente a propriedade da Autora sobre o veículo automóvel da marca…, modelo…, com a matrícula XT, e ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré sobre o mesmo veículo) e, em consequência:
a) Condena-se a ré a reconhecer a propriedade da Autora sobre este veículo automóvel.
b) Ordena-se o cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré sobre este mesmo veículo.
c) No mais mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela ré em ambas as instâncias.

Lisboa, 10.02.2015.

José David Pimentel Marcos
Maria do Rosário Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho


[1] Anotação ao acórdão do TRL, de 21.02.2002 (Cadernos de Direito Privado, n.º 6, 2004, pág. 52)
[2] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, pág. 182.