Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3225/12.2YXLSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESERVA DE PROPRIEDADE
CONTRATO DE MÚTUO
SUB-ROGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 08/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – A reserva da propriedade (art. 409 do CC) só pode ser estipulada a favor do alienante, mas isso não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento de crédito do mutuante (isto ao abrigo da parte da previsão “ou até à verificação de qualquer outro evento” que consta do nº. 1 do art. 409 do CC) e que depois possa seja transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do vendedor.
II – Neste caso, não há qualquer obstáculo a que o mutuante use da providência cautelar prevista no art. 21 do DL 54/75, propondo depois a acção principal da resolução da “alienação financiada pelo mutuante” (art. 18/1 do DL 54/75).
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A” Bank plc (= requerente) requereu a presente providência contra “B” (= requerida), para apreensão de veículo e respectivos documentos, ao abrigo do disposto no art. 15º do Dec.-Lei 54/75, de 12/02, alegando, em síntese e no que importa às questões colocadas neste recurso, que:
A “C”, SA (= vendedor), vendeu à requerida um automóvel, reservando para si a propriedade do veículo até que fosse pago o empréstimo que a requerente fez à requerida e com o qual esta lhe pagou o preço do veículo. Depois, o vendedor transferiu a reserva da propriedade para a requerente e a requerida sub-rogou a requerente nos direitos do vendedor. Mais tarde a requerida deixou de cumprir as obrigações do empréstimo, pelo que a requerente resolveu o empréstimo, do que decorre o direito à restituição do veículo ao abrigo do DL invocado. Cita normas legais e acs. do TRL de 30/05/2006 (CJ.III.105) e 08/03/2007 (CJ.II.76) que apoiam a construção feita.
No despacho saneador, a providência foi julgada improcedente com base, em síntese, no seguinte:
i) Tendo em conta o preceituado no art. 409/1 do Código Civil, apenas ao alienante é conferido o direito de resolução do contrato de compra a venda (com a consequente restituição do bem objecto desse contrato), com fundamento no incumprimento das obrigações estipuladas num contrato de compra e venda ou de falta de verificação da condição suspensiva convencionada entre as partes para a transmissão da propriedade do bem e perante as demais condições que permitam a resolução do contrato (neste sentido, cfr. Raúl Ventura, ROA, ano 43.º, p. 605, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, p. 176 e Luís Miguel Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, 1988, pp. 17 e segs., 62 e 63, assim como os acórdãos do TRL de 22/05/2007 - 4139/2007-7, 14/12/2007 - 8993/2007-7, 15/04/2008 - 2596/2008-7 e 17/07/2008 - 6158/2008-7, com voto de vencido; todos na base de dados do ITIJ [a precisa identificação dos acórdãos invocados foi feita por este acórdão do TRL]).
ii) Pelo contrário, ao mutuante apenas assistirá o direito de exigir o cumprimento coercivo das obrigações pecuniárias assumi-das no contrato de financiamento (arts. 1142, 817 e 804 e segs do CC) ou o direito de resolver o contrato e exigir a restituição do que houver prestado, acrescido de indemnização pela frustração do contrato, nos termos dos arts. 1142, 432 e seguintes, 801 e 562 e seguintes do CC e do DL 359/91, de 21/09). Por conseguinte, na medida em que a requerente não alega a celebração de qualquer contrato de compra e venda do veículo, pelo qual tenha reservado para si a propriedade do mesmo até ao cumprimento das obrigações derivadas para o comprador ou até à verificação de qualquer outro evento, limitando-se a alegar a sua qualidade de mutuante, carece de fundamento a exigência de restituição do veículo.
iii) A convenção, em contrato de crédito ao consumo no qual não interveio o vendedor do bem - como é o caso dos autos - e nos termos da qual, em garantia do mútuo, a mutuante goza de reserva de propriedade, é nula, por incidir sobre objecto legalmente impossível – art. 280/1 do CC - já que não existe qualquer direito substantivo que atribuísse à requerente a propriedade sobre o bem.
iv) “O registo de reserva de propriedade a favor de entidade que apenas intervém numa operação de financiamento para aquisição de veículo e que, nessa medida, é terceiro relativamente ao negócio de aquisição do veículo, viola as características elementares do instituto, deixando transparecer uma situação que mais se assemelha a uma hipoteca do que a um ónus de reserva de propriedade, ganhando contornos semelhantes aos da alienação fiduciária em garantia, vigente noutros sistemas, mas que não logrou ainda alcançar consagração legal entre nós” (ac. do TRL de 27/05/2003 - 4667-03)
v) “O regime específico de apreensão de veículos automóveis apenas convive com o princípio de que essa faculdade radica na esfera do vendedor com reserva de propriedade e já não com a entidade financiadora, mesmo que lhe tenha sido transmitida a titularidade dessa reserva. Aliás, não seria compatível esta faculdade com a instauração da acção, a propor obrigatoriamente pela financiadora, para resolução do contrato de alienação, sendo que apreensão do veículo integra precisamente o primeiro passo no caminho da resolução desse contrato. (…) São realidades distintas e de efeitos diferentes o contrato de alienação com reserva de propriedade, que implica a transferência, sob condição suspensiva, da propriedade do veículo, e o contrato de mútuo que produz apenas a transferência para o mutuário da quantia entregue e em que a sua resolução implica o vencimento das prestações convencionadas, mas já não a restituição do veículo.” (ac. do STJ de 16/09/2008 - 08B2181; no mesmo sentido, ainda, os acs. do STJ de 02/10/2007, 10/07/2008 e de 31/03/2011). Ou seja, existiria o obstáculo formal resultante do art. 18, nºs 1 e 3, do mesmo diploma que fixa o nexo de instrumentalidade da providência não em relação à resolução do contrato de mútuo, mas sim em relação à resolução do contrato de alienação (invoca-se também o ac. do TRP de 15/04/2008 – 0821988).
vi) Contra isto, não serve de argumento a invocação do disposto no art. 6/3f) do DL 359/91 (relativo ao contrato de crédito ao consumo), pois o facto de se prever como cláusula dos contratos de crédito ao consumo “o acordo sobre reserva de propriedade”, não confere legalidade à sua estipulação a favor da entidade financiadora quando esta ocupa a posição de terceira relativamente ao contrato de alienação, pois tal disposição legal apenas se reporta às situações em que o pagamento do preço ao vendedor é diferido para momento posterior ao da entrega do bem, sendo este (o vendedor) o beneficiário da reserva de propriedade clausulada.
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A requerente interpôs recurso deste saneador-sentença, para que seja revogado, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (sintetizadas aqui):
A) A reserva de propriedade foi constituída no âmbito do contrato de compra e venda e a favor do vendedor e não da requerente/mutuante;
B) O efeito jurídico da transferência da propriedade ficou condicionado ao pagamento integral à requerente/mutuante das prestações acordadas no empréstimo, o que é previsto e permitido pelo art. 409 do CC (“até à verificação de qualquer outro evento”) – acs. do TRL de 22/06/2006 (4667/2006-6 ou 3629/2006-6) e do STJ de 12/09/2006 (06A1901);
C) O que se passou é que a titularidade da reserva – da propriedade reservada - foi transmitida pelo vendedor à requerente/mutuante, o que é perfeitamente admissível, ao abrigo da liberdade contratual (art. 405/1 do CC);
D) E a requerida/mutuária sub-rogou expressamente, no mútuo, nos termos dos arts. 588 e 591 CC, a requerente/mutuante nos direitos do vendedor, nomeadamente os decorrentes da reserva da propriedade;
E) Pelo que não há qualquer nulidade na constituição da reserva da propriedade e tendo esta sido transmitida para a requerente, podia ela requerer a providência;
F) O art. 18/1 do DL 54/75, ao estabelecer que o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do “contrato de alienação”, deve ser lido tendo em conta a existência dos dois contratos conexos: a compra e venda e o mútuo e que a reserva de propriedade visa garantir, no caso, o cumprimento das prestações deste e não daquele, pelo que o contrato ali em causa é aquele cujo regular cumprimento se encontra garantido pela reserva de propriedade, ou seja, o mútuo [neste sentido, os acs. do TRL de 20/10/2005 (8454/2005-6); de 05/05/2005 (3843/2005-6); de 01/02/2007 (733/2007-6); de 30/05/2006 (CJ.III.105); de 22/06/2006 ((4667/2006-6); 26/01/2009 (decisão individual - 11279/2008-1); de 18/03/2010 (4847/09.4TBALM-A.L1-6); de 12/10/2010 (1129/10.2TBBNV.L1-1); e do STJ de 12/09/2006 (06A1901)].
Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 11/07/2013 foi proferida uma decisão sumária/singular do tribunal da relação de Lisboa, julgando improcedente o recurso, com a seguinte fundamentação, sintetizada:
I. A apreensão efectiva do veículo tem de ser pedida como medida antecipatória da restituição definitiva sequencial à resolução do contrato de compra e venda (art. 18/1 do DL 54/75), sendo por isso o regime jurídico desta providência cautelar incompaginável com os efeitos jurídicos da resolução do contrato de mútuo; assim, o art. 18/1 consubstancia um obstáculo formal ao uso da providência pelo mutuante;
II. Entre a requerente e a requerida não foi celebrado qualquer contrato de compra e venda;
III. A favor da requerente foi acordada a reserva da propriedade do automóvel, reserva de algo que a requerente nunca teve, pelo que não se está no âmbito do circunstancialismo previsto no texto do art. 409 do CC, mesmo que interpretado actualisticamente, sendo por isso nula a cláusula de reserva (art. 294 do CC);
IV. Só o vendedor podia manter na sua esfera jurídica a propriedade que vendera, para efeitos de poder resolver o contrato e obter a restituição do veículo (art. 934 do CC);
V. A lei não admite a cláusula da reserva a favor do mutuante;
VI. Não houve declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de sub-rogação do mutuante nos direitos do credor;
VII. O mutuante tem outras formas de se proteger não tendo necessidade de reservar a propriedade do automóvel;
VIII. O art. 6/3f) do DL 359/91, de 21/09, não tem aplicação aos casos em que o vendedor não é o mutuante;
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A requerente veio então requerer que sobre a matéria da decisão singular recaísse um acórdão da conferência.
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Questões que importa decidir: se no requerimento inicial constam os pressupostos necessários à procedência da providência cautelar requerida e se por isso o recurso devia ter sido julgado procedente.
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No tribunal recorrido e depois na decisão singular reclamada foram dados como indiciados os seguintes factos (transcrevem-se apenas, de forma sintetizada e com outra numeração, aqueles que têm interesse para as questões que o recurso coloca e por terem esse mesmo interesse ainda se acrescentam, ao abrigo dos arts. 659/3 e 713/2, ambos do CPC, os dos pontos 5 e 11 e parte final dos pontos 8 e 9, por estarem indiciados pelos mesmos documentos que serviram de prova aos outros pontos, especificamente, quanto aos últimos, nos docs. 33 e 38; ao abrigo do art. 712/1a), 1ª parte, do CPC, altera-se, por do processo constarem todos os elementos de prova que estiveram na base da consideração dos factos como indiciados, o facto sob 3, para o pôr de acordo com o que resulta dos documentos, especificamente o de fls. 18/19):
1. No exercício da sua actividade, a requerente financiou a requerida na aquisição do automóvel, vendido pela “C”, nos termos do contrato de financiamento juntos aos autos.
2. O preço total do automóvel foi de 27.300€, tendo a requerida efectuado um desembolso inicial de 5.443€, tendo-lhe a requerente financiado os outros 21.857€, pelo que, com juros, o valor total a reembolsar à requerente era de 25.604,64€
3. No requerimento do registo consta que a reserva foi estipulada “até que o comprador pague ao vendedor a quantia de 25.604€64 + cláusula penal de 2.560,46€.”
4. A vendedor cedeu à requerente, com o consentimento da requerida, a titularidade da reserva de propriedade.
5. A requerida declarou – cl. B) das condições gerais – que sub-rogava a requerente nos direitos do vendedor registado, decorrentes da reserva de propriedade.
6. A reserva de propriedade encontra-se registada na conservatória a favor da requerente.
7. A requerida a dada altura deixou de pagar as prestações do mútuo.
8. A requerente enviou-lhe uma carta interpelando-a para pôr termo à mora, dando-lhe um prazo de 15 dias para o efeito, carta que foi depositada e não reclamada.
9. Como a requerida não pôs termos à mora, a requerente enviou-lhe uma carta de rescisão do contrato de financiamento, carta que foi depositada e não reclamada.
10. A requerida não restituiu o automóvel.
11. Do contrato de financiamento consta cláusula (H das condições gerais) de que após a comunicação da resolução do contrato ao comprador, este fica obrigado a entregar, de imediato, e independentemente de interpelação para o efeito, o automóvel e os documentos ao mutuante.
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Da estipulação da reserva de propriedade
A cláusula de reserva de propriedade (art. 409 do CC) só pode ser estipulada por aquele que é proprietário, isto é, por aquele que aliena a coisa. Isto é, ela só tem sentido enquanto reserva da propriedade a favor de quem já era proprietário.
De outra perspectiva, isto quer dizer que a reserva de propriedade não pode ser feita a favor de terceiro: o terceiro não pode reservar para si – ou não podem reservar para ele – a propriedade que não tem.
Neste sentido, vai toda a jurisprudência do STJ - assim, os acórdãos de 12/07/2011 (403/07.0TVLSB.L1.S1); de 31/03/2011 (4849/05.0TVLSB.L1.S1); de 07/07/2010 (117/06.8TBOFR.C1.S1); de 26/02/2009 (Revista n.º 194/09, sumários do STJ); de 16/09/2008 (08B2181) de 10/07/2008 (08B1480); de 03/06/2008 (Revista n.º 1476/08, sumários do STJ); de 17/04/2008 (Revista n.º 859/08, sumários do STJ); de 02/10/2007 (07A2680); e de 27/09/2007 (07B2212) - acompanhada pela maioria da jurisprudência das relações - assim, apenas por exemplo, para além dos referidos pelo despacho recorrido, os acs do TRL de 07/12/2011 (2164/11.9TBGMR.L1-2); do TRC de 18/01/2011 (2129/03.4TBVIS.C1, mas a questão principal não era esta); do TRP de 13/10/2010 (2295/09.5TBPVZ.P1); do TRL de 04/03/2010 (4614/07.0TVLSB.L1-2); do TRC de 19/01/2010 (2112/09.6TBMGR.C1); do TRC de 19/01/2010 (3888/07.0TVLSB.C1); do TRL de 29/11/2009 (1952/09-2); do TRE de 10/09/2009 (327/09.6YXLSB.E1); do TRE de 07/10/2009 (324/08.9TBPTG.E1); do TRP de 25/09/2008 (0834835); do TRC de 23/06/2009 (2620/08.6TBAGD.C1); do TRG de 21/05/2009 (4768/07.STVLSB.AG1); do TRL de 31/03/2009 (10306/2008-1); do TRL de 12/03/2009 (3184/08-2); do TRP 17/02/2009 (0827886); do TRP de 01/07/2008 (0823636); do TRL de 10/05/2007 (380/2007-2); do TRL de 03/07/2007 (6118/2007-1); do TRL de 31/05/2007 (3901/2007-2); do TRL de 14/12/2004 (9857/2004-7); e do TRL de 27/05/2003 (4667/2003-7).
Também a doutrina assim o tem entendido, sem vozes discordantes; assim, expressamente sobre o assunto, Fernando Gravato Morais (Reserva de propriedade a favor do financiador, em anotação ao ac. do TRL de 21/02/2002, Rec. 789, Cadernos de Direito Privado, nº. 6 Abril/Junho de 2004, págs. 49 a 53, que cita no mesmo sentido Paulo Duarte, Contratos de Concessão de crédito ao consumidor…). E ainda Carvalho Fernandes, Notas breves sobre a cláusula de reserva da propriedade, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor CFA, Vol. II, Almedina, 2011, pág. 331, ao referir que não faz sentido que o terceiro financiador, não sendo o proprietário dos bens alienados, possa reservar para si um direito de que não é titular e que lembra também ir neste sentido Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, 6ª edição, Almedina, 2009, nota pág. 95 da pág. 55.
Ainda no mesmo sentido, vai Isabel Menéres de Campos, embora pareça o contrário, ao defender a validade da cláusula que reserva a propriedade a favor do financiador. Mas a autora está-se a referir à situação criada com a transmissão da cláusula constituída inicialmente a favor do vendedor (para além do que se dirá abaixo, pode-se ver que é esta a posição da autora na sua tese de doutoramento, Contributo para o estudo da reserva de propriedade, em especial a reserva da propriedade a favor do financiador, Setembro de 2009, especialmente págs. 385 s 393, pontos 6.3.3. e 7. na versão existente no repositório aberto da Universidade de Coimbra e consultada pela primeira vez, salvo erro, em Agosto de 2012).
É também esta a posição de Jorge Morais Carvalho: “A lei não permite que um terceiro em relação ao contrato de alienação possa fazê-lo [reservar para si a propriedade da coisa], o que, aliás, nem faria sentido de um ponto de vista lógico, já que apenas o proprietário pode reservar a propriedade do bem na sequência da sua disposição. Por esta razão, deve entender-se que a cláusula é legalmente impossível [por impossibilidade do objecto, art. 280/1 do CC]” (Os contratos de consumo, reflexão sobre a autonomia privada no direito do consumo, na versão completa datada de Março de 2011, págs. 714 a 717, existente no repositório aberto da Universidade Nova de Lisboa, consultada pela primeira vez, também salvo erro, em Agosto de 2012).
Como curiosidade, é também esta a proposta dos tópicos de correcção do exame de 17/01/2013, direito dos contratos I, ano lectivo 2012/2013 (1º semestre) turma da noite, da faculdade de direito da universidade de Lisboa: “[…]. Argumentos contra a admissibilidade da reserva de propriedade a favor de terceiro [financiador de uma aquisição que não surge como vendedor do bem]: (i) impossibilidade conceptual e dogmática de uma reserva de propriedade a favor de quem não tem qualquer propriedade; (ii) não vigora, quanto a este aspecto, o princípio da autonomia privada; (a reserva de propriedade atribui ao comprador uma expectativa real de aquisição, limitando a propriedade do vendedor, i.e., vale aqui o princípio da tipicidade dos direitos reais (art. 1306), não sendo lícito ao intérprete-aplicador criar novas figuras jurídicas reais; (iii) o art. 409/1 CC, não pode fundar uma reserva de propriedade a favor de terceiro, pois, além de efeito equivalente poder ser alcançado através das tradicionais garantias reais (voluntárias) do crédito (hipoteca, penhor, anticrese, etc.), a proibição do pacto comissório (art. 694) – que deve considerar extensível às demais garantias – depõe contra um entendimento amplo do art. 409/1 CC. […] Distinção entre reserva de propriedade a favor de terceiro (inadmissível pelos motivos supra expostos) e reserva de propriedade subordinada ao pagamento a terceiro (admissível ex art. 409/1 CC).”
É certo que existe alguma jurisprudência que defende a validade da cláusula da reserva da propriedade a favor dos mutuantes nestes casos (isto é, daqueles em que se pode falar em contratos ou relações triangulares, envolvendo o vendedor, o mutuante que financia a compra do veículo e o comprador mutuário). Mas, com raras excepções, não se está a defender a validade da constituição inicial de tal cláusula a favor do mutuante, mas sim que a reserva pode ser transmitida para o mutuante, ou que ela pode ser constituída para garantia do crédito do mutuante, ou então nem sequer se discute - por vezes por falta de dados – a questão e aceita-se, sem saber como é que ela se constituiu, que a reserva existe, por estar registada a favor do mutuante, e é válida.
Assim, todas estas situações podem ser vistas nestes acórdãos: do TRL de 15/03/2011 (427/11.2T2SNT.L1-7); do TRP de 24/02/2011 (935/09.5TBOAZ.P1); do TRL de 12/10/2010 (1129/10.2TBBNV.L1-1); do TRL de 29/06/2010 (236/09.9TVLSB.L1-1); do TRL de 06/05/2010 (4849/05.0TVLSB. L1-8); do TRL de 18/03/2010 (4847/09.4TBALM-A.L1-6); do TRC de 09/03/2010 (285/07.1TBTND.C1); do TRL de 03/12/2009 (6212/06.6TVLSB. L1-8); do TRL de 12/03/2009 (2505/06.0TVLSB.L1-6); do TRL de 29/01/2009 (668/08.0TJLSB-8); do TRL de 26/01/2009 (decisão individual - 11279/2008-1); do TRC de 13/01/2009 (2007/08.0TBFIG.C1); do TRL de 01/02/2007 (733/2007-6); do STJ de 12/09/2006 (06A1901); do TRL de 22/06/2006 (4667/2006-6); do TRL de 22/06/2006 (3629/2006-6); do TRL de 30/05/2006 (CJ.III.105); do TRL de 28/03/2006 (447/2006-7 – com voto de vencido); do TRL de 20/10/2005 (8454/2005-6); e do TRL de 05/05/2005 (3843/2005-6).
Assim sendo, concorda-se genericamente que a cláusula de reserva de propriedade, se tivesse sido estipulada (de início, no contrato de compra e venda) a favor da mutuante, seria inválida, como diz a decisão singular reclamada.
Mas como não é esse o caso dos autos (veja-se o ponto 2 dos factos), não se justificam os pontos II e III da decisão singular reclamada e dos pontos iii) e iv) do despacho recorrido.
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Da transferência da cláusula da reserva e da sub-rogação do mutuante nos direitos do credor
Como se acabou de dizer, os autos não têm a ver com um caso de estipulação da cláusula a favor da mutuante. Têm antes a ver com uma transmissão da reserva a favor do mutuante, depois de ter sido constituída validamente a favor do vendedor e com a consequente sub-rogação daquele nos direitos do vendedor.
Com efeito, o mutuante que cumpre a obrigação, pode ser colocado na posição do alienante – na titularidade de uma propriedade reservada para garantia do seu crédito – por sub-rogação, quer pelo vendedor (art. 589 do CC) quer pelo devedor (a requerida), sem necessidade de consentimento do vendedor (art. 590 do CC), desde que a vontade de sub-rogar seja manifestada até ao momento do cumprimento da obrigação.
Situação que ainda se verifica quando o mutuário cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada pelo mutuante, também sem necessidade de consentimento do credor, desde que haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do vendedor (art. 591 do CC).
E, se assim for, o mutuante passa a ter os direitos que antes eram do vendedor e são esses direitos que estão aqui em causa e que podem ser exercidos.
O que no caso dos autos terá acontecido, com o pagamento do preço ao vendedor, embora não se saiba em que modalidade, por não ter sido alegado, se o pagamento foi feito directamente pela mutuante ou pelo mutuário com o financiamento obtido.
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A doutrina
Ora, quando à admissibilidade desta transmissão e sub-rogação, construção que começou a ser feita por parte da jurisprudência supra referida, a doutrina tem-se pronunciado favoravelmente.
Luís Miguel D. P. Pestana de Vasconcelos diz que parece correcto defender que [a reserva de propriedade] possa ser transmitida para o cessionário, juntamente com o crédito que visa garantir, mas só quando haja expressa manifestação nesse sentido (A cessão de créditos em garantia e a insolvência, Em particular da posição do cessionário na insolvência do cedente, Coimbra Editora, Outubro de 2007, na pág. 489).
Está-se pois a assumir que, na situação, a reserva da propriedade é um acessório de um crédito a que serve de garantia, e consequentemente a cessão do referido direito levará à transferência automática da propriedade reservada, como se lê na nota 952. Não se vê que a situação deva ser diferente na sub-rogação, uma outra modalidade de transmissão de créditos, que apenas tem de diferente da cessão, o facto de se basear no cumprimento da obrigação e não num negócio de disposição (Antunes Varela, Das obriga-ções em geral, vol. II, 4ª edição, Almedina, 1990, págs. 322/323).
E lembra este autor (Pestana de Vasconcelos) mais à frente (nota 1321, pág. 691 – veja-se ainda pág. 729, nota 1388): “Aponte-se que a reserva de propriedade pode ser utilizada também para garantir o crédito de um outro sujeito que não o vendedor inicial. Será o que sucederá se este ceder o seu crédito a um terceiro, uma vez que, conforme se sustentou [na parte que se transcreveu acima] a reserva de propriedade também se poderá transmitir com este direito para o cessionário (carecendo embora de manifestação expressa nesse sentido].”
É esta também a posição de Nuno Manuel Pinto de Oliveira: “O art. 409 [do CC] deve confrontar-se com as regras sobre a sub-rogação dos arts. 589 ss: o financiador sub-roga-se nos direitos do vendedor (arts. 589 e 590, ou art. 591); a sub-rogação “importa a transmissão, para o terceiro, das garantias e outros acessórios do crédito que não sejam inseparáveis da pessoa do [devedor]” (art. 582/1, por remissão do art. 594); e, por isso, a “propriedade reservada”, enquanto acessório do crédito, transmite-se para o financiador (Contrato de compra e venda, noções fundamentais, Almedina, 2007, págs 53/55 e 56/57).
E de Isabel Menéres de Campos: “o financiador, quando entrega o preço ao comprador, sub-roga-se nos direitos do vendedor, transmitindo-se os créditos e os seus acessórios, incluindo a cláusula de reserva de propriedade constituída em favor deste” (Algumas reflexões em torno da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, publicado nos Estudos em Comemoração do 10º aniversário da licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Almedina, 2004, págs. 640 a 643).
Na sua tese de doutoramento desenvolve a construção dizendo que entre o mais: “Se o vendedor recebe a totalidade do preço, o efeito automático da transferência da propriedade verificar-se-ia, independentemente de qualquer acto. O mesmo sucederia se esse pagamento fosse efectuado, não pelo comprador, mas pelo financiador – a eficácia extintiva do pagamento determinaria a transferência da propriedade para o comprador.
Este impedimento só pode ser superado se as partes acordarem, expressamente, que a transferência da propriedade para o comprador só se dará, não com o recebimento do valor correspondente ao preço pelo vendedor, como ocorreria numa compra e venda normal, mas com o pagamento da totalidade da dívida ao financiador, sub-rogando-se este nos direitos do vendedor. Configurando-se o negócio como um pagamento com sub-rogação, o vendedor recebendo do financiador a totalidade do preço, sub-roga-o nos seus direitos por força desse pagamento.
[…]
É de rejeitar o argumento de que, com o pagamento integral do preço (pelo financiador), a propriedade se transmite automaticamente para o comprador. Como se disse acima, no pagamento com sub-rogação, o crédito não se extingue, alterando-se apenas o seu sujeito activo e transmitindo-se para o solvens o crédito, as suas garantias e os seus acessórios.
Em consequência desse pagamento com sub-rogação, a cláusula de reserva de propriedade, quer se conceba como uma garantia, quer se conceba simplesmente como uma cláusula acessória do contrato de compra e venda, transmite-se para o solvens, que passa a ser o titular da propriedade reservada com função de garantia.” (págs. 390/391, parte do ponto 6.3.3., na referida versão).
Note-se que a posições destes dois últimos autores, no sentido da validade da cláusula de reserva de propriedade a favor de terceiro, tem que ser lida tendo em conta os termos das conclusões a que chegam: ou seja, não se trata da validade da constituição da cláusula da reserva a favor de terceiro que não seja proprietário, mas sim da admissibilidade da validade da situação resultante da transmissão desta cláusula a favor de terceiro. Daí que falem em transmissão e em sub-rogação. A cláusula é constituída a favor do proprietário alienante e depois transmitida para o terceiro.
É também a posição de Luís A. Carvalho Fernandes (Notas breves sobre a cláusula de reserva da propriedade, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor CFA, Vol. II, Almedina, 2011) que depois de referir que não faz sentido que o terceiro financiador, não sendo o proprietário dos bens alienados, possa reservar para si um direito de que não é titular (pág. 331), admite mais à frente a sub-rogação do financiador na correspondente situação jurídica [reserva do direito de propriedade] em dadas condições (págs. 331/332).
E de Jorge Morais de Carvalho, ao referir o seguinte em relação ao ac. do TRC de Coimbra, de 09/03/2010 (285/07.1TBTND.C1): “a situação é distinta [daquela transcrita acima, em que este autor defende a nulidade por impossibilidade legal do objecto], uma vez que a cláusula de reserva de propriedade foi estipulada a favor do vendedor (pode ler-se [no acórdão]: “no caso presente, a reserva de propriedade do veículo foi feita a favor da respectiva vendedora, muito embora visasse garantir o pagamento do contrato de mútuo com ele conexo”), pelo que se compreende a decisão de a considerar válida.” (pág. 716 daquela versão).
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A jurisprudência
Já quanto à jurisprudência, salvo erro o STJ nunca se chegou a pronunciar expressamente quanto à admissibilidade da transmissão com sub-rogação, embora os obiter dicta que tem proferido não a ponham em causa; só que, nos casos que tem apreciado, ou não se verificou a sub-rogação ou não há prova de que se tenha verificado.
Assim, é o que se passa, por exemplo, no ac. do STJ de 12/07/2011 (403/07.0TVLSB.L1.S1) - no caso não se aceitou que tivesse havido sub-rogação, por se entender que, face aos factos dados como provados, não resultava que o devedor tivesse manifestado expressamente a vontade de sub-rogar o mutuante. Mesmo em relação a uma cláusula geral invocada, diz o STJ: Note-se que na dita cláusula 11ª somente se exarou que o vendedor registado cedeu ou cederá ao autor, a titularidade da reserva de propriedade e o comprador prestou o seu consentimento a tal cessão, sendo, portanto omissa em relação à sub-rogação.
O mesmo se passa no ac. do STJ de 31/03/2011 (4849/05.0TVLSB.L1. S1), onde se diz: fazendo recair a nossa atenção sobre o documento escrito que titula, no caso dos autos, o contrato de financiamento a crédito, vemos que nenhuma declaração sub-rogatória dele consta, nem os factos provados, acima transcritos, permitem, sequer, supor que foi essa a vontade das partes, tanto mais que para efectuar o registo da aquisição do veículo em nome da recorrente (consumidora) – que se mantém e a faz presumir proprietária dele (cfr certidão emitida pela conservatória do reg. automóvel de Lisboa) – esta necessitou da colaboração do vendedor, que lhe transmitiu a propriedade e lhe cedeu os elementos identificadores da viatura (livrete), sem quaisquer outros condicionalismos, porventura liga-mos à entidade financiadora.
Tal como ocorreu no ac. do STJ de 10/07/2008 (08B1480): “Não existindo – como não existe, no caso em apreço – qualquer manifestação expressa da vontade de sub-rogar, seja do vendedor, seja do adquirente – como pode falar-se em sub-rogação?”.
Também o ac. do STJ de uniformização de jurisprudência de 09/ /10/2008 (publicado na versão completa no DRI 230 de 26/11/2008, págs. 8486 a 8504, que trata de questão conexa) já dava conta desta posição jurisprudencial: Não se desconhece que tem vindo a ser aceite a possibilidade de ocorrer sub-rogação, voluntária, seja do credor seja do devedor, a favor do financiador, em situações como a dos presentes autos (artigos 589° e 591° do CC), como acontece no parecer publicado no Boletim dos Registos e do Notariado, nº 5/2001, de Maio de 2001, citado no acórdão de 12/07/2007, deste Tribunal que abaixo se transcreve: ‘I) O financiamento por uma instituição de crédito da aquisição de um veículo automóvel, contratado sob condição de reserva de propriedade, poderá dar origem a uma situação que se reconduz à figura legal da sub­-rogação voluntária, nas modalidades de sub-rogação pelo credor (artigo 589º do Código Civil) ou de sub--rogação pelo devedor, em consequência de empréstimo que lhe tenha sido efectuado (artigo 591° do mesmo Código). Assim, a lei civil permite que, por actos celebrados simultaneamente, com intervenção de todos os interessados: 1º O vendedor aliene o veículo ao comprador, estipulando-se a reserva de propriedade a favor do primeiro até integral pagamento do preço; 2º O comprador celebre um contrato de mútuo com uma instituição de crédito, para financiamento do preço de aquisição, procedendo aquela à liquidação do preço junto do vendedor ou, em alternativa, sendo tal pagamento efectuado directamente pela instituição de crédito junto do vendedor, substituindo-se ao comprador; 3º Em consequência, o devedor sub-rogue expressamente a instituição de crédito nos direitos do vendedor, com o assentimento e a declaração de transmissão da propriedade reservada a favor daquela, por parte do vendedor (na 1ª hipótese referida no número anterior), ou o vendedor sub-­rogue expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-lhe a propriedade reservada com conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador (na 2.a hipótese referida no mesmo número)".
No mesmo sentido, veja-se ainda o sumário do acórdão do STJ de 03/06/2008 (já referido acima): I - Se no contrato de compra e venda - celebrado entre a ré e um terceiro - se encontrasse estipulada a cláusula de reserva de propriedade - coisa que cabia à financiadora - autora – invocar e provar (art. 342.º, n.º 1, do CC) -, a cessão de tal reserva pela vendedora à autora poderia produzir o efeito de colocar esta na situação da inicial reservatária, implicando então a cessão, pelo menos de forma implícita, a transmissão da propriedade reservada do veículo para a financiadora, com a consequência de ter de ser atribuído a esta o direito que se arroga ao reconhecimento da sua qualidade de proprietária do veículo e à sua entrega na hipótese de não se verificar, definitivamente, o pagamento das prestações da mutuária. II - Por falta da alegação e prova de que a cláusula constitutiva da reserva de propriedade tenha sido integrado no mencionado contrato de compra e venda, terá de se entender que o não foi […]
No ac. do TRL de 07/12/2011 (2164/11.9TBGMR.L1-2 – relatado pelo relator do actual) aceita-se a possibilidade da transmissão e da sub-rogação, mas acrescenta-se que não era isso o que tinha acontecido no caso dos autos.
Pondo também as coisas mais ou menos nestes termos, veja-se o ac. do TRP de 13/10/2010 (2295/09.5TBPVZ.P1): I – Em princípio, não é admissível uma interpretação actualista que radique no mutuante, no contrato de crédito ao consumo, a possibilidade de inscrever a seu favor a reserva de propriedade sobre o veículo cujo financiamento concedeu, mas de que não é dono, à revelia do que dispõe o nº 1 do art. 409 do CC. II – A reserva de propriedade a favor do financiador, no contrato de crédito ao consumo do veículo objecto da compra e venda conexa, apenas pode ter lugar (por contrariar o disposto no art. 409/1 do CC) se o vendedor sub-rogar expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-lhe a propriedade reservada, com conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador.” Só que, neste caso, considerou-se ainda necessário o “requisito da intervenção simultânea de todos os interessados nesses actos”, para além de, entre o mais, se ter considerado não ter havido uma manifestação expressa da vontade de sub-rogar, e por isso mais uma vez se considerou que não tinha ocorrido a sub-rogação.
Também os acórdãos da Relação de Lisboa de 25/01/2011 (39017/03.6YXLSB-A.L1-7) e de 23/11/2000 (publicado na CJ.2000.5, pág. 99), o que dizem quanto à sub-rogação é que não é ela o que está em causa nos autos que estão a decidir, não que não haja possibilidade de sub-rogação na reserva de propriedade.
A favor – expressa ou implicitamente - da possibilidade da sub-rogação existem ainda os variadíssimos acórdãos das relações (citados acima) que em geral são tidos como defendendo a validade da constituição da cláusula da reserva da propriedade a favor do financiador, mas que, na maior parte o que defendem é a validade da situação resultante da transmissão para o mutuante da cláusula constituída a favor do alienante.
É o caso, por exemplo, do TRL de 29/06/2010 (236/09.9TVLSB.L1-1) e do ac. do TRL de 15/03/2011 (427/11.2T2SNT.L1-7), aqui como o revela o voto de vencido [mal, segundo se entende] ao dizer “não ser possível transmitir a reserva de propriedade, que é um direito real, através de cessão contratual ou de sub-rogação, que são alheios aos direitos reais”. Era de facto isso que no fundo se estava a discutir e o acórdão decidiu no bom sentido.
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Note-se que a jurisprudência e a doutrina que defendem a invalidade da constituição inicial da cláusula a favor do financiador que não é proprietário é perfeitamente compatível com a jurisprudência e a doutrina que defendem a validade da situação resultante da transmissão da cláusula com sub-rogação, o que aliás é particularmente claro na posição assumida por Abrantes Geraldes, que, apesar de relator de três dos acórdãos da relação de Lisboa que defendem, bem, a invalidade da estipulação (inicial) da cláusula a favor do alienante - acs. do TRL de 16/12/2003 (7023/03-07), de 22/05/2007 (4139/2007-7, este com um voto de vencido) e de 25/09/2007 (6791-07) - não deixa de defender também (e coerentemente) esta possibilidade de sub-rogação, na decisão individual de 10/01/2008 (10958/2007-7).
Ou seja, é perfeitamente coerente dizer que a cláusula só pode ser estipulada a favor do alienante, mas admitir a transferência da propriedade para o mutuante e a sub-rogação deste nos direitos do vendedor nos casos em que foi estipulada a reserva até que fosse pago o crédito da mutuante.
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Do outro evento subordinante (art. 409, nº. 1 parte final, do CC)
Mas esta construção só é possível, como se vê, se a reserva da propriedade não tiver ficado condicionada ao pagamento do preço ao vendedor. Se o evento “condicionante” for o pagamento do preço ao vendedor, pago este – seja por quem for -, a propriedade transfere-se para o comprador, deixando de existir qualquer reserva que possa ser transmitida.
Se assim é, a validade desta construção está dependente de se aceitar que o art. 409/1 do CC permite que nos contratos se reserve a propriedade à verificação qualquer outro evento que não apenas até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte.
E a verdade é que a lei permite aquela reserva até à verificação de qualquer outro evento, que não o cumprimento das obrigações da outra parte, do que não pode haver dúvidas dados os claros termos legais (isto apesar de uma forte corrente jurisprudencial em sentido contrário, como pode ser visto em inúmeros dos acórdãos citados; por último, neste sentido, veja-se o ac. do TRL de 28/02/2013 (84/13.1 TJLSB.L1-6), que faz a resenha de vários outros no mesmo sentido).
Assim, neste sentido, diz Raúl Ventura, no artigo publicado na ROA de 1983/III, pág. 607: “A reserva de propriedade constitui normalmente uma cautela do vendedor. Não pode dizer-se que tem sempre uma função de garantia do vendedor quanto ao pagamento do preço – ao contrário do que se afirma no direito italiano – porque a reserva de propriedade, no nosso direito, tanto pode ser estipulada em função do pagamento do preço, como em função de outros eventos.
[…]
O nosso art. 409/1 é muito mais liberal [que o art. 1523 do CCit], permitindo subordinar a transmissão da propriedade “até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”. Não só a reserva pode ser ligada ao pagamento do preço a prestações, como pode ser ligada ao pagamento total do preço ou ainda a qualquer outro evento, sem conexão com o cumprimento da obrigação do comprador (ou, em geral, da outra parte).(o sublinhado foi colocado agora).
No mesmo sentido, diz Carvalho Fernandes: “[…O] nº. 1 do art. 409 atribui à cláusula um campo de aplicação bem mais vasto, ao permitir que a transmissão do direito de propriedade, em contratos de alienação, fique dependente de “outro evento”, que não o pagamento de um preço, ou mesmo, mais genericamente, do cumprimento de uma obrigação, como bem assinalava Raul Ventura (estudo citado, pág. 333).
No mesmo sentido, ainda, vai Menezes Leitão: Normalmente, o evento que determina a verificação dessa transferência é o pagamento do preço, o que constitui a forma comum e típica de venda como reserva de propriedade, ainda que as partes ao abrigo da sua autonomia privada, possam igualmente colocar a transferência da propriedade dependente da verificação de qualquer outro evento, o qual pode inclusivamente ser o pagamento de uma dívida de terceiro.” (Direito das obrigações, vol. III, contratos em especial, 3ª edição, 2005, Almedina, pág. 52 - o sublinhado foi colocado agora).
No mesmo sentido, ainda, veja-se Isabel Menéres Campos, obra citada, especialmente págs. 77, 347 e 391 a 393.
Ainda no mesmo sentido, expressamente, veja-se a decisão individual de Abrantes Geraldes no TRL, de 10/01/2008 (10958/2007-7): “Contrariamente ao referido na decisão agravada não existe qualquer obstáculo a que a reserva de propriedade (a favor do transmitente) fique condicionada pelo pagamento de prestações a terceira entidade. Com efeito, o art. 409/1 do CC, legitima que a transferência da propriedade fique dependente da “verificação de qualquer outro evento”, o que tanto nos pode reconduzir a um evento directamente emergente do contrato, como a um evento com ele apenas indirectamente relacionado, como ocorre com o cumprimento do contrato de financiamento celebrado com terceira entidade com vista à aquisição do bem.”.
E ainda os referidos tópicos de correcção de um exame universitário da FDL de 17/01/2013: “[…] Distinção entre reserva de propriedade a favor de terceiro (inadmissível pelos motivos supra expostos) e reserva de propriedade subordinada ao pagamento a terceiro (admissível ex art. 409/1 CC).”
E, assim sendo, não se justifica que se diga o que consta dos pontos IV e V da decisão singular reclamada: o vendedor podia transmitir a reserva para a mutuante e esta podia ser sub-rogada nos direitos daquele decorrentes da reserva, desde que a reserva não tivesse sido estipulada até ao pagamento do preço, mas sim até ao pagamento das prestações do mútuo.
Ora, a cláusula de reserva, embora fizesse referência ao pagamento ao vendedor, subordinava a reserva ao pagamento do preço das prestações do mútuo (25.604,64€) e não do preço da compra e venda (de 21.857€). Tratou-se, sem dúvida de um lapso de redacção no requerimento para o registo, irrelevante, visto que, dado o valor consignado só podia estar em causa o pagamento das prestações do mútuo e não da compra e venda.
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Dos pressupostos da sub-rogação
A decisão singular reclamada diz, no ponto VI, quanto à verificação dos pressupostos da sub-rogação, que não houve declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destinava ao cumprimento da obrigação e de sub-rogação da mutuante nos direitos do vendedor.
Mas do contrato de financiamento decorre clara e inequivocamente que o mesmo se destinou ao pagamento do automóvel, tanto que quer no despacho recorrido quer na decisão singular reclamada não se põe em causa a natureza triangular da operação realizada: a requerida recorreu ao empréstimo para comprar o veículo e a reserva foi estipulada para garantia do pagamento do empréstimo. E a sub-rogação resulta expressamente do ponto 5 dos factos tidos por indiciados.
Não há, pois, razão para pôr em causa os pressupostos da sub-rogação.
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O obstáculo formal do art. 18/1 do DL 54/75
Depois da procedência da providência, este art. 18 impõe que o titular do registo da reserva proponha uma acção de resolução do contrato de alienação. A providência tem por pressuposto, segundo o art. 15 do mesmo DL, o não cumprimento das obrigações que originaram a reserva da propriedade.
É pois a fonte das obrigações que originaram a reserva da propriedade que aquela norma quer que seja resolvida, pressupondo que a reserva apenas tinha por fonte um contrato “bilateral” de alienação tradicional.
Só que actualmente o contrato de alienação tradicional deu lugar, nos casos que a norma tem por objecto, a um negócio (ou mesmo contrato) “trilateral” de alienação dependente de um financiamento por um mutuante, não decomponível em dois contratos singulares desconexos, um de alienação e outro de mútuo (mais ou menos neste sentido, veja-se Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, 2011, 2ª edição, Almedina, págs. 38 a 41, e Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias, Sobre o conceito e a extensão do sinalagma, Estudos em Honra do Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão Almedina, 2008, Vol. I, especialmente págs. 399/400 e segs, que vêem na situação um negócio com sinalagma trilateral).
Pelo que a norma tem actualmente de ser reportada a este negócio trilateral de alienação financiada, do qual decorreram as obrigações (do mútuo) que originaram a reserva estipulada.
Negócio e cláusula que, como se viu, no caso dos autos não se podem dizer extintos, pois que a propriedade foi expressamente reservada até ao integral pagamento dos prestações do mútuo. Está-se pois muito longe das situações que estão na base da improcedência da maior parte deste tipo de providências, em que a reserva estava subordinada ao pagamento do preço da venda e em que se podia dizer que, depois de pago o preço, a propriedade se transferira de imediato para o comprador, deixando de haver um contrato que pudesse ser resolvido.
Admitido que o negócio triangular não se extinguiu, tal não como se extinguiu a cláusula da reserva, e que a mutuante foi sub-rogada nos direitos do vendedor decorrentes de tal cláusula, não há qualquer obstáculo a que o incumprimento definitivo do mútuo possa servir de base à providência cautelar e de causa de resolução do negócio/contrato triangular de alienação dependente do mútuo que originou a reserva a invocar na futura acção principal de resolução imposta pelo referido art. 18.
Neste sentido, e com perfeito cabimento para as hipóteses do tipo da dos autos – reserva da propriedade para o alienante mas subordinada ao pagamento de crédito do mutuante, seguida de transferência da reserva para este, com sub-rogação do mutuante nos direitos do alienante -, vale agora a jurisprudência referida acima como defensora da validade da cláusula da reserva a favor do mutuante (mas aqui apenas aceite enquanto defende a validade da situação resultante da transmissão dessa cláusual com sub-rogação) e que vem defendendo a actualização da interpretação da norma do art. 18 (que não se está a confundir com uma interpretação actualista, que não se aceita, das normas que se entende impedirem a admissão da reserva da propriedade estipulada, logo de início, a favor do mutuante). Jurisprudência aquela que é apoiada por Isabel Menéres Campos (obra citada, págs. 347 a 349 e 359 a 365, que refere, na nota 701, vários outros acórdãos que não estão referidos acima).
Não se justifica, assim, as afirmações do ponto I da decisão singular reclamada e dos pontos i), ii) e v) do despacho recorrido, embora estas decisões se encontrem acompanhadas por alguma jurisprudência.
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Quanto ao ponto VII da decisão singular reclamada, é irrelevante que o mutuante tenha outras formas de se proteger não tendo necessidade de reservar a propriedade do automóvel. O que interessa é que esta forma não lhe é negada pela lei.
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Quanto ao que é dito no ponto VIII da decisão singular reclamada e vi) do despacho recorrido, é exacto, mas não tem relevo, tanto mais que não foi usado como argumento até aqui neste acórdão.
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Do deferimento da providência
Afastados todos os obstáculos ao deferimento da providência, resta apreciar a verificação dos respectivos requisitos:
Ora, neste tipo de providências cautelares, em que está em causa a resolução do contrato por falta de cumprimento, pela requerida, das obrigações que originaram a reserva de propriedade, a jurisprudência tem seguido a sistematização das condições de exercício da mesma feita Moitinho de Almeida (O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, 3ª ed, Coimbra Editora, 1998, págs. 29/30), ou seja, com alguma adaptação: (i) a registo da reserva de propriedade a favor da requerente (art. 5/1/b) do DL 54/75); (ii) incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade por parte da requerida (arts. 15 e 16 do DL 54/75); (iii) esse incumprimento, não consista apenas na falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço (art. 934 do CC); (iv) estando a requerida em mora, a requerente a tenha interpelado para pôr termo à mesma em prazo razoável, ou que exista uma situação equiparada: perda de interesse, recusa de cumprimento, etc. (arts. 808 e 801, ambos do CC).
Ora, os factos indiciados sob os números 6 a 9 provam o preenchimento de todas estas condições, pelo que a providência deve ser deferida.
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(…)
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Pelo exposto, julga-se procedente a reclamação da decisão singular e o recurso da decisão de indeferimento liminar, revogando-se as mesmas e substituindo-as por este acórdão que decreta a providência requerida, ordenando a imediata apreensão do veículo e respectivos documentos, através das autoridades policiais competentes, e entrega dos mesmos à depositária indicada.
Custas pela requerente, a atender na acção principal.

Lisboa, 12 de Agosto de 2013

Pedro Martins
Maria Amélia Ameixoeira
Ana Lucinda Cabral