Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
100/19.3TELSB-A.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: REENVIO PREJUDICIAL
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
TRADUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Inexiste qualquer obrigatoriedade de suscitar o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nem o mesmo se mostra necessário, se a questão em causa é a interpretação e aplicação concreta do disposto nos artigos 92.º, n.ºs 2 e 6 e 113.º, n.º 10, ambos do CPP, em conjugação com a Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010, relativamente à notificação da acusação pública aos dois arguidos de nacionalidade espanhola e tradução, para espanhol, da mesma peça processual, não existindo qualquer divergência quanto ao sentido que deve ser dado ao texto das normas em causa, pois, todos os intervenientes concordam que a lei exige que os arguidos que não compreendem a língua portuguesa tomem conhecimento, em língua que entendam, do teor da acusação que contra eles foi deduzida, ou seja se, na prática, o que importa determinar é se os arguidos foram devidamente notificados da acusação contra eles formulada, com tradução da mesma para a língua espanhola.
- Os requerimentos em que os arguidos invocaram nulidade ou irregularidade da notificação da acusação deviam ter sido conhecidos pelo MP, havendo reclamação da respectiva decisão para o seu superior hierárquico. Não sendo esta reclamação atendida, poderiam os mesmos arguidos voltar a suscitar a questão em eventual requerimento de abertura da instrução, obrigando a uma decisão sobre a questão em sede de decisão instrutória, caso o vício não fosse entretanto reparado, se reconhecida a sua existência nessa nova fase processual.
- O que exige o direito comunitário e a lei nacional aplicável, que com aquele está em total conformidade, é que os arguidos devem ser tempestivamente informados, em língua que entendam, da acusação que lhes é feita, ou seja, dos factos que lhes são imputados, das respectivas provas e correspondentes consequências jurídicas caso se provem tais factos, quer em termos de incriminação, que abrange a pena principal correspondente ao crime imputado - no caso, fraude na obtenção de subsídio - e as eventuais penas acessórias, quer quanto aos demais efeitos da condenação, nomeadamente quanto ao destino de bens apreendidos, ou indemnizações a pagar.
- Se a falta de notificação da acusação não constitui nulidade, por maioria de razão, havendo notificação da acusação, ainda que com preterição de alguma formalidade, tal nulidade não poderá existir. A nulidade existirá, sim, se for iniciado o julgamento de alguém, com base em determinada acusação, sem que desta a pessoa acusada tenha previamente tomado conhecimento, para que dela se possa defender.
- Se os arguidos de nacionalidade espanhola - uma pessoa colectiva e o seu gerente -, relativamente aos quais a factualidade ilícita imputada é restrita e está sintetizada num capítulo da acusação, nada havendo nesta que relacione os mesmos arguidos com a demais factualidade que é imputada, em exclusivo, aos arguidos de nacionalidade portuguesa e se àqueles dois arguidos foi dado conhecimento integral dos factos de que são acusados, do tipo legal de crime preenchido por tais factos, das correspondentes provas que contra eles foram apresentadas, das possíveis consequências jurídicas em caso de condenação e de como poderiam exercer os respectivos direitos de defesa, nomeadamente o de requererem instrução, não vislumbramos qual a necessidade de lhes ser entregue tradução para espanhol de toda a restante acusação, que em nada mais lhes diz respeito e relativamente à qual nada poderão argumentar.
- Se, no momento da notificação, aos arguidos recorridos foi entregue cópia em língua espanhola de todos os aludidos elementos, os arguidos recorridos tomaram conhecimento, com a notificação que lhes foi feita da acusação - complementada com a posterior notificação da rectificação do lapso relativo à incriminação do arguido A.  -, de todos os elementos necessários ao exercício das suas defesas, nomeadamente, para efeitos de pedido de abertura de instrução, caso o quisessem fazer, não padece o acto de notificação de qualquer nulidade a tradução para língua espanhola da parte restante da acusação respeitante aos arguidos portugueses traduzir-se-ia em acto absolutamente inútil, que em nada contribuiria para uma melhor defesa dos notificados, ou para requererem instrução.
- Por outro lado, a ausência de numeração dos factos na tradução que foi entregue aos recorridos também não traduz qualquer nulidade, pois, não é requisito que conste do artigo 283.º, n.º 3, do CPP, nem impede a compreensão do respectivo conteúdo para efeitos de exercício dos direitos de defesa, não podendo justificar a declaração de nulidade a invocada dificuldade de diálogo à distância, entre os mesmos arguidos e os seus mandatários, por força da ausência de tal numeração ou divergências de numeração relativamente ao original da acusação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:

1. O Ministério Público interpôs recurso do despacho judicial de 17/01/2019 - constante de fls. 45 a 58, dos presentes autos, nele havendo lapso na menção ao ano 2018, na respectiva data -, proferido pelo Sr. Juiz de Instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal, na parte em que «… declara nula a notificação da acusação aos arguidos E., SA  e A.  . , “(…) por ter sido desacompanhada de tradução integral para língua que os arguidos compreendem, maxime a língua espanhola e, em consequência, determina-se a tradução do teor integral da acusação para a língua espanhola, com a posterior notificação aos arguidos e, bem assim, que a tradução integral da acusação seja articulada com a numeração dos art.ºs da versão original dessa acusação, em língua portuguesa (…)”.
Rematou a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1.ª Coloca-se ao conhecimento do Tribunal de Recurso a reapreciação da decisão recorrida por considerar nula a notificação da acusação feita aos arguidos A.  e E., SA  por não ter sido acompanhada de tradução da integralidade da acusação para a língua espanhola, língua que estes compreendem e por determinar que seja realizada a tradução integral da acusação para espanhol, articulada com a numeração dos artigos da versão original da acusação em língua portuguesa, e que sejam estes arguidos posteriormente notificados da acusação.
2.ª Quanto à arguida E., SA  a decisão recorrida faz errada interpretação da Diretiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, na totalidade, por não ter aplicabilidade às pessoas coletivas e relativamente ao arguido A. , quanto ao teor do nº 4 do artigo 3º.
3.ª Conhece intempestivamente de nulidade, proferindo despacho anómalo na regular tramitação processual, questão que na economia da presente motivação fica prejudicada relativamente ao objeto central deste recurso, de natureza substantiva que a esta, processual, se sobrepõe.
4.ª A constituição de arguido de E., SA , SA e de A. , seu interrogatório e prestação de TIR ocorreu em espanhol porque estas diligências foram realizadas no decurso de uma Decisão Europeia de Investigação (DEI), nos termos da Diretiva 2014/41/UE e Lei n.º 88/2017 de 21 de agosto, e o país de execução foi o Reino de Espanha, porque ali se encontrava A. e essa é a língua usada na prática dos atos processuais daquele país, donde nada se retira em abono da bondade da decisão ora em crise.
5.ª Não corresponde à realidade que A. não compreenda a língua portuguesa.
6.ª A. endereçou aos autos[1] correios eletrónicos a si endereçados, em língua portuguesa, a que respondeu demonstrando ter perfeitamente percebido as mensagens que lhe haviam sido dirigidas, bem como contratos redigidos em português, por si assinados, sendo razoável concluir que os compreendeu.
7.ª A., quando sujeito a interrogatório, foi confrontado com vários documentos redigidos em português e respondeu de modo demonstrativo de ter conhecimento claro do seu conteúdo, uma vez que relativamente a cada um deles prestou declarações detalhadas.[2]
8.ª A acusação foi traduzida por terem sido ponderadas as respetivas implicações para os direitos de defesa e para afastar quaisquer possibilidades de dúvidas quanto à compreensão dos factos relativamente aos quais o Ministério Público fundou a decisão de sujeição a julgamento.
9.ª A Diretiva 2010/64/UE, integra-se num conjunto de outras que são a concretização do que ficou designado por “Roteiro de Estocolmo”, visando o “(…) reforço dos direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processos penais (…)”.
10.ª O propósito desta diretiva é a garantia de adequados serviços de assistência linguística aos suspeitos e acusados que não falem ou não compreendam a língua usada no processo penal, assegurar-lhes plenamente o exercício do seu direito de defesa e garantindo a equidade do processo.[3]
11.ª A diretiva aqui em causa tem aplicação direta na ordem jurídica interna, mesmo sem transposição.
12.ª As diretivas vinculam a interpretação do direito interno à garantia da execução das obrigações resultantes dos seus termos por via do princípio da interpretação conforme.
13.ª Questões ou dificuldades de interpretações devem ser solucionadas através do Reenvio Prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
14.ª   A diretiva em referência exclui do seu âmbito de aplicação as pessoas coletivas.
15.ª   Assim, é, quer pela referência aos direitos fundamentais em causa, quer pelo apelo feito ao artigo 6º da CEDH do considerando 6 da Diretiva e de todo o teor do texto desta, nomeadamente, o seu artigo 1º, nº 2, referindo-se a pessoa singular, o artigo 2º, ao estatuir que “(…) Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal [4] (…)”, exclui as pessoas coletivas por não disporem da competência da fala nem a da compreensão de qualquer língua.
16.ª As pessoas coletivas, contrariamente às singulares, não comunicam através de uma língua materna ou de língua que se possa comprovar como sendo a sua ou a que compreendem ou dominam com suficiência ou proficiência.
17.ª   É artificiosa qualquer associação entre a sede estatutária da pessoa coletiva e uma suposta língua que seria a oficial das comunicações que se encontra habilitada a compreender, por equiparação com o feito relativamente às pessoas singulares e ao seu local de nascença ou de relevante permanência.
18.ª O apelo ao critério da língua compreendida pelo legal representante da pessoa coletiva não faz sentido, pois que este não se confunde com aquela e, mesmo quando representa a pessoa coletiva arguida, não intervém pessoalmente como arguido.
19.ª   À pessoa coletiva E., SA , S.A., não tinha que ser traduzida a acusação e ao legal representante foi entregue uma cópia da acusação, tendo que considerar-se ter sido devidamente notificada face às disposições do direito português aplicáveis e para todos os efeitos do CPP.
20.ª Com o TC,[5] afirmamos ser abusivo pretender corresponder a obrigatoriedade de a A. , de nacionalidade espanhola, entregar uma tradução integral do texto da acusação, apenas porque aos arguidos portugueses foi entregue a cópia total da acusação, uma vez que tal equiparação formal absoluta não merece acolhimento constitucional, impondo-se antes aferir se a cópia traduzida assegura o fim a que se destina, que é o de garantir plenamente o exercício dos seus direitos de defesa em presença da acusação.
21.ª   A parte da acusação que foi objeto de tradução e de que foi A.  devidamente notificado, não consiste numa síntese dos factos que lhe dizem respeito, mas de uma tradução de toda a factualidade com a qual poderá ser confrontado em sede de julgamento ou em instrução se essa fase vier a ter lugar e garante, em absoluto, a sua cabal defesa.
22.ª   Foi o seguinte o que dado a conhecer em língua espanhola ao arguido:
a) Inicia-se por fazer traduzir a forma de processo e a intervenção do Tribunal Coletivo;
b) Segue-se a identificação de ambos os arguidos,
c) A descrição factual integral do projeto que diz respeito aos arguidos – 5.1.5. OFICINA DA INOVACAO NORTE-07-0364-FEDER-000006 I9EIBT;
d) Àquela factualidade acresce a relativa ao ponto da parte geral Caracterização Geral das Pessoas Coletivas e Inter-relacionamentos, na parte relativa a E., SA  Estrategia y Organizacion, SA e como seu legal representante A. ;
e) Segue-se a fundamentação das Penas Acessórias no ponto 7., subpontos II. Privação do direito a subsídio ou subvenção e III. Publicidade de decisão condenatória, integralmente traduzidos;
f) Prossegue-se com a tradução integral da Incriminação de cada um dos arguidos em causa;
g) A que se fez seguir a tradução integral da Prova, que corresponde ao ponto 9.;
h) Avançou-se com a tradução do Estatuto Coativo, traduzindo integralmente a parte concernente ao título Restantes arguidos, no ponto 10., em que se inclui os dois arguidos aqui em causa;
i) Terminando-se com a parte correspondente aos artigos 18º e 95º, do ponto Declaração de perda a favor do estado, que se referem aos arguidos Antonio A.  e E., SA  S.A..
23.ª A escolha das partes a traduzir orientou-se pelo critério determinado pela Diretiva mencionada, interpretando-se os requisitos da acusação, como disciplinado pelo artigo 283º, n.º 3 do CPP.
24.ª  A factualidade referente a este arguido foi-lhe totalmente comunicada por via de documento traduzido na língua espanhola, pese embora esta tradução não correspondesse à integralidade da acusação proferida, o que ocorreu em resultado de estarem em causa nos autos outros arguidos e muitas outras operações, por via do efeito de conexão processual e em observância à disciplina do artigo 283º, nº 4 do CPP.
25.ª   No que se refere a ambos os arguidos, está assegurada a tradução da parte do capítulo para o qual se remete - Caracterização das Pessoas Coletivas e Inter-relacionamentos, sendo que a restante parte diz respeito aos restantes 124 arguidos acusados e outros sujeitos e do seu conhecimento não resulta qualquer mais-valia para o exercício do seu direito de defesa, quer em nome individual, quer enquanto legal representante da E., SA , S.A., por ser factualidade a si estranha.
26.ª   A decisão recorrida limita-se a fazer a afirmação conclusiva de que a omissão de tradução de qualquer parte do texto da acusação, sem mais, constitui uma diminuição dos direitos de defesa do arguido e coloca em causa a equidade do processo, sem concreta e factualmente demonstrar que assim ocorreu, o que a torna infundada.
27.ª   A própria diretiva aceita que não tenham de ser traduzidas passagens da acusação que não tenham relevância para que o arguido conheça, quer as acusações que lhe são imputadas, quer as provas correspondentes – artigo 3º, n.º 4.
28.ª   Como factualmente demonstrado, a parte da acusação que ao arguido foi facultada em língua espanhola, contem a integralidade dos factos que a si se imputam e foi-lhe dado integral conhecimento da prova constante da acusação, pelo que está salvaguardada a possibilidade de exercer todos os seus direitos de defesa, como qualquer outro arguido, e garantida a equidade do processo.
29.ª   A interpretação do artigo 113º, nº 10 do CPP e do artigo 92º, n.º 2 e n.º 6 do mesmo código, à luz do princípio da interpretação conforme, conduzem à conclusão sufragada pelo Ministério Público ora recorrente: ao arguido tem de ser facultada a parte da acusação que se refira à factualidade que se lhe imputa e que salvaguarde a possibilidade de exercer o direito de defesa e a garantia de um processo equitativo - o que no caso jub judice, foi salvaguardado e garantido.
30.ª   O facto de não ter o arguido a totalidade da acusação traduzida em espanhol não o impede de apurar se existem partes que, não tendo sido traduzidas, respeitem, a outras condutas suas, bem como o quadro geral em que se enquadram, porquanto a notificação da acusação que lhe é feita em espanhol identifica claramente a operação em que está este envolvido e encontra-se completamente traduzida, para além de que pode socorrer-se do auxílio do seu Advogado, não abarcado na extensão dos seus direitos de defesa por se tratar de um facto negativo (demonstração daquele facto negativo que, por o ser, não constitui qualquer pressuposto de responsabilização criminal e, consequentemente, dele nunca terá o arguido de se defender).
31.ª   A tradução encontra-se rubricada pelo tradutor responsável pela sua realização, aportando ao documento a segurança da sua verificação por parte do seu autor, o que lhe dá a credibilidade necessária para o fim a que se destina.
32.ª   A mera falta de paginação do documento traduzido, sem mais, tal como referido na decisão ora em crise, não pode ser entendido como uma limitação presumida do direito de defesa do arguido ou limitação a um processo equitativo.
33.ª   Não tendo sido alegado pelos arguidos nem invocado como fundamento da decisão recorrida qualquer dificuldade de compreensão do texto traduzido em resultado da ausência de paginação, esta é absolutamente inócua e insuscetível de afetar a boa compreensão do texto em causa por parte do arguido e é inócua do ponto de vista da garantia dos objetivos pretendidos: a salvaguarda dos seus direitos de defesa e a equidade do processo.
34.ª   A ausência de artigos encimando os parágrafos em que se encontram arrumados os factos na acusação traduzida, por comparação com a acusação em português, constitui um facto inócuo do ponto de vista da garantia dos objetivos pretendidos: a salvaguarda dos direitos de defesa do arguido e a equidade do processo.
35.ª   A falta de indicação de artigos na acusação traduzida, não o tendo alegado os arguidos, não o tendo referido a fundamentação da decisão recorrida, sendo tal circunstância absolutamente insuscetível de afetar a boa compreensão do texto em causa, tratando-se até de tarefa que nem sequer configura tradução em línguas que usam a numeração indo-árabe, constitui um facto inócuo do ponto de vista da salvaguarda dos seus direitos de defesa do arguido e da equidade do processo.
36.ª   A referência que a decisão recorrida faz a propósito de uma suposta poupança de custos como razão de não tradução integral da acusação relativamente aos dois arguidos em causa é deturpada e especulativa, pelo que, em presença da globalidade da presente motivação, carece de pertinência.
37.ª   Teve o arguido A. conhecimento de toda a factualidade que nestes autos se lhe imputa, bem como todos os meios de prova em que se fundamentou o Ministério Público, através da acusação traduzida em espanhol que lhe foi entregue, pelo que ficou informado de forma cabal e minuciosa da natureza da causa da acusação que contra si foi deduzida, ficando em perfeitas condições dela se defender, com equidade.
38.ª   A decisão recorrida invoca Jurisprudência, quer de Tribunais nacionais, quer do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que em nada colidem com o entendimento perfilhado pelo Ministério Público ora recorrente, antes o corroboram e, ao contrário do aprioristicamente pretendido pela decisão recorrida, não lhe podem servir de amparo ou à sua fundamentação.
39.ª   A decisão recorrida fez errada interpretação da disciplina resultante dos artigos 92º, n.º 2 e n.º 6, 113º, nº 10, 118º, n.º 1, 120º, n.º 2, al. c) e 122º, todos do Código do Processo Penal e da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de outubro de 2010, pelo que deve o presente recurso ser recebido, obter provimento e ser a decisão recorrida revogada, considerando-se ambas as notificações da acusação regulamente realizadas e em observância às normas legais aplicáveis, repondo-se o curso da Justiça interrompido pela sua prolação.

2. Admitido o recurso, responderam os arguidos, concluindo do seguinte modo:
1.       O recurso a que ora se responde tem por objecto a decisão do Tribunal Central de Instrução Criminal de fls. 19.953 a 19.966 que declara a nulidade da notificação da Acusação que foi dirigida aos Arguidos Recorridos, por violação dos artigos 92.°, n.ºs 2 e 6, 113.°, n.° 10, 118.°, n.° 1, 120.°, n.° 2 - al. c) e 122.°, todos do CPP.
2. O facto de o Ministério Público pretender transpor para este recurso uma extensão e complexidade claramente injustificadas evidencia bem a total falta de razão que lhe subjaz e que, de resto, é do seu conhecimento.
3. O recurso apresentado pelo Ministério Público assenta na ideia de que não seria necessária a tradução integral da Acusação, uma vez que, durante a fase de inquérito, os Recorridos terão respondido a correios electrónicos e terão sido confrontados com documentos que se encontravam redigidos em língua portuguesa, o que significa que são capazes de compreender a língua portuguesa, mas foi o próprio Ministério Público que sentiu necessidade de traduzir pelo menos parte da Acusação para espanhol, para assim notificar os ora Recorridos.
4. Ao longo do recurso, o Ministério Público repete insistentemente que a tradução parcial que foi remetida aos ora Recorridos continha todos os elementos «suficientes» para que os mesmos tomassem conhecimento da imputação que lhes era dirigida e para a sua sujeição a julgamento, mas a tradução parcial que foi remetida aos Recorridos não continha sequer a imputação dirigida ao Arguido A. .
5. O Ministério Público pronunciou-se expressamente sobre esta questão em primeira instância, aquando da sua resposta ao requerimento de arguição de nulidade, embora, aqui chegados, tenha optado por nem sequer aludir a esta omissão e por tentar convencer este Tribunal de que a tradução parcial da Acusação que remeteu aos Recorridos continha todos os elementos essenciais para a sua defesa.
6. A decisão do Ministério Público de traduzir para língua espanhola apenas parte da Acusação foi determinada, única e exclusivamente, pelos custos e delongas associados a uma eventual tradução integral de uma peça com mais de 3.000 páginas e foi isso mesmo que foi referido pelo próprio Ministério Público na resposta ao requerimento de arguição de nulidade em primeira instância.
7. O facto de o Ministério Público omitir agora toda esta ponderação do Tribunal ad quem demonstra bem o quão gritante é a violação do direito de defesa dos Recorridos que esteve subjacente à decisão de não traduzir integralmente a Acusação.
8. Confrontado com a inevitável nulidade da notificação da Acusação, o Ministério Público vem agora suscitar um pretenso reenvio prejudicial para omitir o que verdadeiramente motivou a tradução meramente parcial da Acusação e sabendo até que a decisão recorrida não interpretou nem aplicou direito comunitário, mas antes e apenas direito interno.
9. O reenvio prejudicial requerido pelo Ministério Público é manifestamente inadmissível, na medida em que não se encontram preenchidos os requisitos vertidos no artigo 267.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), quer a propósito da aplicação do direito comunitário, quer a propósito da sua necessidade para o julgamento da causa.
10. A formulação da questão suscitada no reenvio prejudicial é inclusivamente contraditória com a posição de fundo adoptada pelo Ministério Público, na medida em que foi formulada no pressuposto de que os Recorridos não compreendem a língua portuguesa e um dos argumentos do Ministério Público para sustentar a tradução parcial da Acusação é o de que os Recorridos são capazes de compreender a língua portuguesa.
11. O recurso interposto pelo Ministério Público é ainda improcedente por versar sobre matéria de facto e não se encontrar cumprido o ónus de impugnação do artigo 412.°, n.° 3, do CPP.
12. O Ministério Público vem requerer seja suscitado o reenvio prejudicial desta questão para o TJUE por, alegadamente, estar em causa a interpretação e aplicação do artigo 3.°, n.° 4, da Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010 (Directiva 2010/64/UE).
13. O Ministério Público suscitou o presente reenvio judicial como obrigatório, fazendo menção ao facto de o Tribunal da Relação de Lisboa decidir o diferendo sobre a validade da notificação da Acusação em última instância.
14. Sem prejuízo da letra do artigo 267.° do TFUE, o Tribunal da Relação de Lisboa pode, caso assim o entenda, rejeitar o reenvio por inadmissibilidade legal.
15. Estando em causa um reenvio prejudicial inadmissível (quer por não estar em causa direito comunitário, quer pela questão prejudicial não ser necessária ao julgamento da causa), cessa a obrigação do tribunal nacional que decide em última instância de remeter a questão prejudicial para apreciação do TJUE (cfr. artigo 267.° do TFUE).
16. Isso mesmo foi há muito confirmado pelo próprio TJUE, no caso Cilfit v. Italy, de 6 de Outubro de 1982.
17. A jurisprudência e doutrina nacionais têm seguido este entendimento de forma absolutamente unânime.
18. O reenvio prejudicial não deve ser admitido por este Tribunal porque, contrariamente ao que é alegado pelo Ministério Público, a decisão recorrida não interpretou nem aplicou qualquer norma comunitária, nem sequer da Directiva 2010/64/UE.
19. O Tribunal recorrido declarou a nulidade da notificação da Acusação que foi dirigida aos Recorridos por violação dos artigos 92.°, n.os 2 e 6, 113.°, n.° 10, 118.°, n.° 1, 120.°, n.° 2 - al. c) e 122.°, do CPP.
20. É do próprio dispositivo da decisão recorrida que resulta que o Tribunal recorrido interpretou e aplicou única e exclusivamente a lei portuguesa para concluir pela nulidade da notificação da Acusação que foi dirigida aos Recorridos.
21. A simples alusão que a decisão recorrida faz à Directiva 2010/64/UE não é suficiente para se considerar que esteve em causa a interpretação ou aplicação de direito comunitário nem, menos ainda, para justificar o recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial.
22. Todas as referências que constam do texto da decisão recorrida à Directiva 2010/64/UE são meras transcrições do requerimento de arguição de nulidade apresentado pelos Arguidos Recorridos que serviram apenas de enquadramento à decisão.
23. O TJUE não tem competência material para se pronunciar sobre a interpretação ou validade do direito interno de cada Estado-membro, mas apenas e tão-só sobre a validade das normas de direito comunitário.
24. Independentemente da forma como é formulada a questão prejudicial (que, efectivamente, invoca direito comunitário), o factor determinante para a admissibilidade do reenvio é a decisão do litígio e não a norma visada pela questão formulada.
25. Não estando em causa na decisão do litígio a interpretação ou aplicação de direito comunitário e não sendo o TJUE competente para decidir da interpretação ou aplicação do direito nacional, então o reenvio é manifestamente inadmissível e deve ser recusado.
26. As questões prejudiciais formuladas pelo Ministério Público assentam numa norma comunitária (o artigo 3.°, n.° 4, da Directiva 2010/64/EU) que não é sequer citada ao longo de toda a decisão recorrida.
27. A decisão recorrida não refere, por uma única vez, o artigo 3.°, n.° 4, da Directiva 2010/64/UE, nem mesmo nas passagens em que se limita a transcrever excertos do requerimento de arguição de nulidade apresentado pelos Recorridos e nos quais refere, em transcrição, outras normas dessa Directiva.
28. As únicas referências à Directiva 2010/64/UE que constam da decisão recorrida correspondem à transcrição do requerimento de arguição de nulidade apresentado pelos Recorridos e o artigo 3.°, n.° 4, da Directiva 2010/64/UE nunca foi referido pelos Recorridos.
29. O artigo 3.°, n° 4, da Directiva 2010/64/UE foi referido pela primeira vez nestes autos no recurso ora sob resposta.
30. O reenvio prejudicial requerido pelo Ministério Público não deve ser admitido por não se encontrar preenchido o requisito imposto pelo artigo 267.° do TFUE respeitante à necessidade do reenvio para o julgamento da causa.
31. Tendo presente a existência e o teor da lei nacional, impõe-se concluir que a interpretação da lei comunitária — maxime, da Directiva 2010/64/UE — não é necessária à apreciação da nulidade arguida pelos Recorridos.
32. Mesmo que a Directiva 2010/64/UE admitisse como válida a notificação da acusação em processo-crime através do envio para os arguidos de uma tradução meramente parcial dessa acusação, a lei portuguesa impõe a necessidade de tradução integral da acusação.
33. Ainda que se admitisse uma resposta positiva à questão prejudicial formulada pelo Ministério Público, a lei portuguesa sempre seria mais protectora do que a lei comunitária.
34. A Directiva 2010/64/UE consagra uma cláusula de não-regressão, pelo que jamais a lei mais protectora (a lei portuguesa) poderia ser afastada por qualquer norma da referida Directiva.
35. O legislador português, confrontado com o teor da lei interna pré-existente e confrontado com o teor da Directiva 2010/64/UE, concluiu não ser necessária a transposição da Directiva 2010/64/UE, dada a suficiência das normas nacionais para assegurar os objectivos visados pela Directiva.
36. Se as normas nacionais são (pelo menos) suficientes para assegurar os objectivos visados pela Directiva a respeito dos direitos processuais mínimos dos suspeitos ou acusados, então, por maioria de razão, as normas nacionais são igualmente suficientes para decidir um litígio que coloca em causa a violação desses direitos processuais mínimos dos suspeitos ou acusados.
37. Não é verdade o que alega o Ministério Público no sentido de a tradução parcial da Acusação que foi disponibilizada aos Recorridos conter todos os elementos necessários ou adequados à sua defesa devidamente traduzidos para língua espanhola.
38. A tradução parcial que foi remetida aos Recorridos não continha a imputação dirigida ao Arguido A. .
39. O Ministério Público alega ter traduzido o trecho relevante de fls. 17.981, porém onde deveria constar a imputação deduzida contra o Arguido A. consta, na verdade, a imputação de um outro arguido.
40. Os presentes autos versam sobre a alegada prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, mas a imputação errada constante da tradução parcial da Acusação menciona um subsídio diferente do que alegadamente está em causa quanto ao Arguido A. .
41. O Ministério Público conhece esta falha, porquanto foi chamado a pronunciar-se perante o Tribunal a quo sobre o requerimento dos Recorridos.
42. O Ministério Público omitiu propositadamente esta questão do Tribunal ad quem.
43. O Ministério Público defende a suposta intempestividade da decisão recorrida, por apreciar uma nulidade que no seu entender apenas deveria ser decidida em sede de instrução ou saneamento do processo.
44. O Ministério Público confunde aquelas que são as nulidades do inquérito (conhecidas em sede de instrução ou de saneamento do processo) com a nulidade arguida pelos ora Recorridos nos presentes autos.
45. Os Recorridos não arguiram uma nulidade do inquérito, mas sim a nulidade do acto de notificação da Acusação, por ter sido realizada através de uma tradução parcial e não integral da Acusação.
46. A fase processual de inquérito encerra-se com a prolacção da Acusação ou com o arquivamento dos autos (cfr. artigo 276.°, n.° 1, do CPP), o que significa que os actos que lhe são posteriores — maxime, a notificação da Acusação — já não integram esta fase processual.
47. A solução proposta pelo Ministério Público - a de a nulidade aqui em causa apenas ser decidida em sede de instrução ou de saneamento - olvida por completo que um arguido mal notificado não está em condições de apreender o conteúdo da acusação e, por maioria de razão, não pode requerer a abertura de instrução.
48. A nulidade da notificação da acusação é uma questão prejudicial à própria abertura de instrução ou saneamento do processo.
49. Até o prazo para os arguidos requererem, querendo, a abertura de instrução apenas se poderá iniciar depois da notificação válida da acusação a cada um desses arguidos.
50. Ao serem notificados da Acusação redigida em língua portuguesa e apenas parcialmente traduzida para língua espanhola, os Recorridos não podiam deixar de arguir a nulidade dessa notificação, requerendo que lhes fosse entregue uma versão integral da Acusação devidamente traduzida para língua espanhola.
51. O Ministério Público vem defender que (i) os Recorridos compreendem a língua portuguesa (cfr. conclusões 5 a 7 do recurso) e que (ii) a tradução disponibilizada aos Recorridos já é suficiente para exercer o direito de defesa, ainda que estes não consigam apreender o conteúdo integral do documento (cfr. conclusões 21 a 28 do recurso).
52. A decisão recorrida - tal como se encontra transcrita no recurso do Ministério Público - trata estes temas como verdadeira matéria de facto.
53. A impugnação deduzida pelo Ministério Público encontrava-se sujeita ao cumprimento do ónus de impugnação constante do artigo 412.°, n.° 3, do CPP.
54. O Tribunal recorrido deu como provado que os Recorridos (1) não dominam a língua portuguesa e que (ii) têm direito a ser notificados da Acusação integralmente traduzida (cfr. pontos 4 e 14 da factualidade provada).
55. O Ministério Público limitou-se a apresentar apenas uma discordância geral com o entendimento sufragado na decisão recorrida, sem nunca (1) indicar os pontos da matéria de facto provada que deveriam, no seu entender, ser revistos, nem (ii) indicar as provas que sustentariam essa revisão.
56. A alegação do Ministério Público é manifestamente insuficiente para permitir a revisão da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal recorrido.
57. O Tribunal da Relação de Lisboa não poderá reverter a decisão do Tribunal recorrido a respeito da factualidade provada.
58. O Tribunal da Relação de Lisboa não poderá reverter o facto respeitante ao direito dos Recorridos «a ser notificados da tradução integral da Acusação para língua espanhola, da mesma maneira que os demais arguidos portugueses foram notificados do teor integral da Acusação num idioma que compreendem» (cfr. ponto 14 da factualidade provada da decisão recorrida).
59. Em face daquele que foi o total incumprimento dos requisitos exigidos pelo artigo 412.°, n.° 3, por parte do Ministério Público, o Tribunal da Relação de Lisboa não se encontra sequer em condições de convidar o Ministério Público a aperfeiçoar a sua impugnação.
60. É a forma como foi interposto recurso pelo Ministério Público que determina o seu próprio decaimento.
61. O Ministério Público alega ainda que a tradução parcial da Acusação que foi disponibilizada aos Recorridos é suficiente para o exercício do seu direito de defesa.
62. Não cabe ao Ministério Público decidir qual a matéria da Acusação que é relevante para o exercício dos direitos de defesa dos Recorridos.
63. O facto de o Ministério Público ter notificado os Recorridos da versão integral da Acusação em língua portuguesa e repetidamente referir que os Recorridos conhecem a língua portuguesa demonstra bem que é o próprio Ministério Público que reconhece que os ora Recorridos têm direito a compreender o teor integral de toda a acusação.
64. O Ministério Público não tem a faculdade de, discricionariamente ou por referência a critérios que o próprio Ministério Público entendeu pertinentes (quaisquer que eles sejam...), limitar a tradução integral da Acusação e, dessa forma, o direito de defesa dos Recorridos.
65. Pese embora os excertos parciais da Acusação traduzidos que foram remetidos aos Recorridos respeitem a alegadas condutas suas, compulsados os documentos recebidos, os ora Recorridos ficam impedidos de compreender numa língua que dominam: (i) se existem outros trechos eventualmente não traduzidos que possam respeitar a outras supostas condutas suas; e (h) qual é o panorama factual geral em que os seus alegados comportamentos se inserem.
66. Os Recorridos ficam impedidos de compreender numa língua que dominam se existe nos autos alguma matéria factual que possa estar relacionada com aquela que lhes é imputada, eventualmente respeitando a outros arguidos, ou não, e qual é exactamente a construção factual global gizada pelo Ministério Público.
67. A tradução parcial não permite compreender por que motivo o Ministério Público acusa os Recorridos da prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio em valor superior a € 400.000,00, na medida em que da factualidade constante dos excertos traduzidos da Acusação está em causa a emissão de uma factura de apenas € 10.000,00.
68. Parte dos excertos da Acusação traduzidos remetem expressamente para outros trechos da Acusação cuja tradução não foi realizada e notificada aos ora Recorridos.
69. Existem vários outros arguidos nos autos cuja imputação constante da Acusação, tal como a dos Arguidos Recorridos, é deduzida a título de cumplicidade, pelo que interessa aos Arguidos Recorridos conhecer os factos subjacentes às imputações que são dirigidas a esses outros arguidos, para avaliar da suficiência dos factos quanto à sua própria imputação.
70. Os presentes autos constituem um processo único e, como tal, a Acusação em causa é uma peça processual única ou una e insusceptível de ser notificada em excertos.
71. Ao não disponibilizar aos ora Recorridos a tradução integral da Acusação numa língua que estes dominem, o Ministério Público está na verdade a omitir-lhes o conhecimento dessa peça e a limitar o exercício do direito de defesa daqueles,
72. Se o Ministério Público estivesse, ele próprio, convencido da tese de que os Arguidos Recorridos compreendem a língua portuguesa, então tê-los-ia notificado apenas através da entrega uma cópia integral da Acusação em língua portuguesa.
73. Se o Ministério Público traduziu integralmente a notificação para constituição de arguido, prestação de termo de identidade e residência e para tomada de declarações que dirigiu aos Recorridos, através da expedição de uma carta rogatória em Espanha, não se compreende por que motivo não traduziu também integralmente a Acusação.
74. A tese defendida pelo Ministério Público, no sentido de a lei comunitária dispensa a tradução integral da Acusação, carece de suporte legal.
75. A Directiva 64/2010/UE consagra uma cláusula de não-regressão no seu artigo 8.°, o que implica que qualquer lei nacional que seja mais protectora para os direitos do arguidos do que as normas desta Directiva deve prevalecer sobre essas mesmas normas.
76. A nulidade da notificação da Acusação decorrente da tradução meramente parcial daquele acto decorre das normas processuais portuguesas a que o próprio Ministério Público alude no recurso.
77. O recurso apresentado pelo Ministério Público assenta na ideia de que não seria necessária a tradução integral da Acusação, uma vez que, durante a fase de inquérito, os Recorridos terão respondido a correios electrónicos e terão sido confrontados com documentos que se encontravam redigidos em língua portuguesa e, por isso, são capazes de compreender a língua portuguesa (cfr. p. 42 e conclusões 6 e 7 do recurso).
78. Se o Ministério Público estivesse, ele próprio, convencido da tese de que os Arguidos Recorridos compreendem a língua portuguesa, então tê-los-ia notificado apenas através da entrega uma cópia integral da Acusação em língua portuguesa.
79. As diligências a que os Recorridos foram submetidos durante a fase de inquérito - constituição de arguido, prestação de TIR e tomada de declarações - decorreram sempre em espanhol e nunca em português.
80. Não é o facto de os Recorridos terem conseguido responder a correios electrónicos redigidos em português e terem assinado um contrato de prestação de serviços igualmente redigido em língua portuguesa que demonstra que conhecem a língua portuguesa ou que estão aptos a exercer o seu direito de defesa em processo penal em língua portuguesa.
81. A contratação civil não tem a mesma dignidade que a defesa em processo em penal.
82. Não é a resposta em espanhol a correios electrónicos redigidos em português e enviados durante a fase de inquérito que determina que os Recorridos estão habilitados a apresentar a sua defesa em sede de instrução e/ou julgamento também em português.
83. A equiparação que o Ministério Público faz entre a capacidade para celebrar um contrato de prestação de serviços e ler uns poucos correios electrónicos redigidos em português, por um lado, e a capacidade para analisar uma acusação de mais de 3.000 páginas e definir uma defesa em sede de processo crime, por outro lado, é manifestamente abusiva e maliciosa.
84. Não é verdade que o Recorrido A.  tenha sido confrontado com vários documentos em português, tenha confirmado conhecê-los e, ainda menos, tenha prestado declarações detalhadas a respeito de cada um desses documentos.
85. Durante as inquirições do Recorrido A. , o Arguido foi confrontado mais do que um documento redigido em língua portuguesa, e o único que referiu saber do que se tratava foi o aludido contrato de prestação de serviços (celebrado entre a E., SA e a Oficina do Minho).
86. A resposta aos correios electrónicos a que alude o Ministério Público - sempre em espanhol ­foi feita unicamente na perspectiva de colaboração com as autoridades portuguesa, num momento em que nenhum dos ora Recorridos era, sequer, arguido nestes autos.
87. A colaboração prestada por cidadão estrangeiro, em língua estrangeira, através de um correio electrónico, num momento em que não é sequer arguido em determinado processo não se pode comparar, nem pode afectar, a protecção e dignidade que lhe são conferidas para o exercício do direito de defesa.
88. O artigo 113.°, n.° 10, do CPP determina que a Acusação deve ser pessoalmente notificada aos Recorridos e a conjugação desta norma com o artigo 92.°, n.ºs 2 e 6, do CPP, determina que a Acusação tem de ser traduzida para um idioma que o arguido compreenda, quando este não conheça e domine a língua portuguesa para exercer o seu direito de defesa.
89. Foi por reconhecer que os artigos 113.°, n.° 10, e 92.°, n.os 2 e 6, do CPP, impõem a tradução da acusação dirigida a arguido estrangeiro que o Ministério Público promoveu a tradução parcial da Acusação dirigida aos ora Recorridos.
90. A tradução meramente parcial da Acusação é insuficiente para dar cumprimento ao verdadeiro ónus que recaía sobre o Ministério Público, tal como o seu recebimento pelos Recorridos é insuficiente para que se considerem notificados.
91. Resulta do artigo 6.°, n.° 3 - al. a), da CEDH, que a tradução integral da Acusação (para efeitos da sua notificação a arguido que não compreenda a língua estrangeira) não pode ser limitada pelo Ministério Público, nomeadamente através de uma tradução meramente parcial da Acusação.
92. Os Recorridos têm o "direito mínimo" a que o acto de notificação da Acusação seja acompanhado da respectiva tradução integral para a língua espanhola.
93. O facto de o Ministério Público ter determinado a tradução das partes da Acusação que, ele próprio e sem intervenção da Defesa, entendeu mais relevantes quanto aos ora Recorridos não obsta à verificação de uma nulidade ou, no limite, de uma irregularidade.
94. O princípio da igualdade obriga a que a Acusação notificada aos Recorridos devesse ter sido integralmente traduzida para uma língua que estes compreendam, nomeadamente a língua espanhola.
95. Se o Ministério Público deduz uma Acusação na sua língua materna, também os arguidos têm o direito a poder compreender toda a Acusação numa língua que dominam.
96. Se os demais arguidos (todos portugueses) abrangidos pela Acusação têm acesso ao teor integral da Acusação, numa língua que compreendem, então, por uma questão de igualdade, os Recorridos também têm direito a ter acesso ao teor integral da Acusação numa língua que estes compreendem (neste caso, a língua espanhola).
97. O artigo 13.° da CRP consagra o princípio da igualdade e proíbe quem alguém possa ser prejudicado ou privilegiado em razão da sua língua ou território de origem.
98. Existe uma imposição constitucional de igualdade entre os arguidos nacionais e os arguidos estrangeiros, imposta pelos artigos 13.° e 15.° da CRP, que, no caso dos autos, determina a notificação da Acusação integralmente traduzida aos ora Recorridos.
99. Os artigos 2.° e 7.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem também consagram, respectivamente, a proibição de discriminação para o exercício de direitos em função da língua ou origem e, ainda, o princípio de igualdade.
100. Numa Acusação que visa mais de 125 arguidos, os Recorridos são os únicos arguidos que não tiveram acesso ao teor integral da Acusação numa língua que compreendem, por serem os únicos arguidos que não dominam a língua portuguesa e que residem em Espanha.
101. Os Recorridos estão impedidos de compreender o teor integral da Acusação e exercer o seu direito de defesa, nos mesmos termos que os demais arguidos.
102. Os Recorridos estão impedidos de contrariar a Acusação, nos mesmos termos e com igualdade de armas que o Ministério Público a deduziu, porquanto o Ministério Público deduziu a Acusação na sua língua materna (português), mas não disponibilizou uma tradução integral da Acusação aos ora Recorridos.
103. A tradução meramente parcial da Acusação com o eventual propósito de "poupar" custos com a tradução integral da extensa Acusação não constitui (não pode constituir) fundamento para não ser ordenada e realizada a tradução integral desta peça processual para a língua espanhola.
104. O Ministério Público não aborda esta questão no recurso sob resposta, mas a verdade é que resulta da sua pronúncia em sede de primeira instância que foi esta uma das razões pelas quais não foi ordenada a tradução integral da Acusação.
105. O artigo 3.°, n.° 4, da Directiva 2010/64/UE faz depender a necessidade de tradução integral da essencialidade ou da relevância para o conhecimento das imputações por parte dos arguidos.
106. Não cumpre ao Ministério Público definir o que é essencial ou relevante para que os Recorridos conheçam as imputações que lhe são dirigidas.
107. A extensão e a complexidade do processo e, bem assim, a proximidade entre imputação dirigida contra os Recorridos e a imputação dirigida contra vários outros arguidos (todos em cumplicidade) evidencia bem o quão imprescindível é para os Recorridos conhecer a integralidade da Acusação.
108. O exercício de defesa dos Recorridos não se basta com a garantia pelo Ministério Público de que não existem factos relevantes para os Recorridos nos excertos não traduzidos da Acusação.
109.   O artigo 3.°, n.° 4, da Directiva 2010/64/UE, deve ser interpretado de forma sistemática.
110. O artigo 3.°, n.ºs 1, 2 e 9, da Directiva 2010/64/UE impõem às Autoridades Judiciárias dos Estados-Membros a tradução integral da Acusação.
111. Os parágrafos (17), (22) e (30) do preâmbulo da Directiva 2010/64/UE reforça a tradução imperativa da Acusação e não deixa qualquer margem de discricionariedade aos Estados-Membros para limitar a tradução da Acusação (através, por exemplo, de uma mera tradução parcial).
112. A tradução da Acusação deve permitir o exercício "pleno" do direito de defesa e, portanto, a falta de tradução ou a tradução parcial não pode reduzir ou limitar o exercício "pleno" deste direito fundamental
113. Ainda que assim não fosse e mesmo que o artigo 3.°, n.° 4, da Directiva 2010/64/UE determinasse a suficiência de uma tradução meramente parcial da Acusação, a verdade é que o artigo 8.° daquele diploma sempre faria prevalecer a solução determinada pelo Direito português, por corresponder a um regime mais protector dos direitos dos arguidos.
114. Tudo o que acima se expôs vale, indistintamente, tanto para a Recorrida E., SA , como para o Recorrido A. .
115. O Ministério Público não invoca uma única norma que permita concluir que as pessoas colectivas beneficiam de menos direitos do que as pessoas singulares a propósito da tradução dos actos praticados em processo penal.
116. Se a lei pretendesse distinguir qualquer regime aplicável às pessoas físicas do regime aplicável às pessoas jurídicas, ou se pretendesse exduir as segundas de um qualquer regime previsto apenas para as primeiras, fá-lo-ia.
117. Em sede de inquérito, o Ministério Público comunicou, ele próprio, com a Recorrida E., SA , nomeadamente aquando da sua tomada de declarações e nunca pôs em causa a sua capacidade de comunicação.
118. No que se refere à necessidade de tradução da Acusação proferida pelo Ministério Público, a Recorrida E., SA  e o Recorrido A.  beneficiam dos mesmos direitos e garantias legais, independentemente das suas distintas qualidades enquanto pessoa colectiva e pessoa singular.
119. Os excertos da Acusação que foram traduzidos não se encontram sequer identificados com a numeração dos artigos da Acusação em língua portuguesa, nem paginados da mesma forma que o estão na versão original da Acusação.
120. O Ministério Público não põe em causa que o excerto traduzido da Acusação não se encontra identificado com a numeração dos artigos da Acusação em língua portuguesa, nem paginado da mesma forma que o está na versão original da Acusação, nem sequer que essas faltas sejam adequadas a afectar o direito de defesa dos Recorridos.
121. Esta questão foi expressamente abordada pelos Recorridos no requerimento de arguição de nulidade (leia-se: no corpo do requerimento e no pedido deduzido a final) e foi objecto da decisão recorrida (motivação e dispositivo).
122. Na medida em que a formatação dos parágrafos e as páginas da versão parcial da tradução para língua espanhola e da versão portuguesa da Acusação não são sequer coincidentes, os Recorridos não conseguem comunicar com os seus Mandatários e acompanhar com a eficiência desejável o que se encontra em causa a cada momento.
Termos em que deve o recurso apresentado pelo Ministério Público ser julgado integralmente improcedente, rejeitando-se o reenvio prejudicial para o TJUE e confirmando-se a decisão recorrida.
Caso assim não se entenda - o que não se concede e apenas se configura por extrema cautela de patrocínio - requer-se a V. Exas. que, após prolacção de decisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que revogue a decisão recorrida, sejam os presentes autos remetidos ao Tribunal a quo para que seja decidido o pedido de prorrogação de prazo para abertura de instrução apresentado pelos ora Recorridos em 08.01-2019, com vista a apresentação do requerimento de abertura de instrução.

3. Subidos os autos, neste Tribunal da Relação a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte douto parecer:
«Interpõe, em 20 de Fevereiro de 2019, fls. 3/40, o Ministério Público, recurso do despacho proferido em 17 de Janeiro de 2019, fls. 44/58, na parte em que o mesmo declarou nula a notificação da acusação aos arguidos "E., SA " e A.  Maria A. , «(...) por ter sido desacompanhada de tradução integral para língua que os arguidos compreendem, máxime a língua espanhola e, em consequência, determina-se a tradução do teor integral da acusação para a língua espanhola, com a posterior notificação e, bem assim, que a tradução integral da acusação seja articulada com a numeração dos art. °s da versão original dessa acusação, em língua portuguesa(...)».‑
Das Conclusões formuladas resulta que se considera que a decisão recorrida fez errada interpretação das normas contidas nos artigos 92°, n° 2 e n° 6, 113°, n° 10, 118°, n° 1, 120, n° 2, alínea c) e 122°, do Código de Processo Penal e da Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010.‑
Da Motivação apresentada resulta ainda, fls. 14/22, que se suscita o REENVIO PREJUDICIAL perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do disposto nos artigos 267°, alínea b), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, 23° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e 93° e seguintes do Regulamento do Processo do Tribunal de Justiça, no que se prende com a questão da «(...) interpretação da Diretiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de outubro de 2010, em concreto o artigo 3º, n.° 4, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal e conformidade na interpretação de normas do direito nacional, relativamente aos artigos 92°, n.° 2 e n.° 6, 113°, n.° 10, do CPP, quando esteja em causa a dedução de acusação em casos de conexão processual, em observância ao artigo 283°, n.° 4, do CPP (...)», requerendo-se que seja proferido despacho onde se declare suspensa a instância, por força do estabelecido nos artigos 269°, n° 1, alínea c) e 276°, n° 1, alínea c), do Código de Processo Civil, face ao disposto no artigo 4°, do Código de Processo Penal.
Mais ali se propõe que seja dada, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, resposta positiva às questões prejudiciais suscitadas, com o seguinte conteúdo:
«A) Nos casos de conexão processual, caso tenha sido proferida uma única acusação relativamente a uma pluralidade de crimes e de arguidos, o artigo 3°, n.° 4 da Diretiva/ 64/ EU, permite que ao acusado ou suspeito que não fale ou não compreenda a língua do processo, seja facultada a tradução da acusação circunscrita à parte referente aos factos que lhe dizem respeito, aos crimes que lhe são imputados e aos meios de prova correspondentes.
B) Dessa forma é salvaguardado o exercício dos seus direitos de defesa, nas mesmas condições dos demais arguidos relativamente aos factos que a si se imputam e é garantida igualmente a equidade do processo.».
Ao recurso responderam os arguidos "E., SA e A. , fls. 64/233, pugnando pela improcedência daquele e consequente confirmação da decisão recorrida, bem como pela rejeição do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia.
*
Há que, desde logo, suscitar a questão relacionada com o efeito a dar ao recurso interposto.
Ao interpor o presente recurso, o Ministério Público, fazendo apelo às normas contidas nos artigos 400°, "a contrario", 401°, n° 1, alínea a), 406°, n° 2, 407°, n° 1 e 408°, n° 3, do Código de Processo Penal, consignou que o recurso em causa deveria «subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo».
Por intermédio do despacho de fls. 42, foi admitido o recurso em causa, com base nas previsões dos artigos 399°, 400°, "a contrario", 401°, n° 1, alínea a), 403°, 406°, n° 2, 407°, n° 1, 408°, n° 3, 411°, n° 1, alínea a) e 414°, n° 1, do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto no n° 3, deste último preceito.
Na verdade, para o que aqui importa, é que, com base na norma contida no n° 1 do artigo 407°, do citado Código, foi determinado o regime de subida de imediato e em separado do presente recurso, uma vez que a sua retenção o tornaria absolutamente inútil.
Contudo, apelando à mesma norma invocada pelo recorrente, qual seja a do n° 3, do artigo 408° do citado diploma legal, contrariamente à fixação do requerido efeito suspensivo, se determinou que o efeito deste recurso fosse o de meramente devolutivo.
Se é certo que a retenção do recurso em causa o tornaria absolutamente inútil, não menos certo será que, fixando o efeito do mesmo como meramente devolutivo, igualmente se tornará inútil o seu conhecimento por este Tribunal.
Face à fixação do efeito meramente devolutivo deste recurso, o processo onde foi proferida a decisão recorrida, terá de prosseguir, nomeadamente dando cumprimento à mesma, isto é, traduzindo integralmente a acusação deduzida para a língua espanhola e ordenando a notificação dos arguidos, assim se esvaziando o objecto do presente recurso e tornando ineficaz uma eventual decisão de provimento do mesmo que viesse a ser proferida no Tribunal "ad quem".
Sendo certo que, nos termos do n° 3, do artigo 414°, do Código de Processo Penal, a decisão que determine o efeito que cabe ao recurso interposto não vincula o tribunal superior, impõe-se que se altere o efeito fixado pelo despacho de fls. 42 e se determine que o presente recurso tem efeito suspensivo, face às disposições combinadas dos artigos 407°, n° 1 e 408°, n° 3, do Código de Processo Penal.
*
Por outro lado, face à circunstancia de ter sido requerido o reenvio prejudicial quanto a questões que se prendem com a melhor interpretação da norma contida no artigo 3°, n° 4° da Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010, há que ponderar a determinação da suspensão da presente instância, e, ocorrendo esta, ordenar a transmissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, de certidão da peça constante de fls. 3 a 40, assinalando-se em particular o requerimento contido a fls. 14 a 22, acompanhada dos elementos constantes do CD de fls. 62 e de cópia da legislação pertinente, nomeadamente, das normas contidas nos artigos 4°, 24° a 30°, 57°, 58°, 60°, 61°, 62°, 63°, 64°, 92°, nos 2 e 6, 113°, n° 10, 118°, n° 1, 120°, n° 2, alínea c), 122°, 196°, 264°, 283°, n° 4, 286° e 287°, n° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, 36°, n° 1, alíneas a) e c), n° 2, n° 4, n° 5, alínea a), n° 8, alíneas a) e b) e 21°, do Decreto-Lei n° 28/84, de 20 de Janeiro, e, 269°, n° 1, alínea c) e 276°, n° 1, alínea c), do Código de Processo Civil.‑
Caso assim se não entenda, nada obstando ao conhecimento do recurso, emite-se parecer no sentido da adesão aos fundamentos em que o mesmo se suporta, consequentemente se pugnando pela sua procedência e pela revogação da decisão recorrida.»

4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, os arguidos responderam àquele parecer, defendendo, quanto ao efeito do recurso, que este determina a suspensão do processo mas não a suspensão da decisão recorrida e, quanto ao mérito, que a mesma deve ser confirmada e que «não há lugar à execução do mecanismo de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia», porquanto, aquela «interpretou e aplicou unicamente Direito Português» e «procedeu a uma interpretação e aplicação correctas dos preceitos legais aplicáveis».   

5. Em sede de exame preliminar foi alterado o efeito do recurso – decidindo-se que o mesmo tem efeito suspensivo do processo, quanto aos dois arguidos recorridos – e, depois de colhidos os vistos a que se refere o art. 418.º, n.º 1 do referido Código, teve lugar a Conferência, cumprindo decidir.

***

II – FUNDAMENTAÇÃO:
Conforme se constata das conclusões da motivação do recurso e do teor da decisão recorrida, o inconformismo do recorrente incide sobre a declaração de nulidade da notificação da acusação formulada contra os dois arguidos de nacionalidade espanhola e subsequente determinação para que se proceda a nova notificação, dos mesmos arguidos, com tradução integral, para espanhol, do texto da acusação, porquanto, na notificação efectuada, a tradução circunscreve-se a uma pequena parte dessa mesma peça processual.

Vejamos, em primeiro lugar, os fundamentos do despacho recorrido, reproduzindo-se o seu teor:
«Fls. 19817 a 19839 – Vieram os arguidos E., SA   e A. , a douto punho, arguir nulidades e irregularidades no acto de notificação da acusação aos mesmos, nos termos e com os fundamentos constantes do seu requerimento, que aqui se dá por integralmente reproduzido, por simples economia processual.
O Ministério Público, pronuncia-se nos seguintes termos que infra se transcrevem, para melhor compreensão:
«Quanto à E., SA  e A.  Maria A. :
Referindo terem sido notificados no dia 20.12.2018, invocando a excecional complexidade destes autos, alicerçada quer na sua declaração por parte do próprio Ministério Público, quer em resultado do número de arguidos acusados, bem como a possibilidade legal resultante do disposto no artigo 107º, n.º 6 do CPP, peticionam ver reconhecido o prazo para abertura de instrução em 50 dias, correspondendo 20 ao prazo legal corrente, acrescido de 30, por prorrogação em resultado das referidas razões.
Requerimentos de igual teor encontram-se formulados por vários outros arguidos ao longo do processado e a sua apreciação encontrava-se dependente de se concretizarem todas as notificações aos arguidos acusados, momento a partir do qual se inicia o decurso do prazo para requerimento de abertura de instrução.
Aliás, neste exato sentido, foi proferida Pr. do Ministério Público documentada a fls. 18330 que suscitou a decisão judicial constante de fls. 18333 a 18336.
Nos termos de tal decisão, determinou o Mº Juiz de Instrução que, partindo da disciplina do artigo 107º, n.º 6 do CPP, em face da enorme extensão destes autos e da acusação pública deduzida, afiguravam-se reunidos os requisitos necessários ao deferimento da pretensão peticionada pelos arguidos relativamente a verem prorrogado o prazo para requerimento de abertura de instrução. No entanto, também ali declara que em razão de no momento não dispor dos elementos necessários à prolação da decisão, por ser ainda desconhecido o início e, necessariamente, o términus, do prazo em reporte, justifica-se o indeferimento de todos os pedidos de prorrogação formulados àquele momento.
Porém, avança a decisão judicial em referência que, uma vez garantidas todas as notificações da acusação, deveriam os autos ser novamente conclusos ao Mº Juiz de Instrução a fim de “(…) aferir com maior clareza, mediante os elementos então disponíveis, sobre o limite máximo do prazo previsto no art.º 287º, nº 1 do CPP e, bem assim, a eventual necessidade de se prorrogar tal prazo, nos termos ora requeridos pelos arguidos (…)”.
A notificação que se encontrava em falta referia-se a A.  Maria A.  e a E., SA , ambas solicitadas às autoridades judiciárias espanholas, por via de expedição de carta rogatória, que se mostra agora junta a fls. 19762 a 19764, devidamente cumprida.
A fls. 19769 a 19787, mostra-se documentado um requerimento, com carimbo de entrada na secretaria deste Departamento, de 07.01.2019, reproduzidos a fls. 19817 a 19835, com carimbo de entrada na secretaria do TCIC de 07.01.2019, e novamente junto a fls. 19841 a 19859, desta vez enviado por faxe de 07.01.2019, todos com o mesmo teor. A fls. 19864 a 19868, com carimbo de entrada de 08.01.2019, mas enviado por faxe a 07.01.2019, pelas 22:08h, deu entrada neste Departamento outro requerimento que, embora volte a arguir a nulidade e, subsidiariamente, a irregularidade, relativamente aos mesmos atos de notificação, dos mesmos sujeitos processuais, refere tratar-se de “(…) um complemento do requerimento apresentado no dia de hoje (…)” e que se mostra reproduzido a fls. 19871 a 19875 e a fls. 19887 a 19890, reportando-se aos requerimentos antes descritos.
Estes requerimentos são feitos em nome dos arguidos A.  Maria A.  e E., SA , pelo punho dos Exmos. Senhores Advogados que os representam, procuração junta a fls. 19788 e, por síntese, em todos, é arguida a nulidade e, como referido, subsidiariamente, a irregularidade da notificação da acusação a tais arguidos, em razão de não lhes ter sido entregue a tradução integral da acusação.
Desde já manifesta o Ministério Público o entendimento de que tais questões deverão ser conhecidas em sede de instrução e no momento da prolação da decisão instrutória
Perfuntoriamente, e sem prejuízo de ulterior melhor explicitação da sua posição no momento processual oportuno de que não prescinde, desde já manifesta o Ministério Público o entendimento de que se não verifica qualquer nulidade ou irregularidade na notificação em reporte em resultado de se não ter procedido à tradução integral da acusação para a língua espanhola.
Como facilmente se diagnostica da mera leitura do índice da acusação, esta encontra-se estruturada pelo alinhamento de várias operações cofinanciadas por fundos estruturais, a que acrescem outros ilícitos conexionados com esta realidade. A operação que integra a factualidade que se imputa aos arguidos agora em referência encontra-se descrita no ponto 5.1.5 OFICINA DA INOVAÇÃO NORTE-07-0364-FEDER-000006 I9EIBT. Houve o cuidado de clarificar esse aspeto também no momento da incriminação, fazendo constar novamente a operação em causa junto ao nome do arguido acusado.
A circunstância de a acusação ter sido deduzida relativamente a várias outras operações e com referência a muitos outros arguidos, em nada se relaciona com o concreto objeto factual imputado a estes dois arguidos e relativamente aos quais o Ministério Público deduziu também acusação. Não fora a relação dos demais arguidos implicados nesta concreta operação com a restante factualidade e estes dois arguidos teriam visto a sua conduta ser apreciada de forma autónoma em inquérito independente destes autos. Quer dizer, a circunstância dos arguidos ora requerentes terem sido acusados neste inquérito ficou apenas a dever-se ao facto de estarem relacionados com um fornecimento colocado em causa no âmbito de uma das operações cofinanciadas pelo FEDER e não têm qualquer outra relação com algum dos restantes factos constantes da acusação pública deduzida, nem nunca serão confrontados ou poderão ser chamados a defender-se da restante factualidade.
Foi pois por tal razão que, no momento da seleção das partes da acusação a traduzir, foi selecionada a parte referente à operação que a estes arguidos diz respeito, adicionando-se, no entanto, a parte das suas identificação e caracterização, identificação do tribunal competente para julgamento e forma do processo, totalidade da prova, estatuto coativo, penas acessórias e incriminação, com o cuidado de fazer sempre a correspondência para a parte do texto da acusação em português.
Acresce que a estes arguidos se entregou uma versão integral da acusação na língua portuguesa a fim de integrarem as partes traduzidas, pois que cada uma dessas frações traduzidas se encontra antecedida da paginação em que se encontra no texto no documento original constante dos autos e da paginação que ali lhe cabe.
É que dos autos resulta informação bastante de que A. , também legal representante da E., SA , compreendia e compreende a língua portuguesa suficientemente bem para responder a correios eletrónicos endereçados quer pela Polícia judiciária, no decurso da investigação, quer, sobretudo, por vários elementos, com referência à operação em causa, negociando os termos da sua participação nesta, como pode facilmente avaliar-se do acervo de correios eletrónicos que constituem o Apenso E., SA  1 e Apenso E., SA  2, endereçados aos autos pelo próprio A. . De tais Apensos resulta também que assinou documentos escritos em língua Portuguesa o que terá feito por ter compreendido o seu conteúdo. Relevou pois o Ministério Público esta informação e só ordenou a referida tradução por entender que em presença da natureza técnica do assunto se justificava esse ato para erradicar por completo quaisquer putativas dúvidas de compreensão no que à factualidade concernente a estes arguidos diz respeito. Assim foi feito.
No entanto, proceder à tradução da totalidade da acusação pública, peça processual constituída por 3097 folhas, aportando aos autos e aos restantes arguidos um prolongamento manifestamente exagerado das suas situações, sem qualquer contrapartida de algum benefício para o exercício de quaisquer direitos de defesa dos arguidos A.  ou E., SA , pois que tal factualidade não lhes diz, em absoluto, respeito, nem em momento algum nestes autos, por tais factos, poderão ser responsabilizados ou com estes serão sequer confrontados, constituiria a prática não só de um ato absolutamente inútil, do que tem o Ministério Público de se abster, como absolutamente indesejável por ter como consequência o prolongamento infundado e sem qualquer acolhimento legal da situação dos demais arguidos, a quem assiste o legítimo direito de verem clarificada a sua situação perante a justiça, quer seja por via da confirmação da decisão subscrita pelo Ministério Público, quer seja por decisão judicial que a infirme.
Não sendo esse o argumento decisivo, pois que o são os que vimos de explicitar, sempre, no entanto, se dirá que tal tradução importaria um custo muitíssimo elevado, suportado pelos impostos dos contribuintes, sem qualquer contrapartida legítima do ponto de vista dos direitos de defesa dos arguidos ora requerentes, como demonstrado, pelo que também por esta via o pretendido por estes arguidos redundaria em absoluto capricho e desperdício de recursos públicos, circunstância a que também não pode ser absolutamente indiferente o Ministério Público.» (sic).
Cumpre decidir:
Da factualidade exposta no requerimento e sua concatenação com os elementos existentes nos autos, forçoso é considerar como verificados os factos seguintes:
«1. A Arguida E., SA  é uma sociedade de direito espanhol, com sede em Espanha (como resulta de TIR prestado, aquando da constituição como Arguida, em diligência realizada em cumprimento de carta rogatória expedida às autoridades espanholas, que consta do Apenso D-3).
2. O Arguido A.  tem nacionalidade espanhola e reside em Espanha (como resulta de TIR prestado, aquando da constituição como Arguido, em diligência realizada em cumprimento de carta rogatória expedida às autoridades espanholas, que consta do Apenso D-3).
3. As diligências de constituição de arguido e prestação de declarações foram realizadas em Espanha e em língua espanhola.
4. Ambos os Arguidos em causa não dominam a língua portuguesa.
6. No dia 20 de Dezembro de 2018, os Arguidos foram notificados da Acusação (1), na morada em que prestaram TIR, em Espanha.
7. A versão original da Acusação, em língua portuguesa, tem 3.096 páginas (de fls. 15.036 a 18.131), que foi notificada aos ora Arguidos, na sua integralidade, em suporte informático (CD).
8. Sucede que, como antecipado acima, os ora Arguidos não foram notificados da Acusação com uma tradução integral desta peça processual para língua espanhola, mas sim de uma tradução meramente parcial e intercalada da Acusação (com um total 166 páginas), desta feita em suporte de papel.
11. Tanto assim é que a notificação (redigida em língua espanhola) aos ora Arguidos — entregue com a Acusação — refere o seguinte (cfr. DOC. 1, que ora se junta):
“Se adjunta copia digitalizada del auto final [Acusação], en portugués, en soporte informático CD. Se adjunta copia de las siguientes partes dei texto de Ia acusación, traducidas espaiol [sic]:
____________________

(1) Em que lhes é imputada a alegada prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p.p. no artigo 36°, os 1 - ais. a) e c), 2, 4, 5 - ai. a) e 8 - ais. a) e b), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro.
• De Ias págs. 15045, Ia primera y segunda líneas;
• De las págs. 15048, la identificación de A. ;
• De las págs. 15063, Ia identificación de E., SA ;
• De las págs.. 15851 a 15954, ei punto 5.1.5 OFICINA DA INOVAÇÃO NORTE-07-0364-
FEDER-000006 19 E1BT;

• De las págs. 15262 dei punto de Caracterización general delas personas jurídicas y relaciones,
en ia parte relativa a E., SA ;

• De ias págs. 17960 a 17967, dei punto Penas accesorias, los subepígrafes Ii. Privación dei
derecho a subsidio o subvención y III. Pubiicidad de decisión condenatoria;

• De ias págs. 17981 en la parte relativa a A. , dei punto incriminación;
 • De ias págs. 18025 en la parte relativa a E., SA , dei punto incriminación;
• De ias págs. 18040 hasta págs. 18103, en ei punto Prueba;
• De ias págs. 18107, en Ia parte demás acusados;
• De las págs. 18111, artículo 18, en ei punto Deciaración de pórdida a favor dei Estado en ia parte relativa a A. ;
• De ias págs. 18126, artículo 95, en ei punto Declaración de perdida a favor dei Estado en la parte relativa a E., SA .” (parêntesis rectos nossos).

14. Com efeito, os ora Arguidos têm direito a ser notificados da tradução integral da Acusação para língua espanhola, da mesma maneira que os demais arguidos portugueses foram notificados do teor integral da Acusação num idioma que compreendem.».

O M.º P.º refere que tal questão da falta de notificação com entrega de tradução integral da acusação, deve ser apreciada em fase subsequente do processo, designadamente, no âmbito da instrução se a ela houver lugar.
Ora, a instrução é facultativa.
Com a devida vénia e porque, tal permitirá compreender a decisão que tomamos, forçoso é corroborar o constante do requerimento sob apreciação e, designadamente, o racional das locuções constantes dos seguintes pontos desse mesmo requerimento que a seguir se transcrevem:
«17. EM PRIMEIRO LUGAR, o artigo 113.°, n.° 10, do CPP determina que a Acusação deve ser pessoalmente notificada aos Arguidos e a conjugação desta norma com o artigo 92.°, n.os 2 e 6, do CPP, determina que a Acusação tem de ser traduzida para um idioma que o arguido compreenda, quando este não conheça e domine a língua portuguesa para exercer o seu direito de defesa.
21. O artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 2010/64/UE prevê o seguinte: “Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”.
22. Ora, o n.° 2 do artigo 3.° desta Directiva consagra, expressamente, o seguinte: “entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças”.
24. Neste sentido, o parágrafo (30) do preâmbulo da Directiva 2010/64/UE consagra o seguinte:
“A garantia da equidade do processo implica que os documentos essenciais, ou pelo menos as passagens relevantes desses documentos, sejam traduzidos para benefício do suspeito ou acusado nos termos da presente directiva. Determinados documentos deverão sempre ser considerados documentos essenciais à prossecução desse objectivo e, por conseguinte, traduzidos, como as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças. Compete às autoridades competentes dos Estados-Membros decidirem, por sua própria iniciativa ou a pedido do suspeito ou acusado ou do seu defensor legal, que outros documentos são essenciais à garantia da equidade do processo, devendo, por isso, ser também traduzidos.” (sublinhado e realçado nossos).
26. De resto, o n.° 9 do artigo 3.° da Diretiva 2010/64/UE prevê que as traduções em causa, incluindo da Acusação, devem permitir que o suspeito seja capaz de exercer o direito de defesa”.
27. A propósito do exercício do direito de defesa, o parágrafo (17) do preâmbulo da Diretiva 2010/64/UE refere, expressamente, o seguinte:
“A presente directiva deverá garantir a livre prestação de uma adequada assistência linguística, possibilitando que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal exerçam plenamente o seu direito de defesa e assegurando a equidade do processo”.
28. No mesmo sentido, o parágrafo (22) do preâmbulo da Diretiva 2010/64/UE prevê ainda o seguinte:
“A interpretação e a tradução previstas na presente directiva deverão ser disponibilizadas na língua materna do suspeito ou acusado ou em qualquer outra língua que ele fale ou compreenda, a fim de lhe permitir exercer plenamente o seu direito de defesa e a fim de garantir a equidade do processo.”
32. Neste sentido, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Janeiro de 2010, foi entendido o seguinte:
“(...) os tribunais nacionais e, bem assim, as administrações nacionais devem, na medida do possível, interpretar o direito nacional à luz do direito comunitário.
Este princípio da interpretação conforme, sendo um princípio que enforma, em geral, as relações entre o direito comunitário e o direito interno (Veja-se, nomeadamente, quanto ao seu alcance, Gomes Canotilho e Suzana da Silva, RLJ, Ano 138, 182 e seguintes), releva, no que respeita às directivas, quer quando se confronte o direito interno geral com o teor da directiva, quer quando se tem de interpretar o diploma se diploma houver que as transpôs (...)“ (realçado nosso; processo n.° 346/1998.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
33. Em sentido concordante, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Novembro de 2018, foi entendido o seguinte:
“Os tribunais nacionais, tribunais comuns da União, devem considerar o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário” (processo n.° 46/13.9TBGLG.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
35. EM TERCEIRO LUGAR, o artigo 6.°, n.° 3 - al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagra o seguinte: «o acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada» (realçado e sublinhado nosso).
50. Aliás, a propósito do acima citado artigo 6.°, n.° 3 - al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso Hermi vs. Itália, foi entendido que a acusação tem um papel crucial, pelo que um arguido que não esteja familiarizado com a língua utilizada na acusação é colocado numa situação prática de desvantagem se a acusação não for traduzida.
53. Ora, num processo com mais de 125 arguidos, os ora Arguidos A.  e E., SA  — Estratégia y Organización, S.A. são os únicos arguidos que não tiveram acesso ao teor integral da Acusação numa língua que compreendem, por serem os únicos arguidos do processo que não dominam a língua portuguesa e que residem em Espanha.
60. EM SEXTO LUGAR, os presentes autos constituem um processo único e, como tal, a Acusação em causa é uma peça processual única ou una.
61. Aliás, foi o próprio Ministério Público que optou por conduzir os presentes autos como um inquérito único.
62. Assim, ao não disponibilizar aos ora Arguidos a tradução integral da Acusação numa língua que estes dominem, o Ministério Público está na verdade a limitar o exercício do direito de defesa daqueles.
63. Pese embora os excertos parciais da Acusação traduzidos que foram remetidos aos ora Arguidos respeitem a alegadas condutas suas, compulsados os documentos recebidos os ora Arguidos ficam impedidos de compreender numa língua que dominam: (i) se existem outros trechos eventualmente não traduzidos que possam respeitar a outras supostas condutas suas; e (ii) qual é o panorama factual geral em que os seus alegados comportamentos se inserem.
64. Mais: os Arguidos ficam impedidos de compreender numa língua que dominam se existe nos autos alguma matéria factual que possa estar relacionada com aquela que lhes é imputada, eventualmente respeitando a outros arguidos, ou não, e qual é exactamente a construção factual global gizada pelo Ministério Público.
66. Tanto assim é que, por um lado, parte dos excertos da Acusação traduzidos remetem expressamente para outros trechos da Acusação cuja tradução não foi realizada e notificada aos ora Arguidos.
67. Por exemplo, é o caso do início do capítulo “5.1.5.1 Operácion, blanqueamiento y uso de documento falso”, correspondente ao excerto de fls. 15.851 a 15.954 (que foi traduzido), que refere o seguinte:
«En lo que se refiere a OFICINA DA INOVAÇÃO y otras entidades que se mencionen a propósito de esta operaclón en concreto, se remite a lo que a este propósito ya se alegó en ei apartado
Caracterización general de las personas jurídicas v relaciones, dejando para este apartado solo los aspectos que se consideran más relevantes para Ia comprensión de lo que sea necesario demonstrar en esta operación en concreto. »
68. Daqui resulta que o próprio Ministério Público reconhece que, para se compreender o teor completo do que é imputado aos Arguidos, é necessário remeter para capítulos anteriores da Acusação que não se encontram integralmente traduzidos (na sua totalidade), já que apenas foi traduzida a parte de fls. 15.262 do aludido capítulo da “Caracterización general de las personas jurídicas y relaciones”.
82. EM OITAVO LUGAR, a tradução meramente parcial da Acusação com o eventual propósito de “poupar’ custos com a tradução integral da extensa Acusação não constitui (não pode constituir) fundamento para não ser ordenada e realizada a tradução integral deste peça processual para a língua espanhola.
83. Isto porque o Estado tem de suportar os custos das traduções de documentos essenciais do processo penal, sob pena de o direito de defesa dos arguidos ser violado.
84. Tanto assim é que o n.° 2 do artigo 92.° do CPP consagra, expressamente, que “quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada”.
90. É que, além de não ter sido notificada a tradução integral para língua espanhola da Acusação aos ora Arguidos, os excertos da Acusação que foram traduzidos não se encontram sequer identificados com a numeração dos artigos da Acusação em língua portuguesa, nem paginados da mesma forma que o estão na versão original da Acusação.
91. Com efeito, a tradução parcial da Acusação para a língua espanhola nem sequer está numerada com artigos, nem paginada.

99. Da conjugação desta norma com os artigos 92°, n.ºs 2 e 6, e 113°, n.° 10, do CPP (interpretados em linha com o artigo 3°, nºs 1, 2 e 9, da Directiva 2010/64/UE, artigo 6.° da CEDG, artigo 13.° da CRP e, ainda, os artigos 2.° e 7º da Declaração Universal dos Direitos do Homem) resulta a obrigatoriedade de os ora Arguidos serem notificados da Acusação, acompanhada de uma tradução integral do seu teor para a língua espanhola, sob pena de NULIDADE, o que não se verificou, uma vez que o Ministério Público apenas ordenou a tradução parcial desta peça processual.
100. A este propósito, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de Junho de 2005, foi entendido o seguinte: “A notificação em língua portuguesa da acusação a arguido estrangeiro constitui a nulidade prevista no artigo 120, n.2, alínea c) do CPP.” (realçado nosso; processo n.° 0513062, disponível em www.dgsi.it).
101. Aliás, certa Jurisprudência sustenta mesmo o vício de inexistência da notificação da Acusação a arguido estrangeiro em virtude da sua falta de tradução integral.
102. Neste sentido, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26 de Junho de 2007, foi entendido o seguinte:
«I A Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infra-constitucional e consagra, como concretização do princípio do processo equitativo, que o arguido tem, como mínimo (“minimum rights”), o direito a ser informado, no mais curto prazo compatível com o direito de defesa, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza da causa da acusação contra ele formulada.
II Porque o conhecimento do teor da acusação é elemento essencial para o exercício de todas as garantias de defesa, não basta a mera existência formal de um intérprete nomeado nos autos para que aquele direito se considere realizado.
(…)

IV Direito que apenas se considera efectivado com a notificação da acusação integralmente traduzida por escrito.
IV - É processualmente inexistente a notificação de uma acusação redigida em português a uma arguida que apenas entende o mandarim.” (realçado nosso; processo n.° 848/07-1, disponível em www.dgsi.pt).
106. Neste sentido, no Acórdão do Tribunal Constitucional, de 23 de Setembro de 1998, foi entendido o seguinte:
“Ora, a intervenção de intérprete no acto de notificação da acusação a arguido que desconhece ou não domina suficientemente a língua portuguesa é medida que decorre necessariamente da estruturação de um processo criminal que assegure todas as garantias de defesa ao arguido. O conhecimento da acusação pelo arguido é para este determinante da opção pela estratégia de defesa que vier a desenvolver no processo; e, de imediato (no prazo de vinte dias a contar da notificação da acusação ? artigo 287° n° 1 al. a) do CPP), é decisivo para a formulação do seu juízo sobre a conveniência de requerer a abertura da instrução, pretensão que, nos termos do n°3 do mesmo artigo 287°, deve expressar as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação. A notificação deve, assim, assegurar ao arguido o estudo e ponderação da peça acusatória, em termos que facultem a tomada das relevantíssimas decisões que, a partir desse momento, se lhe impõem.” (realçado nosso; processo n.° 834/98, disponível em www.pgdlisboa.pt)».
Consequentemente, nos termos dos art.ºs 92.°, n.ºs 2 e 6, 113.°, n.° 10, 118.°, n.° 1, 120.°, n.° 2- al. c), e 122.° do CPP, declara-se que a notificação da Acusação aos arguidos ora requerentes é nula, por ter sido desacompanhada de tradução integral da acusação para língua que os arguidos compreendem, máxime a língua espanhola e, em consequência, determina-se a tradução do teor integral da acusação para a língua espanhola, com a posterior notificação aos arguidos e, bem assim, que a tradução integral da acusação seja articulada com a numeração dos art.ºs da versão original dessa acusação, em língua portuguesa.
Destarte e como tem sido sempre decidido o prazo para requerer a abertura de instrução apenas será contado logo que se mostre comprovada a notificação da acusação acompanhada da sua tradução integral para a língua espanhola aos arguidos ora requerentes.
…»

Apreciemos, pois, as questões suscitadas pelo recorrente:
1. Começa este por requerer que o Tribunal da Relação «suscite o Reenvio Prejudicial, perante o Tribunal de Justiça, nos termos das normas conjugadas dos artigos 267.º, alínea b), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), 23.º, do Estatuto do TJUE e 93.º e seguintes do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça», por entender que «está em causa questão de interpretação da Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal e conformidade na interpretação de normas do direito nacional, relativamente aos artigos 92.º, n.º 2 e n.º 6, 113.º, n.º 10, do CPP, quando esteja em causa a dedução de acusação em casos de conexão processual, em observância ao artigo 283.º, n.º 4, do CPP».
Os arguidos manifestaram o entendimento de que aquele pedido do MP deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal.
Salientamos que esta questão não tem verdadeira correspondência nas conclusões do recurso, o que, pelas regras consensualmente aceites pelos nossos tribunais superiores, estando entre eles esta Relação, a excluiria das questões a decidir. Todavia, apesar de tal omissão, não deixaremos de sobre ela tomar posição expressa, ainda que sumariamente, esclarecendo-se, desde já, que a resposta à mesma só pode ser negativa.
Por respeito aos princípios fundamentais do Estado de direito democrático a que alude a parte final do n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, as normas comunitárias passam, automaticamente, a vigorar na ordem interna portuguesa, a partir do momento da sua entrada em vigor na ordem jurídica comunitária, tendo primazia relativamente às normas internas. Também as decisões do Tribunal de Justiça, em casos de reenvio prejudicial sobre a interpretação do Tratado, têm alcance geral, vinculando os tribunais internos ao acatamento do sentido e o alcance que elas conferiram à norma comunitária - Ac. STJ de 22/4/2008 P. 08B742.

Pode ler-se nas “RECOMENDAÇÕES” feitas pelo próprio TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2016/C 439/01), o seguinte:
«Previsto nos artigos 19.º, n.º 3, alínea b), do Tratado da União Europeia e no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), o reenvio prejudicial é um mecanismo do direito da União Europeia que visa garantir a interpretação e a aplicação uniformes deste direito na União, oferecendo aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros um instrumento que lhes permite submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia, a título prejudicial, questões relativas à interpretação do direito da União ou à validade dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
… Os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros podem submeter uma questão ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação ou a validade do direito da União se considerarem que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa (v. artigo 267.º, segundo parágrafo, TFUE). Um reenvio prejudicial pode revelar-se particularmente útil nomeadamente quando for suscitada perante o órgão jurisdicional nacional uma questão de interpretação nova que tenha um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União ou quando a jurisprudência existente não dê o necessário esclarecimento num quadro jurídico ou factual inédito.
… Quando for suscitada uma questão no âmbito de um processo pendente perante um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão jurisdicional é no entanto obrigado a submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça (v. artigo 267.º, terceiro parágrafo, TFUE), exceto quando já existir uma jurisprudência bem assente na matéria ou quando a forma correta de interpretar a regra de direito em causa não dê origem a nenhuma dúvida razoável.
… O pedido de decisão prejudicial deve ter por objeto a interpretação ou a validade do direito da União, e não a interpretação das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no litígio no processo principal.
… Um órgão jurisdicional nacional pode apresentar ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial a partir do momento em que considera que uma decisão sobre a interpretação ou a validade do direito da União é necessária para proferir a sua decisão. É com efeito esse órgão jurisdicional que está mais bem colocado para apreciar em que fase do processo deve apresentar tal pedido.
Contudo, na medida em que este pedido vai servir de fundamento ao processo perante o Tribunal de Justiça e em que este último deve dispor de todos os elementos que lhe permitam verificar a sua competência para responder às questões submetidas e, na afirmativa, dar uma resposta útil a essas questões, é necessário que a decisão de efetuar um reenvio prejudicial seja tomada numa fase do processo em que o órgão jurisdicional de reenvio esteja em condições de definir, com precisão suficiente, o quadro jurídico e factual do processo principal, bem como as questões jurídicas que este suscita. No interesse de uma boa administração da justiça, é igualmente desejável proceder ao reenvio na sequência de um debate contraditório.»

O que está em causa no presente recurso é a interpretação e aplicação concreta do disposto nos artigos 92.º, n.ºs 2 e 6 e 113.º, n.º 10, ambos do CPP, em conjugação com a Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010, relativamente à notificação da acusação pública aos dois arguidos de nacionalidade espanhola e tradução, para espanhol, da mesma peça processual.
Não suscita quaisquer dúvidas o teor do aludido n.º 10 do art. 113.º, porquanto, a sua interpretação é unânime, na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que a acusação deve ser notificada não só ao arguido acusado, mas também ao seu advogado ou ao defensor nomeado. Exigências que foram observadas no presente caso.
Também o disposto no artigo 92.º, n.ºs 2 e 6 foi observado pelo MP, após a dedução da acusação, tendo sido entregue cópia traduzida para espanhol, da parte da acusação que, do ponto de vista do acusador, releva para os arguidos de nacionalidade espanhola.
Por isso, o problema que aqui se coloca não é qualquer divergência quanto ao sentido que deve ser dado ao texto das normas em causa, pois, todos os intervenientes concordam que a lei exige que os arguidos que não compreendem a língua portuguesa tomem conhecimento, em língua que entendam, do teor da acusação que contra eles foi deduzida.
Na prática, o que importa determinar é se os arguidos A.  e E., SA  foram devidamente notificados da acusação contra eles formulada, com tradução da mesma para a língua espanhola.
A resposta é, quanto a nós, óbvia e clara, sem que haja qualquer necessidade de recorrer ao incidente sugerido, de reenvio prejudicial da questão para o Tribunal de Justiça da União Europeia.
Contrariamente ao afirmado pelo recorrente, inexiste, no presente caso, qualquer obrigatoriedade de suscitar tal reenvio.    
Por um lado, porque a forma correta de interpretar as regras de direito invocadas pelo recorrente e pela decisão recorrida não dá origem a nenhuma dúvida razoável que aquele Tribunal tenha de resolver.
Por outro, porque a decisão proferida e que ora é impugnada não constitui decisão final do processo, não conhece do mérito da causa e, o mais importante, não compromete de forma definitiva os direitos de defesa dos arguidos. Em suma, não é definitiva. Porquanto, havendo outras fases pelas quais o processo terá de passar, nas quais o contraditório está sempre assegurado, os arguidos ainda estão em tempo de poder tomar conhecimento integral da acusação, mesmo na parte não traduzida para espanhol - ressalvando-se que essa parte respeita exclusivamente aos demais co-arguidos de nacionalidade portuguesa -, desde logo, durante a instrução, se a requererem, havendo mesmo a possibilidade de aqueles mesmos arguidos não chegarem a ser pronunciados pelos factos de que agora são acusados e de que foram notificados, para além de poderem suscitar a nulidade da pronúncia, no caso de serem eventualmente pronunciados por factos diferentes daqueles de que agora foram notificados em língua espanhola, com hipótese de interporem recurso para esta Relação em caso de indeferimento dessa nulidade, nos termos dos artigos 309.º e 310.º, n.º 3, do CPP. Não sendo requerida a instrução, ou esta não tenha lugar apesar de requerida, poderão ainda aqueles, em fase de julgamento, ser absolvidos dos factos e crimes que lhes são imputados, assim como podem impugnar uma eventual condenação, quer pelos factos de que foram acusados e validamente notificados, quer, por maioria de razão, se forem condenados por factos diferentes daqueles pelos quais foram notificados em língua espanhola.
Impõe-se, pois, concluir que nada de definitivo é resolvido neste momento, quanto ao desfecho do processo, independentemente do que se decidisse naquele incidente processual junto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Opta-se, pois, por não suscitar a intervenção desse Tribunal, neste momento.

2. Rejeitado o reenvio prejudicial, importa agora apreciar o despacho recorrido quanto ao respectivo mérito.
Teve aquele despacho por objecto um requerimento dos arguidos E., SA  e A. , em que estes invocavam a nulidade ou eventual irregularidade da notificação que lhes foi feita da acusação contra eles formulada, por não lhes ter sido entregue tradução integral da acusação, para língua espanhola e ainda porque a tradução parcial que receberam não continha a incriminação que respeitava ao arguido A. .
Note-se que, nesta última parte respeitante à incriminação, o Ministério Público reconheceu posteriormente que tinha havido lapso na tradução efectuada (despacho de 9/01/2019 - fls. 244v.º a 245v.º), tendo tal lapso sido corrigido e expedida nova carta rogatória para notificação dos arguidos, com tal correcção. Nessa parte, a irregularidade está, pois, sanada.
O acto processual cuja invalidade foi declarada pela decisão judicial impugnada é o acto de notificação da acusação, com o fundamento de que não foi entregue aos arguidos a cópia integral da acusação, mas apenas de parte dela, traduzida para espanhol.
A acusação é um acto da exclusiva responsabilidade do MP e a sua subsequente notificação, nesta fase processual, é encargo exclusivo dos respectivos serviços.
Na verdade, a instrução ainda não havia sido requerida, pelo que não havia sido aberta, nem o processo havia sido remetido para a fase de julgamento. Consequentemente, nem o juiz da instrução, nem o juiz do julgamento, tinham competência para decidir da questão suscitada.
Estando o processo ainda na fase inquérito - pois, só com a distribuição para instrução, ou para julgamento, é que o processo muda de fase processual -, é de concluir que o despacho recorrido foi proferido pelo Sr Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal na qualidade de juiz do inquérito.
Todavia, do nosso ponto de vista, o procedimento seguido é incorrecto.
Nesta fase processual, os vícios dos actos que são da competência exclusiva do MP, como é a acusação - e, subsequentemente, da tradução e notificação desses mesmos actos -, têm de ser arguidos perante o magistrado do MP titular do processo e por este conhecidos. Não podendo pronunciar-se sobre eles o juiz do inquérito.
A actividade do juiz do inquérito deve limitar-se à prática dos actos jurisdicionais cuja competência lhe é expressamente atribuída, não podendo imiscuir-se nos actos da exclusiva competência do MP ou apreciar a respectiva validade. Há nesta fase processual uma competência concorrente, mas que é limitada e com separação das respectivas competências, face ao princípio da legalidade ao qual estão sujeitas ambas as magistraturas, impondo-se aquela cisão de competências por força do princípio do acusatório e da estrutura acusatória do processo penal, a qual implica «uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas», razão pela qual, «durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência e o magistrado do Ministério Público só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência, neste se incluindo todos os actos investigatórios», conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, no “Comentário do Código de Processo Penal”, Lisboa 2008, página 300 (também assim: Costa Pimenta, 1991: 390; Maia Gonçalves, 2005: 304; Dá Mesquita, 2003: 96), referindo ainda o mesmo autor que, «a competência do juiz de instrução não deve constituir oportunidade para ele se alçar em senhor do inquérito, o que aconteceria se o juiz se colocasse numa posição de sindicante permanente da actividade do Ministério Público e até ordenasse a repetição de actos do Ministério Público. Portanto, o juiz de instrução não pode declarar durante o inquérito a invalidade de actos processuais presididos pelo MP». E mais adiante: « … do despacho do Ministério Público que decide durante o inquérito se um acto processual é ou não é inexistente, nulo ou irregular, ou  uma prova é ou não é proibida, não cabe reclamação para o juiz nem recurso para o tribunal superior, mas reclamação hierárquica para o superior hierárquico do magistrado do MP…O despacho do superior hierárquico não faz caso julgado sobre a questão decidenda, podendo ser recolocada em ulteriores fases processuais, nos termos previstos na lei».
Ou seja, os requerimentos em que os arguidos invocaram nulidade ou irregularidade da notificação da acusação deviam ter sido conhecidos pelo MP, havendo reclamação da respectiva decisão para o seu superior hierárquico. Não sendo esta reclamação atendida, poderiam os mesmos arguidos voltar a suscitar a questão em eventual requerimento de abertura da instrução, obrigando a uma decisão sobre a questão em sede de decisão instrutória, caso o vício não fosse entretanto reparado, se reconhecida a sua existência nessa nova fase processual.
Tal procedimento é que seria o correcto perante o nosso ordenamento processual penal e, se tivesse sido seguido, teria evitado o incidente anómalo a que foi dada causa e, subsequentemente, o presente recurso, estando o respectivo processado à margem da lei - leia-se Código de Processo Penal - e do espírito que lhe é imanente, em que a celeridade pretendida pelo legislador e que esteve na base das últimas reformas legislativas, que visaram acabar com os vários constrangimentos e demoras processuais injustificadas, acaba por ser posta em causa com recursos e incidentes que jamais deviam ter lugar nesta fase processual.
Porém, proferida decisão judicial que conheceu da questão e interposto o respectivo recurso, não nos escusaremos a dele conhecer.
Mas será que existe a nulidade que foi declarada pelo despacho recorrido?
Parece-nos óbvio que ela não existe.
Em matéria de nulidades, vigora o princípio da legalidade, previsto no artigo 118.º, do CPP, segundo o qual, aquelas só existem quando forem expressamente cominadas na lei.
No que se refere à notificação da acusação, nem sequer a ausência dessa notificação - quando os procedimentos para o efeito se tiverem revelado ineficazes - constitui nulidade, prosseguindo o processo sem ela, conforme determina o n.º 5 do artigo 283.º, do CPP. Obviamente que, quando o arguido for notificado para julgamento e, simultaneamente, do teor da acusação, o respectivo direito de requerer instrução permanece incólume, nenhuma afronta aos seus direitos decorrendo da aludida norma.
Se a falta de notificação da acusação não constitui nulidade, por maioria de razão, havendo notificação da acusação, ainda que com preterição de alguma formalidade, tal nulidade não poderá existir. A nulidade existirá, sim, se for iniciado o julgamento de alguém, com base em determinada acusação, sem que desta a pessoa acusada tenha previamente tomado conhecimento, para que dela se possa defender.
Vejamos o caso dos autos:
Os arguidos de nacionalidade espanhola tomaram conhecimento, na sua própria língua (o espanhol), do teor da acusação que contra eles foi formulada.
Obrigando a lei que em caso de conexão processual seja deduzida uma só acusação (artigo 283.º, n.º 4, do CPP), tal não impede que, havendo vários arguidos e muitos factos ilícitos, relativamente a alguns desses arguidos releve apenas parte dessa acusação ou apenas alguns desses crimes, que podem estar, ou não, em co-autoria com outros co-arguidos. Ou seja, uma acusação extensa e com tais características não tem de respeitar, toda ela, a todos os arguidos, podendo haver partes autonomizáveis que relevam apenas quanto a alguns dos arguidos e apenas quanto a certos crimes, independentes e autónomos relativamente aos imputados aos demais arguidos.
É o que acontece com os arguidos de nacionalidade espanhola - uma pessoa colectiva e o seu gerente -, relativamente aos quais a factualidade ilícita imputada é restrita e está sintetizada num capítulo da acusação, nada havendo nesta que relacione os mesmos arguidos com a demais factualidade que é imputada, em exclusivo, aos arguidos de nacionalidade portuguesa.
Se àqueles dois arguidos foi dado conhecimento integral dos factos de que são acusados, do tipo legal de crime preenchido por tais factos, das correspondentes provas que contra eles foram apresentadas, das possíveis consequências jurídicas em caso de condenação e de como poderiam exercer os respectivos direitos de defesa, nomeadamente o de requererem instrução, não vislumbramos qual a necessidade de lhes ser entregue tradução para espanhol de toda a restante acusação, que em nada mais lhes diz respeito e relativamente à qual nada poderão argumentar.
E não se diga que, na posse daqueles elementos, os arguidos não dispunham de todos os dados necessários para requererem instrução, porque não conheciam o restante teor da acusação, porquanto, tal argumentação não corresponde à realidade, jamais podendo proceder.
Mas, ainda que se verificasse a alegada insuficiência de conhecimento e se entendesse que o mesmo era imprescindível, quanto à totalidade da acusação, para garantia da respectiva defesa, isso não impediria os mesmos arguidos de requererem a instrução, impugnando os factos e crimes de que lhes foi dado conhecimento e invocando, no mesmo requerimento, a necessidade de conhecerem o teor integral da acusação, para melhor exercerem o seu direito de defesa, pretensão que não deixaria de ser conhecida pelo juiz de instrução, que nessa fase seria o competente e de suprir tal deficiência, se fosse reconhecida.
Em jeito de conclusão dir-se-á que, nesta matéria, o que exige o direito comunitário e a lei nacional aplicável, que com aquele está em total conformidade, é que os arguidos devem ser tempestivamente informados, em língua que entendam, da acusação que lhes é feita, ou seja, dos factos que lhes são imputados, das respectivas provas e correspondentes consequências jurídicas caso se provem tais factos, quer em termos de incriminação, que abrange a pena principal correspondente ao crime imputado - no caso, fraude na obtenção de subsídio - e as eventuais penas acessórias, quer quanto aos demais efeitos da condenação, nomeadamente quanto ao destino de bens apreendidos, ou indemnizações a pagar.
Foi precisamente o que aconteceu nos autos de que este recurso emergiu.
No momento da notificação, aos arguidos recorridos foi entregue cópia em língua espanhola de todos os aludidos elementos.
Não têm aqueles de se defender dos factos ou das acusações dirigidas aos outros arguidos de nacionalidade portuguesa, cuja acusação é substancialmente mais vasta (cerca de três mil páginas) e cuja leitura não é imprescindível para que os arguidos de nacionalidade espanhola compreendam a acusação que a eles é dirigida.
A tradução para língua espanhola da parte restante da acusação respeitante aos arguidos portugueses traduzir-se-ia em acto absolutamente inútil, que em nada contribuiria para uma melhor defesa dos notificados, ou para requererem instrução.
Tal inutilidade é agora mais evidente, após a separação de processos quanto aos dois arguidos ora recorridos, a qual foi determinada pelo MP logo após prolação do despacho recorrido, para permitir o prosseguimento do processo quanto aos demais arguidos de nacionalidade portuguesa, perdendo o presente recurso grande parte da sua utilidade, na medida em que a acusação contra estes arguidos passou a ter total autonomia relativamente à que é dirigida aos arguidos espanhóis.
Por outro lado, a ausência de numeração dos factos na tradução que foi entregue aos recorridos também não traduz qualquer nulidade, pois, não é requisito que conste do artigo 283.º, n.º 3, do CPP, nem impede a compreensão do respectivo conteúdo para efeitos de exercício dos direitos de defesa, não podendo justificar a declaração de nulidade a invocada dificuldade de diálogo à distância, entre os mesmos arguidos e os seus mandatários, por força da ausência de tal numeração ou divergências de numeração relativamente ao original da acusação. O que releva é o conteúdo da matéria de facto imputada e o significado do que lá se diz, independentemente de a numeração respectiva estar correcta ou incorrecta ou das maiores ou menores dificuldades em se saber de que ponto se está a falar, no diálogo entre os intervenientes processuais, tratando-se de pormenores que são facilmente ultrapassáveis e que jamais justificam a anulação e subsequente repetição do acto processual praticado.  
Em suma, os arguidos recorridos tomaram conhecimento, com a notificação que lhes foi feita da acusação - complementada com a posterior notificação da rectificação do lapso relativo à incriminação do arguido A.  -, de todos os elementos necessários ao exercício das suas defesas, nomeadamente, para efeitos de pedido de abertura de instrução, caso o quisessem fazer, não padecendo o acto de notificação de qualquer nulidade, nomeadamente da que foi declarada pelo despacho recorrido, ou de irregularidade que impeça o exercício do respectivo direito a instrução.
Sendo, por isso, procedente o recurso do MP, com a consequente anulação do despacho recorrido.  

III – DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso do MP, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se o prosseguimento dos ulteriores termos do processo.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa,      /      /

[1] Apenso EOSA 1 e o Apenso EOSA 2
[2] Fls. 90 a 94 e 4 a 31 do Apenso D-3
[3] Como resulta do considerando 17
[4] Negrito da nossa autoria
[5] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 547/98, Processo n.º 834/98