Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
702/10.3TCFUN.L1-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: PARTILHA EXTRAJUDICIAL
ANULAÇÃO DA PARTILHA
ACORDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A partilha extrajudicial só é impugnável nos casos em que o sejam os contratos.
II. O acordo na partilha extrajudicial envolve, além de todos os herdeiros, os respetivos cônjuges, nomeadamente, quando casados no regime da comunhão geral de bens.
III. A partilha extrajudicial, sem respeito pela exigência legal de acordo unânime dos interessados, consagrada no art. 2102.º, n.º 1, do Código Civil, por si só, não determina a nulidade.
É pressuposto, para a anulação da partilha, a existência do conluio entre todos os interessados no sentido de afastarem da partilha qualquer um com direito a intervir.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I – RELATÓRIO

                 A, instaurou, em 14 de dezembro de 2010, na Vara Mista da Comarca do Funchal, contra B, C e D, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que fosse declarado herdeiro da herança aberta por óbito de E, ocorrido em 23 de fevereiro de 1979, e fosse declarado que dessa herança faz parte o prédio misto sito no Lombo da Boa Vista, freguesia de Santa Maria Maior, concelho do Funchal, e descrito, sob o n.º 2481/20021014, na Conservatória do Registo Predial do Funchal, e que os Réus fossem condenados a restituírem à mesma herança o referido prédio e, por consequência, à sua fração hereditária.
Para tanto, alegou, em síntese, ter sido casado com a R. D, no regime da comunhão geral de bens, até 18 de fevereiro de 1981, período durante o qual faleceu a mãe daquela R., a referida E; nunca se fez a partilha dos bens desta, ainda que os RR. tenham partilhado, sem o seu conhecimento, um prédio.
Contestaram os RR. C  e B, alegando a ilegitimidade do A. e não terem conhecimento da situação de interessado do A., e concluindo pela improcedência da ação. Em reconvenção, pedem a condenação do A. na quantia de € 65 913,45, correspondente às tornas pagas e obras realizadas no prédio.
Contestou também a R. D, invocando a ilegitimidade do A. e o seu desinteresse na herança e concluindo pela improcedência da ação.
Replicou o A., respondendo à matéria de exceção e à reconvenção, em cujo articulado alegou também que os RR. atuaram com a intenção de o prejudicar, omitindo-o da escritura de habilitação de herdeiros. Alterando o pedido, pediu ainda a anulação da escritura de habilitação de herdeiros exarada no dia 12 de outubro de 2001 e que se decretasse a anulação da escritura de partilha, exarada na mesma escritura, com o cancelamento de todos os registos efetuados a favor dos RR., por efeito da mesma escritura. O A. requereu ainda também a intervenção principal provocada de F, viúvo da falecida E.
Treplicaram os RR., no sentido da inadmissibilidade da alteração da causa de pedir e do pedido, opondo-se também à intervenção principal.
Admitida a intervenção principal de F e, tendo este falecido em 4 de agosto de 2011, foram os seus herdeiros habilitados para a ação, que, citados, não contestaram.
Foi proferido despacho saneador, julgando-se improcedente a matéria de exceção e não se admitindo a reconvenção, mas aceitando-se a alteração da causa de pedir e do pedido e procedendo-se, depois, à organização da base instrutória.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 14 de junho de 2013, sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo os Réus dos pedidos.

Não se conformando com a sentença, apelou o Autor e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) Para efeitos do n.º 1 do art. 2012.º do CC, “interessados” são também os cônjuges dos herdeiros casados no regime da comunhão geral de bens.
b) Age com dolo e má fé o herdeiro que, além de ocultar o regime de bens, se declara divorciado e afasta o cônjuge da partilha.
c) O A. é interessado, por à data da morte ser casado com uma filha da autora da herança, no regime da comunhão geral de bens.
d) A partilha, por preterição de normas imperativas e formalidades legais, é nula.
e) A partilha extrajudicial ocorre desde que todos os interessados acordem na divisão.
f) As normas do CC, que regulam a partilha extrajudicial, são de natureza imperativa.
g) Foram violados os artigos 2102.º, n.º 1, 2121.º, 2101.º, n.º 1, 285.º e 287.º do Código Civil.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da sentença recorrida, com a declaração de nulidade ou anulação da escritura de partilha e julgando procedente os demais pedidos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

No presente recurso, discute-se, essencialmente, a nulidade ou anulabilidade da escritura da partilha de herança, por ausência do marido de herdeira.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:

1. A R. D nasceu a 24 de setembro de 1945 e é filha de F e E.
2. O A. casou com a R. D a 22 de março de 1971, no regime da comunhão geral de bens.
3. E faleceu a 23 de fevereiro de 1979, no estado de casada com F.
4. F, faleceu no dia 4 de agosto de 2011, no estado de casado com G, deixando como herdeiros esta e os seus dois filhos, os RR. B e D.
5. O casamento referido em 2. foi dissolvido, por divórcio, decretado por sentença de 18 de fevereiro de 1981, proferida pelo Supremo Tribunal da África do Sul, revista e confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de fevereiro de 1994, transitado em julgado a 10 de março de 1994.
6. Por escritura pública, outorgada a 12 de outubro de 2001, no Cartório Notarial de Câmara de Lobos, F declarou que: (i) lhe incumbe as funções de cabeça-de-casal por óbito de sua primeira mulher; (ii) no dia 23 de fevereiro de 1979, faleceu E, no estado de casada com F, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens; (iii) a falecida não fez testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo deixado como seus únicos herdeiros, o aqui declarante, B (…) e D, divorciada (…); (iv) não existem outras pessoas que legalmente prefiram aos indicados herdeiros ou que com eles concorram à aludida sucessão.
7. Por escritura pública, outorgada a 12 de outubro de 2001, F, D e B e mulher, C, declararam que: (i) conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros, lavrada no dia de hoje, no dia 23 de fevereiro de 1979, faleceu E, no estado de casada com F, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens, não tendo deixado testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo sucedido como únicos herdeiros mencionados outorgantes; (ii) o imóvel deixado por aquela autora da herança é um prédio rústico e urbano, situado no Lombo da Boavista, freguesia de Santa Maria Maior, concelho do Funchal (…), inscrito na matriz sob o artigo 62º, da secção “K” (…) e parte urbana sob o artigo 1196º (…), descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 24648, a fls. 90 e livro - B, 67; (iii) o valor patrimonial do referido imóvel é de               57 291$00, com base no qual acordam em fazer a partilha; (iv) (…); (v) (…) a cada um dos filhos cabe um quinhão hereditário no valor de 10 742$00; (vi) ao outorgante B e mulher é adjudicado e fica a pertencer o prédio atrás identificado, no valor de 57 291$00. Como a sua legítima é do valor de            10 742$00, paga de tornas 46 549$00; (vii) os credores das tornas declaram já as ter recebido pelo que prestam quitação.
8. Por escritura pública, outorgada a 13 de março de 2008, os RR. C e B declararam que: (i) foram casados um com o outro, no regime da comunhão geral e que por sentença transitada em julgado em 5 de maio de 2003 proferida no processo de divórcio litigioso convertido em mútuo consentimento; (ii) pela presente escritura procedem à partilha do bem comum do dissolvido casal - prédio rústico e urbano, situado no Lombo da Boavista, freguesia de Santa Maria Maior, concelho do Funchal (…), inscrito na matriz sob o artigo 62º, da secção “K” (…) e parte urbana sob o artigo 1196º (…), descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 2481 (…); (iii) o referido valor declarado é de quinze mil euros corresponde à meação de cada um dos cônjuges o valor de sete mil e quinhentos euros; (iv) ao segundo outorgante é adjudicado o usufruto do prédio a partilhar, no valor de quatro mil e quinhentos euros, levando a menos do seu quinhão a quantia de três mil euros, que declara já ter recebido de sua ex-mulher; (v) à primeira outorgante é adjudicado e fica a pertencer a nua propriedade do prédio, no valor de dez mil e quinhentos euros, mas como o valor do seu direito é de sete mil e quinhentos euros, leva a quantia de três mil euros, tornas que declara ter dado ao seu ex-marido.
9. A propriedade do prédio referido em 7. e 8. está registada a favor da R. C, sendo que o usufruto sobre esse prédio está registado a favor do R. B.
10. Em consequência da partilha referida em 7., os RR. B e C pagaram aos restantes herdeiros a quantia de € 35 913,45, a título de tornas, tendo pago ao herdeiro F a quantia de € 19 951,92 euros e à R. D a quantia de € 15 961,53.
11. O A. e a R. D residem na África do Sul há mais de trinta anos.
12. O A. e a R. D vinham à Madeira esporadicamente em férias.
13. Durante as quais não mantinham grandes contactos ou intimidades com os RR. B e C.
14. Os RR. B e C desconheciam o regime de bens do casamento do A. e da R. D.
15. Desconhecendo também quando se divorciaram e, se à data, a E já havia falecido.
16. Os RR. B e C desconheciam a data em que foi instaurada a ação de divórcio entre o A. e a R. D.
17. A R. D  interveio na escritura outorgada a 25 de janeiro de 2006, a fls. 291 a 296, como vendedora, assinando, presencial e conjuntamente, com os demais proprietários vendedores e correspondente escritura de compra e venda, tendo todos os vendedores declarado terem recebido o respetivo preço.

***

2.2. Delimitada a matéria de facto, que não vem impugnada, importa agora conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, e cuja questão jurídica emergente foi antes especificada.
O Apelante, impugnando o sentido da decisão recorrida, que considerou inexistir dolo ou má fé na partilha, defende no recurso a nulidade ou anulabilidade da partilha, tanto por violação de normas imperativas como também por a partilha ter sido dolosa e de má fé.
Situado o problema, tal como emerge dos autos, vejamos então o direito aplicável.
De harmonia com o disposto no art. 2121.º do Código Civil (CC), a partilha extrajudicial só é impugnável nos casos em que o sejam os contratos. Mediante a remissão para os princípios gerais aplicáveis aos contratos, estabeleceu-se o fundamento da impugnação da partilha, na tradição do velho direito português (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume VI, 1998, pág. 197, J. RODRIGUES BASTOS, Direito das Sucessões, II, 1982, pág. 31, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de novembro de 2010 (Processo n.º 2135/04.1TBPVZ.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt).
De acordo com aquela remissão, à impugnação da partilha extrajudicial são aplicáveis não só as disposições gerais diretamente referentes aos contratos em geral, mas também as disposições sobre a impugnação dos negócios jurídicos em geral, ou seja, são aplicáveis, em princípio, as normas relativas, não apenas à anulabilidade, mas também as referentes à nulidade e inexistência do negócio jurídico (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Ibidem, pág. 198).
Assim, mediante ação judicial, a partilha extrajudicial pode ser declarada inexistente, nula ou anulada, conforme a natureza dos vícios que a afetem, bem como pode ainda ser declarada ineficaz stricto sensu (R. CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, II, 1980, págs. 367 e 368).
Em conformidade com o disposto no art. 2102.º, n.º 1, do CC, a partilha pode fazer-se extrajudicialmente, quando houver acordo de todos os interessados.
Se bem que o direito de exigir a partilha pertença a qualquer herdeiro, como decorre do disposto no n.º 1 do art. 2101.º do CC, a partilha extrajudicial exige o acordo de todos os interessados. Esta expressão tem um sentido bem mais ampla do que a de herdeiros. Por isso, tal acordo na partilha envolve, além de todos os herdeiros, os respetivos cônjuges, nomeadamente, quando casados no regime da comunhão geral de bens. Na verdade, pela comunhão conjugal, o herdeiro comunica ao consorte a metade dos bens que adquire, designadamente por sucessão, pelo que ambos são interessados na partilha da herança por óbito do de cujus (J. LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, Volume I, 1979, pág. 77).
Assim, o cônjuge do herdeiro é um interessado na partilha da herança, sendo indispensável o seu acordo, quando seja outorgada extrajudicialmente.

No caso vertente, na herança aberta por óbito de E, em 23 de fevereiro de 1979, o Apelante encontrava-se casado, no regime da comunhão geral de bens, com a Apelada D, filha da falecida, vindo depois a divorciar-se, por sentença reconhecida pela ordem jurídica portuguesa.
Sendo a Apelada D herdeira, o Apelante, seu marido ao tempo da abertura da herança, era interessado na partilha da herança de E. Nessa medida, era necessário o seu acordo na partilha daquela herança, o que não sucedeu, nomeadamente na escritura pública da outorgada a 12 de outubro de 2001, que procedeu à partilha, pois o Apelante não foi chamado a outorgar a escritura pública da partilha dos bens deixados por óbito de E.
Deste modo, a partilha formalizada extrajudicialmente na escritura pública não respeitou a exigência legal, quanto ao acordo unânime dos interessados, consagrada no art. 2102.º, n.º 1, do CC.
Esta circunstância, por si só, não determina a nulidade da partilha, pois a lei não estabelece tal efeito.

Por outro lado, sendo a partilha impugnável da mesma forma que os contratos, como se referiu, importa então averiguar se a mesma é anulável, por ter sido celebrado com dolo ou má fé.
Na verdade, como na partilha judicial, a anulação da partilha extrajudicial pode ser decretada quando tenha havido preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros e se mostre que os outros interessados procederam com dolo ou má fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada (arts. 1388.º, n.º 1, do CPC/1961, e 72.º, n.º 1, do regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que entrou em vigor a 2 de setembro de 2013).
 Por dolo entende-se, designadamente, qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração (art. 253.º do CC).
Por sua vez, e acolhendo a noção empregue no âmbito da impugnação pauliana, a má fé corresponde à consciência do prejuízo que o ato causa ao interessado não interveniente na partilha extrajudicial (art. 612.º, n.º 2, do CC).
De acordo com a lei é ainda pressuposto a existência do conluio entre todos os interessados no sentido de afastarem da partilha qualquer um com direito a intervir, não bastando que só algum ou alguns dos interessados hajam procedido com fim malicioso e ilegal (J. LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, Volume II, 1980, pág. 556).
Ora, partindo da matéria de facto provada, não ficou demonstrado que todos os interessados, que outorgaram a escritura pública da partilha, tivessem agido com dolo ou má fé, quanto aos termos como exararam tal escritura pública. Para isso, muito conta a resposta totalmente negativa ao quesito 1.º base instrutória.
O próprio Apelante não chega sequer a alegar que o dolo ou a má fé animasse todos os interessados intervenientes na escritura pública de partilha, mas apenas parte deles, nomeadamente os Apelados D e F.
Independentemente destes últimos interessados poderem ter agido com malícia, com possível prejuízo para o Apelante (prova que, sem outros factos, os autos não permitem sustentar), o certo é que tal elemento subjetivo não é possível estendê-lo também aos restantes interessados outorgantes da escritura pública da partilha.
Assim, e sendo necessária a verificação do conluio entre todos os que celebraram a escritura pública da partilha, não procede o fundamento para a anulação da partilha, não obstante a falta do Apelante, interessado na partilha.
Todavia, isto não significa que os interesses do Apelante fiquem irremediavelmente comprometidos, mas apenas que a sua defesa não passa pela impugnação da partilha.
Improcede, portanto, a apelação.

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

2.4. O Apelante, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a consagrada regra da causalidade.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

2) Condenar o Apelante (Autor) no pagamento das custas.

Lisboa, 20 de março de 2014

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Lúcia Sousa)

(Magda Geraldes)