Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4454/11.1TBCSC-D.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: INSOLVENTE
LOCADOR
ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
RESTITUIÇÃO DE BENS
INDEMNIZAÇÃO
PRAZO
ARGUIÇÃO
EXTEMPORANEIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Omitindo – se a pronúncia sobre diligência probatória requerida na petição inicial – ofício a expedir à Repartição de Finanças para que informe se o contrato de arrendamento foi registado e em que data – é extemporânea a arguição dessa irregularidade apenas em sede de recurso, aquando da apelação interposta da sentença, se o autor teve intervenção ao longo do processo, estando inclusive presente aquando da realização da audiência de julgamento (art. 205º, nº1 do C.P.C.).
2. Optando o Administrador de insolvência por fazer operar a resolução de contrato de arrendamento em que o insolvente é locador com recurso ao mecanismo de resolução em benefício da massa insolvente a que aludem os arts. 120º e 121º, nº1, alínea h) do CIRE, não pode posteriormente, em acção instaurada pelo pretenso locatário com vista à impugnação da resolução, invocar em defesa da ré a simulação desse contrato, pois está a exercer uma posição jurídica em contradição com comportamento anteriormente assumido (venire contra factum proprium).
3. Com a recepção da declaração de resolução, validamente efectuada, o locatário fica obrigado à restituição da coisa, sendo ilícita a ocupação a partir desse momento e constituindo-se o locatário na obrigação de indemnizar a massa insolvente desde que verificados os demais pressupostos (arts. 483º, 562º, 563º, 564º e 564º, nº1 e 2 do Cód. Civil).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa  
1. RELATÓRIO
AS intentou contra a Massa Insolvente de JM, a presente acção, pedindo que:
a) “Se declare nula e de nenhum efeito a declaração de resolução do contrato de arrendamento melhor identificado nos artigos 1.º a 6.º da petição inicial, efectuada pelo Senhor Administrador da Massa Insolvente de JM”;
b) “Seja reconhecida a validade do contrato celebrado entre o autor e o insolvente, mantendo-se intocado o contrato e a qualidade de arrendatária do Autor, com todos os direitos e deveres inerentes."
Para fundamentar a sua pretensão invoca, em síntese, que em 1 de Março de 2011 celebrou com o insolvente, pelo prazo de dez anos, um contrato de arrendamento de parte de casa para habitação, que pagou adiantadamente 18 meses da renda estipulada, que desconhecia que estava, à data da celebração do contrato, na eminência de ser declarado insolvente, refutando ter actuado de má fé.
A ré contestou invocando que deve ser mantida a resolução do contrato, uma vez que o mesmo foi celebrado entre o aqui autor e o insolvente, que são amigos, apenas com o intuito de frustrar os direitos dos credores do insolvente, sendo que o aqui autor tinha perfeito conhecimento da situação de insolvência em que se encontrava o amigo.
Em reconvenção, pede que se decrete “o despejo do A. do prédio dos autos – ou das partes que ocupa e utiliza – e condenar-se o mesmo ao pagamento de €40.000,00 como compensação da ocupação abusiva a que se procedeu de 1-3-2011 até 1-7-2012 e € 2.500,00 mensais desde 1-7-2012 até que tal ocupação cesse”.
O autor respondeu.
Foi elaborado saneador, tendo sido dispensada a selecção da matéria de facto.
Procedeu-se ao julgamento.
Proferiu-se sentença que concluiu nos seguintes termos:
“Face ao exposto, julgo a acção improcedente por não provada e provada a reconvenção e, em consequência, julgo o contrato de arrendamento validamente resolvido a favor da massa insolvente e condeno o A. AS a pagar à massa insolvente uma indemnização correspondente ao valor locativo da parte do imóvel em causa nos autos, à razão mensal de 1.200,00 euros, desde 01.03.2011 e até efectiva entrega da mesma à massa insolvente, na pessoa do Sr. Administrador da Insolvência.
Custas pelo A..
Registe e notifique”.
Não se conformando, o autor apelou formulando as seguintes conclusões:
“(…)
Foram apresentadas contra alegações.
Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO
Releva o seguinte circunstancialismo, que a 1ª instância deu por assente:
1 - Com data de 1 de Março de 2011, o autor e JM assinaram o documento junto a fls. 23 a 26, que denominaram de contrato de arrendamento para habitação com prazo certo.
2 - Esse documento refere ter como objecto parte do prédio sito na Rua de Santa (…), inscrito na matriz predial urbana da freguesia de C… (…).
3 - Refere também tal documento, que se reporta ao arrendamento, pelo autor, de dois quartos com casa de banho, no 1.° piso do prédio, com serventia de cozinha, casa de banho social, sala, piscina e um lugar de garagem e que o local arrendado se destina exclusivamente a habitação do arrendatário, não lhe podendo ser dado outro destino, nem ser sublocado, ou de qualquer outra forma cedido, no todo ou em parte, sem autorização prévia e escrita do senhorio.
4 - Refere-se ainda no mesmo documento que foi celebrado pelo prazo de 10 anos, contados desde 1 de Março de 2011, renovável nos termos da lei, e que a renda estipulada foi de €500,00 (quinhentos euros) mensais, a pagar no 1.° dia útil ao mês anterior a que disser respeito.
5 - O A é pai de FS, nascido em 27 de Agosto de 1975.
6 - O filho do autor está completamente dependente de terceiros, por estar totalmente incapaz de praticar qualquer actividade integradora da rotina diária de qualquer pessoa.
7 - O filho do autor vive com a mãe. O pai, que vive em Espanha, desloca-se com frequência a Portugal para estar com o filho.
8 - Em 5 de Dezembro de 2011 o autor recebeu uma carta registada com A/R através da qual o Exmo. Sr. Dr. AD lhe comunicou a resolução do contrato de arrendamento, por considerar que os intervenientes no arrendamento agiram de má-fé, por, no seu entender, conhecerem ambos o carácter prejudicial do mesmo para a insolvência iminente de JM, que tinha já dívidas vencidas de montante superior ao seu património e rendimentos, sendo que o mesmo se apresentou à insolvência em 9/6/2011, tendo a insolvência sido decretada em 22/06/2011.
9 - O autor tem residência permanente em Espanha, na Rua (…), desde 18 de Maio de 2006.
10 - Antes da assinatura do documento referido em 1, o autor e o insolvente já se conheciam.
11 - Em 19.04.2011 e 10.05.2011, o insolvente JM, por cartas enviadas ao Banco Espírito Santo, SA (detentor de hipoteca sobre o prédio dos autos), propôs que o Banco aceitasse o mesmo prédio como dação em pagamento das suas dívidas ou que aceitasse aumentar o seu crédito em valor superior a 131.000,00 euros, necessário ao pagamento de dívida às Finanças, a fim de evitar uma hasta pública.
12 - O valor de transacção do prédio dos autos, livre do ónus do arrendamento atinge, pelo menos, 720.000,00 euros.
13 - Onerado com arrendamento o valor de transacção do mesmo prédio baixa para, pelo menos, 636.000,00 euros.
14 - O valor locativo mensal do prédio dos autos (na sua totalidade) era, em 2011, de, pelo menos, 3.000,00 euros, sendo que a parte correspondente a dois quartos com as serventias referidas no documento supra identificado (pontos 1 a 3), tem o valor locativo mensal de, pelo menos, 1.200,00 euros.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 4 e 639 do novo Código de Processo Civil [ [1] ] – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, ponderando as conclusões de recurso, impõe-se apreciar:
- da nulidade proveniente de omissão de diligência probatória;
- do julgamento da matéria de facto;
- da resolução do contrato (art. 121º, nº1, alínea h) do CIRE); 
- do pedido reconvencional.

2. O apelante requereu aquando da apresentação da petição inicial, que fosse “oficiado à competente Repartição de Finanças do concelho de C… para que informe se o contrato aí foi registado e, em caso afirmativo, em que data, porquanto se trata de facto que o autor desconhece e que interessa à decisão sobre o mérito da causa”.
Compulsando os autos verifica-se que o tribunal não se pronunciou sobre essa pretensão, ocorrendo pois irregularidade cuja arguição é agora apresentada pelo autor, por via deste recurso.
Fá-lo, notoriamente, de forma extemporânea, nos termos do art. 205º, nº1 do C.P.C. vigente à data – cfr. o actual art.199º, sem alterações – porquanto, tendo sido notificado dos despachos proferidos no processo, incluindo aquele que incidiu sobre a prova requerida, e tendo-se procedido ao julgamento – em que teve intervenção – e fixação da matéria assente sem que nunca o autor tenha sido notificado quer de despacho a admitir a realização da diligência, quer do seu resultado – isto é, do ofício de resposta da Repartição de Finanças – fácil seria intuir que não se tinha realizado a diligência requerida.
Aliás, o autor chegou ao ponto de reclamar do despacho que fixou a factualidade assente e respectiva fundamentação – cfr. fls. 215 a 218 dos autos – e nada indicar quanto à matéria ora em causa.
Mesmo que assim se não entendesse, temos essa diligência por completamente inútil porquanto “a validade formal do contrato de arrendamento não está dependente da respectiva participação fiscal” [ [2] ].
Noutra sede, quanto a apurar da existência desse acordo de vontades – ou seja, averiguar se o insolvente quis efectivamente arrendar nos termos documentados e o autor quis tomar de arrendamento nos mesmos termos, para quem entenda ser essa uma das questões a apreciar nos autos, e não é, como adiante melhor se verá [ [3] ] – igualmente tal averiguação é impertinente.
É que o insolvente pode apresentar na Repartição de Finanças os documentos que entender e/ou declarar o que julgar conveniente que daí não decorre que o contrato e a declaração correspondam à realidade, ou seja, que o insolvente tenha efectivamente celebrado o negócio que declarou celebrar, podendo até acrescentar-se que sempre o poderia fazer nem que mais não fosse para, em acção judicial como a presente ou similar, que não podia deixar de se afigurar previsível pelo menos para o insolvente, poder exactamente avançar com o argumento que o apelante ora parece pretender esgrimir, isto é, tanto o negócio foi feito que até às Finanças foi participado…
Improcede a nulidade reclamada.

3. O apelante impugna o julgamento feito pela 1ª instância quanto à matéria de facto, pretendendo que se dê como provado que:
. No momento da assinatura do documento supra referido o autor entregou ao proprietário do imóvel, JM, o montante total de €18.000,00 (dezoito mil euros), para pagamento antecipado de 36 meses de renda;
. O autor arrendou parte da moradia em causa nos autos para estar com o filho quando o vem visitar.
Factos estes que, com os números 1 e 3, respectivamente, a primeira instância deu como não provados.
Pretende, ainda, que se dê como não provada a factualidade que o tribunal deu como assente sob o número 14 dos factos provados, supra enunciados.
São conhecidas as posições que se foram formando a nível jurisprudencial a propósito do modo como a Relação deve exercer os seus poderes/deveres em matéria de reapreciação da prova produzida em 1ª instância [ [4] ]. Independentemente de se optar por uma posição mais restritiva [ [5] ] ou mais abrangente [ [6] ], é inultrapassável a orientação definida, neste último sentido, em inúmeros arestos dos STJ, sendo que se trata de uma jurisprudência qualificada e de valor reforçado – art. 8º, nº3 do Cód. Civil – não olvidando, agora, com o novo Código de Processo Civil, a opção tomada pelo legislador e consagrada no art. 662º, que aponta para o claro reforço dos poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto impugnada – cfr. a “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII [ [7] ].
Acrescente-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem sido particularmente exigente quanto aos termos em que essa reapreciação das provas deve ser feita pelo Tribunal da Relação, acentuando que a mesma “não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto” [ [8]  ].
Assim sendo, tendo-se procedido à gravação da prova produzida em audiência de julgamento e porque o apelante deu cumprimento ao disposto no art. 640º do C.P.C., não se limitando a uma impugnação genérica e global, sustentada em mera afirmação de discordância, nada obsta ao conhecimento do recurso, quanto a esta matéria.
Vejamos, então, se esta Relação pode confirmar a avaliação feita pelo Sr. Juiz.
                                                        *  
Ouvidos integralmente os depoimentos prestados pelas testemunhas a que o apelante alude, temos de concluir que as mesmas nada sabiam quanto ao contrato de arrendamento invocado pelo apelante na petição inicial. Mais precisamente, nem a testemunha AV nem a testemunha LJ aludiram aos aspectos relacionados com o negócio: quando é que o contrato foi feito, o que foi concretamente acordado entre as partes, preço da renda…
A esse propósito as testemunhas limitaram-se, rigorosamente, a indicar que:
(…)
Assim sendo, e considerando que não foi feita qualquer prova do pagamento da quantia de 18.000,00€ referida na cláusula 3ª, número 2, do documento de fls. 23-26, temos por absolutamente evidente que, ao contrário do que refere o apelante, nunca a primeira instância podia dar como assente que o autor e o insolvente celebraram o acordo aludido e que essa quantia foi paga.
O que pode ter-se como assente é, tão-somente, o que se deu como provado, e que se reconduz, basicamente, à subscrição do documento cuja cópia foi junta a fls. 23-26 dos autos, pelo insolvente e pelo autor, uma vez que a ré não impugnou a genuinidade das assinaturas.
Alude o apelante ao recibo de quitação que constitui o próprio documento que titula o invocado contrato. Trata-se de raciocínio vicioso, porquanto se a ré impugnou o contrato, indicando que se trata de negócio simulado, é óbvio que a prova do pagamento da renda não pode ter por base… o documento que titula o contrato impugnado. Parece razoavelmente evidente que terá sido com esse sentido que o tribunal recorrido referiu que o autor não apresentou “qualquer recibo relativo às rendas a que tal quantia se destinaria”. A verdade é que não há qualquer rasto desse pagamento – o apelante explica nas alegações de recurso que, vivendo em Espanha, “optou por fazer o pagamento em dinheiro, evitando assim custos de transferência”.
Quanto à referência que a primeira instância faz aos contactos entre o insolvente e o banco (credor hipotecário) compreende-se perfeitamente a mesma, não podendo deixar de se estranhar que a mesma pessoa que supostamente celebrou, em 1 de Março de 2011, um contrato de arrendamento de parte de um imóvel que é seu, por 10 anos, faça ao banco credor hipotecário desse imóvel as propostas de resolução do litígio que constam:
- de fls. 54 a 56, formulada em 14 de Abril de 2011, em que refere como uma das hipótese possíveis a “alienação imediata do imóvel a um dos V/ fundos de investimento especializado nesta área por um valor de mercado que iremos acordar. Nesta situação comprometo-me a abandonar a habitação no imediato para que o fundo lhe possa dar o destino que entender” (sic);
- de fls. 57 e 58, formulada em 10 de Maio de 2011, em que alude ao “ónus da habitação” consubstanciado na “Penhora da habitação a favor das Finanças de Oeiras”;
Daí resultando, pelos vistos, que o insolvente se terá esquecido do encargo que resultaria do suposto arrendamento celebrado pouco mais de um mês antes.
Quanto à factualidade dada por provada e supra enunciada sob o número 14, a mesma mostra-se inteiramente suportada pela prova pericial produzida, salientando-se ainda os esclarecimentos prestados pelo perito em julgamento, quanto ao potencial valor do arrendamento com a moradia desocupada – 3.000,00€ –, e ao valor com o encargo do invocado arrendamento; Quanto confrontado com a circunstância de, no processo, estar em causa averiguar da existência de um contrato de arrendamento o perito respondeu “isso aí eu não sei”. As considerações feitas a esse propósito pelo apelante não têm sentido porquanto não está obviamente em causa o arrendamento de “dois quartos”, como refere o apelante, considerando as características do imóvel em causa e que o relatório pericial documenta. Aliás, “os dois quartos” referenciados pelo apelante e pelos quais este alegadamente paga uma renda de 500,00€ mensais são, nos termos descritos no documento, dois quartos com casa de banho no 1º piso de uma moradia, “com serventia” de “cozinha, casa de banho social, sala, piscina e com um lugar de garagem, incluindo o consumo de água, gás e electricidade”, pelo prazo de 10 anos. Donde, mesmo que nos abstraíssemos da prova pericial produzida, tenderíamos a considerar precisamente o contrário do que o apelante refere, ou seja, o valor de arrendamento aludido (500,00€) fica muito aquém dos valores de mercado, reconhecendo-se no entanto a singularidade do caso, porquanto diz-nos a experiência que é pouco usual o arrendamento de dois quartos de uma moradia, com a aludida “serventia” pelo prazo de 10 anos, acentuando-se a peculiaridade quando as partes alegadamente acordam no pagamento imediato de 36 meses de renda, pagamento feito, assinale-se, segundo o apelante, em dinheiro.
Tudo em ordem a concluir, sem necessidade de outras considerações, que é inteiramente correcta a avaliação feita pela primeira instância.

4. Não se alterando o juízo valorativo quanto à matéria de facto, mesmo sem a prova dos factos invocados pelo apelante e supra aludidos, ainda assim ficamos com a aparência de um contrato de arrendamento que, nos termos e contexto que resulta dos autos, foi resolvido pelo Sr. Administrador. O Sr. Administrador terá, pois, dado de barato a outorga do contrato.
Neste ponto impõe-se assinalar a incongruência da posição da ré na contestação.
O Sr. Administrador, que representa a massa insolente, fez operar a resolução de contrato de arrendamento em que o insolvente é locador com recurso ao mecanismo de resolução em benefício da massa insolvente a que aludem os arts. 120º a 123º do CIRE – no caso foi invocado o disposto nos arts. 120º e 121º, nº1, alínea h), aludindo-se, nomeadamente, à má fé dos “intervenientes nos arrendamentos” –, comportamento que pressupõe a aceitação de que o contrato foi celebrado e é válido.
Se o Sr. Administrador entendia que o contrato de arrendamento foi simulado (simulação absoluta), então impunha-se a instauração da acção com vista à anulação do mesmo.
Não o tendo feito e optando por exercer a faculdade de resolução, não pode agora, validamente, invocar em defesa da ré a simulação desse contrato – cfr. os arts. 7º e 8º da contestação – pois está a exercer uma posição jurídica em contradição com comportamento anteriormente assumido (venire contra factum proprium). Acrescente-se que nem sequer estão provados factos que permitam concluir pela invocada simulação.
Ou seja, ao contrário do que parecem entender as partes, afigura-se-nos que o cerne da questão a decidir não reside na averiguação da existência do negócio; reconduz-se, essencialmente, à averiguação sobre os requisitos legais de resolução em benefício da massa.
Posto isto, assentamos que tendo o insolvente e o autor subscrito o documento em causa, estão preenchidos os elementos típicos de um contrato misto de arrendamento para habitação e hospedagem, verificando-se, de forma evidente, os requisitos a que alude o art. 121º, nº1, alínea h) do CIRE, como a primeira instância entendeu, sendo por isso válida a resolução atempadamente efectuada pelo Sr. Administrador.
Efectivamente, ponderando a factualidade dada por assente, nomeadamente sob os números 12 a 14, afigura-se-nos existir uma clara desproporção entre as obrigações assumidas pelo locador, ao facultar o direito de uso dos espaços em causa, no condicionalismo descrito no documento que titula o contrato, por um período tão longo como o que foi fixado – 10 anos – ao valor/preço por que o foi (500,00€ quando o valor locativo desses espaços seria de 1.200,00€) e as obrigações do autor locatário, mesmo considerando o invocado pagamento imediato dos 36 meses de renda.
Saliente-se que nos estamos a abstrair da circunstância do encargo aludido dificultar obviamente a transacção do imóvel para satisfação dos interesses dos credores, não podendo deixar de assinalar-se que, na missiva que o insolvente dirigiu ao credor hipotecário em Abril de 2011, o insolvente referia ter sido feita uma “avaliação independente” que atribuiu ao imóvel o valor de “1.610 milhões de euros”, um valor muito superior àquele que consta do número 12 dos factos provados, uma vez que não se apuraram factos consubstanciadores da má fé do autor (art. 120º do CIRE) – o que não permite inferir o contrário, ou seja, que o autor agiu de boa fé.
Conclui-se, pois, que a resolução do contrato é válida e eficaz, improcedendo a pretensão do autor.

5. Quanto à reconvenção, entende o apelante que a “reconstituição da situação que existiria acaso o acto não tivesse sido praticado poderá passar pela entrega da parte da casa que arrendou à massa insolvente mas nunca pelo pagamento de uma indemnização”, tanto mais que agiu com boa fé, pelo que ao abrigo do disposto no art. 126º do CIRE não tem que pagar qualquer indemnização, avançando-se já que não colhe a invocação alusiva à boa fé que, como já se referiu, não está provada.
Como decorre da sentença, a primeira instância considerou o pedido reconvencional parcialmente procedente, condenando o autor ao pagamento de indemnização de valor inferior ao que a ré havia peticionado porquanto ponderou um valor locativo inferior ao pretendido.
Os efeitos da declaração resolutiva estão expressamente consignados no art. 126º, nº 1 do CIRE: a resolução tem efeitos retroactivos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se o acto a resolver não tivesse sido praticado, o que nos remete para o regime geral que decorre do art. 434º do Cód. Civil, sem prejuízo das especificidades dos números 3 a 6 do mesmo preceito (art. 126º). Sendo o contrato de execução continuada (como o arrendamento), a resolução não abrange as prestações já efectuadas (art. 434º, nº2 do Cód. Civil).
 Consequentemente, como decidiu o tribunal a quo, deve o autor restituir o locado à ré, nessa parte procedendo a reconvenção – a ré peticiona o “despejo” do prédio, efeito que, em substância, equivale à restituição.
A questão que se coloca é aferir dos termos da pretendida indemnização, que não decorre, qua tale, do citado preceito.
A resolução do contrato é uma declaração receptícia pelo que se torna eficaz assim que chega ao seu destinatário e dele é conhecida – art. 224º, nº1 do Cód. Civil. Tendo o autor recebido a declaração (escrita) de resolução em 05/12/2011 – cfr. o número 8 dos factos assentes –, não tem fundamento a pretendida condenação no pagamento de indemnização pela ocupação desde 1 de Março de 2011 – data em que o autor e o insolvente subscreveram o documento a que aludem os números 1 a 4 dos factos – porquanto não há elementos para considerar essa ocupação como abusiva.
Assim, só com a recepção da declaração de resolução, validamente efectuada, ficou o autor obrigado à restituição, com a consequente ilicitude da ocupação, verificando-se os pressupostos da obrigação de indemnização (arts. 483º, 562º, 563º, 564º e 564º, nº1 e 2 do Cód. Civil).
Nessa parte, impõe-se, pois, restringir o valor indemnizatório fixado na decisão, de forma a condenar o autor no pagamento à ré da quantia indemnizatória de 1.200,00€ mensais desde 5 de Dezembro de 2011 até à efectiva entrega do imóvel, na parte ocupada pelo autor – e não desde 1 de Março, como havia decidido a primeira instância.
Procede, pois, em parte, a apelação, ainda que por fundamentos diferentes dos indicados pelo apelante.
Conclusões:
1. Omitindo – se a pronúncia sobre diligência probatória requerida na petição inicial – ofício a expedir à Repartição de Finanças para que informe se o contrato de arrendamento foi registado e em que data – é extemporânea a arguição dessa irregularidade apenas em sede de recurso, aquando da apelação interposta da sentença, se o autor teve intervenção ao longo do processo, estando inclusive presente aquando da realização da audiência de julgamento (art. 205º, nº1 do C.P.C.).
2. Optando o Administrador de insolvência por fazer operar a resolução de contrato de arrendamento em que o insolvente é locador com recurso ao mecanismo de resolução em benefício da massa insolvente a que aludem os arts. 120º e 121º, nº1, alínea h) do CIRE, não pode posteriormente, em acção instaurada pelo pretenso locatário com vista à impugnação da resolução, invocar em defesa da ré a simulação desse contrato, pois está a exercer uma posição jurídica em contradição com comportamento anteriormente assumido (venire contra factum proprium).
3. Com a recepção da declaração de resolução, validamente efectuada, o locatário fica obrigado à restituição da coisa, sendo ilícita a ocupação a partir desse momento e constituindo-se o locatário na obrigação de indemnizar a massa insolvente desde que verificados os demais pressupostos (arts. 483º, 562º, 563º, 564º e 564º, nº1 e 2 do Cód. Civil).
                                                        *
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, pelo que, revogando em parte a sentença recorrida, decide-se julgar parcialmente procedente a reconvenção e, consequentemente, julgando validamente resolvido o contrato a favor da massa insolvente, condena-se o autor a restituir a parte do imóvel que ocupa e utiliza e a pagar à ré a indemnização de 1.200,00€ mensais, desde 5/12/2011 até à efectiva entrega da mesma à massa insolvente, na pessoa do Sr. Administrador da Insolvência.
No mais se mantendo a decisão.
Custas pelo apelante, na proporção do decaimento.
Notifique.
Lisboa, 25 de Março de 2014

Isabel Fonseca
                                       
Maria Adelaide Domingos

Eurico José Marques dos Reis

[1] Aprovado pela Lei 41/2013 de 26/06, em vigor desde 1 de Setembro de 2013.

[2] Ac. RC de 09/10/2012 proferido no processo 1734/10.7TBFIG (Relatora: Albertina Pedroso), acessível in www.dgsi.pt.
[3] O apelante invoca que celebrou com o insolvente o contrato de arrendamento consubstanciado no escrito que assinou, a massa insolvente contrapõe que esse contrato é simulado.
[4] É sempre disso que se trata, isto é, o recurso é de reponderação e não de reexame, pelo que só pode ter por base elementos de prova produzidos no tribunal de 1ª instância. 
[5] No sentido de que o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador.

[6] No sentido de que o legislador quis consagrar um efectivo e verdadeiro 2º grau de jurisdição na apreciação da decisão proferida quanto à matéria de facto, não estando a Relação tolhida na procura da sua própria convicção relativamente aos elementos de prova produzidos no processo, ainda que exercendo os poderes de sindicância com especial cautela, pela ausência de imediação.       

[7] Pode ler-se na exposição de motivos:
“No domínio dos recursos, entendeu-se que a recente intervenção legislativa, operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, desaconselhava uma remodelação do quadro legal instituído.
Ainda assim, cuidou-se de reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios - que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória -, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material.
Com efeito, se os elementos constantes do processo, incluindo a gravação da prova produzida na audiência final, não forem suficientes para a Relação formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados, tem a possibilidade, mesmo oficiosamente, de ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento e de ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.

[8] Ac. STJ de 27/11/2012, proferido no processo 752/2001.G1.S1 (Relator: Marques Pereira), acessível in www.dgsi.pt, acrescentando-se, por referência a outra jurisprudência aí citada, que se impõe que “a Relação analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser devidamente fundamentada”. 

Decisão Texto Integral: