Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
25340/16.3T8LSB.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: RENDAS
ACTUALIZAÇÃO
CORRECÇÃO EXTRAORDINÁRIA
TRANSIÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: – A Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, veio introduzir profundas alterações em matéria de correcção extraordinária das rendas nos contratos mais antigos, celebrados antes da vigência do RAU, por iniciativa do senhorio, mostrando-se esta matéria regulada, quanto aos arrendamentos para fins não habitacionais nos artigos 50º a 54º do NRAU.

Cabe ao senhorio desencadear o procedimento de actualização da renda e transição para o NRAU, mediante comunicação ao arrendatário da sua intenção; em tal comunicação o senhorio deve indicar o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos, o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do CIMI, constante da caderneta predial urbana e cópia dessa mesma caderneta predial – alíneas a), b) e c) do artigo 50º da Lei nº 6/2006, na redacção introduzida pela Lei nº 31/2012.

– Na resposta, se for caso disso, o arrendatário deve ainda, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 54º, invocar uma das seguintes circunstâncias:
(a)- (…).
b)- Que tem a sua sede no locado uma associação privada sem fins lucrativos, regularmente constituída, que se dedica à actividade cultural, recreativa ou desportiva não profissional, e declarada de interesse público ou de interesse nacional ou municipal.

– Os requisitos previstos na alª b) do nº 4 do artigo 51º são de verificação cumulativa e a falta da comprovação de um dos requisitos afasta a possibilidade da ré se opor com tal fundamento à transição do contrato para o NRAU.

(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


Imoef – Sociedade Imobiliária, S.A. intentou acção declarativa, sob a forma comum, contra Vendedores de Jornais Futebol Clube, pedindo, que se:

A)– Declare e reconheça o direito da autora à renda actualizada e condenar a ré ao pagamento da renda mensal actualizada para o montante de 1.000,00 euros com efeitos desde a renda de Abril de 2014 ou da data que o tribunal determinar exigível.
B)– Declare e reconheça a licitude da resolução do contrato de arrendamento e a extinção do contrato de arrendamento por mora e falta de pagamento pela ré de mais de duas rendas;
C)– Declare e reconheça a licitude da resolução do contrato de arrendamento por mora superior a oito dias no pagamento da renda por mais de quatro vezes seguidas num período de doze meses;
D)– Condene a ré ao pagamento das rendas vencidas de Abril, Maio e Junho de 2014, no valor de 3.000,00 euros;
E)– Condene a ré ao pagamento à autora das rendas ou de uma indemnização por danos patrimoniais pela ocupação do prédio, nunca inferior a 1.000,00 euros por cada mês de duração da ocupação ilícita do prédio pela ré desde Julho de 2014 até efectiva entrega do prédio e que, na presente data se calcula no montante global de 27.000,00 euros.
Subsidiariamente
F)– Reconhecer a resolução do contrato por violação do objecto e do fim a que o imóvel se destina.
Alternativamente
G)– Reconhecer a licitude da oposição à renovação do contrato de arrendamento e o término do contrato de arrendamento no último dia do mês de Janeiro de 2018 ou subsidiariamente na data de término da renovação em curso que o tribunal apurar e determinar;
Cumulativamente
H)– Se condene a ré a promover a desocupação do locado no prazo de um mês e subsequente imediata restituição do locado à autora, livre de pessoas e bens.

Em síntese, alegou ter sido celebrado com a ré contrato de arrendamento para fins habitacionais em 30.11.1953, com início em 1 de Janeiro de 1954. A ré vem dando ao locado um uso diferente, uso que a autora não aceita nem autorizou. Tendo o contrato sido celebrado antes da entrada em vigor do DL nº 257/95 de 30-09 a autora comunicou à ré a sua intenção de que tal contrato transite para o NRAU. A ré opôs-se com fundamento na sua condição de instituição sem fins lucrativos, juntando cópia dos seus estatutos. Considerando a autora que o alegado não constituía fundamento válido para a oposição comunicou à ré que o contrato transitou para o NRAU, o que a ré não aceitou, nem a actualização da renda. A ré não pagou nunca a renda actualizada, continuando a pagar a renda anterior o que determinou a autora à resolução do contrato que efectivou mediante notificação judicial avulsa. Após este momento a ré ano reconheceu a licitude da resolução e continuou a pagar apenas a anterior renda.

Contestou a ré excepcionados a ineptidão da petição inicial e a caducidade do direito da autora, pois a acção de despejo foi intentada em 19.10.2016, passados dois anos sobre a notificação judicial avulsa requerida pela autora. O uso que dá ao arrendado é do conhecimento da autora, que se trata de uma associação privada sem fins lucrativos regularmente constituída, que se dedica à actividade cultural, recreativa ou desportiva e, como tal, o contrato em causa não pode transitar para o NRAU. A resolução do contrato não operou, pois fundamentou-se no não pagamento de rendas que não são devidas.
Pugna pela improcedência da acção.

Respondeu a autora às invocadas excepções, referindo, para o que interessa, que não se verifica a caducidade do direito, porquanto nesta acção apenas se pede se reconheça a licitude do exercício do direito de resolução e não se pretende resolver o contrato pois tal aconteceu com a notificação judicial avulsa e essa foi efectuada em tempo.
Termina como na petição inicial.

Foi proferida SENTENÇA que decidiu nos seguintes termos:
“a) Julgar validamente resolvido o contrato de arrendamento referido nos autos celebrado entre as partes;
b) Condenar a ré a pagar à autora as rendas vencidas de Abril, Maio e Junho no montante de 3.000,00 euros e as vincendas, no valor mensal de 1.000,00, até efectiva entrega do locado;
c) Condenar a ré a entregar o locado à autora, livre e devoluto de pessoas e bens;
Mais se decide que a quantia a pagar pela ré à autora nos termos referidos em b) há que deduzir os montantes entretanto pagos a título de renda pela ré”.

Não se conformando com a douta sentença, dela recorreu a ré, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª– O presente recurso é interposto tanto da matéria de facto como da matéria de direito.
2ª– A autora há longos anos que pretende rescindir e tomar posse do imóvel de que esta associação é arrendatária, sendo esta uma agremiação com forte implantação no Bairro da Madragoa e fulcral no associativismo e bairrismo que caracterizam tal bairro.
3ª– A IMOEF bem sabia todos os ónus que incidiam sobre o imóvel, sendo que, pretendeu resolver o contrato, ao que a ré se opôs.
4ª– Igualmente a ré excepcionou, considerando a petição inicial inepta e bem assim a caducidade do direito da autora.
5ª– Na verdade, e quanto a esta última considera a ré que nos termos do artigo 1085° do Código Civil, a autora tinha o prazo de um ano para interpor a acção, o que não fez, pelo que, caducou o direito a interpor a referida acção, atento a que a notificação judicial avulsa é de Maio de 2014, a ré foi notificada a 18 de Junho do mesmo ano e a acção foi interposta a 17 de Outubro de 2016.
6ª– A douta sentença deu como provada a seguinte matéria de facto: (a apelante reproduz integralmente a matéria de facto constante das alíneas da sentença).
7ª– Ao não considerar a referida excepção violou o tribunal "a quo" o artigo 1085° do Código Civil.
8ª– Igualmente se consideram violados os artigos 333° e 334° ambos do Código Civil.
9ª– A este respeito veja-se com as necessárias adaptações o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. 629/09.1TBTNV.C1 de 14/02/2012.
10ª– Igualmente a douta sentença refere que não pode operar o artigo 51° nº 4 alª b) do NRAU e ao fazê-lo considera provada e aceita a resolução do respectivo contrato.
11ª– Porém, a ré é uma associação sem fins lucrativos desde 1965, conforme se documentou nos autos de que ora se recorre com a junção do Diário do Governo, III Série, nº 84, de 9 de Abril de 1965, o qual foi aprovado por despacho do Subsecretário de Estado da Juventude e Desportos de 25 de Março de 1965.
12ª– Em 1965 não havia legislação para atribuição da utilidade pública e a mesma, salvo o devido respeito e melhor opinião, era feita quando as associações sem fins lucrativos submetiam à aprovação os seus estatutos. E tal aprovação era feita pelo membro do Governo competente, o que aconteceu no caso da recorrente.
13ª– Recorde-se que é convicção da recorrente de que a aprovação por membro do governo dos estatutos de uma associação sem fins lucrativos equivale de forma clara e inequívoca à aceitação por tal membro de governo da utilidade pública que a mesma tinha e tem muito mais em momento que não havia lei específica para atribuição da utilidade pública, ou da utilidade nacional ou municipal.
14ª– Ao decidir o tribunal "a quo" que a associação Vendedores de Jornais Futebol Clube, não se inclui no estatuído no artigo 51° da Lei 6/2006 com as actualizações e alterações introduzidas pelas Leis 31/2012, 79/2014 e 42017, violou o espírito e o alcance que o legislador pretendeu na respectiva norma.
Termina, pedindo que deve o presente recurso proceder, na sua totalidade, com as legais consequências.

A parte contrária contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO.

A)–Fundamentação de facto.
A sentença considerou assentes os seguintes factos:

A)– A autora é proprietária do prédio urbano sito na Rua T..., número ..., 1200- 000 Lisboa, da freguesia de Santos-O-Velho, cidade e Concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número de ficha 670, descrição em Livro 3823, Livro 11, e inscrito da matriz predial urbana sob o artigo 682.
B)– O prédio destina-se a habitação.
C)– Por contrato, datado de trinta de Novembro de mil novecentos e cinquenta e três, com início no dia um de Janeiro de mil novecentos e cinquenta e quatro e término no último dia do mês de Janeiro de mil novecentos e cinquenta e quatro, pela renda mensal de 650 (seiscentos e cinquenta escudos), entretanto actualizada para € 3,74 (três euros e setenta e quatro cêntimos), o prédio foi locado à ré.
C)– O referido contrato de arrendamento foi celebrado para fins habitacionais, sendo que “A casa é arrendada, somente para HABITAÇÃO do inquilino, não podendo este dar-lhe uso diferente, nem sublocá-la total ou parcialmente, sem autorização do senhorio dada por escrito e reconhecida por notário”.
D)– “O arrendamento é pelo prazo de um mês, que começa no dia um de Janeiro de 1954 (cinquenta e quatro) e termina no último dia do mês de Janeiro de 1954 (cinquenta e quatro), mas supor-se-á sucessivamente renovado nas mesmas condições e por igual período, nos termos da lei.”
E)– A ré é uma instituição sem fins lucrativos.
F)– A ré tem vindo a utilizar o locado para fins distintos dos fins habitacionais, nomeadamente para actividades relacionadas com a realização do seu objecto social.
G)– A autora através de carta registada, com aviso de recepção, datada de 09.01.2014 comunicou à ré o seguinte:
 “a)- Ser nossa intenção que o contrato acima identificado transite para o regime do NRAU; b) Propor-lhes que o contrato acima identificado passe a ser por prazo certo, com a duração de 2 (dois) anos; c) Propor-lhes que o valor da renda mensal passe para € 1.000,00 (mil euros) mensais; d) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da respectiva caderneta predial, cuja cópia se anexa, é de € 227.290,00 (duzentos e vinte e sete mil, duzentos e noventa euros).”
H)– Na sequência da recepção da comunicação referida na alínea antecedente, veio a ré, por carta registada, com aviso de recepção, datada de 10.02.2014, manifestar a sua oposição à comunicação da autora com fundamento na sua condição de instituição sem fins lucrativos, tudo como melhor consta do documento junto a fls. 16 e cujo teor se dá por reproduzido.
I)– Embora a ré possa ser uma instituição sem fins lucrativos, não foi a referida instituição objecto de qualquer declaração de interesse público, nacional ou municipal.
J)– A autora em face da comunicação referida em H) comunicou à ré, por carta datada de 10 de Março de 2014, que o contrato de arrendamento transitou para o regime do NRAU, passando a vigorar por prazo certo, com a duração de 2 (dois) anos e com uma renda mensal de € 1.000,00 (mil euros), com produção de efeitos desde a data desta última comunicação, tudo como melhor consta do documento junto a fls. 22 e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
L)– A esta comunicação respondeu a ré por carta de 16-04-2014 cuja cópia se mostra junta a fls. 23 verso e 24 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
M)– A ré nunca procedeu ao pagamento da renda actualizada continuando sempre a pagar a quantia de 3,74 euros.

N)– Sendo que, desde Março de 2014 até Outubro de 2016, a ré efectuou apenas o pagamento do montante global de € 112,20 (cento e doze euros e vinte cêntimos), correspondente a 30 (trinta) vezes o montante de € 3,74 (três euros e setenta e quatro cêntimos).
O)– No dia 29 de Maio de 2014, a autora requereu a notificação judicial avulsa da ré, tendo em vista:
(i)- a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento das referidas rendas;
(ii)- a entrega do locado; e            
(iii)- o pagamento dos montantes das rendas vencidas e não pagas que, à data, totalizavam a quantia de € 2.988,78 (dois mil, novecentos e oitenta e oito euros e setenta e oito cêntimos); e, bem assim,
(iv)- o pagamento dos montantes vincendos até efectiva entrega do locado.

P)– A ré foi notificada a 18 de Junho de 2014.
Q)– A ré não promoveu consecutivamente o pagamento tempestivo das rendas actualizadas desde Abril de 2014 até Outubro de 2016.

B)–Fundamentação de direito.

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º nº 4 do CPC é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, as questões que importa decidir são as seguintes:
- Caducidade do direito de resolução;
- Abuso de direito;
- A aplicação do NRAU e a resolução do contrato.

CADUCIDADE DO DIREITO DE RESOLUÇÃO.

Considera a ré, ora apelante que, nos termos do artigo 1085° do Código Civil, a autora tinha o prazo de um ano para interpor a acção, o que não fez, pelo que, caducou o direito a interpor a referida acção, atento a que a notificação judicial avulsa é de Maio de 2014, a ré foi notificada a 18 de Junho do mesmo ano e a acção foi interposta a 17 de Outubro de 2016.

A douta sentença julgou improcedente a invocada excepção peremptória da caducidade do direito da autora.

Cumpre decidir.

Está provado que:
“ No dia 29 de Maio de 2014, a autora requereu a notificação judicial avulsa da ré, tendo em vista:
(i)- a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento das referidas rendas;
(ii)- a entrega do locado; e            
(iii)- o pagamento dos montantes das rendas vencidas e não pagas que, à data, totalizavam a quantia de € 2.988,78 (dois mil, novecentos e oitenta e oito euros e setenta e oito cêntimos); e, bem assim,
(iv)- o pagamento dos montantes vincendos até efectiva entrega do locado” – (Alínea O) – doc fls 51 a 54.

“ A ré foi notificada a 18 de Junho de 2014” – (Alínea P) – doc fls 50.
“A ré não promoveu consecutivamente o pagamento tempestivo das rendas actualizadas desde Abril de 2014 até Outubro de 2016” – (Alínea Q).

Preceitua o art. 1083º do C. Civil que:
“1.– Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.
2.– É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio:
(…)
3.– É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a dois meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte.
4.– É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte.
5.– (…).”.

O artigo 1085º do Código Civil (Caducidade do direito de resolução), preceitua no seu nº 3 que “ quando se trate de facto continuado ou duradouro, o prazo não se completa antes de decorrido um ano da sua cessação”.

Efectivamente, a falta de pagamento da renda é um facto continuado, pelo que não faz sentido que o senhorio perca o direito de resolver o contrato enquanto essa falta de pagamento não for sanada.

Cada uma das rendas vencidas tem autonomia para a contagem do prazo de caducidade, pelo que em relação a cada uma delas se aplica o disposto no artigo 1085º nº 1 do Código Civil.

Finalmente, utilizando o douto argumento da sentença recorrida: “No caso dos autos a notificação judicial avulsa é requerida em 29 de Maio de 2014 e efectivada em 18 de Junho de 2014, quando não estavam decorridos três meses sobre a mora de qualquer das rendas. Não estava, pois, caducado o direito da autora à data da notificação judicial avulsa e, por isso, temos de considerar o contrato validamente resolvido nessa data (com fundamento nas rendas vencidas no pressuposto de que eram devidas naquele montante). O facto de a autora vir posteriormente propor a presente acção para que se reconheça judicialmente a licitude do exercício do directo de resolução nada tem que ver com a caducidade do direito que já foi exercido”.

Por isso, entendemos que foi decidido com acerto julgar improcedente a invocada excepção peremptória da caducidade do direito da autora.

ABUSO DE DIREITO.

No artigo 28º das alegações, com expressão na conclusão 8ª, há uma singela alusão à figura do abuso do direito por parte da autora nos seguintes termos: “ E inclusive poder-se-á também ver que tal situação leva à constatação que a autora teve aqui uma actuação que viola o artigo 334º do CC, ou seja, há da parte da autora e com a sua actuação um claro abuso de direito”.

O artigo 334º do Código Civil, a propósito do abuso do direito, preceitua o seguinte: “ É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

“I– Para o abuso do direito não há uma sanção uniforme: a sanção assume cores e tonalidades diferentes de harmonia com o modo funcional como o abuso se expressa; o que vale por dizer que aquele tanto se pode reconduzir a uma nulidade negocial, como a um facto gerador de responsabilidade civil por danos provocados, como ainda à própria neutralização do direito que se esvazia na sua eficácia típica como se não existisse.
II– Mau grado a concepção objectiva do abuso do direito, impressa no art.º 334 do CC, casos há em que a componente subjectiva é indissociável do excesso dos limites que conduz ao abuso.
III– No venire contra factum proprium o que há é um dano de confiança provocado pelo facto de o titular do direito desdizer o que antes havia garantido[1]”.

O venire contra factum proprium, traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, comportamento esse que tenha imprimido confiança aos sujeitos envolvidos os quais orientaram sua actividade na crença daquele factum, gerando assim uma situação que só pode ser imputada ao autor do factum.

No caso dos autos nada se mostrou provado, pelo que improcede a respectiva conclusão

A APLICAÇÃO DO NRAU E A RESOLUÇÃO DO CONTRATO.

Argumenta a apelante que não deveria ter ocorrido a transição do contrato para o NRAU e ainda que a ré é uma associação prevista no nº 4 alª b) do artigo 51º do NRAU, aplicável ao caso dos autos, pelo que o contrato não pode ser resolvido.

Cumpre decidir.

A Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, procedeu à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano, alterando o Código Civil, o Código de Processo Civil e a Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.

No seu artigo 1º (Objecto), preceitua o seguinte:
“A presente lei aprova medidas destinadas a dinamizar o mercado de arrendamento urbano, nomeadamente:
a)- Alterando o regime substantivo da locação, designadamente conferindo maior liberdade às partes na estipulação das regras relativas à duração dos contratos de arrendamento;
b)- Alterando o regime transitório dos contratos de arrendamento celebrados antes da entrada em vigor da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, reforçando a negociação entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos para o novo regime, num curto espaço de tempo;
c)- Criando um procedimento especial de despejo do local arrendado que permita a célere recolocação daquele no mercado de arrendamento.

Aquela Lei teve origem na Proposta de Lei do Governo nº 38/XII, em cuja “exposição de motivos”, se refere, nomeadamente:
“ (…) A reforma do regime do arrendamento urbano que agora se propõe procura encontrar soluções simples, assentes em quatro dimensões essenciais;
(i)- alteração ao regime substantivo, vertido no Código Civil;
(ii)- revisão do sistema de transição dos contratos antigos para o novo regime,
(iii)- agilização do procedimento de despejo e,
(iv)- melhoria do enquadramento fiscal.
(…)
No que respeita ao regime processual, reconhece-se a necessidade e a premência de reforçar os mecanismos que garantam aos senhorios meios para reagir perante o incumprimento do contrato (…) Esta medida, concretizada mediante a agilização do procedimento de despejo, é fundamental para recuperar a confiança dos proprietários (…)”[2].

“A Lei nº 31/2012 veio alterar significativamente o regime transitório, dando maior acolhimento aos interesses do senhorio em matéria de aumentos de rendas desactualizadas e de extinção dos contratos mais antigos, sem, todavia, desproteger de imediato os arrendatários mais idosos ou economicamente mais débeis”[3].

A Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, veio introduzir profundas alterações em matéria de correcção extraordinária das rendas nos contratos mais antigos, celebrados antes da vigência do RAU, por iniciativa do senhorio, mostrando-se esta matéria regulada, quanto aos arrendamentos para fins não habitacionais nos artigos 50º a 54º do NRAU.

Cabe ao senhorio desencadear o procedimento de actualização da renda e transição para o NRAU, mediante comunicação ao arrendatário da sua intenção; em tal comunicação o senhorio deve indicar o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos, o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do CIMI, constante da caderneta predial urbana e cópia dessa mesma caderneta predial – alíneas a), b) e c) do artigo 50º da Lei nº 6/2006, na redacção introduzida pela Lei nº 31/2012.

Perante esta comunicação o arrendatário, na sua resposta, pode:
a)- Aceitar o valor da renda proposta pelo senhorio;
b)- Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 52º;
c)- Em qualquer dos casos previstos nas alíneas anteriores, pronunciar-se quanto ao tipo ou à duração do contrato propostos pelo senhorio;
d)- Denunciando o contrato de arrendamento nos termos e para os efeitos previstos no artigo 53º - (nº 3, alíneas a), b), c) e d) do artigo 51º da Lei nº 6/2006, na redacção introduzida pela Lei nº 31/2012).

Nessa resposta, se for caso disso, o arrendatário deve ainda, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 54º, invocar uma das seguintes circunstâncias:
a)- Que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microentidade;
b)- Que tem a sua sede no locado uma associação privada sem fins lucrativos, regularmente constituída, que se dedica à actividade cultural, recreativa ou desportiva não profissional, e declarada de interesse público ou de interesse nacional ou municipal;
c)- (…)  - nº 4 do artigo 51º
O nº 6 desse artigo prescreve que o arrendatário que invoque uma das circunstâncias previstas no nº 4 faz acompanhar a sua resposta de documento comprovativo da mesma, sob pena de não poder prevalecer-se da referida circunstância (nºs 4 e 6 do citado artigo 51º).

Se o arrendatário invocar e comprovar uma das circunstâncias previstas no nº 4 do artigo 51º, o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes ou, na falta deste, no prazo de 5 anos a contar da recepção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário nos termos do nº 4 do artigo 51º - nº 1  do artigo 54º).
No período de 5 anos referido no número anterior, o valor actualizado da renda é determinado de acordo com os critérios previstos nas alíneas a) e b) do nº 2 do art. 35º - (nº 2 do referido artigo 54º).

Se o arrendatário se opuser ao valor da renda, ao tipo ou à duração do contrato, pode o senhorio tomar uma das posições referidas nos nºs 1, 4 e 5 do artigo 33º da Lei nº 6/2006, na redacção introduzida pela Lei nº 31/2012, aplicável ex vi do disposto no artigo 52º da mesma lei. A oposição do arrendatário ao valor da renda proposto pelo senhorio não acompanhada de proposta de um novo valor vale como proposta de manutenção do valor da renda em vigor à data da comunicação do senhorio (nº 2 do referido artigo), e a falta de resposta do senhorio vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo arrendatário (nº 3 do referido artigo).

Ora, no caso dos autos, importa analisar, de acordo com o direito aplicável, o núcleo essencial dos factos provados.

Assim, ficou provado que:
– A autora/senhoria comunicou à ré/arrendatária a intenção de actualização da renda e transição para o NRAU por carta registada com aviso de recepção datada de 9 de Janeiro de 2014 propondo que o contrato passasse a ter prazo certo, com a duração de 2 anos e propondo que a renda mensal passasse a ser nom valor de 1.000,00 euros – (Alínea G da Fundamentação de facto ).
– A esta missiva respondeu a ré opondo-se à transição do contrato para o NRAU com fundamento em ser uma associação privada sem fins lucrativos, invocando expressamente o disposto na alínea b) do nº 4 do art. 51º da Lei nº 6/2006 na versão da Lei nº 31/2012 – (Alínea H).
– Embora a ré possa ser uma instituição sem fins lucrativos, não foi a referida instituição objecto de qualquer declaração de interesse público, nacional ou municipal – (Alínea I).
– A autora em face da comunicação referida em H) comunicou à ré, por carta datada de 10 de Março de 2014, que o contrato de arrendamento transitou para o regime do NRAU, passando a vigorar por prazo certo, com a duração de 2 (dois) anos e com uma renda mensal de € 1.000,00 (mil euros), com produção de efeitos desde a data desta última comunicação, tudo como melhor consta do documento junto a fls. 22 e cujo teor se dá aqui por reproduzido - (Alínea J).
– A esta comunicação respondeu a ré por carta de 16-04-2014 cuja cópia se mostra junta a fls. 23 verso e 24 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido - (Alínea L).
– A ré nunca procedeu ao pagamento da renda actualizada continuando sempre a pagar a quantia de 3,74 euros - (Alínea M).

A invocação com sucesso das circunstâncias previstas na alínea b) do nº 4 do artigo 51º depende de o arrendatário, a ré, ora apelante, comprovar todos os requisitos isto é que é uma associação privada sem fins lucrativos, que se dedica à actividade cultural, recreativa ou desportiva não profissional, e declarada de interesse público ou de interesse nacional ou municipal, pois tais requisitos são de verificação cumulativa.

A falta da comprovação de um dos requisitos afasta a possibilidade da ré se opor com tal fundamento à transição do contrato para o NRAU.

Ora, como bem observa a douta sentença, “a ré embora seja uma instituição sem fins lucrativos, não foi objecto de qualquer declaração de interesse público, nacional ou municipal, ou pelo menos não logrou comprová- lo. Não tendo logrado comprovar tal situação, o contrato de arrendamento transitou para o NRAU, bem como teve lugar a actualização da renda, a qual foi determinada pela autora. Em casos em que o senhorio não esteja condicionado nomeadamente pela verificação de uma das situações do artigo 54º, o senhorio é livre na determinação desse aumento. Assim, e nestas apuradas circunstâncias, tendo o contrato transitado para o NRAU e tendo a autora comunicado a nova renda, comunicação que tem valor vinculativo, o seu não pagamento pela ré é fundamento de resolução do contrato pelo senhorio, sendo eficaz a declaração dele nesse sentido.

Aquela nova renda era devida desde Março de 2014, reportada à renda do mês de Abril de 2014.

Tal significa que o contrato em referência nos autos foi validamente resolvido mediante a notificação judicial avulsa enviada pela autora à ré. O contrato em causa encontra-se resolvido, tendo cessado a relação contratual existente entre autora e ré, tendo a autora direito às rendas vencidas e vincendas até entrega do locado, ao valor actualizado, deduzido daquele valor que a ré tem pago a título de renda”.

Assim, improcedem as conclusões das alegações da apelante.

CONCLUSÕES:
– A Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, veio introduzir profundas alterações em matéria de correcção extraordinária das rendas nos contratos mais antigos, celebrados antes da vigência do RAU, por iniciativa do senhorio, mostrando-se esta matéria regulada, quanto aos arrendamentos para fins não habitacionais nos artigos 50º a 54º do NRAU.
– Cabe ao senhorio desencadear o procedimento de actualização da renda e transição para o NRAU, mediante comunicação ao arrendatário da sua intenção; em tal comunicação o senhorio deve indicar o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos, o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do CIMI, constante da caderneta predial urbana e cópia dessa mesma caderneta predial – alíneas a), b) e c) do artigo 50º da Lei nº 6/2006, na redacção introduzida pela Lei nº 31/2012.

– Na resposta, se for caso disso, o arrendatário deve ainda, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 54º, invocar uma das seguintes circunstâncias:
(a)- (…).
b)- Que tem a sua sede no locado uma associação privada sem fins lucrativos, regularmente constituída, que se dedica à actividade cultural, recreativa ou desportiva não profissional, e declarada de interesse público ou de interesse nacional ou municipal.

– Os requisitos previstos na alª b) do nº 4 do artigo 51º são de verificação cumulativa e a falta da comprovação de um dos requisitos afasta a possibilidade da ré se opor com tal fundamento à transição do contrato para o NRAU.

III–DECISÃO.
Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa, 24-05-2018



Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais 
Isoleta de Almeida Costa



[1]AC STJ de 04-10-2000 Revista nº 207/00, in www.dgsi.pt/stj
[2]Cfr Ac RL de 06.03.2014, Proc.º nº 2389/13.2YLPRT.L1, in www.dgsi.pt/jtrl
[3]Maria Olinda Garcia, “ Arrendamento Urbano Anotado, Regime Substantivo e Processual (Alterações Introduzidas pela Lei nº 31/2012),2ª edição, pág. 127.