Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
71/18.3T8AGH.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I A sentença proferida em processo penal, perante terceiros, constitui presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação, em qualquer ação cível de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção, mas constitui presunção inilidível perante o arguido e R. em futura acção cível, não podendo voltar a ser discutidos os factos integradores do tipo legal.

II O direito de regresso da seguradora sobre o seu segurado, no âmbito do artº 27 nº 1 c) do D.L. 291/07 de 21/08, depende da verificação de dois requisitos: ser o segurado o condutor culpado, excluindo-se a responsabilidade objectiva ou pelo risco; que apresente, nessa ocasião uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida.

III À seguradora que satisfez a indemnização ao lesado, apenas cabe provar a existência de uma taxa de álcool superior à permitida por lei, sendo agora irrelevante a alegação e prova do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


A [ SEGURADORA…..S.A], intentou acção declarativa de condenação contra B, peticionando a sua condenação na restituição à A. da quantia de € 51.213,27, acrescida dos respectivos juros de mora devidos desde a citação até integral pagamento, relativa a quantias por si pagas ao lesado, em atropelamento de que foi culpado o R., que na ocasião conduzia sob o efeito do álcool, o que lhe perturbou os reflexos e a coordenação motora necessárias ao acto de conduzir, causando o atropelamento.
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Em sede de contestação, veio o R. alegar que o acidente em causa se ficou a dever ao facto de o peão sinistrado se encontrar também alcoolizado, tendo sido este quem deu causa ao acidente ao atravessar a estrada de modo imprudente e sem se assegurar que não se aproximava qualquer veículo automóvel.
Conclui afirmando que, ainda que o R. não tivesse acusado qualquer TAS, o acidente ter-se-ia verificado, inexistindo, como tal, qualquer nexo de causalidade em a TAS com que conduzia e o embate e respectivos danos, sofridos pelo sinistrado.
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Em sede de audiência prévia, foi fixado o objecto do litígio e elaborados os temas de prova.
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Após, realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença em 08/01/19, na qual se decidiu absolver o R. do pedido.
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Não conformada com esta decisão, impetrou a R. seguradora recurso da mesma relativamente à matéria de facto e de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“1º. O Tribunal Recorrido, por um lado, julgou erradamente alguns dos factos em apreciação e por outro, aplicou deficientemente o direito aos factos, pelo que incorreu em evidente erro de julgamento;
2º. O Tribunal Recorrido valorou deficientemente a prova produzida, tendo ainda baseado a decisão de alguns factos em provas insuficientes e mesmo inexistentes e omitiu factos relevantes que se mostram alegados pela Recorrente para a boa decisão da causa e que resultaram provados;
3º. O Tribunal Recorrido julgou incorretamente os factos que se mostram provados sob as letras I., M. e N. e sob os nºs 1. a 6. dos factos não provados e ainda os factos alegados pela Autora/Recorrente sob os artigos 22º a 27º da petição inicial;
4º. Facto provado I.: nenhuma prova resulta dos autos que permitissem ao Tribunal dar tal facto como provado. Com base na falta de prova sobre tal facto, com base nos meios probatórios (constituídos pela testemunha do Réu Nelson … - depoimento prestado em 27.09.2018 gravado em 20180927110151_12089479_2896502 – minuto 8:16 a 8:50; da testemunha da Autora, Pedro …. – depoimento prestado em 27.09.2018 gravado em 20180927101152_12089479_2896502 - da testemunha (Agente da PSP, Lino …..), primeiro Agente de Autoridade que chegou ao local do acidente - depoimento prestado em 27.09.2018 gravado em 20180927102639_12089479_289650 - entre o minuto 01:45 a 07:00 2; dos documentos 5 e 6 da petição inicial) e da ausência da motivação por parte do Tribunal que fundamente o facto em causa (aliás o Tribunal refere categoricamente que “as testemunhas arroladas pelo R. produziram discursos tendenciosos e incompatíveis com regras de lógica e experiência comum, o que levará à sua desconsideração.”), tudo devidamente conjugado, tal facto deverá ser removido dos factos provados e ser dado como não provado;

5º. Factos provados sob as letras M. e N.: Resulta dos autos inequivocamente demonstrado que a Autora pagou: - ao sinistrado Albino …….. € 44.290,00, sendo € 41.290,00 de indemnização e € 3.122,20 de juros - vide do doc. 1 da petição, que constitui um documento autenticado; - ao Instituto da Segurança Social IP (Centro Distrital de Aveiro) € 6.801,07, sendo € 6.322,95 de indemnização e € 478,12 de juros - vide do doc. 2 da petição, que constitui um documento autenticado. O pagamento de tais valores estão aceites (porque não impugnados) pelo Réu. Vejam-se ainda os documentos 1, 2 e 8º da petição inicial e a confirmação e tais pagamentos pela testemunha da Autora Pedro ……. (depoimento prestado em 27.09.2018 gravado em 20180927101152_12089479_2896502 - entre o minuto 04:45 a 06:15). Assim, apreciando-se corretamente e conjugadamente todos os meios probatórios supra identificados, o Tribunal “ad quem”, deverá alterar (corrigir) tais factos, passando os mesmos a ter a seguinte redação:
M.- No âmbito do acidente de viação dos presentes autos, a A. pagou ao peão sinistrado, a título de danos resultantes do embate a quantia de € 44.290,00, sendo € 41.290,00 de indemnização e € 3.122,20 de juros.
N.- No âmbito do acidente de viação dos presentes autos, a A. pagou ao Instituto de Segurança Social, IP, a título de quantias pagas por este Instituto ao peão sinistrado, por conta de subsídio de doença, a quantia de € 6.801,07, sendo € 6.322,95 de indemnização e € 478,12 de juros.

6º. Facto não provado sob o nº 1.: Por se tratar de um eventual facto impeditivo do direito da Autora (e alegado pelo Réu nos artigos 10º a 11º da Contestação), tal facto deveria estar formulado da seguinte forma: “Albino ……. antes de iniciar a travessia da estrada não verificou se se aproximavam veículos na Estrada da Barca, em ambos os sentidos.”. Nenhuma prova foi produzida sobre esta questão por banda do Réu, cuja prova a ele competia (artº 342º, nº 1 do CC).
Assim, e atendendo ainda a que o sinistrado foi colhido já a apenas 1,30 da berma (facto J.), atendendo a que o Réu circulava em velocidade superior à permitida para o local (a mais de 80Km/hora) – vide factos provados F. e G.-, leva a crer que o sinistrado quando iniciou a travessia da via não poderia avistar o veículo do Réu. E, na ausência de outra prova, deverá a redação do facto não provado sob o nº 1 passar a ter a seguinte redação:
1.- Albino …….. antes de iniciar a travessia da estrada não verificou se se aproximavam veículos na Estrada da Barca, em ambos os sentidos.

7º. Factos não provados sob os nºs 2. a 5.: Tais factos resultam provados no âmbito do processo-crime – vide certidão que constitui o doc. 5 da petição inicial. Factos esses, alegados pela Autora no artigo 17º da petição e são uma transcrição dos factos provados no âmbito daquele processo-crime (facto provado nº 10 – vide doc. 5, fls. 5). Na motivação, escreve o Tribunal Recorrido que “nenhuma prova se produziu, sendo certo que não obstante junta aos autos a decisão proferida pelo processo-crime n.º 49/09.8PBSRQ, o que com a mesma se demonstra é que naqueles autos foi demonstrada aquela factualidade e não que tais factos, para efeitos de prova neste processo, ocorreram.”
Considera a Recorrente que atento o regime substantivo previsto nos artigos 623º e 624º do CPC, regime conjugado com o artº 350º do CC, o Tribunal deveria ter dado como provado tais factos, o que pugna;
8º. Facto não provado sob o nº 6. e os factos alegados pela Autora/Recorrente que constituem os artigos 22º a 27º da sua petição inicial: Curioso que na Sentença Recorrida esteja escrito que: «Dúvidas inexistem é certo que o R., enquanto condutor do veículo segurado pela A., no exacto momento do acidente exercia a condução do mesmo com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida – cfr. n.º 2 do artigo 81.º do Código da Estrada, o qual considera sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa igual ou superior a 0,5 g/l –, e que isso, claro, pela natureza das coisas, afectava a sua condução, já que naturalmente lhe causava limitação das capacidades necessárias para o exercício da mesma (nomeadamente, diminuição da capacidade de concentração, da acuidade visual, do tempo de reacção, etc.).».
Contudo, o Tribunal “a quo”, não reflete (erradamente) nos factos tal “estado de coisas”. Mostra-se provado que o Réu conduzia em excesso de velocidade para o local onde ocorreu o acidente (a mais de 80 km/h) e na hemifaixa da esquerda atento o sentido do trânsito, ou seja, circulava na faixa contrária àquela em que deveria circular – factos provados F. e G.; mostra-se provado que o Réu circulava com uma taxa de álcool no sangue de 1,01 g/l – facto provado K. Questiona-se: porque circulava o Réu em excesso de velocidade e na hemifaixa contrária? Resposta lógica: porque a condução sobre o efeito do álcool não permitiu ao Réu controlar a velocidade e a circulação correta na via pública (na hemifaixa que lhe pertencia) ou seja, o efeito do álcool não permitiu ao condutor respeitar as regras estradais, pois se o tivesse feito, o acidente não tinha ocorrido uma vez que o peão foi colhido já na hemifaixa da esquerda e apenas a 1,30m de atingir a berma – facto provado J. e, se Réu tivesse no uso das suas faculdades poderia ter travado a tempo de evitar a colisão;
Dos autos não resultam existirem outras causas que não seja a de condução sobre o efeito do álcool a responsável pela produção do acidente. Mostra-se ainda provado que “A via tem a largura de 5,80 metros, é uma recta com boa visibilidade e com iluminação pública, o piso estava em boas condições, encontrando-se seco na data dos factos.” – facto provado E.

Assim, de toda a dinâmica do acidente (demonstrada nos factos provados - vide docs. 5 e 6 da petição), dos factos alegados pelo Autor, o grau de alcoolemia registado, com os elementos/estudos científicos irrefutáveis (identificados nas presentes alegações), as regras da experiência, as normas legais aplicáveis, a teleologia do legislador subjacente às normas, a ciência e o recurso a presunções judiciais e naturais (nos termos previstos nos artigos 349º a 351º do CC) e ainda do depoimento da testemunha Pedro …. (depoimento prestado em 27.09.2018 gravado em 20180927101152_12089479_2896502 - entre o minuto 04:00 a 05:00 e o minuto 06:20 a 07:30), tudo devidamente apreciado e conjugado, deverão ser dados como provados os seguintes factos (que incluem o conteúdo do facto não provado 6. e um resumo dos factos alegados pelo Autor nos artigos 22º a 27º da petição):
O Réu tinha os seus reflexos e tempos de reação diminuídos pelo estado de alcoolismo que o dominava, razão pela qual não conseguiu controlar a condução do seu veículo, atenta as condições da via, provocando o acidente. (a aditar ao factos provados sob a letra O);
O álcool ingerido pelo Réu afetou-lhe assim, as capacidades de reação, vigilância, atenção e concentração, diminuindo-as, influindo na menor capacidade para conduzir, sendo tal estado dado causa do acidente. (a aditar ao factos provados sob a letra P);
Bem sabia o Réu que conduzir nas circunstâncias descritas o veículo automóvel dominado pelo alcoolismo, consciente de que não estava em condições de o fazer, criava, como criou, perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado e para a vida e integridade física, quer para si, quer para terceiros, tal como, efetivamente veio a acontecer. (a aditar ao factos provados sob a letra Q);
9º. Na Decisão Recorrida perfilha-se a posição minoritária de que, à semelhança do que acontecia na vigência do DL nº 522/85, de 31 de dezembro (artº 19º, alínea c)), é necessária a prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente;
10º. Perfilha-se ainda na Decisão Recorrida que a condução sob o efeito de álcool tem de constituir a única (exclusiva) causa do acidente. Ora, mesmo na vigência do DL nº 522/85, de 31 de dezembro, não era necessário que se apure que a influência do álcool constituiu a única causa do acidente, bastando apurar-se que tal influência foi uma das causas do acidente - (Ac. do TRL de 09-06-2011, proc. 5256/09.0TBALM.L1-2);
11º. No caso presente, embora a Recorrente considere que tenha alegado factos demonstrativos e que se mostram provados sobre o nexo entre a condução sobre o efeito do álcool e o acidente em discussão, mesmo que assim não fosse, defende a Recorrente que com a redação que consta do art. 27º, nº 1, al. c) do DL 291/07 de 21 de agosto, a seguradora está dispensada de alegar e provar a existência de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente;
12º. Nesse sentido, vai atualmente, a maioria da nossa Jurisprudência: de entre outros, vejam-se os seguintes Acórdãos:
AC STJ de 06.04.2017 (Proc. 1658/14.9TBVLG.P1.S1); AC STJ de 09.10.2014 (Proc. 582/11.1TBSTB.E1.S1); AC STJ de 07.02.2017 (Proc. 29/13.9TJVNF.G1.S1); AC Relação de Coimbra de 14.03.2017 (1160/15.1T8LRA.C1); AC Relação de Coimbra de 01.07.2014 (Processo 139/12.02ALB.C1); AC Relação de Évora de 11.05.2017 (Processo 4440/13.7TBSTB.E1); AC Relação de Guimarães de 17.11.2016 (Processo 363/15.3T8FAF.G1); AC Relação de Lisboa de 04.02.2016 (Processo 2559-13.3TBMTJ.L1-8); AC Relação do Porto de 11.10.2016 (Processo 2326/13.4T2AVR.P1); AC Relação do Porto de 20.04.2017 (Processo 616/15.0T8STS.P1) e AC Relação do Porto de 16.12.2015 (Processo 4678/13.7TBVFR.P1);
13º. Deixou de relevar para o direito de regresso a questão de saber se, em concreto, a impregnação de álcool no sangue do condutor medida pela TAS influenciou ou não a condução em termos de constituir a causa remota da atuação culposa do condutor que fez eclodir o acidente: basta que o condutor acuse, no momento do acidente, uma TAS superior à legalmente admitida, para que, se tiver atuado com culpa (e se se verificarem os demais requisitos da responsabilidade civil subjetiva) possa ser demandado em ação de regresso pela seguradora que satisfez a indemnização ao lesado;
14º. Nesse sentido, veja-se o acórdão do STJ datado de 28 de Novembro de 2013, onde se afirma: o elemento filológico de exegese retirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artº 27º do Decreto-Lei nº 291/2007 (…) cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.»;
15º. No mesmo sentido, Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, in O Contrato de Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel, p. 212: «O legislador não exige qualquer relação entre os dois requisitos, bastando-se com a sua verificação objectiva para fundamentar o direito de regresso do segurador, favorecendo o seu exercício.»;
16º. Desta temática, veja-se ainda o excelente estudo da Ma. Juíza Desembargadora Dra. Maria Amália Santos, publicado em “Julgar Online, novembro 2018”, intitulado “O direito de regresso da seguradora nos acidentes de viação.”;
17º. Incumbe à seguradora o ónus de provar os factos dos quais está dependente a conduta culposa do condutor, responsabilidade por factos ilícitos (culpa essa bem evidenciada no processo crime que constitui o doc. 5 da petição), verificado que impende sobre o condutor a presunção de culpa pela condução sob efeito do álcool, que este tem de afastar expressamente, tendo que provar que a condução sob efeito do álcool não teve qualquer interferência na verificação do acidente;
18º. No caso presente, verifica-se que a Autora/Recorrente logrou provar os factos constitutivos essenciais para a procedência do direito invocado, verificando-se outrossim que soçobrou a prova no que concerne à prova do facto impeditivo do direito da Autora, com a qual o Réu se encontrava onerado e que não logrou fazer;
19º. Nestes termos, prescreve o n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil que “[a]quele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, prescrevendo o n.º2 que “[a] prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”, esclarecendo Antunes Varela que “aquele que invocar o direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ouimpedem eficácia dos elementos constitutivos” (Antunes Varela/Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 1987, p. 305);
20º. Não tendo o Réu logrado provar o facto impeditivo do direito reclamado pela Autora, impõe-se julgar a ação totalmente procedente, condenando-se o Réu no pedido;
21º. A Recorrente provou que liquidou na sequência do acidente o montante total de € 51.213,27 (factos provados M. e N., devidamente corrigidos) pelo que, deverá o Réu ser condenado a pagar à Autora aquele montante, acrescido de juros de mora à taxa civil, contabilizados desde a data da citação, tudo nos termos do disposto no DL 291/07 de 21 de Agosto – art. 27º, nº 1, al. c);
22º. A Sentença Recorrida para além de errar nos factos, fez uma incorreta indagação, interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, violando os artigos 341º, 342º, 344º, 346º, 347º, 349º, 350º, 351º, 352º, 362º, 363º, 369º, 371º, nº 1, 483º, nº 1, 562º e 564º do CC,artigos 13º, nº 1 e nº 4, 146, j), 24º, nº 1, 25º e 81º, nsº 1 e 2 do Código da Estrada, artigos 5º, 412º, 413º, 414º, 607º, nºs 3 a 5, 623º e 624º todos do CPC e artigo 27.º, nº 1, c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
NESTES TERMOS:
DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E EM CONSEQUÊNCIA:
a) SER CONHECIDA A IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO, NOS TERMOS REQUERIDOS PELA RECORRENTE;
b) SER ALTERADA A DECISÃO DE DIREITO DA PRESENTE CAUSA, JULGANDO-SE PROCEDENTE OS PEDIDOS FORMULADOS PELA AUTORA, FAZENDO-SE JUSTIÇA!
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QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:
a)- Se se verificam os requisitos para reapreciação da matéria de facto apurada no tribunal recorrido e se esta deve ser alterada nos termos propugnados pelo recorrente.
b)- Da verificação dos pressupostos necessários para operar o direito de regresso da seguradora, contra o seu segurado, culpado de sinistro ocorrido, apresentando taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida. 
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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes adjuntos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

A. A Autora dedica-se à actividade profissional de seguros.
B. Por acordo celebrado, em 02.07.2003, entre a Autora e a sociedade Manuel ….. & CIA, Lda., com sede na Rua do P..., freguesia da C..., concelho da Madalena do Pico, e alterado em 02.07.2008, titulado pela apólice n.º 90.00373246, aquela sociedade transferiu a responsabilidade civil pela circulação do veículo ligeiro de passageiros de marca Renault, modelo Megane, com a matrícula ..-..-VE para a Autora.
C. No dia 22.03.2009, pelas 05h10, o Réu conduzia o veículo referido em B., na Estrada da B..., Lugar do C..., freguesia e concelho da Madalena do Pico, no sentido Madalena/São Roque.
D. Na referida estrada, do lado direito, atento o sentido de marcha do R., existe um estabelecimento de diversão nocturna que, à data dos factos, se denominava Discoteca Later.
E. A via tem a largura de 5,80 metros, é uma recta com boa visibilidade e com iluminação pública, o piso estava em boas condições, encontrando-se seco na data dos factos.
F. A velocidade máxima permitida no local supra referido é de 80km/h.
G. Ao aproximar-se da referida discoteca, o R. circulava pela hemifaixa esquerda, atento o seu sentido de trânsito e a velocidade superior a 80km/h.
H. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, Albino …. tinha acabado de sair da referida discoteca e iniciou a travessia da estrada.
I. Albino …. apresentava uma taxa de álcool no sangue não concretamente apurada.
J. Quando se encontrava quase a concluir a travessia da via, faltando apenas cerca de 1,30m para atingir a berma, a pouco mais de meio da hemifaixa esquerda atento o sentido de marcha do Réu, Albino …..foi violentamente embatido pela frente do automóvel conduzido pelo Réu, sendo projectado pelo ar e imobilizando-se no solo a cerca de 25,70m do local de embate e a 6,80m da via, perfazendo uma trajectória diagonal.
K. Após o embate, o R., foi submetido ao exame de determinação quantitativa de álcool no sangue, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue de 1,01g/l.
L. O embate supra descrito deu origem ao processo-crime n.º 49/09.8PBSRQ, que correu termos no extinto Tribunal Judicial de São Roque do Pico, na qual foi o Réu, ali Arguido, condenado por sentença transitada em julgado em 18.12.2014, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, alíneas a) e b), 294.º, n.º 3, 285.º, e 144.º, alínea b) e d), todos do Código Penal, com referência ao artigo 69.º do mesmo diploma legal, e nas contra-ordenações previstas nos artigos 13.º, n.ºs 1 e 4, e 146.º, alínea j), ambos do Código da Estrada, na pena de 320 dias de multa, à razão diária de € 6,00, perfazendo o montante global de € 1.920,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses, nos termos do disposto no art. 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
M. No processo-crime referido, a A. foi condenada a pagar ao peão sinistrado, a título de danos resultantes do embate, a quantia de €41.290,00 (quarenta e um mil duzentos e noventa euros), que liquidou.
N. No processo-crime referido, a A. foi condenada a pagar ao Instituto de Segurança Social, IP, a título de quantias pagas por este Instituto ao peão sinistrado, por conta de subsídio de doença, a quantia de €6.322,95 (seis mil trezentos e vinte e dois euros e noventa e cinco), que liquidou.
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Factos não provados
Ao invés, o Tribunal julga não provado que:
1. Albino ….. antes de iniciar a travessia da estrada verificou se se aproximavam veículos na Estrada da Barca, em ambos os sentidos.
2. Na sequência do embate, o peão sinistrado sofreu dores e as seguintes lesões:
- Politraumatismo da face com fractura do processo alveolar do bloco incisivo superior e à direita;
- Fracturas múltiplas dos seios perinasais e pirâmide nasal;
- Fractura da tacicula radial esquerda (cotovelo esquerdo),
- Fractura dos ossos da perna direita;
- Fractura dos ossos da perna esquerda.

3. Em consequência das referidas lesões, Albino ….. foi sujeito intervenção cirúrgica para encavilhamento fechado da tíbia direita e encavilhamento aberto da tíbia esquerda, com internamento hospitalar de 22 de Março de 2009 a 17 de Abril de 2009. Albino …… apresentava ainda, a 22 de Novembro de 2010, cicatrizes cirúrgicas, com cerca de 7 centímetros de comprimento, na face anterior de cada uma das pernas, imediatamente a seguir ao joelho, e ainda ligeira atrofia muscular em ambas as pernas.

4. Tais lesões foram causa directa e necessária de 315 dias de doença, sendo 27 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e os restantes com afectação da capacidade de trabalho profissional.
5. Tais lesões afectaram de maneira grave a capacidade para o trabalho de Albino ….., bem como a mobilidade do mesmo.  
6. O embate supra descrito ficou a dever-se exclusivamente ao estado de alcoolismo em que o Réu conduzia, tendo sido a diminuição dos seus reflexos e tempos de reacção que determinaram o sinistro.
7. Quando Albino …. iniciou a sua trajectória de travessia da estrada, já o Réu se encontrava quase em cima dele, de tal forma que apesar de ter tentado mudar a trajectória e de travar não o conseguiu.
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DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Insurge-se igualmente o recorrente contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, alegando que foram julgados incorrectamente os factos que se mostram provados sob as letras I., M. e N. e sob os nºs 1 a 6 dos factos não provados e ainda os factos alegados pela Autora/Recorrente sob os artigos 22º a 27º da petição inicial.

Decidindo:

a)- Se se verificam os requisitos para reapreciação da matéria de facto apurada no tribunal recorrido e se esta deve ser alterada nos termos propugnados pelo recorrente;
Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Por sua vez, no que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [1]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:
- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;
- E a decisão alternativa que é pretendida.[2]

Passando à sua apreciação concreta, impugna o recorrente nas suas conclusões recursórias os factos considerados assentes pelo tribunal ad quo sob as letras I, M e N e sob os nºs 1 a 6 dos factos não provados, alegando ainda que deveriam ter sido considerados os factos alegados pela Autora/Recorrente sob os artigos 22º a 27º da petição inicial, aos quais o tribunal não deu qualquer relevância, não os considerando nem provados nem não provados.

Encontra-se cumprido pelo recorrente o ónus previsto nos artºs 639 e 640 do C.P.C., nada obstando à apreciação do recurso nesta parte.

Posto isto, no que toca à possibilidade e limites da reapreciação da matéria de facto, não obstante se garantir um duplo grau de jurisdição[3], tem este de ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.

De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.

Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.

E nessa aferição, tem o tribunal de recurso de conhecer o iter lógico da decisão explanada pelo juiz recorrido.

Com efeito, a exigência de fundamentação prevista no artº 154 do C.P.C., com assento constitucional nos termos do disposto nos artºs 205 nº1 e 20 nº4 da C.R.P., exige actualmente a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, tendo em conta que, na formação da convicção do julgador rege o princípio da livre apreciação das provas, excepto nos casos previstos no nº 5 do artº 607 do C.P.C.-aqueles para cuja prova seja exigida formalidade especial, os que só possam ser provados por documentos e os que estejam já provados por acordo, documento ou confissão das partes.

É este dever de fundamentação imprescindível a um processo equitativo e contraditório, salvaguardando as garantias das partes e possibilitando a sua cabal reacção, em caso de discordância em relação a esta convicção, bem como assegurando que o tribunal de recurso tem todos os elementos necessários para a apreensão e reapreciação da matéria fáctica.

Conforme referido por Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, págs. 296, 297,), “o dever de fundamentação introduzido pela reforma de 1961, reforçado em 1995 e agora transferido para a própria sentença que simultaneamente deve conter a enunciação dos factos provados e não provados e as respectivas implicações jurídicas “ exige que “se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respectiva apreciação crítica nos seus aspectos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (…), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos. É na motivação que agora devem ser inequivocamente integradas as presunções judiciais e correspondentes factos instrumentais (…). Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de preencher essa falha com base nas gravações efectuadas ou através de repetição da produção da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.”[4]

A violação deste dever de fundamentação não se confunde com a nulidade da sentença por falta de fundamentação e determina as consequências previstas no artº 662 nº2 c) e d) do C.P.C.

A este respeito, alega, por um lado, a A recorrente, que a juíza recorrida não fundamentou a sua decisão no que se reporta ao teor da alínea I) que deu como assente, uma vez que nenhuma prova foi feita quanto ao estado de alcoolémia do sinistrado, nem nenhum meio de prova concreto foi referido para formação da convicção do julgador, e que, em relação às alíneas M) e N), desconsiderou o montante de juros pago pela seguradora ao sinistrado, provados por docs. não impugnados, não tendo sido sequer impugnado pelo R., estes montantes, nem o seu efectivo pagamento.

Mais alega que em relação ao facto não provado sob o nº1, deveria este constar na sua formulação negativa, uma vez que, tendo sido alegado pelo R., a este incumbia a respectiva prova, tratando-se de um facto impeditivo do direito da A.; os factos não provados sob os nºs 2 a 5, constam da certidão da sentença crime proferida contra o R., pelo que deveriam ter sido dados como provados nos termos dos artºs 623, 624 do C.P.C. e 350 do C.C.; os factos não provados referidos no ponto 6 e os alegados nos pontos 22 a 27 da p.i. deveriam ter sido considerados como provados, decorrendo das regras da lógica que a circulação do R. pela faixa de rodagem contrária, sem procurar ou conseguir retomar a sua faixa e sem se desviar do peão ou travar, se deveu à influência do álcool.

A este respeito e iniciando a apreciação deste tribunal pelo facto impugnado dado como assente na alínea I, da análise da fundamentação expendida pelo tribunal recorrido, não se vislumbra a razão para consideração deste facto como provado.

Recorde-se que pelo R. fora alegado, nos artºs 7 e 8 da sua contestação, referindo-se ao atropelado que “Este foi visto dentro da discoteca, embriagado e já com dificuldade em se locomover face à quantidade de álcool que tinha ingerido.” e “Já anteriormente, ao inicio dessa noite, à hora do jantar foi visto a ingerir bebidas alcoólicas na Madalena do Pico, no bar Dark que se situa no Cais daquela localidade.”

A Srª Juíza de primeira instância fez consignar o seguinte quanto à fundamentação da matéria de facto: “A convicção do Tribunal teve em consideração os factos admitidos por acordo entre as partes e baseou-se na análise crítica e conjugada da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, de acordo com as regras da experiência comum e com juízos de lógica e normalidade.

Assim e em concreto:
A testemunha Pedro….., funcionário da A., com funções, designadamente, de gestor do sinistro em causa, com espontaneidade, sinceridade e isenção afirmou recordar tratar-se o presente caso de um acidente com atropelamento, ocorrido em Março do ano de 2009, à data do qual o R. conduzia sob a influência do álcool, recordando ser a respectiva taxa superior a 1,00 g/lt.

Afirmou, ainda, não recordar qualquer referência constante do processo de sinistro que geriu relativa a eventual elitização do peão sinistrado aquando do embate.

E, concluiu, a final, que o conhecimento dos factos que relata lhe advêm da consulta e gestão do processo de sinistro em causa que tinha a seu cargo.

A testemunha Lino……, agente da PSP que à data da colisão se deslocou ao local, confrontado com a participação de acidente e croqui junto aos autos, confirmou a respectiva elaboração e teor, afirmando que, à data, as testemunhas que ouviu afirmavam que o R. seguia a sua marcha em excesso de velocidade.

Esclareceu, com interesse, que a velocidade máxima permitida no local em causa é de 80km/h e, ainda, que o peão sinistrado acusava, de acordo com relatório do IML que foi junto ao processo da Esquadra, álcool no sangue, cuja TAS em concreto não soube precisar.

A testemunha Maria……, amiga do R. e ocupante do lugar de passageiro do veículo à data do embate conduzido por aquele, afirmou que estavam a aproximar-se da discoteca quando vê o peão sinistrado a sair daquele recinto de diversão nocturna, nas suas palavras “a cambalear e completamente descontrolado”. Mais referiu que o R. ainda efectuou manobra de evasão para se desviar, mas sem sucesso, por totalmente impossível, e disse, acrescentando, ele apareceu de repente.

Relatou ainda esta testemunha que estava uma noite seca, sem chuva, nada impedindo o sinistrado de avistar o veículo tripulado pelo R.

Confirma que o R. circulava no sentido Madalena/São Roque e que apesar de ter continuado a sua marcha após o embate, tal deveu-se a momentos de pânico por si sentidos, tendo logo após regressado ao local do acidente.

Afirma ser sua ideia que o R. circulava a uma velocidade entre os 50Km/h e os 60Km/h.

A testemunha Nelson….., também ele amigo do R. e ocupante do banco traseiro do veículo conduzido por aquele à data dos factos, afirmou que o R. não conduzia a mais de 80Km/h; que a estrada em causa se apresentava bem iluminada e com boa visibilidade; e que se recorda de ver o peão sinistrado, provindo da discoteca, e a cambalear enquanto atravessava a estrada.
*

Da análise da prova testemunhal produzida impõe-se, desde logo, duas conclusões. A primeira é a de que a mesma foi manifestamente deficitária e lacónica. A segunda é a de que as testemunhas arroladas pelo R. produziram discursos tendenciosos e incompatíveis com regras de lógica e experiência comum, o que levará à sua desconsideração.

É que veja-se. Referem estas testemunhas que o R. seguia a velocidade de 50/60 km/h, que estava uma noite seca e sem chuva e que a estrada estava bem iluminada e tinha boa visibilidade.
Dizem, ainda, que em razão disso, não havia razões para que o peão, provindo do lado da discoteca, não avistasse o veículo conduzido pelo R. e que o R. desviou a sua marcha para não embater naquele, mas sem sucesso porque o peão aparecera de repente.

Ora, olhando ao elemento de prova mais objectivo que consta dos presentes autos – o croqui do acidente –, e ao qual em razão daquela objectividade e equidistância, deve ser dada maior credibilidade, até porque posta em causa não foi a sua genuinidade, facilmente se constata a falta de razoabilidade na versão relatada pelas testemunhas Maria …. e Nelson ……   .

E isto porque:
O ponto de conflito ocorre no lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do R.; a discoteca de onde proveio o sinistrado encontra-se na berma do lado direito, ou seja, a cerca de uma hemi-faixa e meia do ponto de conflito – logo, não só o peão não aparece “de repente” na frente do veículo do R., como era ao R. a pessoa a quem não assistia razão para que não o avistasse atempadamente.

Acresce ainda que, não se concebe a dinâmica explicitada por aquelas testemunhas no que concerne a alegada manobra de evasão que o R. terá feito em ordem a não embater no peão, vindo ainda assim a nele embater. É que acaso tal manobra se tivesse verificado, como está bom de ver, não caminharia o peão ao mesmo tempo e ritmo que circulava o veículo do R., logo desviando-se este repentinamente para a esquerda para evitar o embate com o peão, como poderia esse mesmo peão já se encontrar no exacto local para onde o veículo se havia desviado, de tal sorte que mesmo com tal manobra seria embatido?

Por desconformes com a normalidade da vida e das máximas do saber não podemos se não desconsiderar o depoimento das referidas testemunhas, amigas do R., e com discursos tendenciosos e motivados por uma descrição factual que mitigasse a responsabilidade a assacar daquele.

Assim, como se disse, soçobra-nos, documentalmente, o croqui do acidente e, testemunhalmente, o depoimento o agente da PSP Lino...., a quem se reconheceu, distância, isenção e descomprometimento no discurso, sendo desses elementos de prova e, no mais, do acordo das partes, que resulta a demonstração factual supra descrita.

Por tais razões, ficam demonstrados os factos que acima se descrevem como provados.

Relativamente aos factos não provados, foram os mesmos assim considerados por ausência de prova cabal que os demonstrasse.

Com efeito, relativamente ao facto descrito em 1. a 5. nenhuma prova se produziu, sendo certo que não obstante junta aos autos a decisão proferida pelo processo-crime n.º 49/09.8PBSRQ, o que com a mesma se demonstra é que naqueles autos foi demonstrada aquela factualidade e não que tais factos, para efeitos de prova neste processo, ocorreram.

Quanto ao facto descrito em 6., porventura o núcleo essencial destes autos, cumpre dizer, por um lado, que o A. além dos estudos conclusivos a que se refere não alegou quaisquer factos de onde se extraísse o nexo de causalidade directo e imediato entre a taxa de álcool no sangue com que o R. conduzia e a ocorrência do sinistro. Ademais, os factos considerados demonstrados, como sendo o excesso de velocidade com que o arguido conduzia, para o qual aliás também concorre as distâncias a que o corpo do sinistrado fora projectado após o embate; conjugados com a concreta taxa de álcool no sangue que o R. continha, a qual é abaixo do limite mínimo a partir do qual a sua conduta é tipificada como crime, levam à conclusão de que outras podem ter sido as causas do sinistro que não única e exclusivamente a taxa de álcool no sangue com que o R. exercia a condução.~

Finalmente, por referência ao facto descrito em 7. damos aqui por reproduzida a explicitação supra acerca da ausência de credibilidade que deve merecer a dinâmica do acidente descrita pelas testemunhas arroladas pelo R.”.

Analisada esta fundamentação, dela resulta que, o suposto estado de alcoolismo do peão sinistrado, decorre das declarações do Agente da PSP que aqui afirmou a este respeito que “julgava que sim”, reportando-se a um relatório do IML que se desconhece e cuja junção não foi requerida nem ordenada oficiosamente pelo tribunal, fundando-se ainda no teor dos depoimentos das testemunhas transportadas no veículo atropelante Maria …. e Nelson ….., que aqui referiram que viram o peão a cambalear, vindo da discoteca.

Destes depoimentos (apesar de desvalorizadas as versões do acidente apresentadas pelas supra referidas testemunhas por inverosímeis), não resulta nem pode resultar que este peão acusasse uma taxa de alcoolémia no sangue, ainda que não concretamente apurada, pois que nenhum elemento relevante de prova foi efectuado a este respeito, mormente mediante junção de documento que o comprovasse, não bastando a declaração do agente da PSP de que “julgava que sim”, nem as declarações das aludidas testemunhas que o viram a cambalear, deduzindo que “alcoolizado”.

Incumbindo o ónus de prova deste facto ao R., bem como o ónus de alegação e prova de que fora o peão o culpado do seu atropelamento (quer por se encontrar embriagado quer por qualquer outro motivo, como distracção, imprevidência ou outra), não foi feita nem essa prova, nem a prova de que a culpa pelo atropelamento decorrera de comportamento imprevidente do peão, nem poderia ter sido feita, tendo em conta o teor da sentença já proferida contra o R. em sede penal, que o tribunal de primeira instância absolutamente desconsiderou.

Por outro lado, o estado de alcoolismo, ainda que existente, do peão, por si só, é irrelevante para a sorte da acção, pois o que relevaria era o atravessamento da via pelo peão, sem tomar as devidas precauções, podendo avistar o veículo atropelante, fosse por imprevidência, descuido ou embriaguez que igualmente limitasse a sua capacidade de percepção ou outra (não se extraindo na decisão recorrida, qualquer conexão entre este alegado facto e o sinistro, pelo que, ainda que assim não fosse, sempre seria um facto inútil).

Acresce que, decorrendo do teor da decisão penal condenatória a culpa do nela arguido e aqui R., de acordo com os factos que nesses autos foram apurados, são estes factos definitivos, quer nessa sede quer nesta acção, não podendo voltar a ser discutida tal matéria.

Pelo exposto acorda-se em eliminar dos factos assentes esta alínea I), dando como não provado este facto.

No que se reporta às alíneas M) e N), tem igualmente a A. razão.

Alegados estes pagamentos, foram estes expressamente aceites pelo R. no seu artº 1 da contestação.

É igualmente certo que, no âmbito do processo crime, o R. foi condenado a pagar as quantias mencionadas nestas alíneas, sendo os juros contados desde a citação, sendo que constam estes pagamentos, dos docs. juntos com a p.i. a fls. 12 a 18, que igualmente não foram impugnados, incluindo quantia relativa a juros de mora, pelo que se alteram estas alíneas delas passando a constar o seguinte:
M.- No âmbito do acidente de viação dos presentes autos, a A. pagou ao peão sinistrado, a título de danos resultantes do embate a quantia de € 44.290,00, sendo € 41.290,00 de indemnização e € 3.122,20 de juros.
N.- No âmbito do acidente de viação dos presentes autos, a A. pagou ao Instituto de Segurança Social, IP, a título de quantias pagas por este Instituto ao peão sinistrado, por conta de subsídio de doença, a quantia de € 6.801,07, sendo € 6.322,95 de indemnização e € 478,12 de juros.”

Passando aos factos não provados, o teor do ponto 1 fora alegado pelo R., que pretendia imputar este acidente a conduta do peão sinistrado, sendo que, tendo em conta o teor da decisão penal condenatória proferida contra o R. e o teor dos factos que nele resultavam assentes, se tem de considerar efectivamente como não provado, mas pela negativa.

Diga-se ainda que a não prova de um facto não significa que o seu contrário está provado, mas aqui apenas relevaria a prova de que o sinistro se deu apenas/ou também porque o peão não olhou, não tomou as devidas precauções antes de atravessar a faixa de rodagem, por onde circulava o veículo atropelante, o que não ocorreu.

Recorde-se que, em relação a este ponto e aos factos considerados como não provados sob os nºs 2 a 5, alega o A. a aplicabilidade do disposto no artº 623 do C.P.C. e 350 do C.C.

A questão aqui colocada pelo recorrente, incide pois sobre a aplicabilidade aos presentes autos do disposto no artº 623 do NCPC, que versa sobre a oponibilidade da sentença penal condenatória a terceiros.

Assim, dispõe o referido preceito legal que “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção.” 

Quer isto dizer, conforme refere Lebre de Freitas[5] que a “sentença proferida em processo penal constitui presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação, em qualquer ação cível de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção”, apresentando como exemplo a posterior acção de indemnização interposta contra a seguradora não demandada ou condenada na acção penal, pelo lesado.

Se esta sentença constitui presunção ilidível perante terceiros, perante as partes a presunção é inilidível.[6]      

Com efeito, “Estabelece-se neste preceito a relevância «reflexa» do caso julgado penal condenatório em subsequentes acções de natureza civil, materialmente conexas com os factos já apurados no processo penal – e tendo, nomeadamente, em conta que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, bem como a certeza «prática» de que o arguido cometeu a infracção que lhe era imputada.

Entendeu-se, porém, em homenagem à regra do contraditório – e ao contrário do que resultava do […] artigo 152º [do Código de Processo Penal de 1929] – que a condenação definitiva no processo penal não deveria impor-se, necessária e «cegamente», a sujeitos processuais que nele não tiveram oportunidade de expor as suas razões – constituindo tão-somente presunção ilidível, relativamente aos elementos referenciados no preceito.


Torna-se, deste modo, possível, v.g., ao responsável civil ulteriormente demandado no foro cível demonstrar que, afinal, o arguido – apesar de já condenado no âmbito do processo penal – não actuou culposamente […]. A eficácia erga omnes da decisão penal condenatória é, deste modo, temperada com a possibilidade de os titulares de relações civis conexas – terceiros relativamente ao processo penal – ilidirem a presunção de que o arguido cometeu efectivamente os factos integradores da infracção que ditou a sua condenação. Refere-se a norma, pois, como sublinha o Autor acabado de citar, à oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória, estabelecendo, relativamente a uma subsequente acção cível tematicamente conexa com a acção penal, uma presunção legal ilidível (no sentido dos artigos 349º e 350º do CC), valendo, pois, como norma de direito probatório material, já que: “[…]

Não se trata, directamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A presunção estabelecida difere das presunções stricto sensu, na medida em que a ilação imposta ao juiz cível resulta do juízo de apuramento dos factos por um acto jurisdicional com trânsito.
(…)[7].

É que, conforme se refere em acórdão prolatado nesta secção, em que foi relator o ora 1º adjunto,[8] Essa possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado, a quem já foi dada a faculdade do contraditório. Ele teve oportunidade de juntar provas e aduzir as razões de facto e de direito, no processo penal e, não há falta de contraditório. Também Lopes do Rego[[24]] defende que a norma do artigo 674.º- A (actual 623.º do CPC) estabelece “a relevância “reflexa” do caso julgado penal condenatório em subsequentes acções de natureza cível, materialmente conexas com os factos já apurados no processo penal – e tendo, nomeadamente em conta que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, bem como a certeza “prática” de que o arguido cometeu a infracção que lhe era imputada”.

Ora, o R. não é terceiro para efeitos deste preceito legal, tendo sido arguido e condenado no processo crime, onde igualmente foi condenada e demandada a seguradora ora A., resultando os factos nºs 2 a 5 dados como não assentes nestes autos, provados sob o ponto 10 dos autos de processo crime, não podendo os mesmo voltar a ser discutidos, sendo assim o seu julgamento definitivo quanto ao arguido (que diga-se também os não impugna, cfr. decorre da sua contestação).

Assim sendo e em conclusão, altera-se a redacção do facto não provado nº1 que passa a: 
1. Albino …… antes de iniciar a travessia da estrada não verificou se se aproximavam veículos na Estrada da Barca, em ambos os sentidos.
Elimina-se dos factos não provados os pontos 2 a 5 que passam a provados sob as alíneas O, P, Q e R:

“O. Na sequência do embate, o peão sinistrado sofreu dores e as seguintes lesões:
- Politraumatismo da face com fractura do processo alveolar do bloco incisivo superior e à direita;
- Fracturas múltiplas dos seios perinasais e pirâmide nasal;
- Fractura da tacicula radial esquerda (cotovelo esquerdo),
- Fractura dos ossos da perna direita;
- Fractura dos ossos da perna esquerda.

P. Em consequência das referidas lesões, Albino …. foi sujeito intervenção cirúrgica para encavilhamento fechado da tíbia direita e encavilhamento aberto da tíbia esquerda, com internamento hospitalar de 22 de Março de 2009 a 17 de Abril de 2009. Albino ….. apresentava ainda, a 22 de Novembro de 2010, cicatrizes cirúrgicas, com cerca de 7 centímetros de comprimento, na face anterior de cada uma das pernas, imediatamente a seguir ao joelho, e ainda ligeira atrofia muscular em ambas as pernas.
Q. Tais lesões foram causa directa e necessária de 315 dias de doença, sendo 27 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e os restantes com afectação da capacidade de trabalho profissional.
R. Tais lesões afectaram de maneira grave a capacidade para o trabalho de Albino …., bem como a mobilidade do mesmo.” 

Por último, no que se reporta ao facto dado como não provado sob o ponto 6 e aos alegados nos pontos 22 a 27 da p.i., que a A. pretende ver aditados aos factos provados, alega esta que “de toda a dinâmica do acidente (demonstrada nos factos provados - vide docs. 5 e 6 da petição), dos factos alegados pelo Autor, o grau de alcoolemia registado, com os elementos/estudos científicos irrefutáveis (identificados nas presentes alegações), as regras da experiência, as normas legais aplicáveis, a teleologia do legislador subjacente às normas, a ciência e o recurso a presunções judiciais e naturais (nos termos previstos nos artigos 349º a 351º do CC) e ainda do depoimento da testemunha Pedro ….. (depoimento prestado em 27.09.2018 gravado em 20180927101152_12089479_2896502 - entre o minuto 04:00 a 05:00 e o minuto 06:20 a 07:30), tudo devidamente apreciado e conjugado, deverão ser dados como provados os seguintes factos (que incluem o conteúdo do facto não provado 6. e um resumo dos factos alegados pelo Autor nos artigos 22º a 27º da petição):
O Réu tinha os seus reflexos e tempos de reação diminuídos pelo estado de alcoolismo que o dominava, razão pela qual não conseguiu controlar a condução do seu veículo, atenta as condições da via, provocando o acidente. (a aditar ao factos provados sob a letra O);
O álcool ingerido pelo Réu afetou-lhe assim, as capacidades de reação, vigilância, atenção e concentração, diminuindo-as, influindo na menor capacidade para conduzir, sendo tal estado dado causa do acidente. (a aditar ao factos provados sob a letra P);
Bem sabia o Réu que conduzir nas circunstâncias descritas o veículo automóvel dominado pelo alcoolismo, consciente de que não estava em condições de o fazer, criava, como criou, perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado e para a vida e integridade física, quer para si, quer para terceiros, tal como, efetivamente veio a acontecer. (a aditar ao factos provados sob a letra Q);”
Analisada a argumentação expendida pela seguradora recorrente, ouvidos os depoimentos prestados em audiência de julgamento, ponderada a dinâmica do acidente, não podemos concordar com a Srª Juíza de primeira instância, ao dar por não provado o facto nº6, nele incluindo a expressão “exclusivamente”, nem tal está de acordo com o que resultou apurado no âmbito do processo crime, em que o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado.
Denote-se que o R. conduzia com uma taxa de alcoolémia de 1,01 g/l, que de acordo com os estudos científicos citados pelo recorrente (junto aos autos a fls. 60, parecer sobre esta temática), afecta forçosamente a capacidade de percepção, coordenação e reacção do alcoolizado.[9]
Acresce que o R. circulava pela faixa contrária àquela em que deveria circular e sem que se tenha demonstrado (ónus que incumbia ao R.) qualquer causa justificativa para a circulação pela faixa da esquerda, que o embate com o peão se dá nessa faixa (a 1,30 mts da berma esquerda) e que, numa recta com boa visibilidade, apenas existe um rasto de travagem do veículo atropelante de 1 mt antes do embate no peão (considerando que os faróis de um veículo automóvel têm um alcance de pelo menos 30 mts.), tendo o peão percorrido cerca de 4,80 mts da via.

Se é certo que a condução sob o efeito do álcool, por si só, não implica forçosamente a conclusão da existência de um nexo de causalidade entre este estado e o acidente, ou seja, que o acidente ocorreu porque o condutor culpado estava alcoolizado, é igualmente certo que a prova directa é impossível, “diabólica” (cfr. se referia já no Ac. Uniformizador de Jurisprudência nº6/02), sendo então necessário aferir dessa causalidade, mediante a conjugação de diversos elementos, designadamente a prova testemunhal produzida, a própria dinâmica do acidente, o grau de alcoolémia registado, conjugados com elementos científicos irrefutáveis, as regras da experiência, as normas legais aplicáveis e a teleologia do legislador subjacente às normas.[10] 

Ora, da conjugação dos factos acima referidos (a dinâmica do acidente) com a taxa de alcoolémia do R., outra conclusão se não pode retirar, excepto que essa alcoolémia alterou as suas capacidades, diminuiu a sua capacidade espacial, de percepção e reacção ao perigo e que foi este estado o causador do acidente, não se vislumbrando qualquer outra explicação razoável e credível para o facto de este condutor circular pela faixa da esquerda e ter embatido no peão, numa recta com boa visibilidade, intentando a travagem a apenas 1 mt. de distância deste, sendo certo que o teria de ter avistado forçosamente a mais de 30 mts, sem procurar sequer retomar a sua faixa. A única explicação consiste no facto de o estado de alcoolémia lhe ter retirado a capacidade de se manter na sua faixa de rodagem, bem como lhe diminuiu o tempo de reacção face à existência de um obstáculo na via.

Posto isto, o tribunal deve considerar apenas aquilo que constitui facto e não meras conclusões, evitando ainda repetições (cfr. decorreria do pretendida adição de uma alínea P) na versão sugerida) e conclusões (cfr. decorre do pretendida adição da alínea Q), sendo que a consciência aqui referida, e assente no âmbito crime, não é relevante para este circunspecto.
       
Assim sendo, acorda-se na alteração da matéria fáctica, eliminando o facto não provado nº6 e aditando-se aos factos assentes dois novos factos, sob a alínea S) e T), com a seguinte redacção:
S. O Réu tinha os seus reflexos e tempos de reação diminuídos pelo seu estado de alcoolismo;
T. Foi este estado que levou a que o R. passasse a circular pela faixa da esquerda e não conseguisse deter o seu veículo antes do embate no peão.”

Em conclusão é a seguinte a matéria a considerar para decisão da causa:
A. A Autora dedica-se à actividade profissional de seguros.
B. Por acordo celebrado, em 02.07.2003, entre a Autora e a sociedade Manuel …… & ….., Lda., com sede na Rua do Poço, freguesia da Candelária, concelho da Madalena do Pico, e alterado em 02.07.2008, titulado pela apólice n.º 90.00373246, aquela sociedade transferiu a responsabilidade civil pela circulação do veículo ligeiro de passageiros de marca Renault, modelo Megane, com a matrícula ..-…-VE para a Autora.
C. No dia 22.03.2009, pelas 05h10, o Réu conduzia o veículo referido em B., na Estrada da Barca, Lugar do Cachorro, freguesia e concelho da Madalena do Pico, no sentido Madalena/São Roque.
D. Na referida estrada, do lado direito, atento o sentido de marcha do R., existe um estabelecimento de diversão nocturna que, à data dos factos, se denominava Discoteca Later.
E. A via tem a largura de 5,80 metros, é uma recta com boa visibilidade e com iluminação pública, o piso estava em boas condições, encontrando-se seco na data dos factos.
F. A velocidade máxima permitida no local supra referido é de 80km/h.
G. Ao aproximar-se da referida discoteca, o R. circulava pela hemifaixa esquerda, atento o seu sentido de trânsito e a velocidade superior a 80km/h.
H. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, Albino Henrique de Oliveira Rocha tinha acabado de sair da referida discoteca e iniciou a travessia da estrada.
I. (eliminado).
J. Quando se encontrava quase a concluir a travessia da via, faltando apenas cerca de 1,30m para atingir a berma, a pouco mais de meio da hemifaixa esquerda atento o sentido de marcha do Réu, Albino …. foi violentamente embatido pela frente do automóvel conduzido pelo Réu, sendo projectado pelo ar e imobilizando-se no solo a cerca de 25,70m do local de embate e a 6,80m da via, perfazendo uma trajectória diagonal.
K. Após o embate, o R., foi submetido ao exame de determinação quantitativa de álcool no sangue, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue de 1,01g/l.
L. O embate supra descrito deu origem ao processo-crime n.º 49/09.8PBSRQ, que correu termos no extinto Tribunal Judicial de São Roque do Pico, na qual foi o Réu, ali Arguido, condenado por sentença transitada em julgado em 18.12.2014, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, alíneas a) e b), 294.º, n.º 3, 285.º, e 144.º, alínea b) e d), todos do Código Penal, com referência ao artigo 69.º do mesmo diploma legal, e nas contra-ordenações previstas nos artigos 13.º, n.ºs 1 e 4, e 146.º, alínea j), ambos do Código da Estrada, na pena de 320 dias de multa, à razão diária de € 6,00, perfazendo o montante global de € 1.920,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses, nos termos do disposto no art. 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
M. No âmbito do acidente de viação dos presentes autos, a A. pagou ao peão sinistrado, a título de danos resultantes do embate a quantia de € 44.290,00, sendo € 41.290,00 de indemnização e € 3.122,20 de juros.
N. No âmbito do acidente de viação dos presentes autos, a A. pagou ao Instituto de Segurança Social, IP, a título de quantias pagas por este Instituto ao peão sinistrado, por conta de subsídio de doença, a quantia de € 6.801,07, sendo € 6.322,95 de indemnização e € 478,12 de juros.

O. Na sequência do embate, o peão sinistrado sofreu dores e as seguintes lesões:
- Politraumatismo da face com fractura do processo alveolar do bloco incisivo superior e à direita;
- Fracturas múltiplas dos seios perinasais e pirâmide nasal;
- Fractura da tacicula radial esquerda (cotovelo esquerdo),
- Fractura dos ossos da perna direita;
- Fractura dos ossos da perna esquerda.

P. Em consequência das referidas lesões, Albino Rocha foi sujeito intervenção cirúrgica para encavilhamento fechado da tíbia direita e encavilhamento aberto da tíbia esquerda, com internamento hospitalar de 22 de Março de 2009 a 17 de Abril de 2009. Albino …. apresentava ainda, a 22 de Novembro de 2010, cicatrizes cirúrgicas, com cerca de 7 centímetros de comprimento, na face anterior de cada uma das pernas, imediatamente a seguir ao joelho, e ainda ligeira atrofia muscular em ambas as pernas.

Q. Tais lesões foram causa directa e necessária de 315 dias de doença, sendo 27 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e os restantes com afectação da capacidade de trabalho profissional.
R. Tais lesões afectaram de maneira grave a capacidade para o trabalho de Albino Rocha, bem como a mobilidade do mesmo.
S. O Réu tinha os seus reflexos e tempos de reação diminuídos pelo seu estado de alcoolismo.
T. Foi este estado que levou a que o R. passasse a circular pela faixa da esquerda e não conseguisse deter o seu veículo antes do embate no peão.
***

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Funda a recorrente, nas suas conclusões, a sua discordância relativamente à decisão objecto de recurso, essencialmente nos seguintes argumentos:
- o direito de regresso da seguradora não depende da prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolémia do condutor e o acidente, mas apenas de prova de que o condutor culpado pelo acidente conduzia sob o efeito de álcool;
- da dinâmica do acidente resulta, ainda assim, feita esta prova de que foi o álcool que o condutor apresentava no sangue, causa adequada deste acidente;

Decidindo
a)- Da verificação dos pressupostos necessários para operar o direito de regresso da seguradora contra o seu segurado culpado de sinistro ocorrido com taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida. 
A questão decidenda prende-se com a interpretação do disposto no artº 27 c) do D.L. 291/2007 de 21/08.
A este respeito, a sentença recorrida considerou que “(…)A doutrina e a jurisprudência que têm defendido a segunda interpretação, ou seja, a de que se exige para a procedência do direito de regresso, contra o condutor por ter conduzido com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, a prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução com essa taxa e o acidente, avançam os seguintes argumentos: 
Em primeiro lugar, um fundamento de índole histórica, porquanto a redacção de 2007 vem na sequência do entendimento prevalecente anteriormente e plasmado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 6/2000, de 28 de Maio, no sentido de que tinha de haver uma relação de causalidade entre a etilização e o evento. Dai que, se fosse propósito do legislador romper com tal estado de coisas, teria utilizado uma técnica legislativa mais assertiva. A referência a “tenha dado causa” visará, precisamente, consagrar a relação de causalidade entre a etilização e o acidente. 
Em segundo lugar, a desconsideração do nexo de causalidade levaria a uma objectivação das consequências da condução sob a influência do álcool em benefício da seguradora, imputando responsabilidades ao condutor que nada têm a ver com a conduta culposa consistente no estado etílico. Nós acompanhamos e também defendemos este entendimento. Na verdade, o direito de regresso é no dizer de Antunes Varela, (in “Obrigações em Geral”, vol. II, pág. 334) “um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta”, ou seja, este direito das seguradoras não poderá ultrapassar a amplitude do direito em que se fundamenta, in casu na responsabilidade civil do segurado. Daí que considerar-se que o segurado que provoca um acidente com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, por si só, é condição para legitimar o direito de regresso da seguradora, estar-se-ia a sancionar (civilmente) o agente (segurado) pela taxa de álcool no sangue de que é portador, sem a necessidade de se estabelecer um nexo causal entre esse mesmo estado de alcoolemia e os danos resultantes do acidente, e, consequentemente, a alterar a natureza reparadora do direito civil (ao invés de sancionadora), pois que sancionar-se-ia o agente em função da sua culpa e não da causalidade entre a sua acção e os danos casuísticos da mesma.
Assim entendemos que para que o direito de regresso, da seguradora que satisfez a indemnização seja reconhecido tem a mesma, para além de provar a culpa do condutor na produção do evento danoso, alegar e provar, ainda, factos de onde resulte o nexo de causalidade entre a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e o evento dele resultante.”
Adiantamos desde já que não concordamos com o entendimento explanado na decisão recorrida, considerando que existe direito de regresso da seguradora sobre o R., porque independente da alegação e prova do nexo de causalidade entre o estado alcoolizado do condutor e o acidente, procedendo assim a apelação, ainda que não tivesse existido qualquer alteração da matéria fáctica assente.
Não é no entanto, este entendimento unânime, cfr. refere a decisão recorrida, existindo divergência jurisprudencial e doutrinária sobre esta matéria (razão pela qual o conhecimento do recurso quanto à matéria fáctica não se verificou ser irrelevante), embora a maioria da nossa jurisprudência, mormente dos tribunais superiores subscreva a posição por nós defendida.

As divergências em relação a esta matéria colocaram-se ainda na vigência do D,L, 522/85, relativamente à redacção do artº 19 c) o qual dispunha que “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:
c)- Contra o condutor se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandono do sinistrado”.
Constituindo o direito de regresso, um direito ex novo, que surge com a extinção da obrigação principal para com o lesado, ficava assim a seguradora na posição de credora em relação ao segurado pelo que tiver pago ao lesado, caso se verificassem os requisitos específicos previstos então neste artº 19 c) do D.L. 522/85.

E foi a respeito da redacção deste artigo, mormente no que se reportava à expressão tiver “agido sob a influência do álcool” que se colocaram dúvidas de interpretação na nossa jurisprudência e doutrina, tendo sido definidas no âmbito deste preceito, três correntes principais:
- a 1ª defendia que o reembolso pela seguradora era sempre devido, porque representava o desvalor da acção, uma vez que o risco contratualmente assumido não se compadecia com condutores que agiam sob o efeito do álcool, sendo assim automático a existência de um direito de regresso da seguradora sobre o seu segurado alcoolizado[11];
- outra corrente entendia que a seguradora só teria direito de regresso se provasse que o sinistro foi causado pela taxa de alcoolémia de que o condutor era portador;[12]
- por fim também se entendeu que o direito de regresso só existiria se a situação de alcoolémia fosse causal do acidente, embora tal relação fosse de presumir, face ao disposto no artº 1 nº 2 da Lei 3/82, do artº 350 do C.C. e do artº 81 do C. da Estrada;[13]

Face a estas divergências jurisprudenciais, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o acórdão uniformizador de jurisprudência nº 6/02, publicado no D.R. I Série-A de 18/07/02, nos termos do qual considerou que “A alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob o efeito do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”

Entendeu-se neste acórdão que “Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a produção do acidente (artigo 342º do Código Civil) (…).

Os elementos que constituem o fundamento do direito de regresso são factos constitutivos do direito que ao A. cabe demonstrar.(…)
Posto isto, há que concluir que o direito de regresso está limitado no artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85 a situações restritas e que vêm aí mencionadas, não funcionando como sanção civil reparadora contra todo e qualquer agente que provoque o dano. Daí que só possa existir quando se verificarem as circunstâncias aí especificadas. No caso em apreço exige-se que haja condução sob o efeito do álcool a ditar o comportamento do condutor. Não é suficiente que o condutor estivesse sob o efeito do álcool, sendo necessário que esse facto seja a causa ou uma das causas do acidente.”

Com o D.L. 291/2008 de 21/08, o direito de regresso da seguradora sobre o seu segurado passou a estar previsto no artº 27, prevendo-se agora que a seguradora possa peticionar as quantias pagas do seu segurado que “que tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida” (nº1 c).

Substituiu-se pois a expressão “agir sobre o efeito do álcool” e consigna-se agora a necessidade de verificação de dois requisitos para que opere este direito:
- ser o segurado o condutor culpado, (exclusiva ou concorrencialmente na senda do defendido no Ac. do STJ de 06/04/17, relator Lopes do Rego, proc. nº 1658/14.9TBVLG.P1.S1), excluindo-se a responsabilidade objectiva ou pelo risco (cfr. se refere no STJ de 09-10-2014, relator Fernando Bento, Proc. 582/11.1TBSTB.E1.S1)
- que apresente, nessa ocasião uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida.

Sabedor da discussão criada aquando da redacção do anterior artº 19 c) do D.L. 522/85, veio o legislador neste preceito, eliminar o “agir sob o efeito do álcool” e estabelecer dois requisitos, sem que se veja que constitua requisito essencial para a existência de direito de regresso, o nexo de causalidade entre o estado de alcoolémia e o acidente, ou seja que este tenha sido provocado pelas alterações no comportamento e estado físico e psíquico do condutor.

Pressupondo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento da forma mais correcta, não é credível que, com a alteração deste preceito, na sequência do AUJ nº 06/02, visasse o legislador a exigência deste nexo, caso em que o teria referido expressamente.
Efectivamente, “a necessidade de alegação e prova do nexo de causalidade entre o álcool e o acidente não tem qualquer correspondência verbal na letra da lei, porquanto, como se disse, a norma supra citada apenas exige que o condutor tenha dado causa ao acidente, cabendo no seu âmbito qualquer causa, não existindo na letra da lei qualquer alusão ao facto dessa causa ter que estar relacionada com a taxa de alcoolemia de que o condutor era portador. Por outro lado, presumindo-se – como impõe a lei – que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, parece-nos que, face a todo o historial e a toda a polémica que envolveu a redação do anterior artigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, se tivesse sido intenção do legislador impor a necessidade de verificação do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, não teria ele deixado de aludir claramente a essa necessidade, tanto mais que estava naturalmente ciente das divergências que se haviam suscitado a propósito da interpretação da norma que anteriormente dispunha sobre essa matéria. Acresce que não faria qualquer sentido que o legislador tivesse alterado a redacção da norma, caso pretendesse, afinal, que ela valesse com o sentido que já se havia estabilizado na jurisprudência, face ao AUJ n.º 6/2002.”[14]

É aliás esta a posição dominante na nossa doutrina[15] e jurisprudência, quer das relações[16] que do Supremo Tribunal de Justiça[17].

Por outro lado, conforme se refere no Ac. do STJ de 09/10/14 (proc. nº 582/11.1TBSTB.E1.S1) «A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida, perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre nem poderia cobrir os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve. E dizemos nem poderia cobrir porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (art. 81º nº1 e 2 do Cód Estrada e 292º do Cód Penal), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280º nº1 CCivil).

Compreende-se assim que, nesse caso, o contrato de seguro não funcione quando o condutor conduza com uma TAS proibida ou, de outro modo dito, que a condução com TAS superior à legalmente permitida exclua a cobertura do seguro.

E, sem prejuízo da garantia que o contrato de seguro representa para o lesado, satisfeita a indemnização devida a este pela seguradora, o direito de regresso visa, afinal, restabelecer o equilíbrio interno do contrato de seguro, comprometido quando se impôs à seguradora uma obrigação de indemnização por danos verificados quando a responsabilidade civil do condutor não estava (nem podia estar) garantida e coberta pelo contrato de seguro.

A concentração de álcool no sangue para além de certo limite implica um agravamento do risco de acidentes que, por romper o equilíbrio contratual convencionado na proporção entre o risco (normal) assumido e o prémio estipulado e pago não pode deixar de ser juridicamente relevante, em termos de, sem comprometer a indemnização dos lesados, fazê-la repercutir sobre o condutor que deu causa ao acidente.”

Assim sendo, à seguradora que satisfez a indemnização ao lesado, apenas cabe provar a existência de uma taxa de álcool superior à permitida por lei, sendo agora irrelevante a alegação e prova do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, uma vez que “ao conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, o condutor não só violou deveres de segurança no tráfego em relação ao lesado, como chamou a si o risco de suportar o prejuízo” (Mafalda Barbosa, ob citada, pág. 45), entendendo-se que com esta alteração legislativa, operada pelo D.L. 291/07, veio o legislador a estabelecer “uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada - se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados e inteiramente fiáveis – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350º, nº 1, do CC.” (Ac. do STJ. de 06/04/17, Proc. nº 1658/14.9TBVLG.P1.S1), defendendo-se neste acórdão no entanto que “a dita presunção legal carece de ser interpretada e aplicada em consonância com os princípios fundamentais da culpa e da proporcionalidade, em termos de não criar uma responsabilização puramente objectivada, cega e absolutamente irremediável do condutor/segurado pelas indemnizações satisfeitas ao lesado, precludindo-se a garantia emergente do contrato de seguro sempre e apenas em função da verificação totalmente objectivada de uma situação de alcoolemia: representando esta preclusão da garantia do seguro a imposição ao condutor/segurado de um ónus gravoso, implicando uma responsabilidade patrimonial pessoal particularmente onerosa, é naturalmente indispensável que esta imposição de uma responsabilização definitiva pelas quantias satisfeitas pela seguradora aos lesados se possa conformar com os referidos princípios fundamentais, não traduzindo a imposição ao condutor de um ónus manifestamente excessivo e desproporcionado.

E, assim sendo, por força dos referidos princípios estruturantes da ordem jurídica, não excluímos, que o condutor/demandado possa alegar e demonstrar na acção de regresso, com vista a ilidir a referida presunção legal:
como exigência do princípio da culpa - que a situação de alcoolemia, impeditiva do legítimo exercício da condução, lhe não é imputável, por não ter na sua base, por exemplo, um comportamento censurável de ingestão de bebidas alcoólicas na altura da condução do veículo ( demonstrando, por exemplo, que tal taxa de alcoolemia está ligada a factor acidental e incontrolável, como reacção imprevisível a determinado medicamento);
como decorrência do princípio da proporcionalidade - que, apesar da taxa de alcoolemia objectivamente verificada, não ocorreu, no caso, qualquer nexo causal efectivo entre tal situação e o acidente – ilidindo, por esta via a presunção legal segundo a qual qualquer situação de alcoolemia objectivamente proibida funciona como causa efectiva do erro ou falta cometida no exercício da condução: não é, pois, a seguradora que tem de provar, como pressuposto do direito de regresso, a existência de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia verificada e o erro de condução que desencadeou o acidente e o evento danoso, como sucedia no regime anteriormente em vigor, mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção legal, perspectivada como presunção juris tantum, nos termos do nº2 do art. 350º do CC.”

Concordando-se com esta argumentação, trata-se este de um ónus a cargo do condutor culpado ou parcialmente culpado e não da seguradora, conforme se defendia no âmbito do artº 19 do D.L. 522/85.

Procede assim na sua totalidade a apelação interposta pela seguradora.
*

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar procedente o recurso interposto pela seguradora, revogando a decisão recorrida e condenando o R. no pagamento à A. da quantia de € 51.213,27, acrescido de juros de mora, à taxa legal civil, desde a citação até integral pagamento.
*
As custas da acção e recurso, fixam-se pelo apelado (artº 527 do C.P.C.)



Lisboa 02/05/19



(Cristina Neves)
(Manuel Rodrigues )
(Ana Paula A.A. Carvalho)



[1]Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[2]Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S
[3]Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc.1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»
[4]No mesmo sentido vidé Ac. do S.T.J. de 02-10-2008, relator Lázaro Faria, Proc. nº 07B1829; Ac. do T.R.Porto de 05-03-2015, relator Aristides Rodrigues de Almeida, Proc. nº 1644/11.0TMPRT-A.P1 e Ac. do T.R.Guimarães de 29/06/17, Proc. nº 13/15.8T8VCT.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt .
[5]José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3ª edição, págs. 763
[6]Ac. do STJ de 13/01/10, relator Pedro Hespanhol, proc. nº 1164/07, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[7]Ac. da R. Coimbra 17/05/2011, proferido no Proc. nº 540/07.0TBMLD.C2; no mesmo sentido veja-se o Ac. do STJ de 03/11/03, 03B2998, ambos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt
[8]Ac. de 21/06/18, proferido no âmbito do Proc. nº 3369/12.0TBVFX.L1-6, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[9]Na revista Online Circula Seguro identificam-se ainda as seguintes consequências decorrentes do álcool:
§ Um copo de cerveja ou uma taça de vinho: 0,2 g/l – O indivíduo fica um pouco mais confiante, mas ainda está em condições de conduzir. O volume de álcool não é suficiente para causar alterações neurológicas.
§ Uma dose de uísque ou um copo de cerveja: 0,3 g/l – A noção da distância e da velocidade fica alterada. Um carro que parece longe pode estar um pouco mais perto do que você julga.
§ Duas taças de vinho ou dois copos de cerveja: 0,4 g/l – Os reflexos ficam comprometidos e o indivíduo perde a capacidade de responder rapidamente a situações de perigo, por exemplo, demora mais para desviar de um obstáculo inesperado
§ Duas doses de uísque ou duas latas grandes de cerveja: 0,6 g/l – Sensação de euforia. O indivíduo perde a noção de perigo. O risco de acidentes duplica nestas circunstâncias.
§ Quatro taças de vinho ou quatro copos de cerveja: 0,8 g/l – Sensação de calor e rubor facial, perdendo muita coordenação motora e a noção dos detalhes. Ainda consegue conduzir, mas as suas reacções erráticas e muito mais lentas.
§ Quatro doses de uísque ou quatro latas grandes de cerveja: 1,2 g/l – O indivíduo está intoxicado. Não consegue fazer o raio correto de uma curva, nem seguir na sua faixa de forma correta.
[10]Neste sentido vidé  Ac. STJ de 7/11/2006, Proc. 06A2867, Acs. STJ de 27/1/2005, Proc. 04B4639, e de 6/7/2006, Proc. 06B2247 in www.dgsi.pt)Ac. do S.T.J. de 07/09/10
[11]neste sentido vidé Ac. do S.T.J. de 04/04/95 in C.J.S.T.J. de 1995, Vol. III, pág. 151, e Ac. do S.T.J. de 29/04/99 in B.M.J. nº 486, pág. 307.
[12]neste sentido ac. do S.T.J. de 07/12/94 in B.M.J. nº 442, pág. 155, ac. do S.T.J. de 14/01/97 in C.J.S.T.J. de 1997, Vol. I, pág. 39.
[13] neste sentido vidé ac. do S.T.J. de 13/07/95, in B.M.J. nº 449 pág 429.
[14]Maria Amália Santos, O direito de regresso da seguradora nos acidentes de viação, pág. 7, in Revista Julgar Online
[15]Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2010, p. 212; Mafalda Miranda Barbos, Cadernos de Direito Privado, nº 50, Abril/Junho de 2015, p. 45; Maria Amália Santos, O direito de regresso da seguradora nos acidentes de viação, Julgar Online, novembro de 2018
[16]Acs. do TRP de 16-12-2015, proc. nº 4678/13.7TBVFR.P1; TRL. de 04-02-2016, proc. nº 2559-13.3TBMTJ.L1-8; TRE de 05-05-2016, processo nº 82/14.8T8STC.E1do TRP de 11/20/16, Rodrigues Pires, 2326/13.4T2AVR.P1; Ac. do TRE de 11/05/17, relator Manuel Bargado, Proc. nº 4440/13.7TBSTB.E1; Ac. do TRE de 16/10/17, proc. nº 3397/14.1T8LLE.E1; Ac. do TRE de 27/04/17, proc. nº 33/16.5T8STR.E1; Ac. de TRl de 04/02/2016, Ilídio Sacarrão Martins, proc. nº 2559-13.3TBMTJ.L1, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[17]Acs. do STJ de  28-11-2013 proc. 995/10.6TVPRT.P1.S1; Ac. do STJ de 09-10-2014, relator Fernando Bento, Proc. 582/11.1TBSTB.E1.S1; Ac. do STJ de 24-11-2016, proc. nº 96/14.8TBSPS.C1.S1; Ac. do STJ de 07/02/17, relator José Rainho, proc. nº 29/13.9TJVNF.G1.S1; Ac. STJ de 06/04/17, relator Lopes do Rego, proc. nº 1658/14.9TBVLG.P1.S1, todos
disponíveis in www.dgsi.pt.