Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1816/14.6PFLRS.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-Com a incriminação da conduta prevista no artigo 152.º, do CP, visa-se a protecção da pessoa da vítima e da sua dignidade humana.

II-O respectivo tipo objectivo exige que a vítima seja sujeita a “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos, incluindo, segundo o dizer da própria norma, “castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais”.

III-Com reiteração ou não, as concretas circunstâncias em que ocorreu a conduta é que serão determinantes para, a partir delas, se apurar se os factos ilícitos cometidos, valorados à luz do relacionamento entre agressor e vítima, são susceptíveis de constituir um verdadeiro atentado à dignidade desta, para além de ofenderem a integridade física ou a honra, ou atentarem contra a liberdade ou a autodeterminação sexual.

IV-É essencial que fique demonstrado que a conduta ilícita “atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade”, de molde a poder concluir-se que, com tal actuação, o agressor tratou a vítima como mera “coisa” ou “objecto” e não como sua igual, como pessoa livre, titular de direitos que está obrigado a respeitar.

V-A conduta reiterada do arguido, traduzida em injúrias várias, com gravidade e cometidas em público, em ofensa à integridade física, na subtracção do telemóvel da ofendida para visionamento do conteúdo de telecomunicações, em importunação sexual e em pretensos “conselhos” à ofendida para ir ao médico, por não estar “bem da cabeça”, integra o conceito de “maus tratos” físicos e psíquicos, para efeitos de verificação do crime de violência doméstica.(Sumariado pelo relator)

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:Acordam em conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


1.-Em processo comum, sob acusação do Ministério Público - que foi acompanhada pela assistente A.Q. - e após pronúncia, foi submetido a julgamento, perante tribunal singular, na Secção Criminal (J1) da Instância Local de Loures, Comarca de Lisboa Norte, o arguido L., tendo, a final, sido proferida a seguinte decisão[1] (transcrição do dispositivo da sentença):

Nestes termos, e pelo exposto, julgo a pronúncia parcialmente provada, nos termos demonstrados e, em consequência, decide-se:

Parte criminal.
a)Condenar o arguido L., como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.ºs 1, als. a) e c), e 2 do C.P., na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa por igual período, a contar do trânsito em julgado da decisão condenatória.
b)Condenar o arguido em 6 (seis) U.C. de taxa de justiça e nas restantes custas, tudo da responsabilidade do arguido (cfr. arts. 513º e 514º, ambos do C.P.P.).

Parte civil.
a)Julga-se o pedido de indemnização civil deduzido, pela demandante/assistente A.Q., parcialmente procedente e, em consequência, condena-se o demandado/arguido L. a pagar-lhe a quantia de 2.000,00€ (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais.
b)Custas por demandado e demandante, na proporção do decaimento (cfr. art. 446º, n.º 2, do C.P.C.).
…”

2.-Inconformado, recorreu o arguido para este Tribunal de 2.ª instância, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
A.-Por sentença proferida em 25/7/2016, veio o Tribunal a quo a condenar o aqui Recorrente como autor material e na forma consumado, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152° n° 1 alíneas a) e c) e n° 2 do Código Penal, na pena de dois anos e nove meses de prisão, suspensa por igual período, a contar do trânsito em julgado da decisão condenatória.
B.-Para o efeito o douto Tribunal a quo veio a considerar factos provados sustentados em prova cuja apreciação, foi incorrecta, vindo o ora recorrente interpor recurso quanto a matéria de facto, requerendo a apreciação dos factos provados nos pontos 2), 8), 9), 11), 12), 13), 14), e 15).
C.-Resulta tal erro de apreciação de prova de uma incorrecta, da consideração conjugada da prova produzida, confrontação dos diversos depoimentos e compatibilização dos meios probatórios com as regras da experiência comum e da lógica exigível na análise crítica da prova pelo Tribunal recorrido.
D.-Veio o Tribunal a quo a considerar como demonstrado o primeiro ponto 2) dos factos provados, com fundamento numa incorrecta apreciação da prova produzida que não permitia concluir que o aqui Recorrente tenha assumido a conduta que ali vem descrita, conforme se demonstra na prova analisada nos pontos 15 a 30 das motivações acima apresentadas e que aqui se dão como integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais.
E.-Carece de sustentação na prova produzida a decisão do Tribunal recorrido de considerar como provado aquele primeiro ponto 2), uma vez que, de forma credível e espontânea o aqui Recorrente declarou - minutos 05:22 a 05:34 das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento ocorrida em 10/5/2016, entre as 10h06M59s e 10h31M00S, - que havia sido a Assistente a telefonar-lhe e a pedir que fosse ter com ela ao metro do Senhor Roubado, não tendo, por isso surgido de forma inesperada na presença da Assistente naquele local.
F.-Decorrendo da factualidade apurada que dada a rotina diária da Assistente e da ampla prova produzida que o ora Recorrente, não fosse a Assistente a contactá-lo e a solicitar a comparência do mesmo em locais e horas precisas, não tinha como saber do paradeiro dela.
G.-Nesse sentido, corroborando a versão do Arguido, a prova testemunhal e a própria assistente em declarações prestadas sobre esta matéria em sessão de audiência de julgamento havida em 10/5/2016 com depoimento gravado com inicio às 11:43:57 horas e termo às 12:04:26, pronunciou-se no sentido de que a sua rotina não implicava encontrar-se àquela hora na estação de metro do Senhor Roubado - cfr. minutos 05:44 a 05:59 e ainda, 06:57 a 07:31 acima transcritos.
H.-Acrescendo que esta combinação prévia entre o Arguido e a Assistente, foi também corroborada no depoimento da testemunha C.S., a qual encontrava-se com o arguido no momento em que aquele recebeu a chamada telefónica da Assistente a solicitar que fosse ter com ela próximo da estação de metro do Senhor Roubado, conforme depoimento prestado em sessão de audiência ocorrida em 1/6/2016 com inicio pelas 11:55:08 horas e termo às 12:43:41 horas, entre os minutos 12:43 e 13:43 acima transcritos.
I.-Decorrendo desta prova produzida que existiu uma prévia combinação entre ambos, via telefónica, quanto ao local de
encontro, no metro do Senhor Roubado, entre o Arguido e a
Assistente, com efeito, é errada apreciação da prova no sentido de dar como provado facto, no que diz respeito à forma inesperada como o Arguido surgiu junto da Assistente, circunstância insustentada na prova produzida.

J.-Sendo que, também quanto à alegada impossibilidade da assistente em prosseguir o seu percurso - dada como provada - carece de sustentação na prova produzida, que enquanto consequência lógica de o encontro ter sido combinado, quer por não ser essa a intenção daquela, não prosseguiu o seu percurso, porque não quis, conforme resulta das declarações da Assistente - sessão de audiência de julgamento havida em 10/5/2016 com inicio pelas 14:25 horas e termo às 14:49 horas, entre minutos 07:38 e 08:01 acima transcrito - das quais resulta que aquela não tinha qualquer intenção de fugir/ ausentar do local.
K.-Como tal, também não se poderia dar como provado que o Arguido, aqui Recorrente, tenha impedido a Assistente de prosseguir o seu percurso, o qual, por vontade da mesma fora interrompido para conversar, por vontade própria, com aquele.
L.-Resulta da dinâmica dos factos relatados pelos intervenientes e pela prova testemunhal, que é manifestamente infundada a conclusão do Tribunal recorrido em considerar como provado o quanto vem expresso no primeiro ponto 2) dos Factos provados da sentença recorrida, devendo a prova produzida - acima elencada - ser reapreciada no sentido de ser considerado como não provada aquela factualidade.
M.-Relativamente à factualidade vertida nos pontos 8 dos Factos Provados, atendendo à escassa prova produzida sobre aquela questão, e a ter aquela um sentido diverso da factualidade considerada provada revela-se especialmente grave a errada apreciação da prova produzida pelo Tribunal recorrido - cfr. artigos 31 a 41 das alegações supra que se dão como integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
N.-Sendo que da análise da prova produzida quanto aquela questão - declarações do Arguido e da Assistente e depoimento da testemunha J.F.- revela-se insuficiente para se concluir aquele facto como provado.
O.-Assim, analisada o depoimento da testemunha J.F.- sessão de audiência de julgamento havida em 10/05/2016 cuja gravação tem inicio pelas 15:05:40 horas e termo às 15:32:57 horas, entre os minutos 02:52 a 03:38 e 04:41 a 04:46 - que estaria presente no momento do facto, não resulta demonstrado que o arguido tenha proferido a expressão dada como provada pelo douto Tribunal a quo, pois, embora aquela tenha corroborado a versão da Assistente quanto ao pedido de desculpas que o Arguido terá dirigido à filha, não vem imputar ao arguido aquela expressão.
P.-Também a Assistente nas suas declarações - sessão de audiência de julgamento de 10/5/2016 cuja gravação tem início pelas 12:04 e termo pelas 12:31, entre o minuto 11:18 e 11:52 Minutos - não refere a expressão dada como provada, a qual se revela demonstrada pelo Tribunal recorrido sem qualquer sustentação na prova produzida, num erro notório de apreciação da prova produzida.
Q.-Com efeito, revelando a prova produzida uma dinâmica dos factos diversa da considerada pelo douto Tribunal a quo, revela-se insustentado na prova produzida o facto dado como provado sob ponto 8) dos Factos provados da sentença recorrida, devendo a prova elencada ser reapreciada no sentido de se julgar como não provado.
R.-Relativamente aos factos provados sob pontos 9), 14) e 15) dos factos provados na sentença recorrida, comete o Tribunal recorrido um erro notório de apreciação da prova produzida com consequências especialmente graves, uma vez que é imputada ao arguido a prática de uma agressão física sem que, desde logo, seja possível sustentar na prova produzida que tenha sido aquele o autor da mesma - assim, se demonstra nos pontos 42 a 183 das alegações supra que se dão como integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
S.-Resulta tal decisão de notória errada apreciação da prova considerada, bem como na ausência de confrontação com a prova testemunhal produzida quanto a tal matéria e que importaria decisão diversa por não corroborar as declarações da assistente, que serviram como fundamento primordial na conclusão do Tribunal recorrido de terem aqueles factos sido provados, o que revela um erro notório de apreciação de prova.
T.-Conforme decorre da sentença recorrida, o apuramento de tais factos foi sustentado nas declarações da Assistente, na fotografia a fls. 51 dos autos, no exame médico-legal - de fls 298 e 299 e no relatório médico que consta a fls. 105 dos autos, todos analisados nas alegações supra.
U.-Desde logo, concretizou o Tribunal a quo uma incorrecta apreciação da prova produzida quanto este facto, existido erro quanto à determinação da autenticidade da fotografia de fls 51 - prova documental valorada no caso - tendo sido a sua autoria incorrectamente imputada a testemunha que rejeitou ter tirado a fotografia.
V.-Também aquela imagem, atendendo às regras da lógica e da experiência comum, não se revela compatível com a descrição dos factos feita pela própria assistente, sobretudo atendendo à compleição física do aqui Recorrente;
W.-Com efeito, contrariamente ao quanto consta na sentença recorrida, não decorre do depoimento da testemunha J.F.que tenha sido aquela a autora, pelo contrário -sessão de audiência de julgamento de 10/5/2016 entre as 15h05m39s e as 15h32m57s, minutos 16:52 a 16:55 - resulta do depoimento daquela a rejeição de ter tirado a fotografia tendo indicado o seu namorado BAcomo autor.
X.-Por sua vez, a testemunha BA. no seu depoimento também não permite concluir com certeza quanto à autoria da fotografia - depoimento prestado em sessão de audiência de julgamento de 10/5/2016 entre as 15h33m48s e as 15h48m26s nos minutos 10:09 a 10:39.
Y.-Sempre seria de considerar como extremamente inverosímil a versão apresentada por estas testemunhas, sobretudo quando o acto em causa tem pelo menos dois momentos distintos o de tirar a fotografia e o de transferir e disponibilizar a mesma -que se encontra em aparelho próprio - para ser posteriormente junta aos autos. Pelo menos, um desses momentos deveria ser recordado. Não é
Z.-Incerteza que por peculiar e improvável, face às regras da experiência comum e da lógica, não poderia ser ignorada pelo Tribunal a quo.
AA.-Considerando que dos depoimentos dos hipotéticos autores não resultam certezas quanto a terem sido eles a tirar a fotografia, pelo contrário, é manifestamente errada a conclusão do douto Tribunal a quo ao concluir e atribuir a autoria da imagem a testemunha J.F.que rejeitou tê-lo feito.
BB.-Para além da sua autenticidade não ter sido atestada pela prova produzida, mais se realça quanto à mesma que as marcas representadas na mesma, salvo melhor entendimento, também não são compatíveis com o acto de esganadura descrito pela Assistente.
CC.-Da fotografia em causa, apura-se a existência de marcas de arranhão do lado direito na na parte inferior do pescoço da Assistente, apresentando quatro riscos esbatidos correspondente a escoriações, i.e., arranhões de unhas, que não são consequência natural e evidente de uma esganadura, sobretudo com a mão direita e com força suficiente para empurrar aquela contra a parede.
DD.-As marcas visíveis na fotografia são incompatíveis com a descrição feita, desde logo, a colocação da mão direita do arguido de forma a existir impacto das costas da arguida, são lógica e fisicamente incompatíveis com aquelas marcas, uma vez que, as marcas em causa, com quatro arranhões do lado direito da vítima, corresponderia à necessária utilização da mão esquerda, sendo que importaria também a existência de marcas do dedo polegar, o que não se depreende da imagem nem de nenhum outro meio de prova.
EE.-Resulta das mais elementares regras da experiência comum que com a mão direita do arguido as marcas deveriam constar no lado oposto.
FF.-São as lesões retratadas naquela imagem, mais compatíveis com autoflaqelação com marcas nítidas de unhas, dano tipicamente consequente e compatível com autoflagelação, representando escoriações "de arrasto", tipicamente numerosas, paralelas entre si, com a mesma orientação. Conforme se verifica na fotografia de fls. 51. Incompatível com o acto pelo qual foi o arguido, aqui recorrente, condenado.
GG.-Acrescendo que o traçado de incisão de unhas, apresenta uma última linha, já fora do pescoço - o que não se concebe num acto de esganadura - tem um tracejado muito pequeno, mais compatível com a unha do mindinho da Assistente, e não com as unhas, necessariamente maiores do aqui recorrente.
HH.-Sendo que a orientação daquelas, corresponde, não ao facto de que foi o Arguido acusado/condenado mas antes a um movimento compatível com auto-flagelação.
II.-Resulta da prova produzida que a autoria, tempo e local em que a fotografia foi tirada permanece indeterminado, sobretudo quando a fotografia só foi apresentada nos autos bastante tempo depois do episódio.
JJ.-A imagem não é compatível com a descrição dos factos realizada no mesmo dia e posteriormente pela Assistente, sendo compatíveis com marcas de autoflagelação.
KK.-Acrescendo que, embora a assistente tenha apresentado queixa no mesmo dia, o a testemunha Agente SG, indicado pela acusação e que em sessão de audiência de julgamento 17/5/2016 gravação entre 9:57:45 horas e as 10:04:13 horas, veio esclarecer que apesar de ter sido aquele a receber a queixa-crime naquele dia após a alegada agressão física, não viu nenhuma marca no pescoço da Assistente - minutos 04:07 a 04:13 e, ainda, 04:52 a 05:46 - embora a reconhecesse e tenha identificando-a na sala.
LL.-Acrescendo que, também as testemunhas que prestaram declarações quanto a estes factos não conseguiram não mantiver um depoimento lógico, verosímil e coerente entre ambas e sobretudo com a Assistente.
MM.-A Assistente revelou assumir uma postura não colaborante para a descoberta da verdade material, sendo aquela ampla e recorrentemente desmentida pela restante prova produzida, como é salientando pelo Tribunal recorrido ao longo da sentença recorrida, devendo em face disso ter sido diversa a apreciação das mesmas também relativamente enquanto a este facto.
NN.-Com efeito, resulta da sentença recorrida que a Assistente não se inibiu de faltar à verdade relativamente a outras questões, apresentado mesmo uma versão que pela sua incoerência não foram sequer consideradas credíveis pelo Tribunal a quo.
OO.-Sendo aquela recorrente e evidentemente desmentida pela restante prova produzida, não se concebe o motivo de face às dúvidas que decorrem da análise da prova produzida quanto ao facto 9), tenha aquele atribuído tamanha relevância ao depoimento daquela.
PP.-Sendo que das suas declarações prestadas quanto a esta matéria também resulta uma evidente incoerência - sessão de audiência de julgamento em 10/5/2016, na gravação com início às 12:04:26 e termo pelas 12:31:42 - minutos 19:21 a 26:40 -desmentindo-se e apresentando uma versão que não coincide com a versão das restantes testemunhas.
QQ.-Sendo evidentes as divergências entre os três depoimentos - da assistente e das testemunhas – inexistindo corroboração da factualidade que veio a ser considerada provada.
RR.-Assim, a testemunha BA- sessão de audiência de julgamento de 10/5/2016 em gravação com inicio 15:33:48 e termo às 15:48:26 de minutos 01:21 a 04:00 e, ainda, entre 05:41 e 06:10 - revela enormes discrepâncias com a versão da assistente apesar de ser a única testemunha identificada pela Assistente como estando no local.
SS.-Revela também especial insegurança bem como motivações pessoais contra o arguido - conforme depoimento prestado na sessão de julgamento de 10/5/2016 entre minutos 05:41 a 06:10 e 07:57 a 09:17.
TT.-Testemunha que tamanho era o seu sentido de missão que chegou a depor quanto a factos que não presenciou sendo depois desmentido pelo depoimento prestado pela testemunha RS. em sessão de julgamento ocorrida em 17/5/2016 como inicio às 10:07:56 horas e termo às 10:23:49 horas, entre minutos 13:02 a 14:29.
UU.-Por sua vez também o depoimento da testemunha J.F.- sessão de audiência de julgamento de 10/5/2016 entre as 15h05m39s e as 15h32m57s entre minutos 15:19 a 16:25 - decorre uma evidente incoerência com a fotografia de fls 51., durante o qual descreve como tendo visto lesões mais adequadas à de esganadura, mas que não coincidem com a referida imagem e mesmo com a descrição da Assistente.
VV.-Pois, segundo as regras da normalidade e da experiência, as contradições e imprecisões dos depoimentos conjugadas com a intenção clara das testemunhas, a todo custo, quererem provar a versão da Assistente e com as boas relações e proximidade familiar e integração num só grupo daquela e das testemunhas, salvo sempre melhor entendimento, o Tribunal "à quo" não devia valorar o depoimento das mesmas por ser parcial.
WW.-Ao actuar naqueles termos violou o douto tribunal os mais elementares princípios processuais penais, no caso o da "presunção da inocência" e o principio In dúbio pro reo".
XX.-Sempre se dirá que é especialmente grave este erro do Tribunal recorrido uma vez que permite concluir pela verificação do único episódio de violência física -especialmente grave - alegado e exclusivamente sustentado nas declarações da Assistente.
YY.-Realçando-se ainda que a motivação apresentada pela Assistente como justificação para o conflito e agressão física não tem qualquer sustentação na prova produzida e factualidade analisada pelo Tribunal recorrido.
ZZ.-Sendo que, pelas regras da lógica e experiência é bastante mais plausível que o fenómeno tenha sido gerado e ficcionado pela Assistente para alcançar os seus intentos pessoais, atendendo ao facto de ter sido precisamente no mesmo dia em que aquela a dá o primeiro impulso jurídico para o "divórcio litigioso".

AAA.-É a assistente que rompe o ambiente de negociações em que o casal tentava alcançar o divórcio e sem qualquer aviso prévio o Arguido é contacto por um advogado para tratar do divórcio - o que ele também pretendia conforme se demonstrou - e no mesmo dia é apresentada queixa-crime contra ele, reitera-se que visou aquela obter poder negocial contra este.
BBB.-O Tribunal recorrido não poderia desvalorizar o contexto em que se insere o procedimento criminal e tão grave e isolado alegado episódio de violência física, sobretudo atendendo à superficialidade, incoerência e divergências evidenciadas no depoimento da Assistente quanto a esta matéria e até por comparação com outras em que se revelou aquela muito mais indignada mas com e maior lógica e menor quebra de raciocínio na exposição.
CCC.-Sendo que, a restante prova documental - exame médico-
-legal e relatório médico - igualmente sustentado em exclusivo
nas declarações daquela, tratando-se de verdadeira reprodução das mesmas ou em alternativa depoimento indirecto, sem qualquer componente técnica ou de ciência que permita concluir daqueles mais do que a assistente declarou, não se revelam meio idóneo para corroborarem, precisa e novamente as declarações daquela.

DDD.-Conforme decorre designadamente do excerto transcrito para a sentença recorrida, foram aqueles documentos sustentados exclusivamente nas declarações da Assistente, as quais foram reconhecidas pelo próprio Tribunal a quo como tendo falta de credibilidade, o que deveria afectar a apreciação daqueles documentos médicos na medida em que se trata de uma reprodução das declarações da Assistente, revelando- se inidóneos a demonstrar com certeza que a lesão foi realizada por acto de esganadura e sobretudo que foi o Arguido que o concretizou.
EEE.-Tratam-se de meros suportes escritos das declarações da Assistente, obtidos pelos técnicos através da mesma, que ou a citam ou em depoimento indirecto descrevem o que aquela relatou, inexistindo qualquer meio objectivo de diagnóstico ou relatório técnico permita vir desde logo atestar que as escoriações identificadas resultaram dos factos descritos pela Assistente e que foi o Recorrente o seu autor.
FFF.-Com efeito aqueles documentos não tem valor superior a um depoimento indirecto, o qual é nos termos da lei, não pode servir como meio de prova.
GGG.-Na apreciação da prova produzida quando a esta matéria, comete o tribunal recorrido uma grosseira violação do direito de defesa do Arguido, aqui Recorrente, quando relativamente a este facto, avalia o silêncio daquele como "de modo comprometido, não explicou o modo como tais lesões foram provocadas no corpo da sua esposa.", valorando negativamente o exercício de um direito legalmente atribuído ao arguido no artigo 61° alínea d) do código penal.
HHH.-Trata-se de uma valorização negativa do silêncio do Arguido que por ilícita não poderá deixar de ser merecedora de reapreciação pelo douto Tribunal ad quem.
III.-Sendo ainda revelador do sentindo incorrecto de apreciação da prova, invertendo o ónus da prova que recai sobre a acusação.
JJJ.-Não poderá o desconhecimento e impossibilidade do ora Recorrente contribuir para a descoberta da verdade ser avaliada como um constrangimento com aquela factualidade, quando do princípio da oralidade e da imediação resultariam uma enorme indignação e revolta do arguido quanto aos factos de que foi acusado, revelando-se incrédulo com o teor da acusação e a sua discrepância com a realidade, o que de resto conduziu à não demonstração de mais de dois terços dos factos de que foi acusado.
KKK.-Ao atribuir uma valorização negativa do silêncio do Arguido revelou o Tribunal a quo mais uma vez a violação manifesta dos princípios da inocência e do "in dúbio pro reo" que deve ser corrigida, por ilícita e atentatória de direitos processuais fundamentais.
LLL.-Quanto ao ponto 11) dos factos provados, sustentou o Tribunal a quo a sua decisão de dar como provada tal matéria, mais uma vez nas declarações da assistente e na fotografia de fls 57.
MMM.-Relativamente às declarações da assistente, também quanto a esta matéria não se revelaram credíveis, nem corroboráveis pela fotografia de fls. 57, tendo o Tribunal recorrido incorrido num erro notório de apreciação de prova.
NNN.-Ora, na imagem que consta a fls 57 apenas surgem os dois canivetes, fechados, inexistindo qualquer martelo, revelando-se desde logo a incoerência da imagem que pretende retratar aquele facto, com as declarações da Assistente.
OOO.-Acrescendo que, não foi a autoria, data, local da fotografia apurado em sede de audiência de julgamento, durante a qual, embora o Arguido tenha reconhecido ser proprietário dos canivetes - brinde oferta da sua entidade empregadora - referiu que ainda hoje desconhece o seu paradeiro, tendo desaparecido de casa do casal enquanto ainda residiam lá.
PPP.-São aqueles objectos insusceptíveis de intimidar por não serem meio idóneo a provocar qualquer mal.
QQQ.-Inexiste sustentação na prova produzida para considerar como provado o ponto 11) dos Factos Provados da sentença recorrida, o qual vai como tal impugnado.
RRR.-Quanto ao ponto 12) dos factos provados na sentença recorrida, do depoimento do arguido - sessão de audiência de julgamento havida em 10/5/2016 cuja gravação inicia pelas 10:31:01 e termina pelas 10:57:20 entre minutos 17:38 a 22:40 - e da testemunha M.A.- sessão de audiência de julgamento de 10/5/2016 com inicio pelas 17H19M54s e termo pelas 17H27M51s nos minutos 01:40 a 03:40 e acima transcritos - resulta demonstrado qua contrariamente à conclusão do Tribunal a quo, o aqui Recorrente não se dirigiu ao local de trabalho da Assistente para falar com a sua superior hierárquica - M.A., tendo aquela descido para conversar com o Recorrente, não por solicitação deste, mas em substituição do seu colega e também marido.
SSS.-A prova produzida é manifestamente insusceptível de conduzir à demonstração do facto provado sob ponto 12), pelo contrário revela uma dinâmica dos factos oposta, impondo uma decisão diversa da sentença recorrida devendo concluir como facto não provado o ponto 12).
TTT.-Relativamente ao ponto 13) dos Factos provados, embora o arguido tenha confessado que havia dirigido aquela expressão à Assistente pela ausência de dolo na intenção do aqui Recorrente ao fazê-lo, salvo sempre melhor entendimento, não deve integrar a factualidade considerada para a verificação do preenchimento do tipo de crime de que foi o arguido condenado.
UUU.-Pois, como o mesmo explanou nas suas declarações, àquela data - Fevereiro de 2015 - a Assistente apresentava um comportamento incoerente, alterando a sua posição quanto ao acordo a alcançar de forma imprevisível e infundada.
WV.-De resto, conforme veio o douto Tribunal a quo a considerar como credível, veio a testemunha F.G., depor no sentido que a Assistente à data daquele facto apresentava um comportamento instável.
WWW.-Com efeito, não é o facto em causa susceptível de integrar o conceito de maus tratos que releva no crime de violência doméstica.
XXX.-Em face dos evidentes erros de apreciação prova produzida - acima transcrita -importa a sua reapreciação, atendendo-se e observando os princípios violados pelo Tribunal a quo do "in dúbio pro reo" e presunção da inocência.
YYY.-Com a qual sempre se terá que concluir como não provados os pontos 2), 8), 9), 11), 12), 13), 14) e 15) dos factos provados na sentença recorrida, uma vez que é notório que face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados pela demais prova produzida.
ZZZ.-Resultando da reapreciação da prova e alteração da decisão que inexistiu na conduta do arguido qualquer comportamento que pela sua gravidade possa ser integrar o crime de violência doméstica, tendo antes sido demonstrada que houve num contexto de conflito do casal, troca exaltada de impropérios que sempre se dirá, constituíram no máximo o crime de injúrias, p. e p. no artigo 181° do CP e não o crime de violência doméstica, importando a reapreciação da prova produzida uma alteração da condenação para medida menos gravosa, nos termos da Lei.

AAAA.-Uma vez que da prova produzida não só ficou demonstrado que visava a Assistente com o presente procedimento criminal alcançar um objectivo pessoal que nada tem que ver com a censura da conduta do aqui Recorrente, e para o efeito não se inibiu de alterar a factualidade em termos que pudessem constituir uma ofensa relevante característica do tipo de crime.
BBBB.-Contudo da factualidade provada não se verifica que tenha o aqui Recorrente tenha desenvolvido alguma conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para por si só ferir o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica.
CCCC.-Também, não decorre da factualidade provada que os comportamentos do Recorrente tenha sido desenvolvido de forma intensa, reiterada que que possa assumir claramente uma conformação de maus tratos que permitisse lesar a dignidade da cônjuge.
DDDD.-Por isso, não se verificam nenhuma das hipóteses da conduta típica do crime de violência doméstica nos caso em apreço nos presentes autos.
EEEE.-Sendo que subsumindo a factualidade provada - sem prejuízo da necessária e requerida apreciação de prova - ao tipo legal de crime, salienta-se que a conduta do arguido não é idónea a provocar a lesão dos bens jurídicos tutelados pelo crime de violência doméstica.
FFFF.-Com efeito, sempre se dirá que a factualidade pelo seu grau diminuto de intensidade e de lesão, bem como a reapreciação da prova quanto aos factos provados acima elencados importará uma necessária adequação do tipo legal de crime a que se devem subsumir os factos provados, os quais no limite apenas preencheram o crime de injúrias previsto e punido no artigo 181° do Código Penal.
Nestes termos e no mais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se por outra que respeite as especificidades processuais supra indicadas!
*

3.-Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, concluindo pela sua improcedência.
*

4.-Subidos os autos, a Sr. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação emitiu o seguinte douto parecer:

«… tal como configurado pelo recorrente, afigura-se-nos que pretende impugnar a sentença pelas seguintes vias:
-Erro na apreciação da prova /erro de julgamento
-Violação do principio in dúbio pro reu e da presunção da inocência
-Da não verificarão do crime de violência doméstica.
Antes de mais cabe dizer que a magistrada do Ministério Público na 1.ª instância respondeu, ponto por ponto, a cada um dos argumentos aduzidos pelo recorrente, na respectiva motivação, sendo que a argumentação ali desenvolvida, que inteiramente subscrevemos, permite que nos limitemos em reforço da mesma a uns breves apontamentos.

Quanto à impugnação da matéria de facto com base no erro de julgamento.

Antes de mais importa dizer, que não podemos deixar de ponderar por um lado que o tribunal de 2.ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1.ª instância. Só pode alterar o ai decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem - e não apenas permitirem - decisão diversa da proferida [alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º e por outro o princípio ínsito no art. 127.º do CPP, sendo que a sentença impugnada, dele fazendo uso, não deixou de externar o porquê da sua convicção, em cujo processo aquisitivo tirou partido, seguramente, das virtualidades que só a oralidade e a imediação permitem, e de que este tribunal de recurso não pode dispor. Essa convicção, como é bom de ver não reproduzível da documentação da prova, não pode agora ser reexaminada em recurso.

A esta luz, e assim com base no grau de exigência que sempre se impõe, não podemos igualmente deixar de enfatizar, que também a nós se nos afigura, com o decidido, que a prova produzida e examinada em julgamento terá atingido e observado o apontado grau de exigência necessário para uma condenação penal. O mesmo é dizer o standard de prova necessário para uma condenação penal: para além de qualquer dúvida razoável. Como se decidiu, de resto, no Acórdão do STJ, de 31-05-07 (in wwvv.dgsi,pt)«[]Quando a opção do julgador se centra em elementos directamente interligados com o princípio da imediação, o tribunal de recurso só tem a possibilidade de sindicar a aplicação concreta de tal princípio e de controlar a convicção do julgador da 1.ª instância quando se mostre ser contrária às regras da experiencia, da lógica e dos conhecimentos científicos. A atribuição de credibilidade, ou não, o uma fonte de prova testemunhal por declarações,assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, que o tribunal de recurso poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum».

O recorrente dá, é certo, uma versão diferente daquela que o tribunal acolheu, procurando interpretar á sua maneira os depoimentos da assistente, arguido e das testemunhas.

Ora, o que o recorrente pretende fazer, na argumentação que apresenta, é apenas substituir-se ao tribunal na apreciação da prova.

Os argumentos invocados e as transcrições feitas, não são de molde a pôr em crise o juízo formulado, sobre cada um dos pontos que entende terem sido erradamente apreciados.

Sendo certo que dos depoimentos que agora invoca- analisado o conteúdo dos mesmos-, também não é possível retirar as conclusões que pretende, antes se impondo as conclusões a que o tribunal recorrido chegou.

O recorrente entende, ter havido errada apreciação da prova quanto aos factos sob os n.ºs 2), 8), 9) e 11) a 15), convenhamos, porém, que nada do que alega o recorrente é incompatível com a fundamentação da decisão de facto constante da sentença, para onde se remete, dada a clareza que a mesma encerra.

O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada, de forma minuciosa, enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, e do porquê da relevância/credibilidade que lhe foi atribuída, com critérios lógicos e objectivos, e alicerçada nos elementos de prova obtidos em audiência, e invocados na motivação da matéria de facto, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente.

Daqui decorre que a crítica á convicção do tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras de experiência, não pode ter sucesso se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

Não procedendo, assim, as criticas dirigidas pelo recorrente á decisão de facto e não se vislumbrando quaisquer vícios de conhecimento oficioso que a afectem, não pode essa decisão ser modificada, devendo ter-se por fixados os factos provados.

Não se alcança por isso, qualquer dúvida razoável que seja susceptível de infirmar a convicção do tribunal a quo, formulada em conformidade com o disposto no artigo 127° do CPP, ao valorar, como valorou, a prova produzida em audiência, e mais concretamente o depoimento das testemunhas inquiridas, tanto mais que estão bem expressas as razões que conduziram a essa valoração.

Mas ainda que o tribunal ad quem, decidisse reapreciar toda a prova gravada, como parece ser a pretensão do recorrente, sempre lhe faltariam as vantagens que advém dos princípios da oralidade e da imediação.

De resto, só com o tipo de impugnação feita pela recorrente e pela vã tentativa de fazer impor a sua versão dos factos, se compreende que termine por avançar com a invocação da violação do principio in dubio pro reo.

Como é sabido, mesmo o invocado princípio "in dubio pro reo" poderia ser agora sindicado, nesta sede, se da decisão recorrida resultasse que o Tribunal "a quo" havia ficado na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidira contra o arguido, o que não é manifestamente o caso dos autos,
"Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e não tendo esse juízo factual por fundamento uma inversão do ónus da prova (inversão constitucionalmente proibida por força da presunção de inocência), antes resultando do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj) ."

De referir ainda que se não entendem as afirmações constantes dos pontos GGG), HHH) e KKK) das conclusões, respeitantes a uma alegada "...valorização negativa do silêncio do arguido..." com reflexo na violação do direito ao silencio do arguido que se encontra consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e concretizado na alínea d) do artigo 61.º do CPP. Esta garantia dá ao arguido legitimidade para não responder ou para não fornecer provas, sempre que destas resultem elementos auto-incriminatórios. Assim, armado com este direito, pode aquele não responder ao que lhe for perguntado. Acontece porém, que o arguido declarou desejar prestar declarações e prestou-as (cfr. acta de fls. 1156, datada de 10.05.2016.)

Por tudo o exposto, emitimos parecer no sentido da improcedência do recurso.»

5.-Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais foi acrescentado pelo recorrente.
6.-Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***

II.-Fundamentação:

1.-Vejamos, em primeiro lugar, o teor da decisão recorrida no que concerne a matéria de facto (transcrição):

«FACTOS PROVADOS.

Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:

1)O arguido e A.Q. casaram entre si, no dia 8 de Agosto de 2009, tendo nascido dessa união LFQ, no dia 14 de Maio de 2010, residindo na Rua … Ramada, Odivelas, nesta comarca
2)No dia 18 de Outubro de 2013, cerca das 8h30, quando A.Q. se deslocava a pé para o seu local de trabalho, sito no Edifício Marconi, em Entrecampos, Lisboa, e quando se aproximava da estação de metro do Sr. Roubado, o arguido, que se deslocava de motorizada, surgiu-lhe de repente, imobilizou o veículo impedindo-a de prosseguir o seu percurso.
2)Após ter ido ao local de trabalho da assistente, deslocou-se à estação de metro de Odivelas, onde se encontrava A.Q. na companhia da mãe, a quem disse “sua puta”, pontapeando, em acto continuo, um caixote do lixo ali existente.
3)Após o que arrancou o telemóvel da mão de A.Q. e abandonou o local de imediato.
4)Quando já se encontrava na casa dos pais, sita na Rua … Frielas, Loures, nesta comarca, A.Q. ligou ao arguido para que lhe devolvesse o telemóvel, ao que o mesmo imediatamente ali se deslocou.
5)Já na casa dos pais de A.Q., o arguido e na presença destes disse-lhe “destruíste a minha vida” e quando aquela lhe disse que ele lhe tinha batido este respondeu-lhe “foi mais do que merecido”.
6)Em dia não apurado do mês de Abril ou Maio de 2014, o arguido surgiu à porta do prédio onde fica aquela que foi residência do casal e começou a tirar fotografias ao veículo onde um amigo de A.Q. se encontrava à espera desta.
7)Acto contínuo, dirigiu-se à habitação e disse-lhe “és uma vadia”, saindo de imediato para a rua.
8)Alguns segundos depois, o arguido regressou e dirigiu-se à filha do casal a quem disse “desculpa, o papá estava assim a falar com a mamã, mas o papá estava a brincar”.
9)No dia 31 de Outubro de 2014, cerca das 18h30, colocou a mão direita no pescoço de A.Q. e empurrou-a contra a parede do elevador, sufocando-a.
10)No dia 1 de Novembro de 2014, cerca das 20h30, ao aperceber-se que A.Q. tinha ligado para sua irmã, o mesmo despiu-se completamente e disse “a casa é minha ando como eu bem quero”, postura que manteve mesmo quando a irmã daquela surgiu no local e também na presença da menor.
11)Na manhã do dia 22 de Dezembro de 2014, o arguido colocou dois canivetes na bancada da cozinha.
12)No dia 27 de Janeiro de 2015, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho de A.Q., onde pediu para falar com a superior hierárquica desta – M.A..
13)O arguido, no dia 3 de Fevereiro de 2015, disse a A.Q. que “não está bem da cabeça, que tem de ir ao médico, que lhe está a dar um conselho de amigo”.
14)Como consequência, directa e necessária, das condutas do arguido, em especial da sucedida no dia 31/10/2014, A.Q. teve escoriação cervical à direita, o que lhe determinou oito dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
15)Para além das lesões e dores referidas e por causa das condutas do arguido, A.Q. sentiu vexame e humilhação.
16)O arguido sabia que, com as condutas acima descritas, molestava física e psiquicamente a sua mulher e mãe da sua filha, infligindo-lhe maus-tratos físicos e psíquicos, humilhando-a, ofendendo-a na sua honra e considerações pessoais, ofendendo-lhe a respectiva dignidade humana, criando e potenciando na ofendida sentimentos de vergonha, humilhação, diminuição, frustração e causando-lhe angústia, fazendo-o maioritariamente no interior da residência do casal, mas também fora dela, na presença da filha do casal e também de terceiros.
17)Agiu em tudo de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
18)O arguido vive com uma nova companheira (que trabalha na “Z.” e aufere cerca de 800,00€/mês).
19) O arguido tem o 12º ano e um curso profissional de técnico de seguros.
20)O arguido é gestor de seguros na “Z.”, auferindo 1.000,00€/mês, porém, devido ao pagamento de diversas dívidas só aufere 600,00€/mês.
21)O arguido tem como despesas mensais: 500,00€ de crédito bancário (em incumprimento desde Janeiro de 2016, sendo que a casa se encontra devoluta); 60,00€ de água; 70,00€ de electricidade; 80,00€ de gás; 80,00€ de pacote de telecomunicações; 30,00€ da escola da filha (equivalente a 60,00€ de 2 em 2 meses); 30,00€ das senhas de almoço da filha.
22)Do C.R.C. do arguido, junto em fls. 1109, nada consta.
23)Com os comportamentos do demandado, a demandante sofreu vexame, humilhação e dores físicas.
24)O arguido é tido, por amigos e conhecidos, como um indivíduo calmo, conciliador, alegre e trabalhador.

FACTOS NÃO PROVADOS.

Discutida a causa, e com relevância para a decisão final, ficou por provar a seguinte factualidade:
a)Que o arguido e A.Q. se tenham separado em Julho de 2013.
b)A partir de então, sempre que se deslocou à dita residência para ir ver a filha de ambos, o arguido iniciou discussões, especialmente quando A.Q. lhe pediu dinheiro para as despesas da menor, no decurso das quais lhe disse “pensas que ando a sustentar os teus amantes, sua puta; és uma vadia; dormes com as pessoas todas do teu trabalho; porca; enquanto eu contribuir financeiramente para esta casa tenho todo o direito de te exigir justificações”.
c)Que no dia e hora mencionados no art. 3º da acusação/pronúncia o arguido se tenha dirigido à assistente e lhe tenha dito em alto e bom som “sua porca, sua vadia, dormes com todos, devias ter vergonha na cara, não andas a dormir em casa”, tendo, em acto contínuo, lhe desferido uma chapada no lado esquerdo da cara, após o que lhe disse “vou-te difamar, vou dizer a toda a gente a puta que tu és”.
d)Instantes depois, o arguido deslocou-se ao local de trabalho de A.Q., onde provocou desacatos, tendo inclusivamente ligado para vários colaboradores da mesma a quem disse “ela é uma puta, anda a dormir com todos; a A.Q. minha mulher é uma puta, anda enrolada com todos os colegas”, conduta que só cessou, dada a intervenção dos vigilantes da empresa.
e)Que na ocasião mencionada no art. 5º da acusação/pronúncia, o arguido tenha dito à assistente “já andei a ligar para os teus colegas todos, já sabem o que tu és, tu és uma vadia, sua puta, não tens vergonha na cara, destruíste a minha vida”. Que a mãe da assistente, que estava presente, tenha desmaiado. Já na casa dos pais de A.Q., o arguido e na presença destes a tenha chamado de “puta”.
f)No dia 19 ou 20 de Dezembro de 2013, o arguido ao mesmo tempo que a chamou de “vaca, puta, vadia”, desferiu-lhe um empurrão, vindo A.Q. a bater numa cadeira que ali se encontrava.
g)Que após o mencionado no art. 10º da acusação/pronúncia, acto contínuo, o arguido se tenha dirigido à habitação e tenha dito à assistente “tu não tens vergonha nenhuma na cara, não estou aqui para sustentar os teus amantes”, tendo a mesma lhe dito que já estavam separados e que por isso não tinha de se justificar, ao que o arguido retorquiu “enquanto eu contribuir financeiramente tens muito que justificar minha menina”.
h)Como viu que a filha ficou a sofrer, A.Q. ligou para o arguido pedindo-lhe que falassem como duas pessoas adultas, tendo o mesmo lhe dito “isso não vai voltar a acontecer, faço isto porque ainda gosto de ti, porque tu tens toda a gente a apoiar-te e eu não tenho ninguém, perdi tudo, já pensei várias vezes em atirar-me da Ponte 25 de Abril, para ti é fácil, porque és uma mulher bonita, só tens um contra que é teres uma filha e assim não é fácil reconstruíres a tua vida”.
i)Em Setembro ou Outubro de 2014, quando A.Q. lhe pediu o divórcio, o arguido tornou-se de novo hostil, ameaçando-a, desde logo, “dificultar quanto à custódia da menor”.
j)No dia 31 de Outubro de 2014, quando foi contactado pelo advogado de A.Q. para tratarem do divórcio, o arguido disse-lhe “vou buscar a Leonor, assinaste a tua sentença, agora as coisas vão ser à minha maneira”.
l)Nesse dia, cerca das 18h30, o arguido entrou em casa e logo foi buscar uns pertences da menor e apesar de ter sido instado por A.Q., várias vezes, sobre o paradeiro da menor, o mesmo nunca lhe respondeu, mas disse-lhe “puta, vadia, dormes com todos, vou recuperar a minha dignidade, tás com problemas que outros fiquem a saber dos teus amantes, vou tirar-te a Leonor, achas mesmo que vão entregar a Leonor a uma pessoa como tu?”.
m)Após o que e já no jardim ali existente e porque A.Q. o seguiu querendo saber do paradeiro da menina, o mesmo lhe disse “não penses em fazer queixa, tenho muita coisa contra ti, pensas que estive a dormir estes meses, quando pensavas que estava na terra com a menina e não atendia o telemóvel, estava aqui a seguir-te, as saídas à noite, os jantares onde ias, vou receber uma indemnização da Z. e vou gastar até ao último tostão para não ficares com nada”.
n)Neste entretanto o arguido tirou a chave do veículo automóvel que ambos adquiriram durante o casamento e que habitualmente sempre foi utilizado por A.Q., dizendo-lhe “se quiseres vai à polícia a pé, porque tirei as chaves do carro, agora quem manda sou eu”.
o)Por ter ficado com receio do arguido, A.Q. passou essa noite na casa dos pais, regressando a casa no dia seguinte na esperança de que este lhe entregasse a filha, o que não sucedeu.
p)Perante o que A.Q. ligou para o arguido e, deste modo, falou com a filha que lhe disse que iam de férias para o Algarve.
q)Contudo, no dia seguinte pelas 20h30, o arguido deslocou-se à residência e tentou entrar, o que não logrou porque A.Q. tinha a sua chave na fechadura pelo lado de dentro.
r)Apercebendo-se, porém, que o arguido tinha a menor consigo, abriu a porta, e quando estavam os três sentados na sala, o arguido disse-lhe “tu não tens mesmo vergonha nessa cara, devias desaparecer que ela (a filha) daqui a uns tempos não se lembrava de ti, és mesmo uma puta”, perante o que A.Q. pediu-lhe que moderasse a linguagem ao que o arguido retorquiu dizendo “agora vou ficar cá em casa”.
s)Nessa noite, o arguido exigiu partilhar a cama com A.Q..
t)Desde então, o arguido age com A.Q. como se o casamento dos dois ainda existisse, exigindo-lhe satisfações do seu dia-a-dia, chama-a insistentemente de “porca, vadia, puta”, assim como lhe diz que lhe “tira a filha e que nunca mais a vê”.
u)O arguido, desde o dia 1 de Novembro de 2014, passou a andar, regularmente, nu pela casa.
v)No dia 17 de Novembro de 2014, o arguido foi deixar a menor em casa onde estava A.Q., indo acompanhado de um amigo, e disse-lhe “baixa a bola, está caladinha, senão já sabes”, após o que fez com os dedos o gesto significando o órgão genital masculino.
x)No dia 21 de Dezembro de 2014, cerca das 23h00, o arguido dirigiu-se à habitação e foi de imediato ao quarto onde A.Q. estava a dormir com a filha, após o que saiu com o cão; passados dez minutos regressou e disse “tenho um relatório do médico e não posso dormir no sofá”, deitando-se, de imediato, na cama onde aquela estava com a filha, apesar de a mesma não querer, ao que lhe disse “não sei qual é a tua admiração, até parece que é a primeira vez que dormimos juntos”.
z)Na manhã seguinte o arguido tenha colocado um martelo na bancada da cozinha.

aa)No dia 25 de Janeiro de 2015, no interior da residência, o arguido disse a A.Q. que ia levar a filha a um almoço de amigos e como a menor disse que queria ficar com a mãe, o arguido chamou-a de “puta”.
ab)No dia 26 de Janeiro de 2015, quando recebeu a notificação para se deslocar ao Tribunal de Família e Menores de Loures, o arguido ligou à mãe de A.Q. e disse-lhe que “ia fazer a vida negra à filha, manchando-lhe a imagem e que ia enviar fotos íntimas para o seu trabalho, se esta não mudasse de ideias em desistir do divórcio”.
ac)No dia 27 de Janeiro de 2015, o arguido tenha dito a M.A. que “iria expor fotos íntimas da mulher se a mesma não mudasse de atitude em relação ao divórcio”.
ad)Nesse mesmo dia, o arguido impediu A.Q. de entrar no veículo automóvel de ambos para levar a filha do casal à escola.
ae) No dia 29 de Janeiro de 2015, cerca das 8h45, o arguido voltou a impedi-la de conduzir o veículo de ambos e de levar a filha à escola; porém, A.Q. entrou para o banco de trás onde se sentou junto da menor, tendo o arguido dito para e na direcção desta, durante todo o percurso, “o pai chora todos os dias à noite, por a mamã estar a tentar tirar-te do pai”, ao que A.Q. lhe disse que “não era conversa para ter na presença da menina”.
af) Perante o que o arguido lhe disse “se não parares com os processos eu vou ao teu trabalho divulgar fotografias íntimas tuas”.
ag)Desde o dia 18 de Fevereiro de 2015, porque o arguido persistiu em procurar A.Q., especialmente, no seu local de trabalho, a mesma abandonou a residência para parte incerta e deixou de trabalhar.
ah)O arguido retirou da conta conjunta a quantia de doze mil euros que pertencia exclusivamente a A.Q. – pois cinco mil euros lhe foram dados pela irmã, sendo a demais quantia relativa a uma indemnização laboral que recebeu -, fazendo com que esta passe dificuldades e que dependa dele para viver.
ai)O arguido, mais do que uma vez, abriu a correspondência dirigida a A.Q., sem ter qualquer autorização para o efeito.
aj)No dia em que saiu da residência que foi a do casal, o que sucedeu após a sua sujeição a 1.º interrogatório judicial, o arguido deixou a casa num estado imundo, desligou os fios da MEO e levou a televisão assim como deixou uma factura da electricidade por pagar, facto que não deu conhecimento a A.Q., tanto assim que esta, no dia 31 de Março de 2015, teve de sair de casa por tal serviço ter sido cortado.
al)Que a assistente sinta profundo receio pela sua vida e integridade física.
am)Que o arguido tenha actuado de modo reiterado, condicionando a vida, liberdade e bem-estar psicossocial da assistente, causando-lhe sério temor.

III–JUSTIFICAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL.
(…)

2.-Das conclusões que acima transcrevemos - as quais, como tem sido recorrentemente dito, delimitam e fixam o objecto do recurso -, extrai-se que o inconformismo do recorrente relativamente à decisão proferida incide, fundamentalmente, sobre as seguintes questões, de facto e de direito:
-Erro notório na apreciação da prova;
-Impugnação da matéria de facto provada, invocando erro na apreciação das provas, violação do princípio in dúbio pro reo e da presunção de inocência e ainda que houve inversão do ónus da prova;
-Qualificação jurídica dos factos apurados.
***

3.-Apreciemos, pois, cada uma das aludidas questões:

3.1.-O recorrente alega, em algumas das conclusões (R., S. e MMM.) que o tribunal recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova.
Esse erro notório, a existir, consubstancia um vício da decisão, previsto na alínea c) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP.
Tal como os demais previstos na mesma norma, tem este vício de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos estranhos àquela, ainda que constantes do processo - Vd. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, pág. 367; Ac. do STJ de 4/12/2003, Proc. 3188/03, in “Verbojuridico.com/Jurisprudência/STJ”.
Para ser notório, tem o mesmo vício de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, que seja facilmente perceptível numa leitura minimamente atenta e ponderada da sentença e seja denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias ou das legis artis, ou ainda das regras da experiência comum, ou reveladora de que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Por outro lado, a desconformidade da matéria de facto provada relativamente à prova produzida e gravada, ou a arguição de falta de credibilidade de determinada(s) testemunha(s), ou de eventuais contradições entre depoimentos ou entre diferentes versões apresentadas no processo pela mesma testemunha, são situações que, a ocorrerem, poderão eventualmente consubstanciar um erro na apreciação da prova, que justifique a impugnação dos respectivos factos, ao abrigo do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, mas nunca configurando o aludido erro notório. O erro de julgamento que só é detectável mediante a reapreciação das provas, sejam as gravadas ou as demais constantes do processo (documental, por exemplo), nunca pode ser considerado notório, antes estaremos perante um erro encoberto, cuja reparação só é possível através do aludido mecanismo da impugnação dos factos.  
Ora, segundo o arguido (ver as mencionadas conclusões), o alegado erro notório existiria pelo facto de não ser «possível sustentar na prova produzida que tenha sido aquele o autor da mesma» agressão física, ou porque não houve «confrontação com a prova testemunhal produzida a tal matéria e que importaria decisão diversa por não corroborar as declarações da assistente», ou ainda porque as declarações da assistente «não se revelaram credíveis, nem corroboráveis pela fotografia de fls. 57, tendo o tribunal incorrido num erro notório de apreciação da prova».
O que nos leva a concluir que o recorrente usou esta última expressão não com o sentido técnico e específico que ela assume no art. 410.º, n.º 2 al. c), do CPP, mas no sentido mais genérico de que o tribunal incorreu em manifesto “erro na apreciação das provas”, face ao conteúdo destas, o que nos reconduz à aludida problemática da impugnação dos factos, a qual passamos a tratar de seguida, na medida em que, da atenta leitura da decisão impugnada, não surpreendemos nesta qualquer dos vícios previstos naquela norma, nem a mesma padece de nulidades de que cumpra conhecer, ao abrigo do art. 379.º, do mencionado Código.

3.2.-No que concerne à impugnação da matéria de facto, o recorrente indica os factos provados sob os números 2, 8, 9 e 11 a 15, como incorrectamente julgados, invocando existir erro na apreciação das provas, violação do princípio in dúbio pro reo e da presunção de inocência e ainda ter ocorrido inversão do ónus da prova.

Conforme se refere no Acórdão de 15/07/2014, proferido no Proc. 290/97.4 GGSNT.L1-5, deste Tribunal e Secção, «o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova (artigo 430°), uma nova ou suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento».

Vigora em processo penal o “princípio da livre apreciação da prova”, significando que «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» (art. 127.º). Acresce ainda que, em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjectiva, com especial relevância no que concerne à credibilidade da prova pessoal, a qual será bem melhor aferida pelo tribunal de primeira instância, por força da imediação na produção dessa prova, do que pelo tribunal de recurso, onde falta tal imediação.

Pelo que, caberá a este tribunal de recurso, essencialmente, verificar se o tribunal “a quo”, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do supra mencionado princípio, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar ao veredicto de facto, sendo que, tal apreciação deverá ter por base a motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação daquela que foi a sua opção, ao dar cumprimento ao disposto o art. 374.º, n.º 2, do CPP.

Por isso, a censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” (Ac. do TC n.º 198/2004 – DR II série, de 2/6/2004; Ac. do TRL de 7/11/2007, Proc. 4748/07-3).

Em obediência a tais princípios e repetindo o que há muito temos vindo a afirmar, a reapreciação da prova só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, não podendo ocorrer tal alteração quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diversa. Dito de outro modo: havendo, face à prova produzida, duas ou mais possíveis soluções para a questão de facto, se a decisão impugnada se mostrar devidamente fundamentada e a decisão de facto constituir uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, esta deve prevalecer, não sendo passível de crítica, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório.

Daí que, assentando a divergência do arguido relativamente à decisão de facto, essencialmente, numa diferente perspectiva quanto à credibilidade da prova pessoal, no confronto entre as suas próprias declarações, por um lado, e as declarações da ofendida, por outro lado, ainda que corroboradas estas em vários pontos pelos depoimentos das testemunhas de acusação ouvidas em audiência, as probabilidades de a impugnação proceder por essa via são muito escassas. Salvo se, algo de novo, sólido e relevante for invocado e que não tenha sido devidamente ponderado pelo tribunal recorrido, ou que seja susceptível de comprometer irremediavelmente a credibilidade das declarações e depoimentos em que assentou a convicção do tribunal, ou ainda se o recorrente conseguir demonstrar que há desconformidade relevante entre o conteúdo dos meios de prova, (nomeadamente, da prova pessoal) e o que deles foi apreendido pelo tribunal, pois, só nas aludidas condições será possível a formação de diferente juízo quanto à factualidade provada.

O tribunal recorrido reconhece que em muitas das situações a prova se limita às declarações do arguido e da ofendida, sendo a «palavra de um contra a do outro». Em tais situações, o tribunal não deu maior credibilidade a nenhum deles sobre o outro, antes pelo contrário, perante a dúvida que se instalou no espírito do julgador, este, aplicando o princípio in dúbio pro reo, declarou não provados os respectivos factos, ou seja, na dúvida, decidiu a favor do arguido e contra a assistente. Porém, nas demais situações de facto relativamente às quais havia outros meios de prova susceptíveis de fazerem a diferença, foram estes que permitiram uma decisão positiva.

Tal como vem referido na parte final da respectiva fundamentação, «o Tribunal não conferiu maior credibilidade à assistente relativamente ao arguido, e vice-versa, vigorando o princípio in dubio pro reo, apenas não sucedendo tal quando foi produzida prova documental ou testemunhal que corroborasse o alegado por A.Q.».

Todavia, não podemos deixar de frisar que não há qualquer impedimento legal em que o tribunal dê como provado(s) determinado(s) facto(s) com base no depoimento de uma só testemunha, ou apoiando-se apenas nas declarações da própria ofendida - em especial, relativamente aos eventos não presenciados por terceiros, como acontece na maior parte das situações relativas a conflitos entre membros de um casal, que se desenrolam em zonas privadas, ou mesmo íntimas -,  ainda que o arguido negue esse(s) mesmo(s) facto(s), ou havendo mesmo outras testemunhas a afirmarem o contrário. Tudo depende, na verdade, da credibilidade que é concedida, pelo tribunal, a cada um dos declarantes ou depoentes, desde que sejam devidamente explicadas as razões por que essa maior credibilidade foi concedida a uns, em detrimento dos demais.

A esse propósito e apesar da ausência de imediação da prova neste tribunal de recurso - da qual beneficiou o tribunal de primeira instância, o que o coloca, seguramente, em melhor posição nessa matéria -, a impressão que fica da audição da prova gravada é que existe um enorme contraste, em termos de credibilidade, entre as declarações do arguido e da ofendida, pendendo a balança, necessariamente, para o lado desta, ficando-se com uma forte convicção de que, contrariamente ao alegado pelo recorrente, o tribunal recorrido foi bastante exigente e rigoroso na apreciação da prova, ao colocar aqueles dois intervenientes processuais em situação de completa igualdade no que respeita à força probatória das respectivas declarações, só relevando as da assistente quando complementadas por outros meios de prova.

Na verdade, o que ressalta claramente da respectiva fundamentação é a ideia de que a convicção do tribunal, relativamente aos factos provados que, a final, se apresentavam controversos - porque confirmados pela assistente, mas negados pelo arguido -, assentou, não apenas nas declarações daquela, mas também, necessariamente, em outros meios de prova que corroboraram essas mesmas declarações, não tendo sido declarado provado nenhum facto, exclusivamente com base na palavra da ofendida.

Também não vemos razão alguma para que ao arguido seja dada maior credibilidade do que aquela que lhe foi conferida pelo tribunal de primeira instância. Antes pelo contrário.

Relativamente ao facto provado n.º 2 – referimo-nos ao que figura em primeiro lugar, pois, na sentença há dois factos provados sob n.º 2 -, contesta o arguido que tenha surgido à assistente de repente e a tenha impedido de prosseguir o seu percurso.

Aquela contava efectivamente com a chegada do arguido, pois haviam combinado, mediante contacto telefónico ocorrido alguns momentos antes, encontrar-se naquele local, para conversarem. Tal não obsta, porém, que a sua chegada tenha sido repentina, nomeadamente, por ter sido muito mais rápida do que o previsto pela assistente ou porque esta só se apercebeu da sua aproximação quando surgiu junto dela. Todavia, trata-se de uma circunstância totalmente irrelevante para o preenchimento do tipo legal em causa, no conjunto dos factos imputados, na medida em que tal aproximação repentina nada tem de ilícito, nem de censurável, desacompanhada de outras atitudes com diferente relevância. Menciona-se no último segmento do mesmo facto «impedindo-a de prosseguir o seu percurso». A forma como está redigido o parágrafo indica que o arguido, ao imobilizar a motorizada, atravessou-a à frente da ofendida, impedindo-a de prosseguir o seu caminho, contra a vontade desta, como se a mesma não estivesse interessada em parar. Tal não decorre, porém, da prova produzida, nem é compatível com o facto de o arguido se ter deslocado àquele local para ambos conversarem, a pedido da assistente, para fazer com que aquele abandonasse o edifício onde esta trabalhava, segundo a sua própria versão.

Daí que, a versão do mesmo facto n.º 2, para melhor retratar a realidade que decorre da prova, deverá ter a seguinte redacção:
«No dia 18 de Outubro de 2013, cerca das 8h30, quando A.Q. se deslocava a pé para o seu local de trabalho, sito no Edifício Marconi, em Entrecampos, Lisboa, e quando se aproximava da estação de metro do Sr. Roubado, o arguido, que se deslocava de motorizada, surgiu-lhe de repente e imobilizou o veículo junto dela.»
O segundo facto provado sob o n.º 2 não merece qualquer contestação, na medida em que está devidamente apoiado na prova produzida em audiência (declarações da ofendida e depoimento da mãe desta).
O facto provado sob o n.º 8, igualmente impugnado pelo arguido, está interligado com os dois anteriores (factos n.º 6 e 7).

A redacção destes é a seguinte:
«6)Em dia não apurado do mês de Abril ou Maio de 2014, o arguido surgiu à porta do prédio onde fica aquela que foi residência do casal e começou a tirar fotografias ao veículo onde um amigo de A.Q. se encontrava à espera desta.
7)Acto contínuo, dirigiu-se à habitação e disse-lhe “és uma vadia”, saindo de imediato para a rua.
8)Alguns segundos depois, o arguido regressou e dirigiu-se à filha do casal a quem disse “desculpa, o papá estava assim a falar com a mamã, mas o papá estava a brincar”.

Ou seja, naquela data, o arguido, entrando na habitação, que foi comum e agora era da ofendida, dirigindo-se a esta disse: «és uma vadia».
Saiu e, segundos depois, voltou a entrar, proferindo a frase constante do facto n.º 8, para a menor, filha de ambos.
O que releva para a tipificação da conduta é a afirmação do facto n.º 7, sendo, para o efeito, completamente irrelevante o conteúdo do facto n.º 8 – nem mesmo para a agravação do crime, ao abrigo do n.º 3 do art. 152.º, releva tal afirmação, pois, tal circunstância sempre se verificará por o facto n.º 7 ter tido lugar no domicílio -, sendo certo que só o segundo foi impugnado e não o primeiro. Na verdade, o que de útil se retira do referido facto n.º 8 é que o arguido assumiu ter proferido a afirmação constante do facto n.º 7, assunção essa que deixa de ter qualquer significado ou relevância a partir do momento em que aquele aceita este facto como verdadeiro, na medida em que não foi objecto de impugnação.

O facto n.º 9 tem a seguinte redacção:

«No dia 31 de Outubro de 2014, cerca das 18h30, colocou a mão direita no pescoço de A.Q. e empurrou-a contra a parede do elevador, sufocando-a.»

O arguido alega que as lesões verificadas no pescoço da ofendida, pela sua configuração, nunca poderiam ter sido produzidas com a mão direita, sugerindo as marcas do lado direito do pescoço que tais lesões são resultantes de auto-flagelação. Invoca ainda que a foto de fls. 51 foi indevidamente imputada à testemunha Joana Felix, que rejeitou tê-la tirado, sendo a mesma da autoria da testemunha Bruno de Azevedo, e que os documentos – exame médico – que contribuíram para a formação da convicção do julgador não têm valor superior a um “depoimento indirecto”, pois, limitam-se a descrever o que foi relatado pela própria ofendida. Para além disso, o tribunal valorou o silêncio do arguido, invertendo o ónus da prova, cometendo grosseira violação do seu direito de defesa.

Quanto à fotografia de fls. 51 (que retrata o pescoço da ofendida), apesar de a certo passo da fundamentação da sentença se referir que foi “tirada pela irmã da assistente” (ver supra, pag. 25), tal deve-se, seguramente, a lapso, pois, mais à frente (fls. 28 do presente acórdão), resulta claro que a testemunha J.F.(irmã da assistente) diz que a mesma foto foi tirada pelo seu namorado, a testemunha B.A., facto que é por este confirmado. Confirmaram igualmente a existência das marcas no pescoço da ofendida, razão pela qual o referido Bruno tirou a fotografia em causa e foram à esquadra policial, onde foram aconselhados a irem ao hospital, para que aquela fosse examinada e assistida.

Como meio de prova, a fotografia releva em função do que nela pode ser observado, independentemente de quem foi o respectivo autor, não havendo dúvidas de que aquela retrata o pescoço da ofendida e foi tirada na data mencionada nos factos provados, na sequência da conduta imputada ao arguido.

No que concerne aos documentos supra mencionados pelo recorrente, o seu valor probatório não decorre do que foi relatado ao médico pela ofendida - quanto a esta valem as declarações prestadas em audiência -, mas sim do que foi observado pelo médico que a examinou na urgência hospitalar (cfr fls. 105) - resultando do respectivo exame que a mesma apresentava “escoriação cervical à direita compatível com dígitos”, provocando “dor à mobilização” - e ainda das conclusões do perito médico que subscreveu o exame directo de fls. 298/299, no que concerne, nomeadamente, às consequências das lesões verificadas. Não há qualquer confusão com o objecto do depoimento da ofendida, no que respeita às circunstâncias em que foram produzidas tais lesões (quando, onde, como e por quem foram causadas), não estando em causa qualquer “depoimento indirecto”.

O certo é que está medicamente comprovada a compatibilidade daquelas lesões com a alegada agressão, levada a cabo com a mão – cfr. relatório médico de fls. 105.

Por outro lado, perante o dito relatório médico, está demonstrado que a escoriação se apresenta do lado direito do pescoço da ofendida, tal como refere o recorrente.

Também é verdade que, perante tal configuração, a lesão verificada apresenta maior compatibilidade com o facto de ter sido causada com a mão esquerda do que com a direita.

E o certo é que a assistente refere expressamente que o arguido a agarrou pelo pescoço com a mão esquerda (cfr fls. 25 do presente acórdão) e não com a direita, como foi afirmado na acusação e no facto provado n.º 9.

Todavia, para efeitos de incriminação, é totalmente irrelevante que a mencionada agressão tenha sido levada a cabo com a mão esquerda, ou com a mão direita. O que releva é saber se essa agressão ocorreu, nas circunstâncias relatadas pela ofendida, e se foi levada a cabo pelo arguido.

Apesar da negação deste, podemos concluir que, perante o teor das declarações por aquela prestadas em audiência, conjugadas com o teor do relatório e exame médicos supra mencionados e ainda com a fotografia de fls. 51 e os depoimentos das testemunhas J.F.e BA(a testemunha SG, agente da PSP, já nada recordava à data do julgamento), a convicção do tribunal está suficientemente sustentada, inexistindo provas que imponham, quanto a tal facto, decisão diversa, nem havendo o mínimo de indícios no sentido de que tais lesões possam ser consequência de uma eventual auto-flagelação, alegada pelo recorrente.

Assim, ressalvado o aludido pormenor relativo à mão direita ou esquerda, sem qualquer relevo para a decisão da causa, não restam dúvidas de que a conduta do arguido, descrita naquele facto n.º 9, teve lugar, face às aludidas provas.

Por fim, esclarece-se que, para a prova desse mesmo facto, não tem qualquer significado o invocado “silêncio do arguido”, nem o tribunal cometeu, nesse âmbito, uma «grosseira violação do direito de defesa do arguido», nem inverteu o respectivo ónus da prova.

Que o arguido tem o direito de não falar sobre os factos imputados, remetendo-se ao silêncio, sem que possa ser prejudicado por isso, é um direito incontestável, que não foi posto em causa. Aliás, em julgamento, o arguido quis prestar declarações sobre os factos e prestou-as, em total liberdade, sem quaisquer restrições ou imposições.

Confirma-se, porém, que o tribunal, após indicar e fazer o exame crítico das aludidas provas, reproduzindo mesmo o teor do relatório médico de fls. 105, e conferindo, nesta matéria, credibilidade ao alegado pela assistente, termina com a seguinte frase, citada pelo recorrente: «Perante o teor do relatório em causa, o arguido, de modo comprometido, não explicou o modo como tais lesões foram provocadas no corpo da sua esposa».

O mesmo é dizer que, confrontado com o teor do relatório, o arguido remeteu-se ao silêncio. Estamos aqui perante uma constatação de facto, sem quaisquer consequências ao nível da prova. Não pode afirmar-se que o silêncio do arguido foi valorado contra ele, porque a prova do facto em questão decorre claramente dos demais meios de prova, acima especificados. O que se extrai da fundamentação da sentença é que, perante a inexistência de uma outra explicação - nomeadamente do arguido - para o surgimento das lesões no pescoço da ofendida e tendo em conta o teor das aludidas provas - que o tribunal considerou credíveis -, no sentido de que aquelas lesões foram causadas pelo arguido, foi possível formar uma convicção segura, no sentido em que decidiu.

Na ausência de dúvidas sérias quanto à verificação do facto em causa, ao declarar este como provado, decidindo no sentido desfavorável ao arguido, o tribunal não violou o princípio in dúbio pro reo, nem a presunção de inocência de que aquele goza até ao trânsito em julgado da decisão condenatória.

O facto provado n.º 14 afirma que «como consequência, directa e necessária» daquela conduta do arguido - a sucedida no dia 31/10/2014 e apenas esta, havendo incorrecção na respectiva redacção ao referir-se a outras “condutas” -, «A.Q. teve escoriação cervical à direita, o que lhe determinou oito dias de doença, sem incapacidade para o trabalho».

A imputação da respectiva acção lesiva ao arguido já decorria do facto n.º 9, respeitando o n.º 14 apenas às suas consequências, as quais decorrem da perícia médica a que foi submetida a ofendida, que tomou em consideração a observação e relatório médico hospitalar.

Vale aqui o disposto no art. 163.º, n.º 1, do CPP: «O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação da prova». Sempre que a convicção do julgador divergir daquele juízo, deve aquele fundamentar a divergência».

Ora, o facto provado n.º 14 reproduz o juízo pericial formulado pelo médico que procedeu à perícia, inexistindo outros elementos de prova que o questionem. Consequentemente, está sustentado na prova existente nos autos.

Por sua vez, o facto provado n.º 15 diz que, «para além das lesões e dores referidas e por causa das condutas do arguido, A.Q. sentiu vexame e humilhação».

Tratando-se do que a ofendida sentiu ao ser vítima das supra descritas acções do arguido, ninguém estará em melhor posição para o confirmar do que ela própria. Tendo a mesma confirmado a vergonha e humilhação por que passou nas situações acima relatadas, tais consequências são naturais e inevitáveis em tais circunstâncias, sendo confirmadas pelas regras da experiência comum. Estranho seria o contrário, isto é, que a ofendida não se sentisse humilhada e com vergonha, ao ser injuriada e tratada da forma que acima se descreve.

No facto provado n.º 11 consta que «na manhã do dia 22 de Dezembro de 2014 o arguido colocou dois canivetes na bancada da cozinha».

Este facto aparece completamente isolado, sem ligação a qualquer evento relevante, seja imediatamente anterior, ou posterior, e sem que que se alegue qual o objectivo do arguido ao colocar os canivetes na bancada, ou qual o efeito causado na ofendida.

Os ditos canivetes estão fotografados a fls. 57 dos autos - tratando-se de canivetes normais, de pequenas dimensões - e o que o recorrente questiona não é o facto em si mesmo - colocação dos canivetes na bancada da cozinha -, mas a idoneidade de tais objectos para causarem mal, nomeadamente à ofendida.

Assim, nada é alegado que comprove que o aludido facto foi erradamente declarado como provado, inexistindo razões para que se decida de forma diversa. Todavia, também podemos desde já adiantar que, não estando alegado e provado que, com tal acto, o arguido pretendia amedrontar a ofendida, ou que esta se tenha sentido amedrontada, não assume o gesto em questão qualquer relevância criminal.

Quanto aos factos provados sob os n.ºs 12 e 13, a respectiva redacção é a seguinte:
-No dia 27 de Janeiro de 2015, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho de A.Q., onde pediu para falar com a superior hierárquica desta – M.A..
-O arguido, no dia 3 de Fevereiro de 2015, disse a A.Q. que “não está bem da cabeça, que tem de ir ao médico, que lhe está a dar um conselho de amigo”.

No que concerne ao primeiro, é inequívoco que o arguido, na referida data, se deslocou ao local de trabalho de A.Q., onde falou com a superiora hierárquica desta – M.A..

Argumenta o recorrente que o objectivo da sua deslocação àquele local não era falar com a M.A., mas sim com o seu marido e também colega, tendo aquela aparecido em vez deste.

A relevância dessa deslocação para a presente decisão é precisamente a mesma, quer o objectivo fosse falar com a M.A.ou com o marido desta, pois, nada ficou provado relativamente ao teor da conversa havida, não é revelado o assunto sobre o qual o arguido pretendia falar, nem lhe é imputado qualquer objectivo censurável, ou ainda que a dita visita envolvia o seu relacionamento com a assistente. A matéria de facto provada é omissa relativamente a tais pormenores.

Se não fosse a dita irrelevância do aludido facto, nada teríamos a opor a que a expressão dele constante «onde pediu para falar com …» fosse substituída pela expressão «onde falou com …».

Por fim, o facto provado n.º 13: O arguido não nega ter proferido a expressão que lhe é imputada. Antes pelo contrário, aceita tê-lo feito, dando, porém, uma explicação para tal afirmação, que passa pela verificação de que a assistente apresentava, na altura, um «comportamento instável», corroborado, neste ponto, pela testemunha F.G.. 

Consequentemente, o facto está correcto, é verdadeiro, não se vislumbrando fundamento para a sua erradicação da factualidade provada ou a sua alteração.

As explicações dadas pelo arguido não foram levadas à matéria de facto provada, provavelmente, porque o tribunal não as achou suficientemente relevantes ou não tiveram suficiente apoio na prova produzida. Situação relativamente à qual não vemos razões para censurar a decisão recorrida.

Face ao supra exposto e exceptuados aqueles três pormenores acima aludidos - que a ofendida «foi impedida» de prosseguir (facto 2), que a mão colocada no pescoço da ofendida fosse a «direita» (facto 9) e que o arguido «pediu para falar» (mais correcto seria que «falou»), com a M.A.(facto 12) -, todos eles irrelevantes para a decisão, a conclusão a retirar é que inexistem razões para que este tribunal de recurso proceda a qualquer alteração da demais matéria de facto provada, porquanto, as provas indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa da proferida quanto à restante matéria impugnada, pelo que, o tribunal de primeira instância não incorreu em erro na apreciação das provas no que concerne à aludida factualidade, nem ocorreu violação do princípio in dúbio pro reo ou da presunção de inocência do arguido.

Nessa conformidade, consideramos definitivamente fixada a matéria de facto provada, nos aludidos termos, a ela devendo ser aplicado o direito.

3.3.-Passemos, pois, à qualificação jurídica dos factos provados.
Ao arguido era imputada a prática de um crime de violência doméstica e pelo mesmo foi condenado, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na respectiva execução.

A supra descrita conduta do arguido foi, pois, subsumida ao disposto no art. 152.º, n.ºs 1 als. a) e c) e 2, do CP, o qual, sob o título de violência doméstica, pune “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas corporais” a cônjuge ou ex-cônjuge, ou a pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou a progenitor de descendente comum em 1.º grau, ou ainda a pessoa particularmente indefesa que com ele coabite.

Arguido e ofendida eram casados, sendo progenitores da menor L...Q.... Os factos ocorreram na pendência do matrimónio e, alguns deles, no domicílio que foi comum e que passou a ser a habitação da ofendida e da menor, filha de ambos. Verifica-se, pois, a relação familiar pressuposta nas alíneas a) e c) do n.º 1 e a agravante do n.º 2, do art. 152.º, do CP.

Com tal incriminação visa-se a protecção da pessoa da vítima e da sua dignidade humana.
O respectivo tipo objectivo exige que a vítima seja sujeita a “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos, incluindo, segundo o dizer da própria norma, “castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais”. Abarcando, assim, condutas que se traduzam em “violência” física, psicológica, verbal ou sexual, correspondendo aos maus tratos físicos as ofensas à integridade física simples, enquanto os maus tratos psíquicos, decorrentes, nomeadamente, de humilhações, provocações, molestações, etc., podem ser concretizados através de ameaças, mesmo que não configurem o crime de ameaça (art. 153.º, do CP), de coacção simples, ou dos crimes contra a honra (difamação e injúrias). As privações de liberdade incluem o sequestro simples, enquanto nas ofensas sexuais estarão incluídas a coacção sexual, a violação, a importunação sexual, ou ainda o abuso sexual de menores, salvo se as condutas forem punidas mais gravemente pelas respectivas incriminações, afastando o crime de violência doméstica por força da regra da subsidiariedade - Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal …”, pag. 405 (tal como acontece com o crime de maus tratos, relativamente ao qual se autonomizou o de violência doméstica, entre este e o crime de ofensas corporais simples (art. 143.º), o crime de ameaça (art. 153.º), o crime de difamação (art. 180.º), ou o crime de injúria (art. 181.º), “existe uma relação de especialidade, só se aplicando, portanto, a pena estabelecida para aquele”(maus tratos ou violência doméstica, consoante as circunstâncias), sendo o concurso aparente – Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 336).

Com a Lei n.º 59/2007, de 4/9, o legislador pôs fim à querela sobre se a conduta teria de ser reiterada ou não, definindo que o conceito de maus tratos pode ser preenchido com uma conduta isolada, dispensando a reiteração.

Todavia, não é toda e qualquer conduta. Em especial quando esta traduz um comportamento isolado, exige-se uma gravidade notoriamente acrescida e com efeitos nefastos para a vítima, ao nível da sua dignidade como pessoa. Um crime de ofensas à integridade física simples, ou um simples crime de injúria, cometidos em circunstâncias normais, não é pelo facto de a vítima ser cônjuge que passam automaticamente a preencher o conceito de “maus tratos” e a ser considerados “violência doméstica”. Com reiteração ou não, as concretas circunstâncias em que ocorreu a conduta é que serão determinantes para, a partir delas, se apurar se os factos ilícitos cometidos, valorados à luz do relacionamento entre agressor e vítima, são susceptíveis de constituir um verdadeiro atentado à dignidade desta, para além de ofenderem a integridade física ou a honra, ou atentarem contra a liberdade ou a autodeterminação sexual.

Ou seja, é essencial que fique demonstrado que a conduta ilícita “atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade”, de molde a poder concluir-se que, com tal actuação, o agressor tratou a vítima como mera “coisa” ou “objecto” e não como sua igual, como pessoa livre, titular de direitos que está obrigado a respeitar.

O que resulta da factualidade apurada é que, no período de cerca de um ano, o arguido teve vários comportamentos atentatórios da dignidade da ofendida, ocorridos em datas diversas, quer injuriando, em público, quer impondo a sua presença contra a vontade da mesma - nomeadamente na habitação desta, quando já não era a residência do arguido -, quer atentando contra a sua privacidade (subtraindo o telemóvel da mão da ofendida para visionar o teor das mensagens por esta enviadas e recebidas), numa atitude de apertado controle relativamente à sua vida social, e importunando-a sexualmente na sua própria habitação - passeando-se nu pela casa, na presença de terceiros (irmã da ofendida) -, mas também agredindo (factos 9, 14 e 15) e sugerindo que a ofendida devia ir ao psiquiatra porque “não está bem da cabeça”.

Perante tal factualidade - mesmo que desconsideremos a exibição dos canivetes, pelas razões já referidas supra, e o facto n.º 8, por igualmente irrelevante, para o efeito - e à luz dos princípios acabados de expor, entendemos que a conduta reiterada do arguido - consubstanciando injúrias várias, com gravidade e cometidas em público, e ofensas à integridade física, a que acresce a subtracção do telemóvel da ofendida (para visionamento do conteúdo de telecomunicações), a importunação sexual e os pretensos “conselhos” à ofendida para ir ao médico, por não estar “bem da cabeça” - integra o aludido conceito de “maus tratos” físicos e psíquicos, para efeitos de integração no crime de violência doméstica.

Assim, não merece críticas, também nesta parte, a decisão recorrida, tendo o arguido incorrido na prática de tal crime, pelo qual foi condenado.

Não tendo sido suscitadas outras questões, nem as havendo de oficioso conhecimento, é o recurso improcedente.

III.Decisão:       
Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o recurso do arguido L., confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
Notifique.



Lisboa, 01/09/2016



José Adriano
Vieira Lamim



[1]Sentença publicada e depositada no dia 25 de Julho de 2016.

Decisão Texto Integral: