Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5366/05.3YYLSB-A.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: EXECUÇÃO
CESSÃO DE CRÉDITO
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
NOTIFICAÇÃO DO EXECUTADO
OMISSÃO DE FORMALIDADES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A falta de notificação do executado/devedor para contestar incidente de habilitação de cessionário contra si deduzido é uma nulidade principal, que pode ser invocada em qualquer estado do processo, desde que não sanada, sendo cognoscível até ao trânsito em julgado da sentença – artigos 187.º, alínea a), 188.º, n.º 1, alínea a), 189.º “a contrario”, 198.º, n.º 2 e 200.º, n.º 1, do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. Em 31-01-2005, A [ …. Bank (Portugal), S.A.] , como Exequente] propôs execução comum para pagamento de quantia certa contra J… e   D…. [Recorrente], com base num Contrato de Crédito Pessoal com Domiciliação Externa e na subscrição de uma Livrança em branco [título executivo], destinada a garantir o cumprimento do citado contrato, o que veio a suceder, tendo este título sido preenchido pela quantia em dívida de € 3.537,98 que não foi paga pelos Executados, apesar de interpelados para o efeito.
2. Com data de 07-09-2007, a Executada D… foi citada para os termos da execução, através de carta registada com aviso de recepção.
3. A execução prosseguiu os seus termos normais e, em 29-10-2014, a sociedade F… Unipessoal, Lda., veio requerer incidente de habilitação de cessionário, contra os Executados J… e …, que foi autuada como apenso “A” dos autos principais.
3.1. Alegou, para tanto, os seguintes fundamentos:
«I. Por operação de fusão transfronteiriça por incorporação o A. foi incorporado no DEUTSCHE BANK EUROPE GMBH, passando a operar em Portugal sob a firma DEUTSCHE BANK EUROPE GMBH - SUCURSAL EM PORTUGAL, conforme código de certidão permanente n.º 6447-5555-1061.
II. Por sua vez, o DEUTSCHE BANK EUROPE GMBH por meio de contrato de cisão e transferência cedeu ao DEUTSCHE BANK AKTIENGESELLSCHAFT a totalidade dos seus activos e passivos, desenvolvendo a sua actividade em Portugal pela sucursal DEUTSCHE BANK AKTIENGESELLSCHAFT – SUCURSAL EM PORTUGAL, conforme certidão permanente n.º 6104-4517-5280
1.º No passado dia 31 de Dezembro de 2013, o A celebrou com F…, Unipessoal, Lda. um contrato denominado de “Contrato de Cessão de Créditos”, conforme contrato e respectiva tradução devidamente certificada que se juntam como doc. 1 e doc. 2 e cujo conteúdo se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2.º No âmbito do contrato celebrado o A, cedeu à F…, Unipessoal, Lda. (cessionário) uma carteira de créditos, onde se incluía o crédito detido sobre o ora devedor melhor identificado nos autos.
3.º Acresce que no âmbito do Anexo 3 do Contrato de Cessão de Créditos, já junto como doc. 1 e 2, é feita a remissão para mapa em formato Excel que contém a lista dos créditos cedidos.
4.º Contudo e por questões inerentes ao sigilo bancário a que as partes no referido Contrato estão obrigadas, não é possível o envio da listagem de todos os créditos cedidos.
5.º Assim sendo, a Requerente procedeu a uma selecção da informação respeitante em específico ao crédito que detém sobre o devedor, que ora se junta como doc. 3 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
6.º Por sua vez, a F…, Unipessoal, Lda., Lda, aceitou todos os créditos cedidos.
7.º Com a referida cedência da carteira de créditos foram transmitidos os respectivos direitos e garantias.
8.º Deste modo, o crédito subjacente ao contrato celebrado com os Requeridos, foi cedido pelo A à F…, Unipessoal, Lda., conforme resulta do doc. 1 já junto.
9.º Acresce que decorre do disposto no artigo 577.º, n.º 1 do C.Civil que “O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor”.
10.º A instância modifica-se quanto às pessoas, além do mais, em consequência da substituição, por transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou do direito litigioso, de alguma das partes, nos termos do artigo 262.º alínea a) e 263.º n.º1 ambos do Código de Processo Civil.
11.º Ora, face aos documentos juntos não restam dúvidas de que ocorreu a invocada cessão e com cedência da carteira de créditos foram transmitidos os respectivos direitos e garantias.
Destarte, requer-se a V.Exa. que se digne a deferir o presente incidente de habilitação, habilitando a F…, Unipessoal, Lda., na qualidade e posição de Exequente nos presentes autos e também que proceda às notificações das partes contrárias nos termos do artº 356º nº1 a) do CPC.»
3. Em 21-04-2015, o Senhor Juiz a quo, proferiu a seguinte Decisão, com a ref.ª 334378183:
«Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa veio F…., Unipessoal, Lda. requerer a habilitação, enquanto cessionária do crédito exequendo.
Alegou que, por contrato, a exequente cedeu à ora habilitante o crédito reclamado, composto de capital e juros vencidos e vincendos, incluindo garantias.
                                          *
Foram juntos documentos comprovativos da cessão.
                                          *
O Tribunal é o competente e o meio processual empregue, o próprio.
Inexistem quaisquer excepções, nulidades ou questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa.
                                            *
Assim, face à prova documental junta, julgo habilitada, como cessionária do crédito reclamado, a F…, Unipessoal, Lda. para com ela seguir termos a mencionada execução (arts. 352º nº 1 e 354º e 356º nº 1 al. a) do CPC).
Custas pela requerente, com taxa de justiça que fixo em 1 Uc.
Registe e notifique, sendo o executado(s) apenas aquando da citação no processo principal.»
3.1. A citada sentença apenas veio a ser notificada à Executada, mediante carta de notificação com a referência 380394181, datada de 12-10-2018.
4. Inconformada com a dita sentença, apelou a Executada e Requerida D… para esta Relação, rematando as alegações de recurso as seguintes conclusões:
«1. A Recorrente não se conforma e pretende ver submetida à apreciação dos Venerandos Desembargadores a douta sentença proferida com a referência 334378183, datada de 21.04.2015, notificada à Recorrente mediante oficio emanado no apenso B destes autos, datado de 12.10.2018, sob a referência 380394181, a qual determinou a habilitação de cessionária da sociedade Recorrida F…, Unipessoal, Lda.
2. Não correspondente à verdade o feito constar na douta sentença recorrida que “Inexistem quaisquer excepções, nulidades ou questões prévias que obstem à apreciação de mérito da causa”, ponderação tomada que determinou a decisão pelo mesmo Tribunal de habilitar a Recorrida como cessionária do crédito exequendo.
3. Conforme resulta dos autos, nem com a notificação agora promovida que motivou a apresentação do presente recurso pendente da douta sentença proferida em 21.04.2015, à Recorrente foi notificada a petição inicial de habilitação de cessionário intentada pela Recorrida, assim como, dos documentos que a acompanham.
4. Nunca a Recorrente foi notificada para, querendo, contestar o aludido incidente, nem tão pouco, dado conhecimento do seu teor.
5. Ao não ser promovida a sua notificação foi omitida uma diligencia essencial para validamente ser proferida uma decisão de mérito da causa, como foi feito pelo Tribunal a quo, por violação de normas imperativas, nomeadamente o previsto nos artigos 352.º, n.º 1 e 356.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPC, assim como, por violação do princípio do contraditório, da cooperação, da aquisição processual de factos, da igualdade substancial das partes e da composição justa do litígio, que veda a possibilidade de existir um tratamento privilegiado e discriminatório de uma das partes quanto ao uso dos meios garantísticos de defesa, em desvantagem para a Recorrente.
6. Facto que acarreta nulidade e impõe a anulação da sentença recorrida, a par das interlocutórias e das posteriormente proferidas, inclusivamente em apensos subsequentes a este, que igualmente se mostram viciadas.
7. Sem prescindir e caso assim senão entenda, sem prejuízo do alegado quanto à ausência de notificação à Recorrente do teor do incidente de habilitação de cessionário e dos documentos que a acompanham, nunca poderia o Tribunal a quo julgar os documentos juntos pela Recorrida como prova bastante da cessão de créditos invocada e a sua produção de efeitos para os presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 356.º, n.º 1, alínea a) do CPC.
8. Na verdade, nos incidentes, como é o caso dos presentes apensos, a prova é apresentada no próprio requerimento em que o mesmo é suscitado, nos termos do artigo 293 nº 1 do CPC.
9. Cremos que o tribunal só pode dispensar a produção de quaisquer elementos probatórios quando já se encontre esclarecido sobre a matéria controvertida.
10. Ora, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não dispõe de prova bastante para julgar válida a cessão.
11. Após a presente consulta dos autos, nota a Recorrente que os documentos juntos pela Recorrida com o incidente de habilitação são insuficientes para fazer prova da alegada habilitação de cessionário, quer quanto à forma, quer quanto à substancia e efeitos jurídicos, em relação à Recorrente.
12. A Recorrida, na petição inicial, faz referencia à junção de três documentos, que mais não são do que documentos (folhas) desprovidos das características de documentos autênticos ou dotados de força probatória plena.
13. Quanto ao alegado “contrato de cessão de créditos” é notório que o mesmo não é dotado de reconhecimento de assinaturas, do mesmo não consta a identificação e qualidade dos eventuais representantes legais das sociedades que os outorgam, sobre o mesmo não é feita a certificação da sua tradução da língua inglesa para a portuguesa, como alegado na petição inicial, nem consta a certificação daquelas fotocopias em face de documentos originais.
14. Quanto à referência a um documento que alegadamente prova a existência da cessão do crédito para a sociedade Recorrida (indicado como doc. n.º 3), o mesmo não existe nos autos como tal: trata-se de uma folha com letras e números descontextualizados e ininteligíveis, sem qualquer alusão ou identificação da Recorrente.
15. É um documento desprovido de qualquer assinatura, data, nomenclatura, timbre ou explicação do seu conteúdo, que não permite a um destinatário (homem médio) a percepção do seu conteúdo, muito menos, a verificação da cedência do crédito primitivo sobre a Recorrente a favor da Recorrida.
16. Pelo que, não são meios de prova admissíveis e seguros para a verificação da existência da cessão invocada, como se exige, seguindo os mesmos impugnados quanto à sua falsidade, falta de autenticidade e força probatória, nos termos do disposto no artigo 446.º, n.º 1 e 2 do CPC e quanto à falta de genuinidade do doc. n.º 1, desconhecendo a Recorrente se a letra e assinaturas ali constantes são verdadeiras e se correspondem aos seus respectivos titulares, nos termos do disposto no artigo 444.º do CPC.
17. É mais do que evidente que o Tribunal a quo não estava munido de documentação bastante e minimamente suficiente para apreciar e validar a pretensa habilitação da Recorrida sobre o pretenso crédito sobre a Recorrente D…
18. Nem tão pouco na decisão proferida constam os fundamentos que terão determinado o M. Juiz a quo a pronunciar-se favoravelmente à capacidade daqueles documentos serem bastantes para a prova da cessão de créditos, em desfavor de entendimento contrário, bastando-se com a referencia: ““Foram juntos documentos comprovativos da cessão (…) Assim, face à prova documental junta, julgo habilitada, como cessionária do crédito reclamado, a F…, Unipessoal, Lda. para com ela seguir termos a mencionada execução (arts. 352º nº 1 e 354º e 356º nº 1 al. a) do CPC).”, em violação do disposto no artigo 154.º, n.º 1 e 2 do CPC.
19. Em face do que fica exposto, considera-se que o Tribunal a quo andou mal ao tomar a decisão sobre a questão de admitir a intervir a F…, Lda nos autos.
20. Pelo que é também por esta razão nula a sentença proferida, devendo a ser anulado todo o processado a partir da apresentação do incidente de habilitação de cessionário apresentado pela Recorrida, seguindo-se ulteriores termos.
21. Sem prescindir, em face de não ter ficado provado a notificação da referida cessão pela Recorrida à Recorrente, em momento anterior ao presente incidente, sempre tal facto tornaria o suposto negócio (de cessão) ineficaz em relação a esta - artigo 583º, n.º 1, do CC. É que a notificação da cessão ao devedor ou a aceitação desta servem ainda para lhe atribuir eficácia quanto a terceiros, apresentando um alcance análogo ao que se consegue, noutros casos, com os meios de publicidade, desempenhando uma função análoga à do registo.
22. A cessão opera entre as partes (cedente e cessionário), independentemente da sua notificação ao devedor, no entanto, em relação ao devedor é necessário que a cessão lhe seja notificada, nos termos preceituados do n.º 1 do artigo 583.º do C. Civil. A lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido, o que in casu não ocorreu.
23. Por tudo quanto vai dito, dúvidas não podem restar que mal andou o Tribunal a quo, em violação do disposto nos artigos 3.º, 4.º, 6.º, n.º 2, 7.º, 154.º, n.ºs 1 e 2, 195.º, 196.º, 197.º, 292.º, 293.º, 351.º, 352.º, 356.º, 415.º, 607.º, n.º 4 e 5, 615.º n.º 1, d), 630.º,n.º 2, todos do CPC, artigos n.ºs 342.º, 583.º, ambos do CC e, bem assim, no artigo 20.º da CRP.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença posta em crise, datada de 21.04.2015, substituindo-a por uma outra que, julgue anulado todo o processado desde o incidente de habilitação de cessionário promovido pela Recorrida, inclusivamente de despachos e decisões interlocutórias posteriores àquela, nomeadamente nos apensos subsequentes (apenso B), seguindo-se ulteriores termos. Sem prescindir e caso assim senão entenda, ser julgado totalmente improcedente o incidente de habilitação de adquirente ou cessionário deduzido pela Recorrida, com o que farão V. Exas. a costumada e esperada JUSTIÇA».
5. Os Requeridos não apresentaram contra-alegações.
6. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Objecto do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 5.º, 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 3, do CPC), sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608, n.º 2., “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal. E porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Consoante resulta das conclusões das alegações da Apelante, as questões cruciais a decidir são as seguintes:
- Questão principal:
Da nulidade processual, por falta de notificação à Executada e Recorrente da petição inicial do incidente de habilitação de cessionário, para contestar a habilitação, querendo.
- Restantes questões [subsidiárias]:
1.ª - Da inidoneidade dos documentos juntos com o requerimento de habilitação para provarem a cessão de créditos invocada pela cessionária e Recorrida F…;
2.ª - Da ineficácia do negócio de cessão de créditos em relação à Executada e Recorrente, por falta de notificação extrajudicial a esta Devedora, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 583.º do Cód. Civil.
III - Fundamentação
A) Motivação de Facto
Os factos que relevam para a decisão do recurso são os descritos no relatório supra que resultam da tramitação da causa.
B) Motivação de Direito
1 - Questão principal:
A Executada e Recorrente pretende a anulação de todo o processado desde o incidente de habilitação de cessionário promovido pela Recorrida F.., inclusivamente da sentença de habilitação de cessionário em crise, proferida em 21-04-2015, despachos e decisões interlocutórias posteriores àquela, nomeadamente nos apensos subsequentes (apenso B), seguindo-se ulteriores termos processuais.
Argumenta, para o efeito, em resumo, que não em nenhum momento processual antecedente foi a Recorrente notificada da petição inicial de habilitação de cessionário intentada pela Recorrida F… ou, sequer, para contestar o incidente por esta suscitado.
À Recorrente nunca foi dado a conhecer o teor do incidente de habilitação de cessionário, assim como, quaisquer documentos que o acompanhem ou sequer legitimem.
Nem tão pouco, com a notificação da sentença em crise, efectuada em 12-10-2018, foram aqueles documentos dados a conhecer à Recorrente.
Ora, o artigo 352.º do CPC estabelece, no seu n.º 1, que: “Deduzido o incidente, ordena-se a citação dos requeridos que ainda não tenham sido citados para a causa e a notificação dos restantes, para contestarem a habilitação”.
Também artigo 356.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicável à habilitação do adquirente ou cessionário, dispõe que:
“1. A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, faz-se nos termos seguintes:
a) Lavrado no processo o termo da cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar (…)”
In casu, este preceito foi, claramente, violado porquanto, como resulta dos autos, a Executada, Requerida e Recorrente em nenhum momento processual antecedente à prolação da sentença sob recurso foi notificada da petição inicial do incidente de habilitação de cessionário intentado pela Recorrida F… ou, sequer, para contestar a habilitação deduzida.
Isso mesmo reconheceu o Tribunal a quo em despacho proferido no apenso “B”, em 10-10-2018, com a ref.ª 380117798, com o seguinte teor, no que para aqui releva:
Considerando o alegado quanto à falta de notificação da sentença de habilitação de cessionário proferida no apenso “A”, em 21/04/2015, sendo certo que não está documentada a notificação da executada (não obstante esta ter sido citada em 2007 - cfr. fls. 45 da execução), proceda-se agora à notificação da referida sentença (…)”
Em causa está, assim, como bem refere a Recorrente, a violação do princípio do contraditório pelo facto do Tribunal a quo ter decidido sem previamente permitir à Executada e Requerida contestar a habilitação de cessionário deduzida, tendo-se visto confrontada com uma decisão-surpresa.
O princípio do contraditório é estruturante do nosso direito processual, tanto assim que surge consagrado no art.º 3º do Código de Processo Civil como forma de evitar a chamada “decisão-surpresa”, constituindo inclusivamente uma manifestação do direito fundamental de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa.
Nos termos do n.º 3 do art.º 3º o juiz deve observar e fazer cumprir o princípio “ao longo de todo o processo”.
Como bem refere a Recorrente na conclusão 5.ª do recurso “Ao não ser promovida a sua notificação foi omitida uma diligencia essencial para validamente ser proferida uma decisão de mérito da causa, como foi feito pelo Tribunal a quo, por violação de normas imperativas, nomeadamente o previsto nos artigos 352.º, n.º 1 e 356.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPC, assim como, por violação do princípio do contraditório, da cooperação, da aquisição processual de factos, da igualdade substancial das partes e da composição justa do litígio, que veda a possibilidade de existir um tratamento privilegiado e discriminatório de uma das partes quanto ao uso dos meios garantísticos de defesa, em desvantagem para a Recorrente.
Por conseguinte, manifesto se torna que tal omissão [falta de notificação da petição inicial do incidente de habilitação de cessionário] configura uma nulidade que anula tudo o que foi processado no apenso “A” depois da petição inicial, salvando-se apenas esta, anulando, designadamente, a sentença recorrida e todos os actos praticados posteriormente no processo principal e apenso subsequente [apenso “B”], que daquela sentença inválida sejam dependentes [cfr. disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.ºs 1 e 3, 187.º, alínea a) e 188.º, n.º 1, alínea a), do CPC.]
Tal nulidade não se mostra sanada, pois a Exequente, aqui Recorrente, arguiu tempestivamente a falta de notificação da petição inicial do incidente de habilitação em causa – artigo 189.º “ a contrario”, do CPC.
Trata-se de uma nulidade principal, que pode ser invocada em qualquer estado do processo, desde que não sanada, sendo cognoscível até ao trânsito em julgado da sentença – artigos 187.º, alínea a), 188.º, n.º 1, alínea a), 189.º “a contrario”, 198.º, n.º 2 e 200.º, n.º 1, do CPC.
Tudo visto, o recurso procede na totalidade, o que significa que a decisão apelada, merecendo censura, deve ser substituída por outra que declare verificada a nulidade de tudo o que se processou depois da petição inicial do incidente de habilitação de cessionário deduzido pela Recorrida, salvando-se apenas esta, anulando-se a sentença recorrida, de 21-04-2015, bem como os despachos e decisões interlocutórias posteriores à mesma, que dela sejam dependentes, proferidos no processo principal e no apenso subsequente [apenso “B”], seguindo-se os ulteriores termos da causa.
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2. A apreciação das questões [subsidiárias] ficou prejudicada em face da solução dada à questão principal – artigo 608.º, n.º 2, 1,ª parte, do CPC.
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IV) Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação e, em consequência declarar verificada a nulidade de tudo o que se processou depois da petição inicial do incidente de habilitação de cessionário deduzido pela Recorrida, salvando-se apenas esta, anulando-se a sentença recorrida, de 21-04-2015, bem como os despachos e decisões interlocutórias posteriores à mesma, que dela sejam dependentes, proferidos no processo principal e no apenso subsequente  [apenso “B”], seguindo-se os ulteriores termos da causa.
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- Custas do recurso pelos Recorridos/Requeridos – artigos 527.º do CPC.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 6 de Junho de 2019

Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho
Gabriela de Fátima Marques