Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9814/03.9TVLSB.L1-7
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: COMISSÃO
TAXA
AGÊNCIA
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Extraordinariamente, pode ser atribuída legitimidade a quem não é titular da relação material controvertida, consistindo na denominada substituição processual (ou legitimidade indirecta).
II - Na substituição processual, ao contrário da representação, a parte é o substituto e não o substituído.
III - O sujeito não titular da relação controvertida só gozará de legitimidade indirecta nas situações expressamente previstas por lei.
IV - A legitimação extraordinária, traduzida na atribuição de legitimidade indirecta, nunca depende das meras afirmações do autor, mas da concreta configuração da situação em que assenta a legitimidade, designadamente da efectiva demonstração do interesse ou da titularidade da relação legitimante que justifica a atribuição de legitimidade indirecta.
V - Na falta de qualquer disposição legal que atribua às associações o poder de actuar em nome próprio, contra terceiros, procedendo à cobrança de créditos dos seus associados, a APAVT, actuando em nome próprio e na qualidade de autora, é parte ilegítima na presente acção.
VI - A atribuição de poderes de “representação”, resultante da al. x), do art. 3º dos estatutos da A (…), confinando-se “aos interesses que respeitem ao sector das agências de viagens”, atribui um direito de agir somente no caso de se encontrar em causa um interesse colectivo, não podendo abranger o direito de acção relativo a individuais direitos de créditos de cada uma das agências suas associadas, direito este que se encontraria dependente da concessão de poderes representativos através da emissão de procuração para o efeito.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

I – RELATÓRIO.
A A… (…) intenta a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
B (…),
alegando, em síntese:
a A. é uma associação empresarial representativa dos interesses de 511 agências de viagens e turismo com sede em Portugal, sendo a Ré uma companhia aérea, membro da International Air Transport Association (IATA);
cerca de 302 agências de viagens associadas da Autora estão acreditadas junto da IATA, tendo subscrito um contrato de adesão, pelo qual aceitaram o bloco de normas que esta entidade emite, relativas à emissão e venda de bilhetes das companhias aéreas associadas da IATA;
de acordo com as resoluções n.º 824 e 814 da IATA, cada companhia aérea deve retribuir o agente de viagens pela venda de bilhetes e serviços prestados, mediante uma comissão calculada sobre a tarifa aplicável para o transporte aéreo de pessoas pago ao membro, recebido pelo agente, com exclusão de taxas por excesso de bagagem ou de valor de bagagem, impostos e outros encargos cobrados pelo agente;
pelo menos até ao final do ano de 1993, as companhias aéreas como a Ré apresentavam uma tarifa única no título de transporte e autonomizavam uma taxa única, pagando aos agentes de viagens uma comissão, correspondente a uma percentagem, em vigor em cada momento, sobre a tarifa;
a partir de Janeiro de 1994, a Ré passou a discriminar nos bilhetes uma série de caixas, com a tarifa, a taxa de segurança (“security charge”) e uma taxa de serviço a passageiros (“passenger service charge”), com o propósito de excluir da comissão paga aos agentes de viagens o montante referente às taxas supra referidas;
a Ré alterou, assim, a comissão paga aos agentes pela venda dos seus bilhetes, a partir de 1/01/1994, sem que tivesse sido alterado o quadro regulamentar existente sobre esta matéria, o que importou numa diminuição de receita para as associadas da Autora.
Conclui, pedindo:
a) a condenação da Ré a pagar-lhe os montantes correspondentes à comissão incidente sobre o “passenger service charge”, desde 1 de Janeiro de 1994, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde os sucessivos dias 15 do mês seguinte à das prestações de serviço a que dizem respeito, sendo de € 176.137,83 o montante global correspondente aos anos de 1998 a 2000.
b) que seja reconhecido o direito das representadas da Autora a receber comissões, à taxa vigente em cada momento, sobre os montantes relativos à “passenger service charge”.
A Ré contestou, invocando entre outras excepções, a da ilegitimidade da Autora e a falta de poderes de representação das suas associadas.
A Autora replicou, contraditando as excepções e concluindo como na petição inicial.
Foi proferido despacho saneador, no qual foram indeferidas as excepções dilatórias de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade activa.
Não se conformando com tal despacho, na parte em que julgou improcedente a excepção de legitimidade activa, a Ré dele interpôs recurso, que foi admitido como agravo, com subida diferida, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
 1. O despacho saneador de que se recorre é nulo na parte em que decide pela improcedência da excepção de ilegitimidade activa, por se fundamentar em pressupostos de facto erróneos.
2. A A. não é parte legítima na presente acção por, nos termos do art. 26º CPC, não ter interesse directo em demandar, isto é, não ser titular da relação jurídica que invoca como fundamento da acção, porquanto a A. pede a condenação da R., a pagar-lhe a si, determinadas quantias que entende serem devidas, a um certo número de agências, suas associadas, acreditadas junto da IATA, a título de comissões decorrentes de contratos de agenciamento entre a R. e cada uma das agências de viagem.
3. O primeiro argumento utilizado pelo Tribunal a quo para fundamentar a decisão de improcedência da excepção de ilegitimidade foi o de que: “nos termos do art.3º nº1 x) dos Estatutos da A., esta ter por fim representar em juízo os associados, sempre que estejam em causa interesses que respeitem à classe dos agentes de viagens”, ”daí decorrendo inequivocamente os poderes de representação da A. relativamente às agências acreditadas na IATA, suas associadas”, o que é inaceitável por não estarem em causa interesses difusos da classe mas sim interesses individuais de cada uma das agências de viagem, nem tão pouco se tratar de uma acção popular em que tenha existido expressa atribuição de poderes de representação para o exercício de direitos patrimoniais individuais [cf. art. 22º nº3º Lei nº 83/95 de 31 de Agosto].
4. O segundo argumento utilizado pelo Tribunal a quo para fundamentar a decisão de improcedência da excepção de ilegitimidade também não é válido porquanto ao contrário do que afirma o tribunal, da Acta da Assembleia Geral de 18.07, junta a fls 187 e ss, não consta a aprovação da deliberação de serem intentadas pela A. acções judiciais contra as companhias aéreas, para recebimento das comissões das taxas de serviço aos passageiros.
5. A representação processual voluntária depende de um acto voluntário de concessão de poderes de representação, a procuração, que não foi concedida no presente caso.
6. Da acta da Assembleia Geral consta como ordem de trabalhos a “deliberação sobre a cobrança de uma quota suplementar como contribuição para as custas da acção a intentar contra as companhias aéreas para recebimento de comissão das taxas de serviço a passageiros” e não a deliberação sobre a propositura da acção contra a Ré, B…, sendo certo que da análise do conteúdo da acta decorre inequivocamente que não era intenção dos nela participantes deliberar sobre tal propositura de acção.
7. Da acta da Assembleia Geral extraem-se, ainda, um conjunto de irregularidades que fundamentam as conclusões de que, por um lado, não houve qualquer intenção de concessão de mandato pelas associadas da A. para a propositura da acção, por outro nem mesmo em relação às agências que votaram favoravelmente na deliberação se pode dizer ter havido concessão de mandato por não serem identificáveis as agências votantes nem sequer ser possível apreender o sentido das votações dos presentes (já que a votação foi aprovada com 20 votos a favor, nove votos contra e duas abstenções - ficando a faltar um voto para os 32 presentes!).
8. A R. deveria, assim, ter sido absolvida da instância, declarando-se procedente a excepção de ilegitimidade activa, pelo que o despacho saneador que decidiu em sentido contrário deve ser revogado, com todas as consequências legais.
Conclui pela revogação do despacho saneador, na parte em que decide pela improcedência da excepção de ilegitimidade activa, absolvendo-se a Ré da instância.
A Autora apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso, sustentando que a sua legitimidade resultaria, por um lado, da função de representação que a APAVT estatutariamente tem e, por outro lado, da posição assumida em Assembleia Geral da APAVT, na qual lhe foi concedido mandato para, em nome dos seus associados, propor a presente acção.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº2 do art. 707º, do CPC, há que decidir.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, as questões levantadas pela agravante são as seguintes:
1. Ilegitimidade da autora.
2. Falta de poderes de representação das suas associadas.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
1. Ilegitimidade da autora.
A legitimidade das partes é um pressuposto processual, constituindo um dos requisitos de que depende o dever do juiz proferir decisão sobre o mérito da causa.
Segundo o disposto no art. 26º, nºs 1 e 2, do Cod. Proc. Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, exprimindo-se tal interesse pela utilidade derivada da procedência da acção.
Na falta de indicação em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor norma – nº 3 da citada norma[1].
A ressalva constante do nº3 do art. 26º (“na falta de indicação em contrário”), respeita às hipóteses em que, excepcionalmente, o legislador reconhece legitimidade a quem não é sujeito (ou só é em parte) da relação material controvertida submetida à apreciação do tribunal.
Ou seja, para além de se atribuir legitimidade aos sujeitos da relação material controvertida (legitimidade directa), resultante de uma presumida coincidência entre as partes na acção e os sujeitos da relação material, a lei excepcionalmente atribui legitimidade aos não titulares da relação material (legitimidade indirecta).
E, nas palavras de Paula Costa e Silva, a legitimidade enquanto pressuposto processual adquire relevância precisamente quando em juízo se encontram, não as partes materiais, mas as partes formais, naquelas situações em que quem está em juízo alega não ser o titular da relação material controvertida[2].
Como refere Anselmo de Castro, “não poderia, porém, a lei abstrair das muitas situações em que terceiros são profundamente interessados na definição da relação jurídica de outrem. E assim venha a conferir o direito de acção não apenas aos sujeitos da relação material, mas ainda a outros que o não são. Este fenómeno de ampliação do direito de acção verifica-se sempre que o objecto da acção se apresente como algo de prejudicial em relação às pretensões de outros sujeitos (relações conexas) ou afecte interesses públicos[3]”.
A doutrina é unânime em considerar como exemplos de atribuição do direito de acção versando sobre relação jurídica a que é estranho ou em que tem apenas um interesse indirecto, a acção de declaração de nulidade dos negócios jurídicos[4], a acção sub-rogatória prevista no art. 606º do CC, e a acção popular prevista no art. 26º-A do CPC.
Em todas estas hipóteses, em que é atribuída legitimidade processual a quem é titular de um interesse indirecto, surge um fenómeno de substituição processual: a acção é deduzida em nome e no interesse próprio, mas sobre relação jurídica de outrem.
Nestes casos, a parte processual é efectivamente o substituto e não o sujeito da relação jurídica controvertida.
A doutrina costuma distinguir a figura da substituição processual da representação, não sendo idêntica a qualidade de cada um dos sujeitos presentes na causa: o representante judicial exerce o direito de acção em nome e por conta do representado, e não é parte na causa; o substituto processual, diferentemente, actua em nome próprio, pois, embora segundo as regras gerais o direito de acção caiba a outrem, o seu exercício é-lhe conferido directamente em garantia do seu direito contra o substituído[5].
“Na representação processual parte é o representado e não o representante, precisamente ao invés da substituição processual onde parte é quem age em juízo em nome próprio, ainda que baseado em direito de terceiro, ou seja, o substituto e não o substituído[6]”.
A distinção entre ambas as figuras reside no carácter pessoal da actividade processual do substituto, uma vez que este age em nome próprio.
E Miguel Teixeira de Sousa refere o carácter originário da legitimidade do substituto: a legitimidade para interpor e conduzir uma acção judicial não deriva da que assiste ao titular do direito – a legitimidade aqui existente é originada na própria parte e não derivada do titular da relação material[7].
Assim, aquele autor começa por remeter para o campo da representação legal aquelas situações respeitantes a alguns patrimónios especiais (ex., herança), restringindo-a aos casos em que não há representação legal, como acontece com as acções sub-rogatórias.
Contudo, posteriormente, no seu estudo “Sobre a Legitimidade Processual”[8], Miguel Teixeira de Sousa vem distinguir, quanto à legitimidade indirecta (reportada a uma situação subjectiva alheia), duas subespécies:
- legitimidade substitutiva, no caso de existência de um interesse próprio na tutela processual de uma situação subjectiva alheia;
- legitimidade representativa, no caso de existência de um interesse alheio na tutela adjectiva de uma situação subjectiva alheia[9].
Ou seja, segundo tal autor, a legitimidade indirecta – que é concedia ao alegado não titular da situação subjectiva – diferencia-se em representativa, a que se refere à permissão legal da prossecução judicial de uma situação subjectiva alheia no interesse alheio, e substitutiva, a que respeita à permissão legal da prossecução de uma situação subjectiva alheia no interesse próprio[10].
Quando a disponibilidade adjectiva não decorre da alegada titularidade da situação objectiva, é indispensável a atribuição legal da legitimidade, pois sem essa atribuição legal, a parte não será legítima[11].
Segundo o nº3 do art. 26º, do CPC, relevante, para efeitos de aferição da legitimidade, “na falta de indicação da lei em contrário”, é a posição relativa das partes, face à relação material controvertida, tal como o autor a configura na petição inicial, com os esclarecimentos constantes da resposta.
Na opinião de Lopes do Rego, o nº3 do art. 26º, na redacção emergente do DL 329-A/95, pretendeu solucionar a questão do critério da determinação da legitimidade, e a discussão gerada à volta das posições doutrinárias delineadas pelos Prof. Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, optando por soluções diferenciadas, consoante se tratasse de legitimidade singular directa, de legitimidade singular indirecta ou legitimidade plural.
“Assim, enquanto na determinação da legitimidade singular e directa se optava claramente pela tese formulada por B. Magalhães – conformando-se tal pressuposto processual em função da relação material controvertida, tal como é delineada pelas afirmações do autor na petição inicial – na legitimidade indirecta (excluída do “regime normal” pelo segmento inicial do nº3 do preceito) e na legitimidade plural (a que se reportava o nº4) já se atendia à relação controvertida, tal como é configurada por ambas as partes e resulta do normal desenvolvimento da lide[12].”
Segundo aquele autor, a legitimação extraordinária, traduzida na atribuição de legitimidade indirecta, nunca depende das meras afirmações do autor, expressas na petição inicial, mas da concreta configuração da situação em que assenta a legitimidade, designadamente da efectiva demonstração do interesse ou da titularidade da relação legitimante que justifica a atribuição de legitimidade indirecta[13].
“É que, enquanto o problema da titularidade ou pertinência da relação material controvertida se entrelaça estreitamente com a apreciação do mérito da causa, os pressupostos em que se baseia a legitimidade plural ou a legitimação indirecta aparecem claramente destacados do objecto do processo; e funcionando logicamente como “questões prévias” relativamente à admissibilidade da discussão entre as partes acerca da relação material controvertida, dessa forma condicionando a possibilidade de prolação de decisão sobre o mérito da causa[14]”.
E, embora o nº 4 do art. 26º tenha vindo a ser revogado pelo DL nº 180/96, que pretendia consagrar a existência de um critério autónomo e específico para o apuramento da legitimidade plural, manteve-se no nº3 a exclusão do regime geral quanto à determinação da legitimidade indirecta.
Vejamos, assim, os termos em que se mostra configurada a relação material controvertida.
Com a alegação de que, a partir de Janeiro de 2004, a ora Ré deixou de pagar, às agências de viagens associadas da autora, a comissão a que teriam direito sobre o valor da “passenger service charge”, formula a Associação Portuguesa (…) as seguintes pretensões:
a) condenação da Ré a pagar à autora os montantes correspondentes à comissão incidente sobre o “passenger service charge”, desde 1 de Janeiro de 1994, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde os sucessivos dias 15 do mês seguinte à das prestações de serviço a que dizem respeito, sendo de € 176.137,83 o montante global correspondente aos anos de 1998 a 2000.
b) reconhecimento do direito das representadas da Autora a receber comissões, à taxa vigente em cada momento, sobre os montantes relativos à “passenger service charge”.
A primeira dificuldade na caracterização da situação em apreço deriva, desde logo, do facto de, da leitura da petição inicial e da réplica, ficar a dúvida sobre se a Associação Portuguesa (…) instaura a acção em seu nome próprio ou como representante voluntária das suas associadas.
Com efeito, se a Associação Portuguesa (…) na petição inicial se auto intitula de “autora”, na réplica veio alegar que não propôs a presente acção em nome próprio, mas em “representação das suas associadas”.
A segunda dificuldade resulta do facto de, enquanto que, relativamente ao primeiro pedido, é formulada uma pretensão aparentemente em nome próprio (pede a condenação da Ré a pagar-lhe a si determinados montantes alegadamente devidos pela Ré às suas associadas), no segundo pedido requer o reconhecimento do direito de tais associadas a receberem comissões sobre os montantes relativos à passenger service charge.
Quanto ao primeiro pedido, poderá colocar-se a questão de saber se o simples facto de pedir a condenação da Ré a pagar-lhe a si, “autora”, as quantias em causa, lhe conferirá legitimidade para acção, remetendo-se para a decisão de mérito a questão da aferição da legitimidade substantiva para receber directamente tais quantias.
A tal questão, responderemos negativamente.
É que, independentemente de pedir que tal pagamento seja feito directamente à sua pessoa[15], a autora reconhece que o que se encontra em causa é o pagamento do valor de comissões devidas às agências de viagens suas associadas.
            E é essa a questão igualmente subjacente ao pedido por si formulado sob a alínea b) – reconhecimento do direito das agências suas associadas a que as comissões a que têm direito incidam sobre os montantes relativos à “passenger service charge”.
            Ou seja, e, apresentando-se a Associação, aparentemente na qualidade de autora, pelo menos quanto ao primeiro dos pedidos por si formulados, sempre a mesma seria parte ilegítima – a associação não é titular da relação contratual que serve de fundamento à pretensão por si deduzida em juízo.
            Encontrando-se em causa a apreciação de um direito de crédito de que são titulares terceiros, a legitimidade da autora para instaurar a presente acção só lhe poderia advir por via da substituição processual.
            Como já referimos, a legitimidade indirecta – ou substituição processual – assenta necessariamente numa norma que impõe ou permite a substituição do titular do direito ou que permite que as partes convencionem esta substituição (substituição processual voluntária)[16]
Poderia ainda estar na acção, já não como autora, mas em nome das suas associadas, por força do instituto da representação voluntária.
Analisemos cada uma das situações.
1.1. Actuando como autora – legitimidade.
Encontrando-se em discussão, na presente acção, o pagamento de comissões alegadamente devidas às agências de viagens associadas da APAVT, com base nos contratos celebrados entre estas e a ora Ré, torna-se manifesto não ser a APAVT sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada na petição inicial.
Segundo a recorrida, a sua “legitimidade” advir-lhe-ia da disposição contida na al. x), do art. 3º dos seus estatutos, que prevê entre as suas atribuições no prosseguimento dos seus objectivos de representação interna e externa das agências de viagens suas associadas, a de “as representar em juízo sempre que estejam em causa interesses que respeitem ao sector das agências de viagens.”
Contudo, esta atribuição de poderes de “representação”, confinando-se “aos interesses que respeitem ao sector das agências de viagens, parece apontar para uma atribuição do direito de agir somente no caso de se encontrar em causa um interesse colectivo e já não quando se busca o reconhecimento de direitos individuais[17].
Ora, no caso em apreço, encontrar-se-á em causa o reconhecimento de individuais direitos de créditos de 302 das suas associadas: respeita a uma série de litígios paralelos, mas individuais, entre a B (…) e cada uma das agências de viagens acreditadas junto da IATA a operar em Portugal, relativos ao cumprimento pontual ou não pela primeira de cada um dos contratos celebrados.
O interesse colectivo é o interesse de um determinado grupo, considerando as pessoas que o integram abstractamente, pois se estas forem consideradas individualmente ou concretamente estaremos perante múltiplos interesses individuais e não de interesse colectivo.
A atribuição de “poderes de representação” resultante da al. x) do art. 3º dos respectivos estatutos não poderá, assim, abranger o direito de acção relativo a individuais direitos de créditos de cada uma das agências suas associadas[18].
Assim, na falta de qualquer disposição legal que atribua às associações o poder de actuar em nome próprio, contra terceiros, procedendo à cobrança de créditos dos seus associados, a APAVT, actuando em nome próprio e na qualidade de autora, é parte ilegítima na presente acção.
E, em nosso entender, é em nome próprio e na qualidade de autora que a APAVT intervém na presente acção.
Com efeito, o primeiro pressuposto da representação reside em o agente se comportar, “objectivamente, como representante de outrem, manifestando à outra parte, com quem trata, a intenção de que os efeitos do negócio jurídico não o atinjam a ele, mas a esse outrem, em nome de quem e para quem, por seu lado, o negócio é concluído. É o requisito da contemplatio domini[19].”
Ora, no caso em apreço, não só ao longo de toda a petição inicial a APVAT se assume como autora, como, na réplica, apesar de a certa altura referir que “propõe a acção em representação de 302 agências de viagens suas associadas”, se refere a si própria como autora.
E por outro lado, a pretensão concretizada na presente acção é formulada pela APAVT em seu nome – pede a condenação da Ré a pagar à própria APAVT do valor das comissões devidas às suas associadas.
E, em nosso entender, o pedido formulado é um só – a condenação da Ré no pagamento das quantias devidas pela Ré. Quanto ao “pedido” formulado em segundo lugar – de reconhecimento do direito das suas representadas a receber comissões à taxa vigente em cada momento, sobre os montantes relativos à “passenger service charge” –, não tem autonomia jurídica; é meramente instrumental, constituindo um pressuposto necessário ao pedido de condenação nas quantias alegadamente devidas pela Ré a título de comissões.
E a APAVPT, enquanto autora, será necessariamente parte ilegítima, como já foi decidido em termos semelhantes pelo STJ no Acórdão de 27-10-2009, relatado por João Camilo[20], relativamente a uma acção proposta pela APAVT contra a transportadora aérea LUFTHANSA.
1.2. Actuando como representante das suas associadas – falta de poderes.
Haverá, ainda que determinar se a APAVT teria poderes de representação voluntária, para agir em juízo em nome das suas associadas, caso se considerasse que se encontra na acção em tal qualidade (já não enquanto parte, mas enquanto representante das suas associadas).
Com efeito, para que o agir em nome de outrem possua eficácia representativa, com produção de efeitos na esfera do seu representado, será necessário que o agente se encontre assistido de poderes de representação, legal ou voluntária.
E na representação processual voluntária, o acto capaz de fundamentar a eficácia representativa é a procuração, ou seja, o acto voluntário pelo qual o representado se vincula a receber e a suportar na sua esfera jurídica os efeitos dos negócios jurídicos que em seu nome realizar o procurador, nos limites objectivamente assinalados, e, ao mesmo tem, adquire o direito de haver por seus, directamente, esses negócios[21].
            Na tréplica, a APAVT alega ter proposto a acção em representação das suas associadas, com base nos poderes que para tal lhe teriam sido atribuídos pela Assembleia Geral realizada a 18.07.2001.
            Da acta de tal assembleia (junta a fls. 187 e ss), consta como um dos pontos da ordem de trabalhos:
            “Deliberação sobre a cobrança de uma quota suplementar como contribuição para as custas da acção a intentar contra as companhias aéreas para recebimento de comissão das taxas de serviço aos passageiros”.
            Ora, não só apenas se encontravam presentes ou representadas 32 associadas, como tal proposta foi aprovada com vinte votos a favor, nove votos contra e duas abstenções.
            E a votação incidiu, não sobre a propositura de uma acção a intentar contra as companhias aéreas para recebimento da comissão das taxas de serviços de passageiros, mas, tão só, sobre “a cobrança de uma quota suplementar como contribuição para a acção a intentar contra as companhias aéreas para recebimento de comissão das taxas de serviço aos passageiros (…)”.
            De qualquer modo, ainda que se considerasse que tal acta continha a aprovação de uma deliberação no sentido de conceder à APAVT poderes para instaurar a presente acção, sempre se desconheceria a identidade das 20 associadas que votaram favoravelmente tal deliberação.
            A recorrida, nas suas contra-alegações defende que, constando dos arts. 30º e 31º, dos Estatutos da APAVT, que “as deliberações da assembleia-geral serão tomadas por maioria absoluta de votos dos associados representados”, e que a assembleia poderá funcionar com qualquer número de representados meia hora depois da hora marcada para a mesma, a deliberação em causa é valida, dela resultando a legitimação da ora recorrida para representar as agências suas associadas neste pleito.
            Teremos de discordar de tal argumentação.
Encontrando-se em causa um direito individual de crédito da titularidade de cada uma das suas associadas (e não uma mera deliberação autorizando a associação a instaurar uma acção em defesa de eventuais interesses corporativos da classe), a concessão de poderes de representação para o exercício de tal direito por cada uma das associadas não poderia de resultar de uma mera deliberação aprovada em assembleia-geral.
A concessão de poderes para representar cada uma das 302 associadas na presente acção de modo a que a decisão aqui proferida viesse a produzir efeitos de caso julgado em relação a cada uma delas, teria de ocorrer por meio de uma procuração – um acto voluntário pelo qual o representante atribui antecipadamente ao representante poderes para propor uma acção judicial em seu nome, implicando um mandato pelo qual o representante se obriga a praticar certos actos jurídicos em nome e por conta do representado (arts. 258º e 262º, do CC)[22].
            Concluindo, e caso se considerasse que a APAVT se apresenta na acção, não em nome próprio, mas em representação das suas associadas[23] – o que se não tem por verificado face ao pedido de pagamento à própria APAVT do valor das comissões devidas às suas associadas – não se encontraria demonstrada a atribuição dos necessários poderes para o efeito.
O agravo merecerá provimento.


IV – DECISÃO.
Pelo exposto, os juízes deste tribunal da Relação acordam em dar provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se a autora parte ilegítima, absolvendo-se, em consequência, a ré da instância.
Custas a suportar pela Autora/Agravada.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2012

Maria João Areias
Luís Lameiras
Roque Nogueira
--------------------------------------------------------------------------------------
[1] Na redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12.12.
[2] “Um desafio à Teoria do Processo. Repensando a Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio – Ainda um Contributo para o Estudo da Substituição Processual”, Coimbra Editora 2009, pag. 159. Ou, como afirma Miguel Teixeira de Sousa, “A legitimidade processual não nasceu para explicar a possibilidade do alegado titular da situação subjectiva a apresentar ou defender no processo, mas para justificar a eventualidade do alegado não titular da situação subjectiva a poder prosseguir em juízo” – “Observações Críticas Sobre algumas Alterações ao Código de Processo Civil”, in BMJ nº 328, pags. 79 e 80.
[3] “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, Almedina 1982, pag. 169.
[4] A nulidade é arguível por qualquer pessoa que tenha interesse directo em que se não produzam em relação a si os efeitos do respectivo negócio (art. 281º do CC).
[5] Anselmo de Castro, obra citada, pag. 197 e 198.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, “A legitimidade Singular em Processo Declarativo”, in BMJ nº 292, pag. 79 e 80. Em igual sentido quanto à identificação de quem é a parte processual em caso de representação e de substituição, cfr., José Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais”, 2ª ed., pag. 56 e 57.
[7] Cfr., estudo citado, pag. 80.
[8] Estudo publicado no BMJ nº 331, pag. 51 e 52; tal distinção surge igualmente caracterizada na sua obra “A As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex 1997, pag. 53.
[9] A substituição representativa não se confunde com a representação judiciária ou com qualquer forma de suprimento da incapacidade judiciária porque, ao contrário do que sucede nestas, naquela o sujeito que instaura a acção ou contra o qual esta é proposta age em nome próprio e, por isso, é parte processual – cfr., Miguel Teixeira de Sousa, “As Partes, o Objecto (…)”, pag. 53 e 54, onde dá como exemplos de substituição representativa: a legitimidade do liquidatário judicial para representar a massa falida e para cobrar os créditos que os credores da sociedade possuem contra os gerentes, administradores ou directores, a legitimidade do administrador do prédio no regime de propriedade horizontal para demandar, em execução das suas funções, qualquer dos condóminos ou um terceiro. Tal autor nega tratar-se de substituição representativa a situação prevista no art. 73º do CDA, dado que as associações e organismos nacionais ou estrangeiros de gestão do direito de autor desempenham essa função como mandatários dos respectivos titulares.
[10] “Sobre a Legitimidade Processual”, pags. 56 e 57.
[11] Miguel Teixeira de Sousa, estudo citado, pag. 59, e no sentido de que, entre nós, é negada a admissibilidade da substituição voluntária devido ao disposto no art. 26º, nº3 (restrição da legitimidade indirecta às situações expressamente previstas na lei), se pronuncia Paula Costa e Silva, obra citada, pag. 168, nota 61.
[12] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina 1999, pag. 45.
[13] Cfr., obra citada, pag. 46.
[14] Cfr., Lopes do Rego, obra citada, pag. 46.
[15] A decisão respeitante à questão de saber se pode exigir que tal pagamento lhe seja feito directamente a si, contende, a nosso ver, com o mérito da acção.
[16] Cfr., neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, “Reflexões Sobre a Legitimidade das Partes em Processo Civil”, estudo publicado na revista Cadernos de Direito Privado, Nº 1 Janeiro/Março 2003, pag. 3.
[17] A situação prevista na al. x) do art. 30º, ao conferir poderes de “representação em juízo” à APVAT, poderá levantar a dúvida sobre se configurará um caso de substituição representativa ou de representação judiciária, sendo que, só no primeiro caso, a APVAT poderá instaurar as acções aí previstas em nome próprio, ou seja, na qualidade de autora.
[18] Como refere Paulo Mota Pinto no Parecer junto aos autos pela Ré, “a letra do art. 3º, nº1 al. x), dos referidos Estatutos é, aliás, perfeitamente consistente com o alcance desse artigo, que é o de prever as finalidades e atribuições estatutárias da APAVT, e não conferir poderes de representação a esta, para o exercício de direitos de que são titulares apenas os associados” – pag. 31 do Parecer, nota 25.
[19] A. Ferrer Correia, “A Procuração na teoria da representação voluntária”, in Estudos de Direito Civil, Comercial e Criminal”, Almedina, pag. 2.
[20] Acórdão disponível in http://www.dgsi.pt/jst. No sentido da ilegitimidade da autora se pronuncia ainda Paulo Mota Pinto, no Parecer junto aos autos pela Ré/agravante.
[21] Cfr., A. Ferrer Correia, estudo e local citados, pag. 6 e 31.
[22] Cfr., neste sentido, Paulo Mota Pinto, no Parecer por este emitido relativamente à presente acção e que se mostra junto aos autos, pag. 27.
[23] Caso em que a parte processual seria, já não a APAVT, mas cada uma destas 302 suas associadas (e relativamente a estas, não haveria então dúvida de que disporiam de legitimidade directa, por se tratarem das titulares da relação controvertida).