Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
273/14.1TBSCR.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: DIVÓRCIO
ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663º nº 7 do CPC)

1. O fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges consistente na separação de facto por um ano consecutivo, previsto nos artigos 1781º, alínea a), e 1782º, ambos do Código Civil, assenta em dois pressupostos: a)Inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges durante esse período de tempo (elemento objectivo); b) O propósito de não restabelecer essa comunhão de vida, por parte de, pelo menos, um dos cônjuges (elemento subjectivo).

2. O prazo de separação, tanto na vertente objectiva, como na subjectiva, tem de se verificar no momento da propositura da acção.

3. A cláusula geral e objectiva da ruptura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, previsto na al. d) do artigo 1781.º do CC – não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência.

4. O incidente de atribuição provisória da casa de morada de família previsto no nº 7 do artigo 931º CPC constitui um processo especialíssimo, norteado por critérios de conveniência, que apenas tem em vista a fixação de um regime provisório, até à partilha dos bens comuns.

5. O cônjuge a quem não foi atribuída, provisoriamente, a casa de morada de família deverá receber do outro cônjuge, pelo respectivo uso e fruição, de forma exclusiva, por parte deste, uma contrapartida monetária que se manterá até à partilha do património comum do casal.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. RELATÓRIO

FÁTIMA ……., residente em ……., intentou, em 24.02.2014, acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra VIRGÍLIO …… residente em ……., peticionando que seja decretado o seu divórcio.

Alegou, para o efeito, serem casados entre si, terem dois filhos em comum, e que, desde o início do casamento, o réu sempre demonstrou comportamento agressivo para com a autora e direccionado ao filho mais velho do casal, que enunciou.

Não obstante os esforços da autora para ultrapassar a crise conjugal e, na sequência de tal comportamento, ao longo do tempo e falta de resolução dos conflitos conjugais, desde Setembro de 2013, autora e réu deixaram de fazer qualquer vida em comum, tendo a autora deixado a casa de morada de família, a 7 de Janeiro de 2014, não tendo qualquer propósito de restabelecer a vida em comum.

Peticionou, em consequência, a autora, que seja decretado o divórcio entre a autora e o réu, nos termos da alínea d) do artigo 1781.º do Código Civil, reportando-se os efeitos do divórcio a 7 de Janeiro de 2014, data da cessação da coabitação, nos termos do artigo 1788.º e n.º 2 do artigo 1789.º ambos do Código Civil.

Suscitou igualmente, a autora, o incidente de atribuição da casa de morada de família, peticionando a utilização provisória, em exclusivo, da casa de morada de família.

Realizada tentativa de conciliação, em 01.04.2014, a mesma não foi possível, tendo o réu sido notificado para contestar, o que fez, em 09.04.2014, impugnando a factualidade que lhe foi imputada, sustentando não lhe ser imputável qualquer conduta susceptível de consubstanciar violação dos seus deveres conjugais e, ainda, não se verificar ruptura da vida conjugal, cumprindo ambos os cônjuges os deveres conjugais.

Concluiu, assim, o réu, pela improcedência da acção, bem como do pedido formulado no suscitado incidente, alegando, em suma, que foi a requerente quem abandonou a casa de morada de família e passou a residir numa casa cedida pela sua irmã para o efeito, juntamente com os filhos. Invocou, por outro lado, que não tem outra casa para habitar, nem tem condições para arrendar uma casa, uma vez que apenas beneficia de subsídio de desemprego, com termo em Fevereiro de 2015, ao que acresce ser mecânico de profissão e o único espaço que tem para exercer tal actividade e garantir a sua subsistência é a garagem sita da casa de morada de familiar.

Proferido despacho saneador, em 08.01.2015, foi dispensada a realização da audiência prévia, bem como a prolação do despacho previsto no artigo 596º do CPC.

Foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, em 10.02.2013, após o que o Tribunal a quo, proferiu decisão, em 20.03.2015, constando do Dispositivo da Sentença de Divórcio, o seguinte:
Pelo exposto, e à luz das normas legais citadas, julga-se a acção procedente por provada e, em consequência, decreta-se o divórcio entre a Autora Fátima …. e o Réu Virgílio ….. declarando dissolvido o casamento celebrado entre ambos a 10 de Setembro de 1993, lavrado no assento n.º 891 de 17 de Setembro de 2013, da Conservatória do Registo Civil do …., e determinado que os efeitos do divórcio retroajam à data do início da separação de facto, isto é, a 7 de Janeiro de 2014.

E, do Dispositivo da Decisão, com relação ao suscitado incidente de atribuição de casa de morada de família, consta o seguinte:

Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de facto e de direito mencionados, decide-se julgar o incidente improcedente por não provado.

Inconformados com o assim decidido, quer a autora, quer o réu interpuseram recursos de apelação, o réu, relativamente à proferida sentença de divórcio; a autora, com relação à decisão sobre o incidente de atribuição de casa de morada de família.

São as seguintes as CONCLUSÕES do réu/recorrente:
§ DE FACTO
i. A resposta aos pontos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 24º, 28º, 29º, 30º, 31º e 32º da fundamentação fáctica dos factos provados da Petição Inicial, por se tratar de matéria conclusiva vaga e genérica deverá ser considerada «não escrita».
ii. A matéria do Ponto 23º dos factos provados da Petição Inicial e a das alíneas e) e j) dos factos não provados da contestação foram incorrectamente julgadas.
iii. Desde logo porque o Tribunal recorrido não pode na mesma sentença dar por provado para efeitos do incidente de atribuição de casa de morada de família que a Autora saiu de casa em 20 de Janeiro de 2014 e ao mesmo tempo para efeitos de acção de divórcio dar por provado que a Autora saiu de casa a 7 de Janeiro de 2014.

iv. Trata-se de uma ambiguidade geradora de nulidade.
v. Embora as testemunhas da A./Recorrida Otília ....e Branca ....tivessem afirmado que a Autora saiu a 7 de Janeiro de 2014, tais testemunhos não poderiam ter merecido o crédito do tribunal por se tratarem de irmãs da Autora e estarem de relações cortadas com o R/Recorrente.
vi. Pelo contrário, do depoimento das testemunhas Gouveia .... (gravação áudio 00.00.01 a 00.22.18), Luisa ....(gravação áudio 00.00.01 a 00.50.19) e Amílcar (gravação áudio 00-00-01 a 00.21.24) resulta claramente que a Autora saiu de casa a 20 de Janeiro de 2014.
vii. Assim sendo pelas razões acima expostas a resposta ao ponto 23º dos factos provados da petição inicial deve ser alterada para “não provado” e as respostas às alíneas e) e j) dos factos não provados da contestação alteradas para: (e) “Em 20 de Janeiro de 2014, a Autora abandonou voluntariamente e contra a vontade do Réu a casa de morada de família”;(j) A Autora certamente por agravamento da sua situação psicológica, inesperadamente e sem aviso prévio, no dia 20 de Janeiro de 2014, abandonou a casa de morada de família, acompanhada dos seus dois filhos”.
DE DIREITO
viii. Nos termos dos artigos 1781.º, alínea a), e 1782.º do CC, enquanto facto constitutivo que é do direito potestativo de requerer o divórcio, deve mostrar-se consolidado à data da propositura da acção, não bastando que seja supervenientemente completado à data do encerramento da discussão em 1.ª instância.
ix. Pelo que não tendo decorrido ainda um ano de separação de facto à data da propositura da acção de divórcio, com este fundamento, que mais não é que aquele em que se baseou a sentença, a acção deve improceder.
x. Para que seja decretado o divórcio, da matéria de facto provada, deve resultar retratada uma determinada situação objectiva em que os factos, pela sua gravidade ou reiteração, mostrem a ruptura definitiva do casamento, não bastando para o efeito que os factos traduzam um mero acto de vontade de um dos cônjuges, visto o divórcio “a-pedido” por razões subjectivas, não haver sido acolhido pelo nosso Código Civil.
xi. Porém como já se referiu esses factos graves e reiterados na sentença não existem.
xii. A nosso ver neste processo, para além de conclusões, provou-se, tão-só, que a A./Recorrida tem o firme propósito de não restabelecer a convivência conjugal.
xiii. Tal mostra-nos, apenas, qual a vontade, qual a intenção actual da A., não se reconduzindo a um índice objectivo suficiente para a demonstração da falência irreversível do casamento.
xiv. Não foram demonstrados factos objectivos graves ou reiterados que revelem aquela falência, mas um dado subjectivo – o firme propósito da A..
xv. Pelo que sempre se teria de se concluir, pela improcedência da acção.
xvi. Assim revogando-se a sentença recorrida e proferindo-se Acórdão que acolha as conclusões precedentes, julgando a acção inteiramente improcedente por não provada e absolvendo o R/Recorrente dos pedidos se fará justiça
xvii. Subsidiariamente para o caso de se confirmar a sentença quanto ao decretamento do divórcio, deve ser determinado que os efeitos do divórcio retroajam à data do início da separação de facto, isto é, 20 de Janeiro de 2014.

A autora não contra alegou no recurso interposto pelo réu.

São, por seu turno, as seguintes as CONCLUSÕES da autora/recorrente:
i. A Recorrente alegou e demonstrou ter saído da casa de morada de família, a 07 de Janeiro de 2014, em consequência de mais uma agressão do Recorrido ao seu filho mais velho.
ii. A violência, física e psicológica, exercida pelo Recorrido, contra si e contra os seus filhos, caracterizou sempre a relação familiar, sendo certo que, nos últimos tempos, o Recorrido mostrava-se mais descontrolado do que habitualmente.
iii. A Recorrente e os seus dois filhos saíram da sua casa apenas e só para salvaguardar a sua integridade física e sanidade mental, sendo tal facto imputável exclusivamente ao Recorrido.
iv. O ponto 5 deverá assim ser alterado, ficando assente que a saída de casa da Recorrente e dos filhos não se fica a dever a um qualquer capricho, mas outrossim às constantes agressões que estes sofriam às mãos do Recorrido.

v. O Recorrido não fez qualquer prova (designadamente, a documental) de que é este que paga, quer as despesas normais da casa de morada de família (água, luz, gás, TV), quer o IMI, de cujo pagamento, tanto quanto se sabe, até poderá estar isento.
vi. Não tendo sido feita qualquer prova de que é o Recorrido que paga as despesas com a casa de morada de família, deverá ter-se o ponto 10 como não provado.
vii. Considerou o Tribunal a quo, para o efeito de estabelecer que a necessidade económica e financeira da casa de morada de família, por parte do Recorrido, é superior à da Recorrente e dos seus dois filhos menores, o facto deste se encontrar desempregado e ter deixado de beneficiar de subsídio de desemprego (ponto 11); ser mecânico automóvel de profissão e alegadamente se encontrar a organizar a sua vida de forma a iniciar a sua actividade profissional a partir de Março do próximo ano de 2015 (ponto 12) e que o único espaço disponível de que dispõe é a garagem da sua própria casa, que é ampla (ponto 13).
viii. O terreno onde a casa de morada de família foi edificada constitui bem próprio da Recorrente, sendo apenas comum a benfeitoria urbana ali erigida, conforme certidão do registo predial feita juntar ao Apenso A.
ix. O sobredito terreno, onde foi depois construída a casa de morada de família, foi doado à Recorrente pelos seus pais José …… e Lúcia …., conforme resulta da certidão do Registo Predial, referente ao prédio urbano, descrito sob o artigo nº 831/19960416, na Conservatória do Registo Predial de …., feita juntar a 28/02/2014, à providência cautelar de arrolamento (apenso A), o que foi também confirmado pela Recorrente quando prestou as suas declarações de parte.
x. Constitui bem comum do ex-casal (apenas) a benfeitoria urbana que foi construída no terreno da Recorrente, pelo que, em sede de motivação, não poderia o Tribunal a quo concluir, como concluiu, que “o prédio onde está instalada a casa que era a morada de família é bem comum do casal”.
xi. O Recorrido procedeu ao levantamento dos saldos das contas bancárias conjuntas do ex-casal da quantia de sessenta e cinco mil, duzentos e trinta e seis euros e setenta e cinco cêntimos (€ 65.236,75), o que de resto, motivou a interposição da providência cautelar de arrolamento, que integra os presentes autos sob o Apenso A.

xii. Caso o Recorrido não tivesse dinheiro, como alegou, mal se perceberia que fizesse, como faz, frequentes viagens, designadamente para Londres e Jersey, incluindo o Natal de 2014, custeando as passagens aéreas, a estada e demais despesas, de resto, conforme depoimento das testemunhas por si arroladas, Amílcar… Luísa …….
xiii. Este facto essencial foi ignorado pelo Tribunal a quo.
xiv. Deverá, por isso, ser aditado o facto de o Recorrido ter levantado dos saldos das contas bancárias conjuntas do ex-casal da quantia de sessenta e cinco mil, duzentos e trinta e seis euros e setenta e cinco cêntimos (€ 65.236,75), o que determinou a interposição da providência cautelar de arrolamento, que integra os presentes autos sob o Apenso A
xv. Sendo certo que com este valor (€ 65.236,75), o Recorrido pode perfeitamente comprar ou arrendar um apartamento ou casa.
xvi. O Recorrido não reside, nem trabalha na casa de morada de família, conforme depoimento supra transcrito das testemunhas Branca ....; Otília … e Irene ….
xvii. Não pode ser dado como provado o ponto 13, posto que o Recorrido não necessita, nem para habitar, nem para trabalhar da casa de morada de família.
xviii. Dos elementos de prova constantes dos autos, não se pode aferir ser a necessidade da casa de morada de família por parte do Recorrido superior à da Recorrente.
xix. O Recorrido não ficou obrigado a pagar um valor a título de renda/compensação por ficar a usufruir da casa de morada de família.
xx. Verifica-se assim que, na prática, o Tribunal a quo atribui ao Recorrido o direito à utilização da casa de morada de família, parte que é bem próprio da Recorrente, livre do pagamento de qualquer renda, o que é uma violação clara do disposto no artigo 1793° do Código Civil, que expressamente refere que o tribunal pode dar de arrendamento a casa de morada de família.
xxi. Apesar de na petição inicial não ter sido requerido uma compensação ao cônjuge que ficasse a residir na casa de morada de família, o tribunal deveria ter procedido à fixação deste valor a suportar pelo Recorrido.
xxii. A atribuição da casa de morada de família, deveria sempre ter como contrapartida uma renda, como compensação pela privação de uso que a proprietária Recorrente sofreria no seu direito de propriedade sobre o imóvel, não se podendo considerar renda, o pagamento de serviços e impostos decorrentes da própria utilização do imóvel pelo arrendatário, sendo este o único que dos mesmos usufrui, pois que tais pagamentos não se traduzem em qualquer incremento patrimonial na esfera jurídica da Recorrente.
xxiii. Em face do exposto, verifica-se que a douta sentença violou o artigo 1793° do CC, o nº 4 do artigo 607º e artigo 990º, ambos do CPC.
xxiv. Deste modo deve a douta sentença recorrida ser declarada nula, na parte que respeita à atribuição da morada de família ao Recorrido ou, caso assim não se entenda, alterar-se a douta sentença, fixando-se uma renda, a pagar pelo Recorrido à Recorrente, como contrapartida do arrendamento.

O réu não apresentou contra-alegações relativamente ao recurso interposto pela autora.

Em 28.09.2015, o Tribunal a quo proferiu o seguinte Despacho:
Invoca o recorrente, sob a epígrafe “PONTO 23.º DOS FACTOS PROVADOS DE PETIÇÃO INICIAL/ALÍNEAS e) e j) DOS FACTOS NÃO PROVADOS DA CONTESTAÇÃO”, padecer a decisão de ambiguidade geradora de nulidade porquanto, em sede de fundamentação fáctico do incidente de atribuição da casa de morada de família deu por provado que a Autora saiu de casa em 20 de Janeiro de 2014, tendo, noutro ponto, dado por provado que a Autora saiu de casa a 7 de Janeiro de 2014.
Tem razão o recorrente no que respeita ao, por si denominado “equívoco”.
Com efeito, no ponto 7.º da fundamentação fáctica quanto ao incidente de atribuição de casa de morada de família, consignou-se que “depois da Autora ter saído da casa de morada da família em 20.01.2014”.
Ora, tal apenas se deve a lapso material manifesto porquanto no próprio ponto 5.º dessa mesma fundamentação fáctica, consignou-se que “a Autora saiu da casa de morada de família em Janeiro de 2014”, sem se consignar a data em que tal terá ocorrido dado que a data em concreto – dia - assume particular relevo no que concerne ao divórcio e não ao referido incidente.
Mas mais, resulta inequívoco, da sentença proferida quanto ao divórcio, não terem subsistido quaisquer dúvidas ao Tribunal no que concerne à data em que a Autora saiu de casa – 7 de Janeiro de 2014 – conforme resulta do facto provado 23.º da fundamentação fáctica da sentença de divórcio, e bem assim da circunstância de se ter dado como não provado, sob as alíneas e) e j) da fundamentação fáctica, que tal tenha ocorrido em 20 de Janeiro de 2014, motivando a sua convicção no depoimento das testemunhas Branca…., Otília …., Irene ….., irmãs da Autora e cunhados do Réu, e Ilídio ….., cunhado de Autora e Réu que não tiveram dúvidas em referir que a Autora saiu de casa no dia 7 de Janeiro de 2014, data de que se recordam por ser o aniversário do filho da testemunha Branca ….. e sobrinho dos demais, sendo que a auxiliaram a ir buscar os seus pertences a casa.
O tribunal explicitou, outrossim, os motivos pelos quais conferiu maior credibilidade ao depoimento destas testemunhas em detrimento das demais.
De resto, ao longo de todo o texto da decisão (com excepção do referido equivoco salientado pelo Réu no que tange ao ponto 7.º da fundamentação fáctica quanto ao incidente de atribuição de casa de morada de família), a data considerando como aquela em que a Autora saiu da casa de morada de família é o dia 7 de Janeiro de 2014, o que é por demais perceptível pelos destinatários da decisão.
Assim, atento o exposto, e nos termos dos artigos 249.º do Código Civil e 614.º do Código de Processo Civil, é notória a verificação de lapso material no ponto 7.º da fundamentação fáctica quanto ao incidente de atribuição de casa de morada de família, de que nos penitenciamos e cuja rectificação se determinada nos seguintes moldes: onde, em tal ponto, consta “20.01.2014” passará a consta 7 de Janeiro de 2014 “07.01.2014”.
Rectifique no local e notifique, considerando-se o presente despacho complemento e parte integrante da decisão (artigo 617.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Por requerimento de 04.11.2015, o réu/apelante insurgiu-se contra a rectificação constante do Despacho de 28.09.2015, invocando que caso se tratasse de um erro, o que não admitia, tal não constituiria uma nulidade da sentença, mas sim tão só, uma rectificação de um erro material.

Invocou, portanto, o réu/apelante, que se trata de uma nulidade, mas não daquelas previstas no elenco do artigo 615.º do Código de Processo Civil, uma vez que o que nesta disposição de prevê é a oposição entre os fundamentos e a decisão, e não, a oposição entre dois ou mais fundamentos.


Propugnou o réu/apelante que a rectificação objecto do despacho viola o artigo 613.º do Código de Processo Civil, uma vez que proferida a sentença, se esgotou o poder jurisdicional do Meritíssimo Juiz quanto à matéria da causa. Por essa razão, tal despacho é nulo.

Em 09.12.2015 foi proferido o seguinte Despacho:
Mantém-se na íntegra o despacho de rectificação proferido, remetendo-se para os fundamentos constantes do mesmo.
O recurso interposto terá também por objecto a nova decisão – artigo 617.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação dos recorrentes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

Recurso do réu
i) DA ALEGADA AMBIGUIDADE GERADORA DE NULIDADE (decorrente do tribunal recorrido ter considerado diferentes datas relativamente à saída da autora de casa, para efeitos da acção de divórcio e do incidente de atribuição da casa de morada de família);
ii) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto
iii) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA
ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS.
Recurso da autora

Û DO INCIDENTE DE ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA E OS
CRITÉRIOS LEGAIS PARA TAL ATRIBUIÇÃO
***

III . FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provado nas decisões recorridas, o seguinte:


Ø Acção de divórcio:
(Da petição inicial)
1. A Autora e o Réu contraíram entre si casamento civil, sem convenção antenupcial, a 10 de Setembro de 1993;
2. Na constância desse casamento, nasceram dois filhos: João ….., nascido a 12 de Maio de 1996, e Beatriz …., nascida a 06 de Setembro de 1999;
3. Desde o início do casamento, que o relacionamento conjugal se pautou, por discussões e brigas;
4. Sofrendo a Autora, desde sempre, agressões perpetradas pelo Réu;
5. Algumas das quais até presenciadas pelos filhos menores de ambos,
6. Outras, perpetradas contra estes,
7. Motivadas pelo temperamento violento do ora Réu.
8. O Réu costuma bater na Autora, apertando-lhe o pescoço e empurrando-a,
9. Gritando que a vai matar, insultando-a;
10. Sendo o filho mais velho do casal a intervir, afastando o Réu da sua mãe, evitando, assim, que as agressões assumam outras proporções.
11. Outras vezes, a violência do Réu dirige-se contra o filho mais velho, provocando-o,
12. Encostando a sua cara à deste, dando “palmadas” no ombro, gritando-lhe aos ouvidos,
13. Tudo fazendo para que exista conflito físico, o que ainda não sucedeu, porque João ….. tem optado por afastar-se, sem responder.
14. Estes episódios, recorrentes, determinaram a inevitável degradação do ambiente familiar, que, com o passar do tempo e da difícil convivência, se agravou.
15. O Réu, nos últimos anos, começou a perseguir a Autora, fazendo esperas à porta do trabalho desta;
16. Sendo sempre controlada pelo Réu, “onde foste”, “com quem foste”, entre outros;
17. Afastando-a dos amigos e família, denominando-os de “má influência”, de forma gratuita e sem qualquer sentido.
18. Até porque é o Réu quem, habitualmente, mantém relacionamentos com outras mulheres.
19. O comportamento do Réu tem alterado profundamente o dia-a-dia da Autora e dos seus dois filhos, provocando medo e insegurança nestes, dada a imprevisibilidade do comportamento do Réu.
20. A Autora tudo fez para manter o seu casamento, inclusive, recorreu a consultas de terapia conjugal.
21. A tais esforços respondeu o Réu, sempre, com os habituais comportamentos, violentos e intoleráveis, dirigidos à Autora e filhos.
22. Pelo que a Autora, protegendo os seus dois filhos do iminente confronto físico, não teve outra opção, que não fosse o de sair de casa.
23. O que sucedeu a 7 de Janeiro de 2014, ficando a Autora e filhos, temporariamente, em casa da sua mãe e avó;
24. Para além destes episódios, que se arrastam ao longo dos últimos anos, não existe qualquer outra aproximação entre ambos, sequer para falar acerca dos filhos em comum.
25. Desde a primeira semana de Setembro de 2013, a Autora não mais partilhou, cama e mesa com o Réu;
26. Dormindo, desde então, com a sua filha, no quarto desta.
27. Tomando as refeições na companhia dos filhos, mas não do Réu.
28. Não existe assim qualquer projecto de vida em comum.
29. Nem qualquer vivência em comum de entreajuda.
30. Nem qualquer partilha de recursos.
31. Verificando-se uma total ausência de relacionamento entre a Autora e o Réu e,
32. Uma evidente e irremediável quebra dos afectos e o ruir do mundo conjugal.
33. A Autora não tem qualquer intenção de restabelecer a vida matrimonial comum;
(Da contestação)
34. Após ter saído de casa, durante a primeira semana em casa dos pais da A. e, daí até ao presente num apartamento da sua irmã, localizado no ……
35. O Réu gosta da família da Autora.

Ø Incidente de atribuição de casa de morada de família
1. A Autora aufere, a título de salário, o valor médio líquido de setecentos euros (€ 700,00);
2. Com esta quantia tem de prover às normais despesas familiares, dos seus dois filhos,
3. Os filhos da Autora, que cresceram na localidade em causa,
4. Têm ali o seu núcleo de amigos e família próxima,
5. A Autora saiu da casa de morada de família em Janeiro de 2014 com os seus filhos; e habita em casa pertencente à sua irmã procedendo ao pagamento de € 200,00 que nem sempre consegue pagar.
6. O Réu participou sempre nas despesas normais e extraordinárias da família.
7. Depois da Autora ter saído da casa de morada da família em 07.01.2014 (correcção efectuado por despacho de 28.09.2015), o Réu continuou a participar nas despesas da família transferindo dinheiro para a Autora, sendo que em 24.01.2014 o R. transferiu para a conta bancária da Autora a quantia de 350,00 €, e em 18.03.2014 a quantia de 200,00 €;
8. Ainda, em 16.03.2014, o R. entregou em dinheiro à sua filha Beatriz … a quantia de 80,00 €.
9. Agora, o Réu suporta a quantia mensal de € 240,00 a título de pensão de alimentos para os seus dois filhos menores;
10. É o Réu que neste momento paga todas as despesas normais da casa de morada da família (água, luz, gás, TV, IMI, etc...)
11. O Réu encontra-se desempregado e deixou de beneficiar de subsídio de desemprego;
12. O Réu é mecânico automóvel de profissão e encontra-se a organizar a sua vida de forma a iniciar a sua actividade profissional a partir de Março do próximo ano de 2015.
13. O único espaço disponível que o Réu tem para o efeito é a garagem da sua própria casa, que é ampla.


B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i) DA ALEGADA AMBIGUIDADE GERADORA DE NULIDADE (decorrente do tribunal recorrido ter considerado diferentes datas relativamente à saída da autora de casa, para efeitos da acção de divórcio e do incidente de atribuição da casa de morada de família);

Invoca o apelante que o Tribunal recorrido não pode na mesma sentença dar como provado, para efeitos do incidente de atribuição de casa de morada de família, que a autora saiu de casa em 20 de Janeiro de 2014 e, ao mesmo tempo, para efeitos de acção de divórcio, dar por provado que a autora saiu de casa a 7 de Janeiro de 2014, concluindo que se trataria de uma ambiguidade que era geradora de nulidade.

A Exma. Juíza do Tribunal a quo, por entender que se trataria de um lapso material que teria ocorrido na menção da data inserta no ponto 7 da factualidade inerente à decisão do incidente de atribuição de casa de morada de família, face à fundamentação da decisão de facto, assente nos depoimentos das testemunhas da autora, ao abrigo do disposto nos artigos 249º do C.C. e 614º do CPC, determinou a rectificação do notório lapso material constante do ponto 7º da aludida fundamentação fáctica, por forma a ali se mencionar 07.01.2014 e não 20.01.2014, decisão com a qual o apelante se insurgiu, por entender que o julgador de 1ª instância não poderia proceder à correcção efectuada, por se encontrar esgotado o seu poder jurisdicional.

Muito embora o apelante alegue que a ambiguidade que invocou seja susceptível de gerar uma nulidade, tão pouco qualificou a que nulidade se reporta, já que entende que a mesma não se insere nas nulidades de sentença previstas no artigo 615º do CPC.
Ora, na verdade, analisando a fundamentação aduzida na sentença atinente ao divórcio, na qual, de forma exaustiva, se procedeu à análise crítica da prova produzida e se discorreu sobre os motivos que levaram o julgador a dar relevância aos depoimentos prestados pelas testemunhas da autora, não pode deixar de se concluir que assiste razão à Exma. Juíza do Tribunal a quo, ao invocar o manifesto lapso material em que incorreu ao fazer menção da data de 20.01.2014, sendo-lhe, por isso, lícito proceder, como procedeu, à rectificação do lapso manifesto, ao abrigo do nº 1 in fine, do artigo 614º do CPC.

Situação diferente é a de saber se houve erro de julgamento, designadamente quanto à data em que a autora saiu da casa de morada de família, o que se apreciará subsequentemente.
***

ii) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da
matéria de facto

Os poderes do Tribunal da Relação, relativamente à modificabilidade da decisão de facto, estão consagrados no artigo 662º do CPC, no qual se estatui:
1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2. A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

No que concerne ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelece o artigo 640ºdo CPC que:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Considerando que, no caso vertente, a prova produzida em audiência foi gravada, e o réu/recorrente deu cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º do NCPC pode este Tribunal da Relação proceder à sua reapreciação, uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.

O recorrente está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente aos Nºs 3, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 24º, 28º, 29º, 30º, 31º e 32º que, no entender do apelante, consubstancia matéria conclusiva, vaga e genérica, pelo que deverá ser considerada não escrita.


Defende, por outro lado, o réu/apelante, que a factualidade que integra o Nº 23 deverá ser considerada não provada, encontrando-se em contradição com a matéria dada como provada no incidente de atribuição de casa de morada de família, devendo, ao invés, serem dados como provados, os factos aludidos nas alíneas e) e j) da matéria não provada.

Há que aferir da pertinência da alegação do apelante, ponderando se, in casu, se verifica a ausência da razoabilidade da respectiva decisão em face de todas as provas produzidas, conduzindo necessariamente à modificabilidade da decisão de facto.

Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Exma. Juíza do Tribunal a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto directo com a prova testemunhal que, em regra, melhor possibilita ao julgador a percepção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.

Há, pois, que atentar na prova gravada e na supra referida ponderação, por forma a concluir se a convicção criada no espírito do julgador de 1ª instância é, ou não, merecedora de reparos.

Fundamentou a Exma. Juíza do Tribunal a quo, da seguinte forma a decisão sobre a matéria de facto:

(…)
Foram indicadas para responder à matéria aqui em apreciação, todas as testemunhas arroladas quer pela autora (Branca ...., Otília,…. Ilídio……, Irene …..), quer pelo réu (Gouveia ...., Amílcar…. e Luísa ……).

Defende, em suma, o apelante, que praticamente toda a matéria dada como provada na 1ª instância integra matéria conclusiva. Porém, não invoca que tal matéria não haja resultado da prova produzida, ou que o Tribunal a quo haja apreciado incorrectamente a prova produzida.

Apenas com relação à factualidade inserta no Nº 23 da matéria provada invoca o apelante, ter o Tribunal a quo efectuado uma errada apreciação da prova, no que concerne aos depoimentos das testemunhas, nomeadamente quanto às testemunhas por si indicadas que deveriam merecer maior credibilidade.

Importa, então, analisar os depoimentos prestados em audiência, a propósito da matéria impugnada aqui em causa, para verificar se tal matéria deveria ter sido decidida em consonância com o preconizado pelo apelante, ou se, ao invés, a mesma não merece censura, atenta a fundamentação aduzida pela Exma. Juíza do Tribunal a quo.

De todo o modo, é relevante relembrar, desde já, que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a Lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial.

De harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.

Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do nCPC (artigo 655.º do anterior CPC) o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência – v. sobre o conteúdo e limites deste princípio, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), 115 e seg.

A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada – cfr. a este propósito ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 435-436.

É certo que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade. Mas, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

Ademais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente.

Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso – v. neste sentido, Ac. STJ de 24.01.2012 (Pº 1156/2002.L1.S1).

Apreciando a questão em causa nos autos, há que salientar que, como é sabido, na selecção da matéria de facto, o tribunal deve ater-se a factos, não devendo aí incluir conceitos de direito ou juízos de valor sobre a matéria de facto, já que a instrução tem por objecto apenas factos, como se conclui pela análise do disposto no artigo 410º do nCPC, no qual se refere que a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova.

No julgamento da matéria de facto ter-se-á por não escrita a decisão do tribunal sobre questões de direito como, de resto, expressamente constava do disposto no artigo 646º, nº 4 do aCPC, preceito este que, não obstante não tenha correspondência no nCPC, se entende continuar ter sentido, posto que a prova continua a incidir sobre factos, como se infere do citado artigo 410º do nCPC.

E, conforme tem sido entendimento doutrinário e jurisprudencial esta solução aplicar-se-á, por analogia, às respostas que constituam conclusões de facto, designadamente quando as mesmas têm a virtualidade de, por si só, resolverem questões de direito a que se dirigem – v. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 605-07, ABEL SIMÕES FREIRE, Matéria de Facto – Matéria de Direito, C.J./STJ, ano XI, tomo III, 5-9.

Como já referia ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, 212 “(…) tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória.

Ora, na petição inicial, a autora, para fundamentar a sua pretensão com vista ao decretamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, alegou a factualidade que entendeu relevante para se poder concluir que se encontrava definitivamente comprometida a relação entre autora e réu, e que a autora deixou de ter qualquer intenção de reatar a relação conjugal.

Como sustenta ANTUNES VARELA, RLJ ano 122, 220, “Há que distinguir nesses juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de facto) entre aqueles cuja emissão ou formulação se há-de apoiar em simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, do homem comum e aqueles que, pelo contrário, na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador.” (…)“Os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto. Os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei (…) “.

A jurisprudência tem adoptado este critério, salientado que se o apuramento de determinada realidade se efectua à margem da aplicação da lei, tratando-se apenas de averiguar factos cuja existência não depende da correcta interpretação a dar a qualquer norma jurídica, estaremos perante o domínio da matéria de facto – cfr. neste sentido e a título meramente exemplificativo Acs. do STJ de 22.02.1995 e de 08.11.1995, C.J. 1995, I, 279 e II, 294, respectivamente.

A natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso o facto conclusivo deve ser havido como não escrito.

Mas, se o termo ou conceito é usado simultaneamente na linguagem jurídica e na linguagem comum, deve entender-se que foi empregue no sentido comum, não se devendo ter por não escrita quando a decisão de facto evidencia a compreensão da realidade de facto questionada, no contexto de facto alegado – v. a título meramente exemplificativo, e ainda no âmbito do aCPC, mas cujo entendimento se continua a manter no nCPC, Acs. STJ de 18.12.2002 (Pº 02B3888), e de 3/11/2009 (Pº 4073/04.9TBMAI.P1), ambos acessíveis em www dgsi.pt.

Acresce que, como se refere no Ac. STJ de 10.01.2012 (Pº 197/04.OTCGMR.S1) e reafirmado no Ac. STJ de 28.05.2015 (Pº 460/11.4TVLSB.L1.S1) é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis pelos sentidos e compreensíveis pelo intelecto do homem, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia e um exacerbado rigorismo na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena da resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger.

No caso vertente, a matéria em causa constante da decisão de facto evidencia a compreensão de uma realidade de facto enquanto ocorrências da vida real do casal composto por autora e réu – Nºs 3 a 22, 24, 28 a 32 - é certo que pouco concretizada em momentos temporais precisos, mas que ajudam a compreender o facto provado nº 25, que não foi impugnado: “Desde a primeira semana de Setembro de 2013, autora não mais partilhou, cama e mesa com o réu – sendo que serão essas apuradas ocorrências da vida do casal, ainda que pouco concretizadas no tempo, que permitirão concluir, ou não, pela ruptura definitiva do casamento, como preconiza a autora na sua petição inicial, visando o decretamento do divórcio.

Assim, apesar de expressões algo conclusivas contidas em alguns dos factos dados como provados, os mesmos não perdem a natureza fáctica, encerrando em si uma determinada ocorrência ou constatação histórica, sendo certo que o réu/apelante não colocou em causa que tal matéria – traduzida em juízos de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrências da vida real do casal composto pela autora e réu – invocando, nomeadamente que a mesma não tivesse efectivamente resultado da prova produzida. Daí que se terá de concluir que não será de considerar tal matéria como não escrita.

Mantém-se, pois, nessa parte, a decisão de facto nos termos em que a mesma resultou da prova produzida, atenta a fundamentação exaustiva e precisa proferida pelo julgador de 1ª instância.

Relativamente à restante matéria impugnada:

Consta do Nº 23 da matéria provada que:
§ O que sucedeu (a autora sair de casa) a 7 de Janeiro de 2014, ficando a autora e filhos, temporariamente, em casa da sua mãe e avó.

Consta das alíneas e) e j) da matéria não provada que:
§ Em 20 de Janeiro de 2014, a autora abandonou voluntariamente e contra a vontade do réu a casa de morada da família (alínea e).

§ A autora certamente por agravamento da sua situação psicológica, inesperadamente e sem aviso prévio, no dia 20 de Janeiro de 2014, abandonou a casa de morada da família, acompanhada dos seus dois filhos (alínea j).

Dos depoimentos das testemunhas ouvidas, globalmente analisados e ponderados, não pode deixar de se entender que dos mesmos se tem de considerar provado o facto impugnado, constante do Nº 23 da matéria provada, designadamente tendo presente os depoimentos das testemunhas, Branca ...., Otília ……, Ilídio ….. e Irene ……, as quais mantinham uma ligação mais estreita com o casal e, portanto, maior conhecimento demonstraram das vicissitudes da vida do casal, tendo acolhido a autora, no dia em que esta saiu de casa, acompanhada dos filhos.

Estas testemunhas não só relevaram um conhecimento mais directo e preciso acerca da situação e vivência do casal e do momento em que ocorreu a saída da autora da casa de morada da família e que coincidiu com o dia em que um sobrinho da autora fazia anos.

E, não obstante todas elas serem familiares da autora, prestaram depoimentos consistentes e credíveis, e encontrando-se em consonância com as declarações de parte da autora, sujeitas, como é sabido, à livre convicção do julgador.

Ao invés, as testemunhas indicadas pelo réu, pouco relacionamento tinham com o casal composto pela autora e réu, sendo certo que os depoimentos das testemunhas Amílcar…. e Luisa ....que, com reduzida frequência se deslocam à casa do casal, se mostraram pouco consistentes, nomeadamente quanto ao facto de terem ido levar o carro para o autor arranjar na garagem da moradia do casal e poderem afirmar, de forma peremptória, que tal ocorrera no dia 20.01.2014. Invocaram vagamente, para justificarem que se recordavam que havia sido precisamente nesse dia, a circunstância de uma tia fazer anos nesse mesmo dia. De resto, sobretudo esta última testemunha mostrou-se excessivamente opinativa, evidenciando algum antagonismo face à autora.

Nas declarações de parte, o relato da autora mostrou maior credibilidade, o que não sucedeu com o réu, revelando-se muito reticente, tudo negando, afirmando que o casamento entre autora e réu decorria sem qualquer problema, tendo dificuldade em justificar a circunstância do casal ter chegado a recorrer a consultas de terapia conjugal.

Em relação à data da saída da autora e filhos do lar conjugal, afirmou o réu que tal teria ocorrido a seguir às festas de “Santo Amaro”, remetendo, de forma pouco clara, para o facto de ter arranjado o carro do compadre em 18 de Janeiro de 2014.

Entende-se, assim, que razão assiste à Exma. Juíza do Tribunal a quo, ao não ter dado credibilidade aos depoimentos das testemunhas indicadas pelo réu/apelante que demonstraram terem menos contacto com a vida diária do casal composto por autora e réu, não resultando da prova produzida qualquer indício sério, que levasse a contrariar o facto apurado, de que a saída da autora da casa de morada de família ocorrera no dia 7 de Janeiro de 2014.

Assim sendo, entende-se, tendo em conta as considerações antes aduzidas, que não há como alterar a matéria de facto dada globalmente como provada pela 1ª instância, nomeadamente no que concerne ao nº 23 dos Factos Provados, quer perante a ausência de prova credível para incluir nos Factos Provados, a matéria propugnada pelo réu/apelante na sua alegação de recurso, constante das alíneas e) e j) da matéria dada como não provada, já que nada permite afastar a convicção criada no espírito do julgador do tribunal recorrido, convicção essa que não é merecedora de reparo.

Será, portanto, de manter os Factos Provados tal como foi decidido na 1ª instância.

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iii) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA
ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS

De harmonia com o disposto no artigo 1781º do Código Civil são fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:
a) A separação de facto por um ano consecutivo;
b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.

A presente acção de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges assentou, na sentença recorrida, no fundamento da separação de facto por um ano consecutivo.

Como decorre do 1782º do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 61/2008 de 31de Outubro, que entrou em vigor em 30.11.2008, entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do art.º 1781º, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges (elemento objectivo) e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer (elemento subjectivo).

A referida Lei nº 61/2008, de 31.10, eliminou a culpa como fundamento de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, tendo consagrado na nossa ordem jurídica o designado modelo de “divórcio constatação da ruptura conjugal”, inspirado na concepção de divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento, com fundamento em factualidade que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do matrimónio, desta forma se tendo abandonado a modalidade de divórcio por violação culposa dos deveres conjugais, o chamado “divórcio-sanção”.

Como bem se refere no Ac. STJ de 09.02.2012 (Pº 819/09.7MPRT.P1.S1) a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, limitou-se a aprofundar o modelo “moderno” de casamento, por contraposição ao seu modelo “tradicional”, modelo esse que “desvaloriza o lado institucional e faz do sentimento dos cônjuges, ou seja, da sua real ligação afectiva, o verdadeiro fundamento do casamento”, que passa a ser “tendencialmente”, ou, no limite, antes que uma “instituição”, “uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e a sua realização pessoal”, ideia que justifica e propugna a dissolução jurídica do vínculo matrimonial quando, independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges, ele se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido, definitivamente, e, sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum.

Com efeito, o chamado divórcio-ruptura, em contraposição ao divórcio-sanção, funda-se em causas objectivas, designadamente a separação de facto, reconhecendo-se que o vínculo matrimonial se pode perder independentemente da causa do fracasso da vida conjugal.

Ora, no caso vertente, ficou provado que a autora e o réu haviam contraído casamento em 10.09.1993 e, desde a primeira semana de Setembro de 2013, a autora não mais partilhou cama e mesa com o réu, verificando-se uma ausência de relacionamento entre autora e réu, acabando a autora por sair da casa de morada de família, levando consigo os filhos, em 07.04.2014 – v. Nºs 1, 22, 23, 25 e 31 da Fundamentação de Facto.

Mais se provou que a autora não tem qualquer intenção de restabelecer a vida matrimonial comum – v. Nº 33 da Fundamentação de Facto.

É certo que, não obstante a ausência de relacionamento e vivência em comum entre autora e réu, pelo menos, desde de Setembro de 2013, a verdade é que a saída da autora do lar conjugal ocorreu, como se provou, em 07.04.2014, tendo a acção de divórcio sido por esta intentada em 24.02.2014, ou seja, menos de um mês após a sua saída de casa.

A sentença recorrida decretou, em 30.03.2015, e como acima ficou dito, no divórcio ao abrigo da alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil, com fundamento da separação de facto por um ano consecutivo.

Não se ignora que alguma jurisprudência tem vindo a considerar a superveniência desse prazo à data do encerramento da discussão da causa, nos termos do artigo 611º do CPC (artº 663.º do aCPC.), com base na prevalência do princípio da actualidade, sendo que, no caso em análise, esse momento ocorreu em 13.02.2015 – v. nomeadamente, Acs. STJ de 03.11.2005 (Pº05B2266), e de 06.03.2007 (Pº 07A297); Ac. R.L. de 15.5.2012 (Pº 1017/09.5TMLSB.L1-7) , acessíveis em www.dgsi.pt.
Defende, por outro lado, grande parte da doutrina e da jurisprudência que o pressuposto da duração temporal da separação se deve verificar à data da propositura da acção – v. a propósito, ABEL PEREIRA DELGADO, O Divórcio, 1980, 69, FERNANDO BRANDÃO FERREIRA PINTO, Causas do Divórcio, 1980, 122, TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO, O Divórcio e Questões Conexas (Regime Jurídico Actual), 2ª ed. 67 a 68, Acs. STJ de 24.10.2006 (Pº 06B2898); de 10.10.2006 (Pº06A2736) e de 03.10.2013 (Pº 2610/10.9TMPRT.P1.S1); Acs. R.P.de 14.06.2010 (Pº 318/09.7TBCHV.P1), de 15.03.2011 (Pº 5496/09.2TBVFR.P1), e de 29.03.2011 (Pº 1506/09.1TBOA2.P1); Ac. da R.G. de 11.09.2012 (Pº 250/10.1TBMBRG.G1); Ac. R.E. de 21.03.2013 (Pº 292/10.7T2SNS.E1); Acs. da R.L. de 10.02.2011, (Pº 568/09.6TBMFR.L1-2), de 15.05.2012 (Pº 9139/09.6TCLRS.L1-7), de 22.10.2013 (Pº 16/11.1TBHRT.L1-7) e de 17.12.2015 (Pº 425/13.1TMLSB.L1-2), no qual a ora relatora foi ali 1ª adjunta.

Como se refere no Ac. R.L. de 22.10.2013 ( 16/11.1TBHRT.L1-7), o artigo 663.º, n.º 1, do CPC, embora admita a atendibilidade de factos jurídicos supervenientes, mesmo de natureza constitutiva, ressalva, porém, as restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, o que bem se compreende à luz da garantia inerente ao princípio do contraditório. Nestas circunstâncias, a atendibilidade superveniente daquele pressuposto implicaria a ampliação da causa de pedir, nessa base formulada, que não a sua mera completude ou correção, atentando assim com as garantias do contraditório, o que não é permitido pelo artigo 273.º, n.º 1, do CPC.

Sufraga-se, por conseguinte, esta última posição doutrinária e jurisprudencial, por se entender que o pressuposto da duração temporal da separação se deve verificar à data da propositura da acção.


E que, o disposto na alínea a) do artigo 1781.º do CC tem natureza marcadamente substantiva, e mostra-se densificada no n.º 1 do artigo 1782.º do CC, que visa preservar um período de tempo considerado essencial para a consolidação da situação de facto, como que a presumir, juris et de jure, a ruptura definitiva do vínculo conjugal, sem envolver, no entanto, a prova específica ou directa desta, como sucede na hipótese prevista na alínea d) do aludido artigo 1781º.

O pressuposto factual consubstanciado na duração daquele prazo assume a natureza de um facto constitutivo do direito potestativo de requerer o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, essencial para a procedência da acção, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 342.º do CC.

Sucede, porém, que o fundamento de divórcio invocado pela autora assentou no preceituado na alínea d) do artigo 1781º do Código Civil.

A cláusula geral e objectiva da ruptura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, previsto na aludida alínea d) do artigo 1781.º do CC – não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas consagradas nas demais alíneas que impõem um ano de permanência.

Ora, o quadro factual constante da matéria dada como provada, mormente a inexistência de qualquer aproximação entre autora e réu e a ausência de relacionamento entre ambos, a falta de partilha entre eles, desde há vários meses antes da propositura da acção, de cama e mesa – v. Nºs 23 a 31 da Fundamentação de Facto - implica que se considere demonstrada a cessação irreversível da comunhão conjugal, reveladora da inexistência de qualquer indício sério de reatamento da vida conjugal.

Com efeito, provado ficou que a autora não tem qualquer intenção de restabelecer a vida matrimonial comum (Nº 33 da Fundamentação de Facto) – o que se mostra suficiente para o preenchimento do conceito de ruptura definitiva do vínculo matrimonial, previsto na alínea d) do artigo 1781º do Código Civil – v. neste sentido, Ac. STJ de 03.10.2013 (Pº 2610/10.9TMPRT.P1.S1) e Ac. R.L. de 22.10.2013 (Pº 16/11.1TBHRT.L1-7), acessíveis no supra citado sítio da Internet – o que sempre levará à procedência da acção.

E, assim sendo, a apelação não poderá deixar de improceder, confirmando-se a sentença recorrida.

Recurso da autora

i) DO INCIDENTE DE ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Insurge-se a autora/recorrente quanto à decisão inserta no incidente de atribuição da casa de morada de família, quer quanto à matéria de facto provada, quer quanto ao mérito da decisão, nomeadamente por não ter sido atribuída à autora uma compensação devida pelo réu pelo facto de ficar a usufruir da casa de morada de família.

Entende a autora que os pontos 10 e 13 da matéria de facto dada como provada deveriam ser dados como não provados, pois quer o facto de ser o réu quem paga as despesas de água, luz, gás, TV, IMI, como também que o único espaço disponível que o réu tem (para exercer a sua actividade de mecânico de automóvel) é a garagem da sua própria casa, que é ampla, não resultaram da prova documental ou testemunhal.

Por outro lado, visa a autora o aditamento à factualidade provada, de nova matéria atinente, não só às motivações que levaram à saída da autora do lar conjugal, como também a quem pertenceu o terreno no qual a casa de morada de família foi construída, e ainda quanto ao eventual levantamento, por parte do réu, de quantias monetárias de contas bancárias conjuntas do então casal composto por autora e réu.

Sucede porém, que nenhuma razão assiste à autora/apelante, no que concerne a pretendida alteração da decisão de facto.

Os factos dados como provados nºs 10 e 13, resultaram da prova testemunhal indicada pelo réu, que não foi posta em causa por qualquer contraprova credível apresentada pela autora, nomeadamente que as despesas de casa tenham vindo a ser pagas pela própria, ou que se encontram por pagar (Nº 10).

Quanto à afirmação das testemunhas indicadas pela autora, que salientaram que a casa tinha sinais de se encontrar abandonada – apesar das dúvidas sobre a isenção que, nessa parte, os respectivos depoimentos suscitaram – a verdade é que, atento o objectivo do incidente, o que releva é a actividade profissional do réu, a sua determinação de iniciar essa actividade (ponto 12 da matéria provada não impugnada) e, consequentemente, o local propício para tal que, efectivamente, se demonstrou ser a garagem da casa de morada de família.
Acresce que se mostram irrelevantes as considerações que a autora aduz, na sua alegação de recurso, quer quanto ao aditamento de nova factualidade, no que concerne às motivações que levaram à saída da autora do lar conjugal, e muito menos a quem pertenceu o terreno no qual a casa de morada de família foi construída, ou o eventual levantamento, por parte do réu, de quantias monetárias de contas bancárias conjuntas do então casal composto por autora e réu, circunstâncias essas, úteis para um ulterior processo de partilha, mas que neste incidente não são susceptíveis de qualquer relevância.

Improcede, portanto, nessa parte, a apelação da autora.

ii) DOS CRITÉRIOS DE ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA

No caso em apreço, autora e réu encontravam-se e mantêm-se dissonantes, quer quanto à dissolução do casamento celebrado entre ambos, quer quanto ao destino da casa de morada de família.

Como defende NUNO DE SALTER CID, A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, 26, a expressão casa de morada de família é, no sentido comum imediato das palavras que a compõem, o edifício destinado a habitação, onde reside um conjunto de pessoas do mesmo sangue ou ligadas por algum vínculo familiar, e que residência da família é o lugar onde esse conjunto de pessoas tem a sua morada habitual, a sua sede.

Conclui, no entanto, este autor, ob. cit, 31, que “ seja qual for a definição proposta, está sempre subjacente a ideia de que a casa de morada da família, bem como a residência da família, são a sede da família, constituindo a residência habitual principal do agregado familiar. Estão, pois, indubitavelmente excluídas as residências secundárias e ocasionais, como as utilizadas apenas nas férias ou fins de semana“.

Resulta do exposto que só pode ter a designação de casa de morada de família quando for nela que habitualmente habite a família, designadamente com os filhos do casamento ou da união de facto, formando todos uma economia comum, pois só nestas situações se coloca a questão da necessidade da atribuição dessa casa a apenas um dos elementos paternais da família, face à desagregação familiar resultante de um divórcio.

Preceitua o artigo 1793º, n.º1 do C. Civil, na redacção dada pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, em vigor a partir de 30 de Novembro de 2008, que: Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada cônjuge e o interesse dos filhos do casal”.

E, decorre do preceituado no artigo 1105º, na redacção dada pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro que:
1. Incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles.
2. Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros factores relevantes.
3. A transferência ou a concentração acordadas e homologadas pelo juiz ou pelo conservador do registo civil ou a decisão judicial a elas relativa são notificadas oficiosamente ao senhorio.
Infere-se do citado artigo 1793º, n.º1 do Código Civil, que o objectivo da lei é proteger o cônjuge ou o ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto á estabilidade da habitação familiar, cônjuge ou ex-cônjuge ao qual, porventura, os filhos hajam sido confiados.

Como afirmam PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil, Anotado, vol. IV, 2ª ed., 570 e 571, o primeiro factor atendível, dentro da solução flexível adoptada pela lei, são as necessidades de cada um dos cônjuges, sendo o segundo factor o do interesse dos filhos do casal.

Tem sido comummente sustentado na doutrina e na jurisprudência que a lei pretende que a casa de morada de família, em caso de divórcio, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro, os interesses dos filhos do casal, e só depois, se dúvidas persistirem, outras circunstâncias secundárias – v. entre muitos, PEREIRA COELHO, RLJ, ano 122, 137, e Acórdãos do STJ, de 18.02.82, BMJ 314, 320 e de 15.12.1998, CJ/STJ, tomo III, 164.

Todavia, no caso vertente, e conforme se mostra peticionado na petição inicial, está em causa neste incidente a atribuição à autora, provisoriamente, da casa de morada de família, até à partilha dos bens comuns do casal.

Não está, por conseguinte em questão, a fixação de um regime definitivo de atribuição da casa de morada de família, regime este que se mostra consagrado nos artigos 1793º do Código Civil e 990º do CPC, pressupondo que o cônjuge que a ela lança mão formule expressamente o pedido de arrendamento daquela, quer se trata de um bem comum do casal ou de um bem próprio do outro cônjuge.

A atribuição provisória da casa de morada de família tem o seu enquadramento no disposto nos artigos 931º nº 7 do CPC e 1781º, do CCiv., na redacção dada pela Lei nº 61/2008, de 31/10.

Trata-se de um incidente, com processo especialíssimo, norteado por critérios de conveniência, que apenas tem em vista a fixação de um regime provisório, até à partilha dos bens comuns que, em princípio, não tem a ver com o processo de constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulado, como processo de jurisdição voluntária, no aludido artigo 990º do CPC, previsto, como efeito do divórcio, nos artigos 1793º e 1105º do CC - v. neste sentido e a título meramente exemplificativo, Ac. STJ de 26.04.2012 (Pº 33/08.9TMBRG.G1.S1) e Ac. R. P. de 05.03.2013 (Pº 1164/10.0TMPRT-B.P1), acessível em www.dgsi.pt.

Não se encontrando disciplinada na lei a forma específica de atribuição provisória da casa de morada de família, haverá que recorrer ao regime previsto no artigo 1793º e aos índices de referência aí previstos.

Os critérios legais para que aponta o supra mencionado artigo 1793º, n.º1 do C. Civil são essencialmente dois:
a) As necessidades de cada um dos cônjuges,
b) O interesse dos filhos do casal, designadamente os filhos menores confiados à guarda de um dos pais e que, para não ficarem sujeitos a outro trauma para além do que normalmente lhes resulta do divórcio destes, a lei entende por bem proteger de forma a que
possam continuar a viver com estabilidade na habitação a que estavam habituados, sem mais mudanças para além da própria situação familiar – v. Ac. STJ de 11.12.2001 (Pº 01A3852), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt

No caso vertente, e para o que aqui releva, resultou da prova produzida que:
Ø A autora, requerente do incidente aqui em apreciação, deixou de viver na casa de morada de família em 07.04.2014, tendo ido residir com os filhos para uma casa pertencente à sua irmã, procedendo ao pagamento de € 200,00, o que nem sempre consegue. Aufere, a título de salário, o valor médio líquido de € 700,00 e recebe do réu a quantia mensal de € 240,00, a título de pensão de alimentos atribuída aos dois filhos do casal, tendo de prover às despesas da própria e dos seus filhos - v. Nºs 1, 2, 5 e 9 da Fundamentação de Facto do Incidente.

Ø O réu, requerido no incidente, está desempregado, tendo deixado de beneficiar do subsídio de desemprego. Sendo mecânico automóvel de profissão, pretende organizar a sua vida, de forma a iniciar a sua actividade profissional no espaço disponível para o efeito, que é a garagem da casa de morada de família.

Ora, face às necessidades de autora e réu, ponderando as difíceis condições económicas de ambos, há que sopesar um aspecto essencial que é a circunstância de o réu necessitar, por ora, de um local de trabalho para reiniciar a sua actividade profissional, até para poder dar cumprimento à obrigação de prestação de alimentos a que está vinculado.

Concorda-se, consequentemente, com a decisão recorrida quando ali se concluiu que a necessidade ou premência da necessidade da casa de morada de família pela autora, requerente do incidente, não é superior à do réu.
Do exposto se conclui que se mostra acertada a decisão recorrida, de julgar improcedente a peticionada atribuição, à autora/apelante, da casa de morada de família.

Insurge-se, contudo, igualmente a autora pelo facto de, tendo-lhe sido negada a atribuição da casa de morada de família, não ter sido fixada qualquer contrapartida.

É certo que a sentença recorrida ao não atribuir – e bem - a casa de morada de família à autora, acabou por sancionar a utilização desse bem comum, em exclusivo pelo réu, atentas as necessidades deste dadas como provadas, o que deverá ocorrer até à adjudicação dos bens comuns do extinto casal, por via extrajudicial ou judicial e, neste último caso, até ao trânsito em julgado da sentença proferida no inventário com essa finalidade.

E, dada a eventual demora na completa regularização da partilha dos bens do casal, não pode deixar de ser devida uma compensação ao cônjuge que não habita a casa de morada de família, o que o Tribunal a quo não regulou - como poderia - ao abrigo do nº 7 do artigo 931º do CPC, pois no âmbito da jurisdição voluntária, na sua decisão, o juiz possui a máxima amplitude, tanto na aplicação do direito, como na investigação e avaliação fáctica, sendo certo que, como é entendimento jurisprudencial, mesmo que não haja sido incluído no pedido, a atribuição provisória da casa de morada de família a um dos cônjuges implica a fixação de uma compensação àquele que dela ficou privado – v. Ac. STJ de 26.04.2012 (Pº 33/08.9TMBRG.G1.S1); Acs. R.P. de 05.02.2013 (Pº 1164/10.0TMPRT-B.P1) e de 11.03.2014 (Pº 5815/07.6TBVNG-K.P2).

Assim, ao abrigo do citado dispositivo legal, e tendo em consideração as características da casa de morada de família, conforme o réu confessa na parte final do artigo 52º da contestação – composta por uma sala e cozinha amplas, 3 quartos de dormir amplos e uma grande garagem - o valor de uma casa usada com tais características, no mercado de arrendamento local, nunca poderia ser inferior a € 650,00 (v. Portal Nacional do Imobiliário acessível em casa.sapo.pt).

Considerando, no entanto, que na atribuição da casa de morada da família, o tribunal não tem que ficar condicionado pelos valores de mercado, desconsiderando a situação patrimonial dos cônjuges, na aludida compensação o Tribunal apenas terá de tomar em consideração as circunstâncias do caso e, em particular, a situação patrimonial do cônjuge que ficou no uso e fruição do bem comum.

No caso vertente, atendendo a que o réu se encontrava, em Março de 2015, a reiniciar a sua actividade profissional, que tem de suportar o pagamento da pensão de alimentos para os dois filhos do casal, no montante de € 240,00, entende-se, um juízo de equidade, fixar em € 200,00, a compensação à autora pela permanência do réu na casa de morada de família, montante que será devido, pelo réu, até à adjudicação dos bens comuns do extinto casal, por via extrajudicial ou judicial e, neste último caso, até ao trânsito em julgado da sentença proferida no inventário com essa finalidade.

Procede, pois, parcialmente, a apelação da autora, mantendo-se a decisão recorrida, no que concerne à não atribuição à apelante da casa de morada de família, determinando-se que, como contrapartida do uso e fruição da casa de morada de família, exercidos provisoriamente pelo réu de forma exclusiva, será devida à autora, a compensação mensal de € 200,00, que o réu pagará àquela, desde a data da prolação da decisão em 1ª instância que, ao cabo e ao resto, acabou por atribuiu ao réu o uso e fruição da casa de morada de família, em exclusivo, e provisoriamente, e que se manterá até à partilha do património comum do casal.

O réu será responsável pelas custas, em relação à apelação por ele deduzida, fixando-se a responsabilidade pelas custas, relativamente à apelação da autora, a cargo de autora e réu, na proporção
de ½ para cada, nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil sem prejuízo do concedido apoio judiciário.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo réu, mantendo-se a decisão recorrida e em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela autora, mantendo-se a decisão recorrida, no que concerne à não atribuição à apelante da casa de morada de família, determinando-se que, como contrapartida pelo uso e fruição da casa de morada de família, exercidos de forma exclusiva, provisoriamente, pelo réu, será devida à autora, a compensação mensal de € 200,00, a pagar pelo réu, desde a data da prolação da decisão em 1ª instância e até à partilha do património comum.

Condena-se o réu nas custas, em relação à apelação por ele deduzida e, relativamente à apelação da autora, condenam-se autora e réu, na proporção de ½ para cada, sem prejuízo do concedido apoio judiciário.

Lisboa, 14 de Abril de 2016

Ondina Carmo Alves - Relatora
Lúcia Sousa
Magda Geraldes