Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13977/21.3T8LSB.L1-2
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE FINANCIAMENTO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (artigo 663.º, n.º 7, do CPCivil):
I. A reserva de propriedade está reservada aos contratos de alienação, só podendo ser estipulada a favor do alienante.
II. Nada impede, contudo, que a reserva de propriedade perdure até ao pagamento integral do crédito concedido aquando da alienação, como garantia desse pagamento, tal como nada impede que a reserva de propriedade inicialmente estipulada a favor do alienante possa em momento subsequente ser por este cedido ao mutuante/financiador, nomeadamente por sub-rogação.
III. Relevante é que a reserva de propriedade não fique condicionada ao pagamento do preço ao alienante, uma vez que pago este a propriedade transfere-se para o comprador, não podendo, por isso, ocorrer então transferência da reserva de propriedade do alienante para o financiador, por aquele não ser já titular daquele
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
Neste processo comum de declaração, a A., FCE BANK PLC, demanda o R., DFS, pedindo que:
- Seja declarado que chegou ao seu termo o contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel de matrícula …-…- …;
- O R. seja condenado a reconhecer que o referido veículo pertence à A.;
- O R seja condenado na entrega definitiva à A. do referido veículo automóvel, bem como os respetivos documentos.
Como fundamento do seu pedido, a A. alegou, em síntese, que o R. comprou a aludida viatura à Ford Lusitana, SA., com recurso a financiamento da A., sendo que para garantia do reembolso do valor financiado foi constituída uma reserva de propriedade do veículo a favor da Ford Lusitana, a qual cedeu tal reserva à A., com consentimento do R.
Alegou igualmente que o R. deixou, entretanto, de pagar as prestações a que estava obrigada, tendo, por isso, o interpelado para regularizar os pagamentos em falta ou entregar o mencionado veículo, o que nada fez.
O R. não contestou.
Por sentença de 09.02.2022, a ação foi julgada improcedente e o R. absolvido do pedido, sendo que, no essencial, consta da sentença que
«No caso, a Requerente é uma financeira e fundamenta o pedido de apreensão deduzido nos autos na circunstância de ser titular de reserva de propriedade sobre veículo, adquirido pelo Requerido, que aquela financiou integralmente. Mais alegou que a vendedora transferiu para si a reserva de propriedade, enquanto financiadora.
A simples descrição da alegação factual denota uma absoluta impossibilidade lógica: a vendedora não pode transferir uma propriedade que não se mantém na sua esfera, uma vez que aquela se transmite, com o pagamento integral, para o adquirente, o que foi possibilitado graças ao financiamento (cfr. artigo 409.º, n.º 1 a contrario do Código Civil, que dispõe que “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.”).
Finalmente, não procede a afirmação de que a transferência de propriedade pode ficar dependente de outro “qualquer evento”, na medida em que o que o artigo 409.º do Código prevê é a possibilidade de uma cláusula acessória, não a possibilidade de suspensão do sinalagma contratual. Assim sendo, a cláusula em que assenta tal transferência de reserva de propriedade não pode deixar de ser considerada nula e de nenhum efeito, na medida em que assenta numa impossibilidade jurídica e lógica – cfr artigos 294.º e 409.º, n.º 1 a contrario do Código Civil (Segue-se de perto: douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/7/2017, do qual foi Relatora a Sr.ª Desembargadora Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado, disponível in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php
?codarea=58&nid=5285 (consultado em 31.01.2019)».
Inconformada, a A. recorreu daquela decisão, apresentando as seguintes conclusões:
«A. No caso em apreço, e conforme resulta da documentação junta aos autos e dos factos dados como provados, a reserva de propriedade foi inicialmente constituída pela entidade alienante do veículo, a saber, a FORD LUSITANA, S.A., e no âmbito do contrato de alienação que constituiu a compra e venda do veículo.
B. Como se pode observar no Doc.2 junto com a Petição Inicial, o contrato de compra e venda foi celebrado com reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo, para garantia do montante de EUR 12.746,13, exatamente o montante acordado pagar pelo Apelado à Apelante, por conta do financiamento concedido.
C. No âmbito do referido contrato, o efeito jurídico da transferência da propriedade ficou efetivamente condicionado à ocorrência de um evento determinado, neste caso o pagamento integral pelo Apelado à Apelante de todas as prestações acordadas no contrato de financiamento que possibilitaria a aquisição por aquele do referido veículo automóvel.
D. Conforme alegado na Petição Inicial, para garantia do valor financiado foi constituída uma reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo – cfr. cláusula 12 das condições particulares e B das condições gerais do contrato de financiamento.
E. A supra referida cláusula B das condições gerais esclarece que “Nos termos do disposto no artigo 409.º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas pelo COMPRADOR à FCE BANK, a propriedade do veículo é inicialmente reservada para o VENDEDOR REGISTADO, que cedeu ou cederá à FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade.”.
F. Prevê o artigo 409.º, n.º 1 do C.C., “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento”.
G. A situação descrita enquadra-se sem qualquer dúvida no conceito de “qualquer outro evento” previsto na parte final do n.º 1 do referido artigo 409.º do C.C, que permite que no mesmo sejam abrangidas realidades como, por exemplo, a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário originário.
H. Veja-se a este respeito o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12.08.2013, e em que é Relator o Exmo. Desembargador Pedro Martins, consultável em www.dgsi.pt: “A reserva da propriedade (art. 409 do CC) só pode ser estipulada a favor do alienante, mas isso não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento do crédito do mutuante (isto ao abrigo da parte da previsão ou até verificação de qualquer outro evento que consta do n.º 1 do art. 409 do CC) e que depois seja transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do devedor” (sublinhado nosso).
I. Veja-se ainda o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 15.07.2008, e em que é Relator o Exmo. Desembargador Hélder Roque, consultável em www.dgsi.pt: “É que a reserva de propriedade pode ser constituída legalmente, para garantir um crédito de terceiro, em especial, quando este tenha a sua fonte num contrato relacionado com a compra e venda de veículo, como acontece com o contrato de mútuo celebrado com o objectivo de financiar o primeiro contrato, ou seja, o contrato de compra e venda.”
J. Ora, verificado que se encontra o facto de a reserva de propriedade ter nascido no âmbito de um contrato de alienação (nomeadamente no contrato de compra e venda celebrado entre a Apelada e a vendedora FORD LUSITANA, S.A.), e o facto de o evento do qual depende a transferência de propriedade se encontrar de forma clara e inequívoca dentro do legalmente estipulado,
K. Urge concluir que nada impede a constituição da reserva de propriedade nos termos em que a mesma foi efetuada.
L. Este mesmo é de resto o entendimento defendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2014, em que é relatora a Exma. Conselheira Maria Clara Sottomayor, consultável em www.dgsi.pt, que de seguida se reproduz, por total adesão ao mesmo: “Segundo Isabel Menéres Campos, «(…) a afirmação de que a reserva de propriedade a favor do financiador é nula por corresponder a um negócio contrário à lei não colhe, por não conseguirmos descortinar qual a norma jurídica imperativa violada. Como tivemos oportunidade de rever ao longo deste trabalho, a regra da consensualidade, constante do artigo 408.º do Código Civil, não corresponde a nenhum princípio de natureza imperativa e inderrogável. As partes podem convencionar o afastamento dessa regra, colocando, convencionalmente, o momento da transferência do contrato. A letra da lei, ao admitir a possibilidade de as partes nos contratos de alienação subordinarem a transferência do direito real ao pagamento do preço ou à verificação de um qualquer outro evento comporta, a nosso ver, a possibilidade de a posição do vendedor resultante da cláusula de reserva de propriedade se transmitir ao financiador que, no âmbito de um contrato de compra e venda financiada por terceiro, empresta os fundos necessários ao pagamento do preço dessa aquisição”.
M. “A ordem jurídica não pode, assim, ignorar que os dois contratos – o de compra e venda e o de financiamento – coexistem e estão interligados entre si, visando a consecução de uma finalidade económica comum: a facilitação do consumo por recurso ao crédito. Apesar de manterem a sua autonomia estrutural e formal, verifica-se uma interdependência de interesses entre o triângulo de sujeitos contratuais, que os tribunais devem reconhecer e que influencia as soluções jurídicas.”.
N. Não se alcança assim o entendimento plasmado na Sentença recorrida, de que a constituição da reserva apenas poderá servir para garantir o pagamento do preço ao vendedor do veículo, uma vez que tal entendimento, além de não resultar da Lei, é absolutamente contrário ao supra referido n.º 1 do artigo 409.º do C.C., nomeadamente à respetiva parte final, a qual vota a uma absoluta insignificância e inutilidade!
O. Em consequência, a reserva de propriedade em análise é assim absolutamente legal, possuindo plena eficácia e validade.
P. Resulta claro que a vendedora transmitiu à ora Apelante a propriedade de algo – neste caso o veículo objeto dos autos – que efetivamente ainda se encontrava na sua esfera jurídica, porquanto o que as partes expressamente acordaram foi a manutenção da propriedade do bem nessa esfera jurídica até à ocorrência de determinado evento.
Q. De acordo com tudo o que subjaz aos contornos da liberdade contratual, a Apelante adquiriu a propriedade do veículo pela cessão da reserva de propriedade e sub-rogação dos direitos que a reservatária originária detinha.
R. Assim sendo, e face a tudo quanto supra exposto, urge concluir-se que, contrariamente ao entendimento sufragado pela Sentença recorrida, não existe qualquer nulidade da cláusula de reserva de propriedade, inexistindo qualquer impossibilidade lógica ou jurídica nos termos alegados pelo Tribunal a quo, produzindo, ao invés, a referida cláusula todos os seus efeitos.
S. Consequentemente, tendo sido validamente constituída e transmitida à Apelante, a reserva de propriedade que se encontra registada a favor da mesma justifica, tendo em conta a factualidade dada como provada, a procedência da presente ação e a necessária condenação do R., ora Apelado, nos termos peticionados.
T. Ao julgar improcedente a presente ação, absolvendo o R. de todos os pedidos o Tribunal a quo violou os artigos 405.º, n.º 1, 409.º, n.º 1 do Código Civil.
Nestes termos, concedendo provimento ao presente recurso, revogando a Sentença ora recorrida e substituindo a mesma por outra que condene o R. em todos os pedidos formulados, fareis Vossas Excelências Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa o que é de inteira JUSTIÇA»
O R. não contra-alegou.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pela Recorrente, bem como as contra-alegações apresentadas pelo Recorrente, estão em causa apreciar e decidir:
- Da reserva de propriedade;
- Da sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor;
- Da admissibilidade da reserva de propriedade a favor do financiador não alienante;  
- Dos efeitos daí decorrentes quanto ao presente recurso.
Assim.
III.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Nos termos dos artigos 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 4, e 567.º, n.º 1, do CPCivil, este Tribunal da Relação de Lisboa considera provados, por confissão, os seguintes factos:
A) A A. dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis;
B) No exercício dessa sua atividade, a A. financiou o R. na aquisição do veículo de marca Ford, modelo Fiesta, com a matrícula …- …- …, vendido pela Ford Lusitana, SA., conforme Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito n.º …, junto com a petição inicial como documento 1;
C)  Para garantia do reembolso do montante financiado, foi constituída uma reserva de propriedade a favor da vendedora do veículo até que se mostrasse liquidado na integra o contrato de financiamento, conforme cláusulas 2. e 12. das Condições Particulares e cláusula B das Condições Gerais do referido Contrato:
«CONDIÇÕES PARTICULARES
(…)
2. Vendedor registado: Ford Lusitana, SA., Lisboa
(…)
12. RESERVA E PROPRIEDADE: O presente Contrato é celebrado com reserva de propriedade a favor do VENDEDOR REGISTADO identificado no número 2 das presentes Condições Particulares, nos termos e para os efeitos das Condições Gerais deste Contrato constantes da página 2 à página 4 do mesmo. O VENDEDOR REGISTADO cedeu ou cederá à FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade e o CLIENTE desde já presta o seu consentimento a tal cessão.
(…)
CONDIÇÕES GERAIS
(…)
B. RESERVA DE PROPRIEDADE
Nos termos do disposto no artigo 409.º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas pelo CLIENTE à FCE BANK, a propriedade do veículo é inicialmente reservada pera o VENDEDOR REGISTADO, que cedeu ou cederá à FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade. O CLIENTE presta o seu consentimento a tal cessão. Nos termos do disposto no artigo 591.º do Código Civil, o CLIENTE sub-roga a FCE BANK nos direitos do VENDEDOR REGISTADO, decorrentes da reserva de propriedade. As despesas inerentes à constituição, registo e cancelamento da reserva de propriedade são da exclusiva responsabilidade do CLIENTE.
(…)»; 
D) A Ford Lusitana, SA., cedeu à A., com o consentimento do R., a titularidade da referida reserva de propriedade, nos termos da referida cláusula 12. das Condições Particulares e da cláusula B das Condições Gerais do referido Contrato;
E) A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a favor da A., conforme documento 2 junto com a petição inicial que no mais se dá aqui por integralmente reproduzido;
F) O preço total da viatura foi de €13.900,00, tendo o R. efetuado um desembolso inicial de €3.000,00, conforme cláusulas 4. e 5. das Condições Particulares do aludido Contrato;
G) O R. não desembolsou o valor total da aquisição, tendo recorrido ao financiamento para aquisição a crédito, o que a A. se dispôs a fazer-lhe, tendo-lhe financiado a quantia de €10.900,00, conforme cláusula 6. das Condições Particulares do referido Contrato;   
H) O Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito celebrado entre a A. e o R. estipulou na cláusula 8. das suas Condições Particulares que o valor total a reembolsar ao financiamento era de €12.746,13, conforme cláusulas 6.3., 7. e 8. das Condições Particulares do Contrato;
I) Na cláusula 9. das Condições Particulares do mencionado contrato, o prazo do reembolso foi fixado pelas partes em 37 meses, mediante 36 prestações mensais no valor de €134,58 cada e uma última, correspondente à 37.ª prestação, no valor de €7.901,25;
J) O contrato em questão foi assinado em 07.10.2015 e entrou em vigor nesse mesmo dia;
K) O R. deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas no âmbito do referido contrato em 05.06.2018, não efetuando mais qualquer pagamento após aquela data;
L) Por isso, a A. enviou ao R., por carta registada, com aviso de receção, datada de 28.11.2018, através da qual informou o R. do termo do contrato de financiamento sem pagamento de todas as prestações acordada, interpelando-o a regularizar os pagamento em falta ou entregar o veículo financiado no prazo de oito dias, conforme documento 3 junto com a petição inicial que no mais se dá aqui por integralmente reproduzido.
M) Entretanto, na sequência de procedimento cautelar instaurado pela A., esta logrou nesse âmbito recuperar o referido veículo automóvel, embora não toda a respetiva documentação.
IV.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Da reserva de propriedade.
Segundo o artigo 409.º, n.º 1, do CCivil, «[n]os contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento».
Explicitando.
Por um lado, a reserva de propriedade está reservada aos contratos de alienação, só podendo ser estipulada a favor do alienante.
Por outro lado, a reserva de propriedade pode ficar subordinada a qualquer outro facto para além do cumprimento total ou parcial do contrato pela contraparte.
Como refere Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, edição de 2020, página 458, “O evento que leva à transmissão da propriedade (de móveis ou imóveis), como decorre de forma clara da própria lei, não é necessariamente o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, mas pode tratar-se de um qualquer outro facto, mesmo sem estar ligado ao cumprimento da obrigação emergente desse contrato pelo comprador”.
2. Da sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor.
Nos termos do artigo 591.º, n.ºs 1 e 2, do CCivil, «[o] devedor que cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode sub-rogar este nos direitos do credor», sendo que «[a] sub-rogação não necessita do consentimento do credor, mas só se verifica quando haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor».
No apontado preceito legal permite-se que o devedor que cumpre a obrigação em virtude de um empréstimo feito por um terceiro transmita a este os direitos de que era titular o seu credor originário.
Tal faculdade do devedor não depende de consentimento do credor e deve ser documentado.
Como refere Paulo Olavo Cunha, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, edição de 2018, páginas 633, 635 e 636, “o devedor que não esteja em condições de satisfazer a prestação a que se encontra vinculado, mas que consiga obter de um terceiro (mutuante) meios (dinheiro ou coisa fungível) que lhe permitam satisfazer essa obrigação perante o credor originário pode substituí-lo por esse terceiro, que o sub-roga nos direitos de que ele era titular”.
“(…) Afigura-se que a faculdade (…) é aparente, porquanto corresponde a uma exigência natural do mutuante, o qual só disponibilizará os fundos que viabilizem a operação se substituir o credor nos seus direitos perante o devedor”.
“O empréstimo celebrado entre o terceiro sub-rogante e o devedor tem de estar documentado por instrumento do qual constem as menções de que o dinheiro ou bem se destina à satisfação do crédito «e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor»”.
3. Da admissibilidade da reserva de propriedade a favor do financiador não alienante: os diversos entendimentos.
Tem merecido intensa discussão na doutrina e na jurisprudência saber da validade da reserva de propriedade a favor do mutuante quando este não seja simultaneamente alienante.
Em síntese.
Uns entendem que a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante é nula, uma vez que, em suma, o financiador não é, nem nunca foi dono da coisa, não podendo reservar para si um direito de que não é titular. A nulidade decorre da impossibilidade legal do objeto da estipulação (artigo 280.º, n.º 1, do CCivil) ou da violação de normas imperativas (artigos 408.º, 409.º e 294.º do CCivil)  – neste sentido se insere a decisão recorrida e veja-se o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 09.03.2021, processo n.º 3208/18.1T8OER.L1-7, www.dgsi.pt/jtrl, bem como a jurisprudência e doutrina nele indicada.
Outros sufragam entendimento oposto, considerando válido o pacto de reserva de propriedade a favor do financiador, preconizando, em resumo, uma interpretação atualista do referido artigo 409.º do CCivil, encarando esta como uma norma dispositiva e procedendo à sua leitura em função do princípio geral da liberdade contratual, bem como entendendo o mútuo como uma aquisição financiada e, pois, como um contrato de alienação – neste sentido veja-se o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 10.02.2015, processo n.º 813/10TBSCR.L1-7, www.dgsi.pt/jtrl, assim como a jurisprudência e doutrina nele indicada.
Outros ainda, seguem uma posição mitigada, fundados na consideração do negócio em causa com um sinalagma trilateral, admitindo a reserva a favor do mutuante quando inicialmente tenha sido constituída a favor do alienante e haja uma posterior cessão a favor do financiador, muitas vezes sob a forma de sub-rogação deste nos direitos do alienante – neste sentido veja-se o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 09.01.2020, processo n.º11755/19.9T8LSB.L1-2, www.dgsi.pt/jtrl, bem como a jurisprudência e doutrina aí mencionada.
No que respeita a “posições mitigadas acerca da interpretação do artigo 409.º”, Isabel Menéres Campos, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, edição de 2018, página 77, refere que tais posições “(…) sustentam que a norma não consente que a reserva de propriedade se possa desligar, em absoluto, do contrato translativo e, por conseguinte, da faculdade do alienante resolver o contrato. A mudança de titularidade do direito (da posição do contrato) não é um evento suscetível de conformar uma alteração da configuração da própria reserva, nem tão pouco de a transfigurar numa garantia acessória das obrigações. Todavia no que respeita à questão da validade da cláusula, cabe indagar se não estaremos perante um negócio de alienação em garantia em benefício do financiador, ainda que sob a errónea aparência de uma venda com reserva de propriedade, podendo porventura o financiador, em resultado do acordo prévio celebrado, ter-se por sub-rogado nos direitos do vendedor perante o comprador mutuário. Sendo a reserva de propriedade transmissível, ao abrigo do princípio da autonomia privada, a necessária resolução do contrato só pode ser exercida no âmbito da cessão da posição contratual (Catarina Monteiro Pires, [Alienação em garantia, edição de] 2010:172)”.
4. Da posição aqui seguida.
Com o devido respeito pelas posições diversas, sufraga-se aqui a indicada posição mitigada.
Conforme já deixámos afirmado, a reserva de propriedade está reservada aos contratos de alienação, só podendo ser estipulada a favor do alienante.
Nada impede, contudo, que a reserva de propriedade perdure até ao pagamento integral do crédito concedido aquando da alienação, como garantia desse pagamento, tal como nada impede que a reserva de propriedade inicialmente estipulada a favor do alienante possa em momento subsequente ser por este cedido ao mutuante/financiador, nomeadamente por sub-rogação.
Relevante é, pois, que a reserva de propriedade não fique condicionada ao pagamento do preço ao alienante, uma vez que pago este a propriedade transfere-se para o comprador, não podendo, por isso, ocorrer então transferência da reserva de propriedade do alienante para o financiador, por aquele já não ser titular daquele direito.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.08.2013, relatado pelo aqui 1.º Adjunto, processo n.º 3225/12.2YXLSB-2, www.dgsi.pt/jtrl:
“(…) A cláusula de reserva de propriedade (art. 409 do CC) só pode ser estipulada por aquele que é proprietário, isto é, por aquele que aliena a coisa. Isto é, ela só tem sentido enquanto reserva da propriedade a favor de quem já era proprietário”.
“De outra perspectiva, isto quer dizer que a reserva de propriedade não pode ser feita a favor de terceiro: o terceiro não pode reservar para si – ou não podem reservar para ele – a propriedade que não tem”.
“(…) [O] mutuante que cumpre a obrigação, pode ser colocado na posição do alienante – na titularidade de uma propriedade reservada para garantia do seu crédito – por sub-rogação, quer pelo vendedor (art. 589 do CC) quer pelo devedor (a requerida), sem necessidade de consentimento do vendedor (art. 590 do CC), desde que a vontade de sub-rogar seja manifestada até ao momento do cumprimento da obrigação”.
“Situação que ainda se verifica quando o mutuário cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada pelo mutuante, também sem necessidade de consentimento do credor, desde que haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do vendedor (art. 591 do CC)”.
“E, se assim for, o mutuante passa a ter os direitos que antes eram do vendedor e são esses direitos que estão aqui em causa e que podem ser exercidos”.
“(…) Mas esta construção só é possível, como se vê, se a reserva da propriedade não tiver ficado condicionada ao pagamento do preço ao vendedor. Se o evento “condicionante” for o pagamento do preço ao vendedor, pago este – seja por quem for -, a propriedade transfere-se para o comprador, deixando de existir qualquer reserva que possa ser transmitida”.
“Se assim é, a validade desta construção está dependente de se aceitar que o art. 409/1 do CC permite que nos contratos se reserve a propriedade à verificação qualquer outro evento que não apenas até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte”.
“E a verdade é que a lei permite aquela reserva até à verificação de qualquer outro evento, que não o cumprimento das obrigações da outra parte, do que não pode haver dúvidas dados os claros termos legais”.
Com iguais efeitos jurídicos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.09.2014, referido pelo Recorrente, processo n.º 844/09.8TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt/jstj, sufraga entendimento no sentido
“(…) [Da] validade da cessão da reserva de propriedade do vendedor para o financiador, com base, em síntese, nos seguintes argumentos:
1) A natureza da propriedade reservada como um direito que assume uma função de garantia do crédito.
2) Uma interpretação actualista que, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, atribua à norma um sentido exigido pelas necessidades actuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo, e tenha como consequência a extensão da previsão do artigo 409.º, que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro.
3) O princípio da liberdade contratual, pilar de todo o direito privado, permite que as partes possam, dentro dos limites da lei, celebrar um contrato de cessão da reserva de propriedade ao terceiro financiador, da mesma forma que permite a celebração de contratos inominados, atípicos ou mistos, que surgem habitualmente por iniciativa dos agentes económicos, só vindo a ser regulamentados na lei posteriormente.
4) A natureza dispositiva, e não imperativa, das normas dos artigos 408.º e 409.º do Código Civil”.
5. Dos efeitos da posição seguida no presente recurso.
Relevam particularmente os factos supra dados como provados sob B) a D).
B) No exercício dessa sua atividade, a A. financiou o R. na aquisição do veículo de marca Ford, modelo Fiesta, com a matrícula …- …- …, vendido pela Ford Lusitana, SA., conforme Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito n.º …, junto com a petição inicial como documento 1;
C)  Para garantia do reembolso do montante financiado, foi constituída uma reserva de propriedade a favor da vendedora do veículo até que se mostrasse liquidado na integra o contrato de financiamento, conforme cláusulas 2. e 12. das Condições Particulares e cláusula B das Condições Gerais do referido Contrato:
«CONDIÇÕES PARTICULARES
(…)
2. Vendedor registado: Ford Lusitana, SA., Lisboa
(…)
12. RESERVA E PROPRIEDADE: O presente Contrato é celebrado com reserva de propriedade a favor do VENDEDOR REGISTADO identificado no número 2 das presentes Condições Particulares, nos termos e para os efeitos das Condições Gerais deste Contrato constantes da página 2 à página 4 do mesmo. O VENDEDOR REGISTADO cedeu ou cederá à FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade e o CLIENTE desde já presta o seu consentimento a tal cessão.
(…)
CONDIÇÕES GERAIS
(…)
B. RESERVA DE PROPRIEDADE
Nos termos do disposto no artigo 409.º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas pelo CLIENTE à FCE BANK, a propriedade do veículo é inicialmente reservada pera o VENDEDOR REGISTADO, que cedeu ou cederá à FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade. O CLIENTE presta o seu consentimento a tal cessão. Nos termos do disposto no artigo 591.º do Código Civil, o CLIENTE sub-roga a FCE BANK nos direitos do VENDEDOR REGISTADO, decorrentes da reserva de propriedade. As despesas inerentes à constituição, registo e cancelamento da reserva de propriedade são da exclusiva responsabilidade do CLIENTE.
(…)» 
D) A Ford Lusitana, SA., cedeu à A., com o consentimento do R., a titularidade da referida reserva de propriedade, nos termos da cláusula 12. das Condições Particulares e da cláusula B das Condições Gerais do Contrato;
E) A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a favor da A., conforme documento 2 junto com a petição inicial que no mais se dá aqui por integralmente reproduzido;
K) O R. deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas no âmbito do referido Contrato em 05.06.2018, não efetuando mais qualquer pagamento após aquela data;
L) Por isso, a A. enviou ao R., por carta registada, com aviso de receção, datada de 28.11.2018, através da qual informou o R. do termo do contrato de financiamento sem pagamento de todas as prestações acordada, interpelando-o a regularizar os pagamento em falta ou entregar o veículo financiado no prazo de oito dias, conforme documento 3 junto com a petição inicial que no mais se dá aqui por integralmente reproduzido.
Ou seja, estamos perante uma situação jurídica de natureza triangular que envolve reciprocamente o alienante, o adquirente e o financiador.
A Ford Lusitânia vendeu ao R. uma viatura, com reserva de propriedade.
A A. financiou aquela aquisição do R., o qual aceitou que tal reserva de propriedade fosse cedida ao A., o que sucedeu, e perdurasse até que se mostrasse integralmente liquidado o contrato de financiamento, o que ainda não ocorreu, por incumprimento do R.
A reserva de propriedade está escrita na Conservatória do Registo Automóvel a favor da A.
Trata-se, pois, de um contrato de alienação escrito com reserva de propriedade, inicialmente a favor do alienante e cedido depois por este ao financiador, com consentimento do adquirente, estipulando as partes que a reserva se mantém até integral liquidação do contrato de financiamento.
Sendo esta a situação em causa e considerando a posição sufragada quanto à admissibilidade da reserva de propriedade a favor do financiador não alienante, cumpre ora considerar como válida e eficaz a reserva de propriedade a favor do A. quanto ao veículo automóvel aqui em causa.
Em consequência, em função do pedido deduzido nos presentes autos pelo A. e da resolução contratual operada por este, extinguiu-se a relação contratual estabelecida entre a A. e o R., devendo conferir-se àquela a propriedade definitiva da referida viatura.
Nestes termos, procede o presente recurso, havendo, assim, que revogar a decisão recorrida
*
Quanto às custas do recurso.
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, o recurso é considerado um «processo autónomo» para efeito de custas processuais, sendo que a decisão que julgue o recurso «condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
In casu o R., aqui Recorrido, não contra-alegou no presente recurso.
Contudo, na relação jurídico-processual recursiva o Recorrido configura-se como a parte vencida, na medida em que a revogação da decisão recorrida é-lhe desfavorável.
Nestes termos, as custas do recurso devem ser suportadas pelo Recorrido, incluindo naquelas tão-só as custas de parte, conforme artigos 529.º, n.º 4, e 533.º do CPCivil, assim como 26.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais.

V. DECISÃO  
Pelo exposto, julga-se procedente o presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, pelo que
1. Declara-se extinto o contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel de matrícula …- …- …, celebrado entre A. e R.;
2. Condena-se o R. a reconhecer que o referido veículo pertence à A.;
3. Condena-se o R. a entregar definitivamente à A. o referido veículo automóvel, bem como os respetivos documentos.
Custas, na vertente de custas de parte, pelo R., aqui Recorrido.

Lisboa, 14 de julho de 2022
Paulo Fernandes da Silva
Pedro Martins
Inês Moura