Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7614/12.4TBCSC.L1-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: EXECUÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
REENVIO PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
REGULAMENTO CE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.O recurso à cláusula de ordem pública, no âmbito do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho de 22 de dezembro de 2000, como fundamento de recusa da declaração de executoriedade de sentença estrangeira, visa obstar à violação inaceitável da ordem jurídica do Estado-Membro requerido, nomeadamente por afronta a um seu princípio fundamental.
II.É a declaração de executoriedade e não a própria decisão que deve ser compatível com a ordem pública.
III.A ordem jurídica portuguesa consagra, como direito fundamental, a exigência de um processo equitativo, como decorre do art. 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que faz parte integrante do direito português.
IV.O princípio da igualdade de armas constitui um elemento incindível do processo equitativo.
V.A ausência de prova do facto tido por violador do processo equitativo torna completamente irrelevante o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia.
VI.Não se justifica a suspensão da instância, ao abrigo do disposto no art. 46.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 44/2001, por efeito do recurso da sentença estrangeira condenatória no pagamento da quantia de € 183 405,90,
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

Pangenerika, BV, com sede nos Países Baixos, requereu, em 16 de outubro de 2012, no 4.º Juízo Cível da Comarca de Cascais, contra Pharmis Biofarmacêutica, Lda., com sede em Cascais, que fosse declarada a executoriedade da sentença de 27 de junho de 2012, proferida pala Divisão de Direito Civil do Tribunal de Amesterdão, Holanda, que condenara a Requerida a pagar-lhe a quantia de € 183 405,90.

Em 25 de outubro de 2012, foi proferida decisão a conferir executoriedade à referida sentença (fls. 40/41).

Inconformada, recorreu a Requerida, que, tendo alegado, formulou, em resumo, as seguintes conclusões:

a) O processo que correu termos no Tribunal de Amesterdão não respeitou o princípio do processo equitativo e, em particular, o princípio da igualdade das partes.

b) Devido à incapacidade da intérprete, para proceder a uma tradução integral e fidedigna da audiência de 20 de fevereiro de 2012, a Recorrente produziu prova em condições que a colocaram em desvantagem considerável face à Recorrida.

c) O reconhecimento da sentença é manifestamente contrário à ordem processual do Estado português, por desrespeito do princípio do processo equitativo consagrado no art. 20.º, n.º 4, da Constituição, e no art. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

d) Sem prejuízo disso, a Recorrente requer ainda o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, de modo a que este responda se o Tribunal da Relação pode ter em conta, para efeitos da exceção de ordem pública prevista no art. 34.º, n.º 1, do Regulamento n.º 44/2001, o facto de não ter sido assegurada à Recorrente a tradução integral e fidedigna dos depoimentos prestados na sessão de 20 de fevereiro de 2012.

e) Subsidiariamente, a Recorrente requer, ao abrigo do disposto no art. 46.º, n.º 1, do referido Regulamento, a suspensão da instância, com o fundamento da sentença holandesa não ter transitado em julgado, estando pendente, no Tribunal de Recurso de Amesterdão, recurso interposto pela Recorrente.

Contra-alegou a Requerente, no sentido de ser negado provimento ao recurso, argumentando não se verificar qualquer violação do princípio equitativo, a execução da sentença não violar a ordem pública do Estado português, cuja cláusula deve ser interpretada restritivamente, não existir fundamento para o reenvio prejudicial para o TJUE e ser manifesta a falta de fundamento para a suspensão da instância.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

No recurso interposto, está em discussão, essencialmente, a violação do princípio da ordem pública do Estado português, ao declarar a executoriedade da sentença estrangeira, o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia e, ainda, a suspensão da instância.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa então conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas respetivas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes acabaram de ser especificadas.

No regime comunitário em matéria civil e comercial, regulado pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho de 22 de dezembro de 2000 (JO 12 de 16.1.2001), a atribuição de força executiva às decisões proferidas num Estado-Membro depende de um processo prévio e pode ser requerido por qualquer uma das partes interessadas.

Para o efeito, é indispensável que a decisão proferida tenha força executiva no Estado-Membro que a proferiu.

Diferente de outros casos análogos, não se exige que a decisão tenha transitado em julgado. Esta circunstância, no entanto, pode abrir espaço para certos efeitos processuais, como a suspensão da instância prevista no art. 46.º, n.º 1, do Regulamento.

O processo de declaração de executoriedade tem uma estrutura muito simplificada e, inicialmente, não contempla o contraditório, já que a parte passiva não pode deduzir oposição, mais concretamente, “não pode apresentar observações” (art. 41.º do Regulamento).

A declaração de executoriedade só não é admissível pelos motivos especificados nos artigos 34.º e 35.º do Regulamento, sendo certo também que as decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objeto de revisão de mérito.

De harmonia com o disposto no art. 34.º, n.º 1, do Regulamento, aplicável ao processo de declaração de executoriedade (art. 41.º do Regulamento), “uma decisão não será reconhecida se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido”.

O recurso à cláusula de ordem pública, como fundamento de recusa da declaração de executoriedade, visa obstar à violação inaceitável da ordem jurídica do Estado-Membro requerido, nomeadamente por afronta a um seu princípio fundamental. Essa afronta deve constituir uma violação manifesta de uma regra de direito essencial na ordem jurídica ou de um direito reconhecido como fundamental na mesma ordem jurídica. Essa regra ou direito, naturalmente, tanto pode ser de natureza substantiva como adjetiva (L. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, III, 2002, pág. 298).

Por outro lado, interessa ainda realçar que é a declaração de executoriedade e não a própria decisão que deve ser compatível com a ordem pública.

A sentença recorrida, tendo afirmado que não se verificava nenhum dos impedimentos previstos nos artigos 34.º e 35.º do Regulamento, declarou consequentemente a executoriedade da sentença proferida pelo Tribunal de Amesterdão, em 27 de junho de 2012, que condenara a Apelante a pagar à Apelada a quantia de € 183 405,90, por incumprimento de contrato.

A Apelante, sendo-lhe permitido, impugnou essa decisão de declaração de executoriedade, alegando ser manifestamente contrária à ordem pública processual do Estado português, por a sentença estrangeira ter sido proferida num processo que não respeitara o princípio do processo equitativo, consagrado no art. 20.º, n.º 4, da Constituição, e no art. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente por a intérprete, na audiência, ter sido incapaz de traduzir integral e fidedignamente as questões colocadas, com prejuízo do princípio da igualdade das partes na produção de prova.

Não há qualquer dúvida de que a ordem jurídica portuguesa consagra, como direito fundamental, a exigência de um processo equitativo, como decorre dos artigos 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, por ter sido ratificada por Portugal, faz parte integrante do direito português – art. 8.º, n.º 1, da Constituição.

O direito a um processo equitativo tem sido abundantemente densificado pela jurisprudência, designadamente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

É comum referir-se que o princípio da igualdade de armas, adicionado também ao do contraditório, constitui um elemento incindível do processo equitativo (I. CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição, 2005, pág. 133).

No processo civil, o princípio da igualdade de armas corresponde a uma manifestação do princípio mais geral da igualdade das partes, que implica a paridade simétrica das suas posições perante o tribunal (J. LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, 1996, pág. 105). Por efeito da sua aplicação, assegura-se às partes, ao longo de todo o processo, um justo e adequado equilíbrio do uso dos meios processuais, de modo a poderem fazer valer um direito ou possibilitar uma defesa, designadamente no âmbito da prova, quer no momento da sua apresentação quer na ocasião da sua produção.

Como antes se referiu, a sentença estrangeira condenou a Apelante a pagar à Apelada a quantia correspondente a € 183 405,90, resultante de incumprimento contratual.

Tratando-se, com efeito, de uma obrigação pecuniária, comum no ordenamento jurídico português, a declaração de executoriedade da sentença na mesma ordem jurídica não é manifestamente contrária à sua ordem pública.

Ainda que, porventura, se considerasse a violação do princípio do processo equitativo como manifestamente contrária à ordem pública portuguesa, não poderia considerar-se tal fundamento, para impedir a declaração de executoriedade, na medida em que os autos não disponibilizam quaisquer elementos que permitam retirar a conclusão de tal violação.

Na verdade, a Apelante não juntou aos autos qualquer documento relativo à alegada produção de prova, sendo certo que a parte contrária afirma mesmo não se ter chegado a produzir outra prova que não a documental. Para além disso, a Apelante não identifica sequer os factos provados emergentes da prova tida por ilegal, sendo certo que, pelo teor da sentença, a maioria dos factos, incluindo os mais relevantes para a decisão, resulta da prova documental junta ao processo.

Desconhecendo-se a produção de outra prova que não tivesse sido a documental, não é possível, de modo algum, afirmar-se que tivesse ocorrido, no processo donde promana a sentença estrangeira, uma situação de desigualdade das partes quanto à produção da prova e, consequentemente, que o processo não tivesse sido equitativo.

Acresce ainda também que não foi alegado que, no âmbito do processo donde promana a sentença estrangeira, não pudesse ter sido corrigida a alegada violação do princípio do processo equitativo, tanto mais que a Apelante dispunha do direito ao recurso, e que, como declarou, exerceu, impugnando a sentença cuja executoriedade foi requerida ao tribunal português.

Por outro lado, dando o benefício à argumentação aduzida pela Apelante, poder-se-ia incorrer no conhecimento do mérito da sentença estrangeira, o que está vedado por lei, nomeadamente pelo disposto no art. 45.º, n.º 2, do Regulamento.

Assim sendo, evidencia-se ser manifesto que à declaração de executoriedade da sentença estrangeira não obsta o disposto no n.º 1 do art. 34.º do Regulamento, dada a inexistência de qualquer cláusula de ordem pública portuguesa que a contrarie.

2.2. Subsidiariamente, a Apelante suscitou a questão do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de modo que este responda se a Relação pode ter em conta, para efeitos, da exceção de ordem pública prevista no art. 34.º, n.º 1, do Regulamento n.º 44/2001, o facto de não ter sido assegurada à Apelante uma tradução integral e fidedigna dos depoimentos prestados na audiência de 20 de fevereiro de 2012 realizada no Tribunal de Amesterdão.

Independentemente da utilidade que pudesse ter o reenvio prejudicial para o TJUE, falta para o efeito pretendido um pressuposto importante, isto é, a ausência de qualquer prova do facto alegadamente tido por violador do processo equitativo, como antes se referiu. Sem a certeza da existência de tal facto, seria completamente irrelevante o reenvio prejudicial.

Por outro lado, sendo o processo de declaração de executoriedade muito simplificado, o reenvio prejudicial para o TJUE introduziria um fator de complexidade que, de modo algum, se compatibiliza com a simplicidade adotada pelo legislador.

Nestas condições, manifestamente, não se justifica o reenvio prejudicial para o TJUE.

2.3. Subsidiariamente, a Apelante requereu ainda a suspensão da instância, com o fundamento da sentença estrangeira não ter ainda transitado em julgado, dado ter sido interposto, por si, recurso ordinário daquela sentença.

Efetivamente, como já se aludiu, em sede de recurso, a instância pode ser suspensa, se a decisão estrangeira for objeto de recurso ordinário, no Estado-Membro de origem (art. 46.º, n.º 1, do Regulamento).

Não obstante a sentença estrangeira tenha sido impugnada por recurso ordinário e não tenha transitado em julgado, o que é aceite pela Apelada, não se justifica, no entanto, a suspensão da instância neste Tribunal.

Com efeito, com a suspensão da instância, a celeridade atribuída ao processo de declaração de executoriedade ficaria bastante e escusadamente comprometida. Por outro lado, se a sentença estrangeira tivesse sido proferida por um tribunal português podia também, sem mais, ser executada.

Por sua vez, o valor da condenação, por incumprimento contratual, correspondente a € 183 405,90, por si só, não justifica a suspensão da instância, sendo ainda indiferente que o objeto do recurso interposto abranja também a parte da sentença estrangeira que absolveu a Apelada dos pedidos reconvencionais.

Por outro lado, embora se alegue que uma eventual concessão definitiva do exaquatur antes da decisão do Tribunal de Recurso de Amesterdão é suscetível de “acarretar danos avultados e irreversíveis na esfera jurídica da Recorrente”, a Apelante, contudo, não afirma em que se possa traduzir tais “danos avultados e irreversíveis”. Limita-se, assim, a formular um mero juízo de valor, sem a articulação de quaisquer factos que o consubstanciem, e que é exigível à luz do nosso ordenamento jurídico processual, que rejeita, como se sabe, as meras categorias jurídicas.

Neste contexto, improcede também o pedido de suspensão da instância.

Assim, improcede totalmente a presente apelação.

2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

(…) (ver sumário)

2.5. Dada a isenção objetiva de custas consagrada no art. 52.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, não há lugar à efetivação da responsabilidade por custas.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

Negar provimento à apelação, confirmando a sentença recorrida.

Lisboa, 12 de setembro de 2013

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Fátima Galante)

(Manuel José Aguiar Pereira)