Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13468/14.9T8LSB.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: ALTERAÇÃO DO CONTRATO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-  A possibilidade de alteração dos contratos com apelo ao artº 437º nº 1 do Código Civil, confronta dois princípios: O da autonomia privada, que impõe o cumprimento pontual do contrato que mais não é que a execução do programa negocial; e o princípio da boa fé, que visa assegurar o equilíbrio das prestações de modo a que a uma das partes não seja imposta uma desvantagem desproporcionada que favoreça a contraparte.
II-  São requisitos de aplicação do artº 437º nº 1 do Código Civil :
1-  A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar ; 
2-  O carácter anormal dessa alteração ; 
3-  Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes ; 
4-  Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas ; 
5- E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato.
Decisão Texto Parcial:ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

I – Relatório
1) “J., S.A.” instaurou a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra B., pedindo que :
-Seja declarada válida e lícita a resolução do contrato promessa de cessão de quotas celebrado entre a A. e o R., retroagindo os seus efeitos à data do incumprimento definitivo do R., em Maio de 2010.
-Seja o R. condenado a devolver à A. a quantia de 30.000 € que recebeu por contrapartida de uma prestação que não efectuou.
Para o caso de improcedência dos pedidos principais, deduziu a A. pedido subsidiário, peticionando que :
-Seja declarada a modificação do contrato promessa de cessão de quotas celebrado entre as partes, fixando-se o preço global da cessão de quotas no valor de 30.000 € e condenando-se o R. na outorga do contrato prometido por aquele valor.
Para fundamentar tais pretensões alega, quanto ao pedido principal, em síntese, que celebrou com o R. um contrato promessa em que este prometeu ceder e a A. prometeu adquirir as quotas da sociedade “D., Ldª” pelo valor de 170.000 €, que seria pago da seguinte forma :  30.000 € a título de salários ao R., enquanto trabalhador numa outra sociedade do grupo da A., e o remanescente (140.000 €) em vinte e oito prestações mensais, vencendo-se a primeira em Maio de 2010.  Pese embora o R. tenha recebido o valor de 30.000 €, o mesmo nunca chegou a prestar trabalho na sociedade, tendo proposto à A. um aditamento ao contrato em que se descontaria este valor à segunda parte do preço a pagar, o que a A. aceitou. Contudo, o R. não efectuou tal aditamento, assim transformando o seu incumprimento em definitivo, o que faculta à A. o direito de resolver o contrato por incumprimento, resolução essa que comunica ao R. com a presente acção.
Quanto ao pedido subsidiário alegou, em resumo, que o R. intentou contra a sociedade “D., Ldª” acção executiva para cobrança de reembolsos de suprimentos que entende não ter a A. direito aos mesmos. A execução e consequente penhora causaram perda de credibilidade da sociedade junto dos seus clientes e fornecedores, prejudicando a sua actividade, levando à perda da concessão com a “Peugeot”, sendo actualmente a sociedade uma simples oficina. A A. nunca teria aceite o valor de 170.000 € se não houvesse a representação da marca “Peugeot”, sendo que a situação não era expectável e que nunca se verificaria se não fosse a conduta do R., pelo que existem circunstâncias relevantes em que a A. tomou a decisão de contratar, tendo havido uma alteração anormal das mesmas.
2)  Regularmente citado, veio o R. contestar, defendendo-se por impugnação e por excepção.
Em sede de excepção arguiu a sua ilegitimidade por ter sido demandado desacompanhado da mulher, com quem é casado em regime de comunhão de adquiridos.
Ainda em termos de excepção, invocou a existência de caso julgado, pois intentou uma primeira acção executiva contra a A. para cobrança das prestações devidas do contrato promessa, em que foi feito um acordo de pagamento que a A. não cumpriu e intentou uma segunda execução para cobrança das restantes prestações, em que a A. deduziu oposição invocando a excepção do não cumprimento do contrato alegando os mesmos factos que agora alega, tendo tal oposição sido julgada improcedente.
Em sede impugnatória refere que, na execução a que se reporta a A. na sua petição inicial, foi deduzida oposição, tendo aí sido proferida Sentença reconhecendo o direito do R. de receber os suprimentos peticionados.
Alegou ainda que a celebração do contrato promessa foi da iniciativa da A. que, detentora da maioria do capital social da “D., Ldª”, e detendo a gerência dessa sociedade, pretendia assumir o domínio e controlo de mais de ??% do seu capital social e que não existiu qualquer vicissitude relativamente ao cumprimento do trabalho e nem existe qualquer relação entre essa prestação e o presente contrato promessa.
Por fim alegou que quem está em incumprimento é a A. por não proceder ao pagamento das prestações em falta e que, inclusivamente, obteve de forma ilícita o registo da aquisição das quotas, o que deu origem a um pedido de rectificação do registo, bem como queixa-crime junto do DIAP de Lisboa.
Quanto ao pedido subsidiário alega que o legal representante da A., que geria a “D., Ldª”, é o responsável pela situação desta sociedade.
Conclui pela improcedência de todos os pedidos, pedindo a condenação da A. como litigante de má-fé.
3) A A. apresentou articulado de resposta, suscitando a intervenção da mulher do R., para sanação da ilegitimidade passiva arguida, e pugnando pela improcedência da excepção do caso julgado.
4) Foi intentado incidente de intervenção principal provocada, fazendo intervir a mulher do R., MF.
5)  Realizou-se uma audiência prévia onde :
-Foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as excepções de ilegitimidade e de caso julgado suscitadas nos articulados.
-Foram julgados improcedentes os pedidos principais, prosseguindo a acção para apreciação do pedido subsidiário e do pedido de condenação como litigante de má-fé deduzido pelo R..
-Foi enunciado o objecto do litígio e dispensada a indicação dos temas de prova.
6) Seguiram os autos para julgamento, o qual se realizou com observância do legal formalismo.
7) Posteriormente foi proferida Sentença a julgar o pedido subsidiário improcedente, constando da parcela decisória de tal peça processual :
“Pelo exposto, tudo visto e ponderado, julgo improcedente por não provado o pedido subsidiário deduzido pela Autora J., SA e, consequentemente, absolvo o Réu B. e Interveniente MF do pedido de modificação do contrato promessa de cessão de quotas celebrado entre eles com fixação do valor do preço global de € 30.000 (trinta mil euros), bem como os absolvo da condenação na outorga do contrato prometido por esse valor de € 30.000 (trinta mil euros).
Absolvo a Autora J., SA do pedido de condenação como litigante de má-fé deduzido pelo Réu B..
Custas a cargo da Autora.
Registe e notifique”.
8) Desta decisão interpôs a A. recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
(…)
9) O R. apresentou contra-alegações, onde defende a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.

*  *  *
II – Fundamentação
a)  A matéria de facto dada como provada na 1ª instância é a seguinte :
1-  A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto a prestação de serviços de contabilidade e fiscalidade, bem como a gestão global de negócios.
2-  Sendo titular de uma quota no valor nominal de 720.425,33 € no capital social da sociedade “D., Ldª”, que adquiriu no ano de 2007 quando já o R. participava naquela sociedade.
3- O R. é titular de duas quotas, uma no valor nominal de 166.121,49 € e outra no valor nominal de 56.250 € no capital social da “D., Ldª”.
4- Por escrito particular, que terá sido elaborado e assinado em 2009, intitulado “Contrato Promessa de Cessão de Quotas”, o R., na qualidade de primeiro outorgante, e a A., como segunda outorgante, declararam que :
“1. Tal como resulta da Acta nº 37, que corresponde à acta da Assembleia Geral de 19 de Maio de 2009 da sociedade D., Ldª (...) o promitente marido é titular de duas quotas, uma no valor nominal de € 166.121,49, que será dividida em duas, uma no valor nominal de € 136.927,29 e outra no valor nominal de € 29.194,20, esta última destinada a ser cedida à própria sociedade D., Ldª e outra no valor nominal de € 56.250, que lhe foi cedida pelo sócio JS.
2. Tal como também resulta da supra referida Acta nº 37, a promitente cessionária é titular no capital social desta sociedade de uma quota no valor nominal de € 720.425,33.
(...)
Cláusula Primeira
(Objecto)
1. Pelo presente contrato os promitentes cedentes prometem ceder à promitente cessionária e esta promete adquirir àqueles, livres de quaisquer ónus ou encargos, duas quotas de que o promitente cedente marido é titular no capital social da sociedade D., Ldª, melhor identificada no ponto 1 dos Considerandos, no valor nominal, respectivamente, de € 136.927,29 e € 56.250, sendo a primeira destas resultante da divisão da quota do valor nominal de € 166.121,49 a que ali se igualmente alude.
Cláusula Segunda
(Preço)
1. O preço global da cessão de quotas é de pelo preço de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros).
2. O preço das cessões ora prometidas será pago pelo segundo outorgante ao primeiro outorgante da seguinte forma :
a) A quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de pagamento de salários enquanto funcionário da sociedade do grupo societário da promitente cessionária, FT, no âmbito de contrato a prazo, celebrado com o promitente cedente marido, pelo período de quinze meses, com início a 01/01/2009.
b) O remanescente do preço que ascenderá a € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros) será pago em vinte e oito prestações mensais e sucessivas de € 5.000,00 (cinco mil euros) cada uma, a iniciar em Maio de 2010 e as restantes nos meses imediatamente subsequentes até integral pagamento.
Cláusula Terceira
(Contrato Definitivo)
1. A escritura pública de cessão de quotas será outorgada em Lisboa, em data e local a indicar pela promitente cessionária, logo que se mostre paga a totalidade do preço.
(...)
Cláusula Quarta (Incumprimento)
1. Em caso de incumprimento do presente contrato promessa, por motivo não imputável aos promitentes cedentes ou à promitente cessionária, a parte não faltosa poderá, em alternativa :
Resolver o contrato nos termos e com as consequências previstas na lei.
Requerer a execução específica deste contrato nos termos do disposto no art. 830º do Código Civil
(...)”.
5- O R. intentou contra a sociedade “D., Ldª” acção executiva que corre termos na 1ª Secção do 3º Juízo de Execução de Lisboa, sob o nº 21332/10.4 YYLSB, pretendendo naquela acção cobrar coercivamente créditos que decorrem de um contrato de suprimento datado de 16 de Agosto de 2004, contrato que é o título executivo daquela acção, referente a suprimentos efectuados pelo R. à sociedade “D., Ldª”.
6- Nessa acção a sociedade “D., Ldª” deduziu oposição à execução com fundamento na inexistência de efectiva entrega de quantias monetárias a título de suprimentos, tendo a oposição sido julgada improcedente a 22/1/2013.
7-  A “D. Ldª” foi concessionária da marca “Peugeot” mas perdeu essa concessão.
8-  No presente a sociedade “D., Ldª” está praticamente parada.
9-  O R. e a Interveniente intentaram contra a A. acção executiva para cobrança das prestações não pagas e já vencidas que corre termos com o nº 18191/10.0 YYLSB.
10-  Nessa acção executiva a A. reconheceu a dívida e acordou no seu pagamento faseado, acordo que não cumpriu.
11-  O R. e a Interveniente intentaram acção executiva contra a A. para cobrança de prestações de Maio de 2010 a Agosto de 2010 relativas ao contrato promessa de cessão de quotas e que corre termos com o nº 3887/11.8 YYLSB-A.
12- Nessa execução, a A. deduziu oposição invocando a excepção do não cumprimento fundada no facto de o R., pese embora tenha recebido os 30.000 €, nunca efectuou qualquer prestação de trabalho como estava acordado.
13- Tal oposição foi julgada improcedente por sentença de 23/2/2015.
14-  O R. e a Interveniente intentaram nova acção executiva para os mesmos efeitos relativamente às prestações vencidas nos meses de Fevereiro de 2011 a Fevereiro de 2012, que corre termos com o nº 4188/12.0 YYLSB, tendo a A. apresentado oposição com fundamento na mesma excepção do não cumprimento, a qual foi julgada improcedente.
15-  A gestão da sociedade “D., Ldª” passou a ser assumida pela A. quando entrou para sua sócia, através de JC, enquanto seu representante, desde 2009 até 2012.
b)  Foi considerado como não provado que :
(a) Resulta da contabilidade da sociedade “D., Ldª” que a conta 255/Accionistas/sócios/suprimentos nunca foi movimentada nos exercícios económicos de 2003 a 2009.
(b) Não existe nos registos contabilísticos da sociedade “D., Ldª” que os suprimentos alguma vez tenham dado entrada nos cofres daquela sociedade.
(c) O R. já havia retirado da sociedade a título de reembolso de suprimentos a quantia de 162.500 €, mais uma vez sem que fosse movimentada a conta 255/accionistas/sócios/suprimentos.
(d) E sem que se encontre nos registos contabilísticos da sociedade alguma evidência que aquele valor de 162.500 € tenha dado entrada nos cofres da sociedade.
(e) Quando a A. entrou no capital social da “D., Ldª” foi encontrar uma gestão irregular e o R. a retirar da sociedade avultadas quantias a título de reembolso de suprimentos, sem que a prestação desses suprimentos se encontrasse relevada em qualquer registo contabilístico.
(f) O que motivou a A. a solicitar a auditoria em resultado da qual o reembolso dos alegados suprimentos foi imediatamente suspenso.
(g) Exigindo a A. aos restantes sócios da “D., Ldª” que, dali em diante, a gestão da sociedade observasse os comandos do direito societário e impedindo a retirada de dinheiro da sociedade nos moldes em que vinha a suceder.
(h) Foi o que motivou o R. a propor a cessão de quotas pois não conseguia ganhar o dinheiro que pretendia ganhar.
(i) A referida execução do contrato de suprimentos e consequente penhora resultou numa perda de credibilidade da “D., Ldª” junto dos seus clientes e fornecedores que muito prejudicou a sua actividade.
(j) Especialmente junto da marca “Peugeot” com quem, sob a gestão da A., havia sido celebrado contrato.
(l) O contrato com a “Peugeot” foi determinante para que a A. viesse a aceitar o negócio proposto pelo R., dispondo-se a pagar o valor de 170.000 €.
(m) Valor que nunca seria aceite se não houvesse representação daquela marca.
(n) Em resultado da perda de crédito e danos de imagem infligidos pelo R. à sociedade, a “Peugeot” revogou os contratos outorgados, perdendo a sociedade o estatuto de concessionário oficial daquela marca.
(o) Perdendo assim o seu principal activo e, em consequência, vendo o seu valor desvalorizar-se.
(p) Perdendo a sociedade aquela concessão, no momento não é mais do que uma simples oficina de “bate-chapa” e mecânica, não especializada.
(q) Tendo perdido praticamente todos os seus clientes que no antecedente procuravam os seus serviços, no pressuposto que recorriam a uma oficina representante oficial da marca.
(r) Situação esta que não era expectável no momento em que a A. aceitou o negócio proposto pelo R. e que nunca se verificaria se não fosse a conduta deste.
(s) Apenas a gestão prosseguida pela A. enquanto gerente da sociedade “D., Ldª” através da pessoa de JC por si para o efeito designado, que se estendeu até 27/11/2012 é responsável pela subsistência ou não dos contratos com fornecedores.
(t) A gestão irregular e as perdas de crédito e danos de imagem da sociedade decorrem da intencional má gestão prosseguida sob responsabilidade da A. e do seu representante.
c) Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação da recorrente, as questões em recurso são as seguintes :
-Determinar se há motivos para alterar a matéria de facto.
-Determinar se o pedido subsidiário formulado contra o apelado deve ser julgado improcedente.
d)  Passemos, então, a verificar se existem motivos para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
(…)
j) Em resumo: Não vislumbramos razões para alterar a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” sobre a matéria de facto.
k) É, pois, com base na factualidade fixada pelo Tribunal “a quo” que importa doravante trabalhar no âmbito da análise das restantes questões trazidas em sede de recurso.
l) Vejamos, agora, se o pedido subsidiário formulado contra o recorrido deve ser julgado improcedente.
A recorrente pretende prevalecer-se da alegada alteração das circunstâncias em que fundou a decisão de contratar, referindo que pagou ao recorrido o preço global de 170.000 € pela cessão das quotas de que este era titular na sociedade “D., Ldª”, tendo, posteriormente, o apelado intentado contra a sociedade uma acção executiva para cobrança de reembolsos de suprimentos, tendo esta acção, e consequente penhora, causado perda de credibilidade da sociedade junto dos seus clientes, levando à perda da concessão com a “Peugeot”, sendo actualmente a sociedade uma simples oficina. Afirma a apelante que nunca teria aceitado o valor de 170.000 € se não houvesse a representação da marca “Peugeot”, sendo que a desvalorização da empresa não era expectável e nunca se verificaria se não fosse a conduta do recorrido, pelo que deve ser fixado à cessão o valor global de 30.000 €.
Pretende, pois, socorrer-se do regime do artº 437º do Código Civil que, sobre a modificação do contrato por alteração das circunstâncias, estatui :
“1 – Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
2 – Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior”.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. I, pg. 41) :
“A resolução ou modificação do contrato é admitida em termos propositadamente genéricos, para que, em cada caso, o Tribunal, atendendo à boa fé e à base do negócio, possa conceder ou não a resolução ou modificação”.
“Alude a lei, no entanto, aos seguintes requisitos :”
“a) Que haja alteração anormal das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar”.
“É preciso que essas circunstâncias se tenham modificado”.
“Esta providência não se confunde com a teoria do erro acerca das circunstâncias existentes à data do contrato, muito embora haja uma estreita afinidade entre elas (uma, relativa à base negocial objectiva – a outra, assente na base negocial subjectiva).  E, além disso, é necessário que a alteração seja anormal. Uma das circunstâncias relevantes pode ser a modificação do valor da moeda. A lei não exige, ao contrário do Código italiano, que a alteração seja imprevisível, mas o requisito da anormalidade conduzirá praticamente quase aos mesmos resultados”.
A possibilidade de modificação ou alteração dos contratos com apelo ao artº 437º nº 1 do Código Civil, confronta dialecticamente dois princípios :  O da autonomia privada, que impõe o cumprimento pontual do contrato que mais não é que a execução do programa negocial, e o princípio da boa fé, que visa assegurar o equilíbrio das prestações de modo a que a uma das partes não seja imposta uma desvantagem desproporcionada que favoreça a contraparte.
Ao que se atende, como ponto de partida é à base do negócio, ao circunstancialismo em que as partes assentaram a decisão de contratar, o que pressupõe um consenso negocial recíproco sem o qual não teriam celebrado certo negócio jurídico, ou não o teriam celebrado nos termos em que o fizeram.
Na execução do contrato podem surgir factores que afectem, de maneira anómala, imprevista, aquela base negocial e que tornem intolerável a manutenção do contrato tal como foi inicialmente querido e gizado pelos contraentes, por ser patente o desequilíbrio das prestações, sendo agora excessivamente onerada uma parte e mantendo a outra a situação inicial, como se nada tivesse ocorrido.
Os requisitos de aplicação do artº 437º nº 1 do Código Civil, na lição do Professor Menezes Leitão (in “Direito das Obrigações”, Vol. II, pgs. 124 e ss., são :
“1) A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar ;  2) O carácter anormal dessa alteração ;  3) Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes ;  4) Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas ;  5) E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato”.
“Relativamente ao primeiro pressuposto, dele resulta que apenas são relevantes as alterações das circunstâncias efectivamente existentes à data da celebração do contrato, e que tenham sido causais em relação à sua celebração pelas partes (a denominada “base do negócio objectiva”).  Não relevam assim, para efeitos desta norma, os casos de falsa representação das partes quanto às circunstâncias presentes ou futuras, que apenas colocam um problema de erro, nem circunstâncias que, apesar de efectivamente existentes, não se apresentem como causais em relação à celebração do contrato”.
“Relativamente ao segundo pressuposto, exige-se, por outro lado, que essa alteração tenha carácter anormal, ou seja, que fosse de todo imprevisível para as partes a sua verificação”.
“Situações excepcionais como uma revolução ou o deflagrar de um estado de guerra podem facilmente ser qualificados como alteração das circunstâncias”.
“Alterações legislativas completamente inesperadas também devem ser qualificadas como tal. Já outras hipóteses como a simples alteração do preço dos produtos comercializados não preencherão o requisito da anormalidade”.
“Quanto ao terceiro pressuposto, exige-se que a alteração das circunstâncias provoque a lesão de uma das partes no contrato, o que justifica o surgimento de um desequilíbrio entre as prestações contratuais”.
“Efectivamente, a alteração das circunstâncias só será relevante se dela resultar uma modificação no equilíbrio contratual estabelecido pelas partes”.
“Se a alteração não provocar danos significativos para uma das partes, não se justifica aplicar este instituto, devendo ser o contrato cumprido nos termos gerais”.
“Quanto ao quarto pressuposto, exige-se que o desequilíbrio contratual gerado pela alteração das circunstâncias seja de tal ordem, que torne contrária à boa fé que a parte beneficiada venha exigir o cumprimento do contrato”.
“Neste sentido, pode-se considerar que a alteração das circunstâncias se apresenta como uma modalidade específica de abuso do direito (artº 334º), neste caso de um direito de crédito, já que, por força da boa fé, se torna ilegítimo ao credor a exigência da prestação numa situação em que os limites relativos ao equilíbrio das prestações no contrato se encontram ultrapassados”.
“Consequentemente a alteração das circunstâncias não pode ser aplicada a contratos já executados, uma vez que após a troca das prestações, já passa a ser um risco do receptor da prestação as alterações de valor que ela venha a sofrer”.
“Finalmente, quanto ao quinto pressuposto, exige-se que a lesão causada pela alteração das circunstâncias não se apresente como coberta pelos riscos próprios do contrato”.
Romano Martinez (in “Da Cessação do Contrato”, pg. 155), considera que os cinco requisitos do artº 437º nº 1 do Código Civil “são de verificação cumulativa pelo que faltando algum ou alguns deles, não se pode recorrer a este instituto”.
José de Oliveira Ascensão (in “Onerosidade Excessiva por Alteração das Circunstâncias”, estudo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, 2005, Ano 65, Vol. III) afirma:
“A alteração anormal é assim, não apenas a alteração extraordinária e imprevisível, mas ainda a alteração que desequilibra uma relação com particular intensidade. É este afinal o conteúdo útil do artº 437/1, ao prever que a exigência das obrigações afecte gravemente os princípios da boa fé”.
“A “exigência” e a “boa fé” vêm a despropósito como vimos, mas a “gravidade” não”.
“Só uma alteração significativa, grave portanto, leva a reconsiderar os termos do contrato. A alteração anormal é, não só a alteração extraordinária e imprevisível, como também uma alteração que afecta gravemente, manifestamente, a equação negocialmente estabelecida.”.
Por sua vez, Henrique Antunes (in “A alteração das Circunstâncias no Direito Europeu dos Contratos”, estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº 47 Julho/Setembro 2014, pg. 13) refere:
“A alteração das circunstâncias relevante tem de ser anormal. Na doutrina, distingue-se a anormalidade da imprevisibilidade, acolhendo à resolução ou modificação do contrato alterações que, embora previsíveis, sejam excepcionais, anómalas”.
(…)
“Mas pode não se justificar em outros casos, nos quais a boa fé obrigaria a outra parte a aceitar que o contrato ficasse dependente de determinada circunstância”.
(…)
“É imprevisível a verificação de um evento, ou do seu alcance, quando, embora pudesse ser representado, em abstracto, pelas partes, a prevenção dos seus efeitos não lhes é imputável, em razão das circunstâncias contemporâneas da vinculação negocial, explicando, assim, que o bom pai de família acordasse, nos mesmos termos, o contrato”.
“A orientação proposta acolhe a exigência da imprevisibilidade e, também, o seu critério de densificação, o teste de razoabilidade (…)”.
A circunstância pessoal de um contraente, no tempo histórico da celebração do contrato, releva para enquadrar objectivamente os motivos em que foi fundada a decisão de contratar, mas a alteração meramente pessoal superveniente, ainda que por motivos externos à negociação mas não imprevisíveis, não é subsumível à previsão do artº 437º nº 1 do Código Civil, por este postular a verificação conjunta de outros requisitos que afectem a generalidade de negócios jurídicos do mesmo tipo.
E, para concluir esta breve exposição doutrinária, Menezes Cordeiro (in “Da alteração das Circunstâncias – A concretização do artº 437º do Código Civil à luz da Jurisprudência posterior a 1974”, estudo publicado na “Separata dos Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha”, Lisboa, 1987, pgs. 71 a 75) salienta que “o artº 437º existe e deve ser usado nos casos-limite em que não tenha aplicação qualquer outro instituto”.
m)  “In casu”, e como bem assinala o Tribunal “a quo”, verifica-se que a recorrente não logrou provar quais as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de celebrar o contrato ­promessa de cessão de quotas, pois só essas é que interessam para aplicação do artº 437º do Código Civil, na medida em que são essas circunstâncias que deverão sofrer uma alteração anormal.  Isto é, teria a apelante que demonstrar que o contrato de concessão com a “Peugeot”, celebrado entre esta e a “D., Ldª”, foi determinante para que ela viesse a aceitar o negócio proposto pelo recorrido, e que não teria aceitado pagar o valor de 170.000 € pelas quotas da sociedade se não houvesse representação daquela marca.
Por outro lado, mesmo que essas circunstâncias estivessem demonstradas, não se vê que a propositura de uma acção executiva e subsequente penhora sejam algo de manifestamente anormal, porquanto um processos judicial nada tem de inusitado (a não ser que haja má fé processual, o que não é o caso).
Ainda diremos que faz parte do “giro” comercial o aumento ou diminuição de clientela, a existência de uma concessão e posterior retirada da mesma (sendo certo que no caso em apreço não se provou que a “crise” da “D., Ldª” tenha resultado da actuação do apelado).
Não se mostram, assim, preenchidos diversos requisitos de aplicação do artº 437º nº 1 do Código Civil.
n) Inexistindo a alegada possibilidade de modificação do contrato por alteração das circunstâncias, não vemos que existam motivos para alterar a decisão recorrida.
o) Deste modo, conclui-se que a apelação deduzida não merece provimento, sendo de manter a Sentença recorrida.
p)  Sumário :
I- A possibilidade de alteração dos contratos com apelo ao artº 437º nº 1 do Código Civil, confronta dois princípios: O da autonomia privada, que impõe o cumprimento pontual do contrato que mais não é que a execução do programa negocial; e o princípio da boa fé, que visa assegurar o equilíbrio das prestações de modo a que a uma das partes não seja imposta uma desvantagem desproporcionada que favoreça a contraparte.
II-  São requisitos de aplicação do artº 437º nº 1 do Código Civil :
1-  A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar ; 
2-  O carácter anormal dessa alteração ; 
3-  Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes ; 
4-  Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas ; 
5-  E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato.
*  *  *
III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas: Pela recorrente (artº 527º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 29 de Outubro de 2019

Pedro Brighton
Teresa Sousa Henriques
Isabel Fonseca
Decisão Texto Integral: