Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21568/17.7T8SNT.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: ARROLAMENTO ESPECIAL
PRESUNÇÃO LEGAL
INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS DO EX-CASAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - No caso do arrolamento especial, previsto no art. 409º do CPC, o requerente não tem de comprovar o risco de extravio, ocultação ou dissipação dos bens, já que os mesmos se presumem juris e de jure.
- No caso de inventário para partilha de bens do ex-casal, após divórcio decretado por sentença transitada em julgado, deve entender-se aplicável o disposto no art. 409º, nomeadamente o seu nº 3, dada a similitude do respectivo fundamento, centrado na conflitualidade pessoal entre as partes envolvidas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

AC, requereu, no decurso de processo de inventário instaurado em cartório notarial para partilha de bens em consequência de divórcio, contra AM, o presente procedimento cautelar de arrolamento de bens comuns do casal.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
Foi casado com a Requerida, tendo sido decretado o divórcio entre ambos por sentença transitada em julgado.
Ainda não foi efectuada a partilha e a Requerida, que é a cabeça-de-casal no inventário em curso, omitiu na relação de bens que existem bens comuns a partilhar.
A Requerida tem em seu poder todos os bens que compunham o recheio da casa de morada de família, a qual já foi vendida, receando o requerente que a mesma os faça "sumir".
Requer o arrolamento dos bens, nos termos do art. 409.° do CPC, por se verificar o justo receio de dissipação e ocultação dos bens comuns do ex-casal a partilhar.

Foi proferida decisão que julgou procedente o procedimento cautelar de arrolamento, decretando o arrolamento:
A) Dos bens móveis relacionados a fls. 16 a 18, a efectuar nos termos do art. 764º do CPC, aplicável ex vi do art. 406º, nº 5 do mesmo diploma legal;
B) Do saldo da conta bancária de que a Requerida é titular na Caixa Geral de Depósitos, melhor identificada a fls. 14 sob o ponto 2, correspondente ao valor aí existente à data do divórcio, a efectuar nos termos dos arts. 774º e 780º do CPC, aplicável ex vi do art. 406.°, n.o 5 do mesmo diploma legal;
 C) Do saldo de outras contas bancárias de que a Requerida seja titular ou co-titular em instituições de crédito a operar em Portugal, que venham a ser identificadas pelo Banco de Portugal;
D) Do veículo automóvel de marca Opel, modelo Corsa 1.2 Elegance, a gasolina, de matrícula 21-43-TA, a efectuar nos termos do art. 768.°, nº 2 do CPC, aplicável ex vi do art. 406.°, nº 5 do mesmo diploma legal.
  
São os seguintes os factos que resultam suficientemente indiciados:
1) Requerente e Requerido casaram entre si em 12 de Setembro de 1992;
2) tendo o casamento sido celebrado sem convenção antenupcial.
3) Por sentença transitada em julgado proferida a 29.05.2014 no processo nº 2689/14.4TCLRS, do 2º Juízo de Família e Menores do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures, foi dissolvido, por divórcio, o referido casamento.
4) No processo de divórcio antes referido, as partes indicaram os seguintes bens comuns a partilhar:
"Activo
Verba 1
Imóvel sito na Rua FN, 2675-487 Odivelas, ao qual atribuem o respectivo valor patrimonial.
Verba 2
Recheio do imóvel aludido na verba nº 1 do activo."
5) A propriedade do veículo automóvel da marca Opel, de matrícula 3-TA, encontra-se inscrita a favor da Requerente em 14.11.2006.
6) Está pendente em Cartório Notarial processo de inventário para partilha dos bens do extinto casal;
7) Tendo a ora Requerida, na qualidade de cabeça-de-casal, ali declarado não existirem bens comuns a partilhar.
8) Em resposta à reclamação à relação de bens, a Requerida apresentou a resposta junta por cópia a fls. 53.

MM, deduziu Oposição ao Arrolamento decretado nos autos, onde é Requerente o seu ex-marido, AC.
Alegou, em síntese, que já foram partilhadas entre as partes os bens que havia a partilhar e que o Requerente deduz pretensão cuja falta de fundamento conhece, peticionando a sua condenação como litigante de má-fé.
 
O Requerente do arrolamento exerceu o contraditório no início da audiência de julgamento, tendo mantido a posição expressa na petição inicial.
                                                                                                               Factos provados da oposição:
1) Em data concretamente não determinada situada em finais de 2013, o Requerente saiu da casa de morada de família;
2) Por essa altura, a Requerida transferiu para o Requerente a quantia de € 600,00 (seiscentos euros);
3) Na altura em que saiu da casa de morada de família, o Requerente manteve as chaves da mesma;
4) Tendo-se avariado a fechadura da porta da casa de morada de família, foi substituída, não tendo sido entregue cópia da nova chave ao Requerente;
5) O Requerente manteve em seu poder a chave da garagem, onde passou a pernoitar, pelo menos, algumas vezes;
6) As duas camas de ferro e as duas secretárias que existiam nos quartos das filhas de acolhimento das partes encontravam-se partidas e foram substituídas, em data concretamente não apurada, por móveis novos.
7) O computador que surge na primeira imagem de fls. 10 (art. 13º da p.i.) é propriedade da irmã da Requerida, RP.
8) O quadro maior (bordado em tecido) que surge na segunda imagem de fls. 10 (art. 13º da p.i.) foi oferecido à Requerente pela sua avó.

Sendo julgada parcialmente provada e procedente a oposição, ordenando-se o levantamento do arrolamento quanto às duas camas de ferro lacadas a branco e duas secretárias de cor azul e laranja que integravam os quartos das filhas das partes.
No mais a oposição foi julgada improcedente.

Inconformada recorre a requerida, concluindo que:
-  O presente arrolamento nunca deveria sido decretado, por falta dos pressupostos exigidos pela lei para o seu decretamento, nomeadamente, periculum in mora, receio de extravio, ocultação e dissipação.
  -  Ao ser decretado foi violado, nomeadamente, o nº 1 do artigo 403º do CPC.
- A partilha dos bens comuns do casal já foi realizada nos termos que o requerente do arrolamento quis, o qual levou para a casa da Serra das Minas, que hoje constitui a sua residência, os móveis e utensílios que entendeu.
   
- A Mª Juiza a quo apreciou a prova de forma errada, porquanto, o requerente, ao contrário do que legalmente lhe cumpria, que seria apresentar, pelo menos, prova sumária do direito reclamado, nada apresentou, enquanto que a requerida apresentou 2 testemunhas, RP e B, as quais unanimemente declararam a seguinte expressão: "o requerente levou para a casa da Serra das Minas o que quis e que o automóvel se destinaria à filha B. (vide respectivos depoimentos).
- Deste modo e com esta apreciaçao errónea da prova, avaliando de forma deficiente a prova da requerida e sobrevalorizando a não prova do requerente, foi violado o ponto 1 do art. 405º do CPC e alterada a verdade material dos factos.
- O presente arrolamento judicial constitui apenas uma listagem descritiva dos bens existentes na residência actual da requerida, porém sem a respectiva avaliação e discrepante da alegada relação de bens junta pelo requerente, o que contraria o preceituado no ponto 1 do artigo 406º do CPC e que, salvo melhor e douta opinião, torna o arrolamento absolutamente sem qualquer valor jurídico.
- A presente decisão da qual vimos recorrendo apresenta fundamentos contraditórios com o que nela vem decidido, designadamente quando ali é dado como provado que o computador que surge na primeira imagem de folhas 10 é propriedade da irmã da requerida, RP, ao mesmo tempo que não é levantado o arrolamento relativamente a tal facto.
- Assim tendo acontecido, a mesma decisão é nula, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida, negando-se provimento ao arrolamento, quer por falta dos pressupostos legais exigidos, quer por errónea apreciação da prova e assim contrariar a verdade material dos factos, quer ainda por a decisão ser nula.

O requerente contra-alegou sustentando a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar.
Nos termos do art. 403º nº 1 do CPC, “havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.”
Cabendo ao requerente efectuar a prova sumária do seu direito aos bens e a prova dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação – art. 405º nº 1 do CPC.
 
Todavia, quando o arrolamento ocorre como preliminar ou incidente da acção de separação judicial de pessoas e bens, divórcio (...) qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro, sendo que a este arrolamento especial, previsto no art. 409º do CPC, não é aplicável o disposto no art. 403º nº 1. Ou seja, é dispensado o requisito relativo ao justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.
No caso dos autos não estamos perante preliminar ou incidente de acção judicial de separação de pessoas e bens ou de divórcio, uma vez que tal divórcio já foi decretado. Contudo, o arrolamento aqui em apreço surge como incidente do inventário para partilha dos bens comuns.
Como foi decidido em acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa datado de 18/09/2014 – e de que foi relator um dos signitários do presente acórdão - “a lei processual prevê espécies de arrolamento que apelida de especiais. Nestes casos, ao invés do arrolamento geral (não especial) o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens não constitui requisito a alegar e demonstrar para o decretamento da providência.
“A dispensa de demonstração deste requisito (...) tem subjacente que a natureza do conflito permite presumir (juris e de jure) que a situação pode ser favorável a actuações com pouco lisura sobre o património, agravando os motivos de discórdia entre as partes envolvidas.
gEmbora o processo de inventário não faça parte do elenco das acções indicadas no nº 1 do art. 409º do CPC, nele subsiste a conflitualidade dos ex-cômjuges, a qual poderá assumir uma forma tão premente quanto na acção de divórcio.
g Nessa medida encontra-se plenamente justificado presumir o fundado receio de descaminho dos bens provenientes do património conjugal, por forma a facilitar e incrementar a efectivação de uma partilha justa, sendo de admitir a aplicação do regime do art. 409º ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio e enquanto preliminar do inventário instaurado para partilha dos bens do ex-casal”.

Na sua apelação, a requerida vem invocar a falta dos pressupostos exigidos por lei para o seu decretamento, nomeadamente periculum in mora, receio de extravio, ocultação e dissipação.
Todavia, e como acabámos de referir, tais requisitos não são aplicáveis no caso do arrolamento especial previsto no art. 409º, cujo regime é o que entendemos adequado ao caso aqui em apreço. Estamos perante uma presunção juris e de jure, nos termos da parte final do nº 2 do art. 350º.
Não tinha assim o requerente de comprovar o receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens.
Pretende ainda a recorrente que a partilha dos bens já se realizou, nos termos que o requerente pretendeu, levando para a sua actual residência os móveis e utensílios que entendeu.
O depoimento da testemunha RP – irmã da requerida – afigura-se-nos pouco credível face à manifesta hostilidade para com o requerente, bem perceptível em comentários e apartes durante o depoimento. Além disso, quanto à questão de a irmã ter dado € 600,00 ao ex-cunhado quando este saiu de casa, afirmou ter visto o cheque, quando na verdade nunca existiu qualquer cheque mas sim uma transferência bancária, como é alegado pela própria requerida – art. 18º da oposição.
Seja como for, a testemunha disse que a irmã e o ex.cunhado dividiram os bens móveis quando o requerente foi viver para uma casa pertença da mãe dele. Mas também disse não se lembrar de quais os bens levados pelo ex-cunhado.
Quanto ao carro começou por dizer que se falou que este seria para uma das filhas, mas em seguida reconheceu que só o ouviu dizer pela irmã, não pelo requerente.

B, filha (de acolhimento) do requerente e da requerida diz que a mãe lhe deu o carro, que ela registou já depois de iniciado o processo de inventário. Acrescentou que se falou, ainda na constância do casamento, que o carro iria um dia para uma das filhas, sendo que existem três filhas de acolhimento.

Quanto ao computador, a testemunha RP afirmou que um computador que estava em casa da irmã lhe pertencia, mas eslareceu que tal computador não era da marca TOSHIBA. O computador arrolado é da marca TOSHIBA.

Perante isto, não vemos que tenha existido qualquer apreciação errónea da prova.
Por outro lado, os bens móveis arrolados e constantes do auto de fls. 70 e 71 correspondem ao tipo de móveis indicados na relação de bens junta com o requerimento inicial a fls. 16 a 18.

Conclui-se assim que:
- No caso do arrolamento especial, previsto no art. 409º do CPC, o requerente não tem de comprovar o risco de extravio, ocultação ou dissipação dos bens, já que os mesmos se presumem juris e de jure.
- No caso de inventário para partilha de bens do ex-casal, após divórcio decretado por sentença transitada em julgado, deve entender-se aplicável o disposto no art. 409º, nomeadamente o seu nº 3, dada a similitude do respectivo fundamento, centrado na conflitualidade pessoal entre as partes envolvidas.

Face ao exposto, julga-se a presente apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

LISBOA, 28/6/2018

António Valente

Ilídio Sacarrão Martins

Teresa Prazeres Pais