Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
213/17.6TELSB-B.L1-3
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: MANDADO DE BUSCA
ESCRITÓRIO DE ADVOGADO
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL CENTRAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: 1– A competência do DCIAP para a investigação de certo(s) crime(s) não determina a competência do TCIC.

2– A competência material do TCIC tem uma vertente substantiva stricto sensu relacionada com a natureza do crime sob investigação, tout court, ou com a complexidade dos factos ilícitos praticados e que consubstanciam o tipo (como por exemplo acontece sempre que existe criminalidade altamente organizada como seja nas Infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, nomeadamente com recurso à tecnologia informática e nas Infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional) aliada à dispersão territorial espelhada no envolvimento de diferentes comarcas pertencentes a diversos Distritos Judiciais.

3– A prática de um acto jurisdicional na fase de inquérito não fixa a competência do JIC.

4– Sempre que estejam em causa inquéritos relativos à prática de crimes do catálogo supra indicado, em que apenas estejam envolvidas mais do que um local pertencente à competência territorial de diversos tribunais MAS do mesmo distrito judicial aplica-se o disposto no art.º 21.º do CPP, quando a investigação tiver objecto esses mesmos crimes e a “actividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação” é competente o TCIC (art.º 120.º, n.º 1 da LOSJ)!

5– Se a prática de um acto tão embrionário como a validação da atribuição do segredo de justiça, a coberto de ser urgente, determinasse a fixação da competência daqueles JIC para os ulteriores termos do processo isso equivaleria à possibilidade de escolha do tribunal competente, com violação do princípio do juiz natural, para todos os actos jurisdicionais a praticar durante o inquérito, quer os mesmos fossem da competência do TCIC quer de um outro MP e correspondentes JIC, cuja competência ainda não estivesse definida nos termos do art.º 21.º do CPP.

6– Declarada a incompetência do Tribunal, a declaração dos seus efeitos compete, não a este tribunal de recurso, mas sim ao tribunal competente nos termos do disposto no art.º 33.º, n.º 1, o qual decidirá se “anula os actos que se não teriam praticado se perante ele tivesse decorrido o processo e ordena a repetição dos actos necessários (…)”.

7– Ou seja, compete ao TCIC analisar e decidir se praticaria o acto em causa – se decidiria ou não realizar e proceder às buscas requeridas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão proferida na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


Nos presentes autos veio o interpor recurso da decisão que se pronunciou sobre as nulidades do mandado de busca e apreensão, emitido pela Srª Juíza de Instrução, porquanto a competência para a prática do acto jurisdicional em causa pertencia ao Tribunal Central de Instrução Criminal e não ao JIC, incompetência que determina a nulidade insanável do acto praticado.

Para o efeito apresentou as seguintes conclusões:
1– Os elementos dos autos disponibilizados no momento da realização da busca permitem perceber que a investigação em curso decorre da suspeita da prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio p.p. pelo artigo 36.° n°s 1, al. a) e h), 2, 3 e 5 do D.L. 28/84 de 20/1, que terá sido cometido em comarcas pertencentes a diferentes distritos judiciais.
2– Foi, pois, atendendo não só ao tipo de ilícito, mas, também, à plurilocalização da indiciada actividade criminosa, que a coordenação da direcção da investigação criminal foi cometida ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), nos termos do artigo 47.°, n.° 1 alínea i) e n.° 3 alínea a) do Estatuto do Ministério Público (EMP), aprovado pela Lei n." 47/86, de 15 de Outubro.
3– Assim, delimitada a competência do DCIAP, o Tribunal a giro nunca poderia desconhecer, no momento em que lhe foram apresentados os autos, pelo DCIAP, para validação da sujeição do processo a segredo de justiça, como se refere na decisão, ou para qualquer outro ato jurisdicional, a possível plurilocalização da prática dos factos em investigação.
4– Pelo que, tendo-lhe sido distribuídos os autos para a prática de atos jurisdicionais, o Tribunal a quo teria que ter verificado a sua competência para tanto, já que, desde logo, o apresentante era o DCIAP, concluindo, inevitavelmente, pela sua incompetência, uma vez que os critérios que subjazem à atribuição de competência do DCIAP são, in caso, exatamente os mesmos que excluem a sua competência, na medida em que a atribuem ao Tribunal Central de Instrução Criminal.
5– Com efeito, estabelece o artigo 120.° da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOS1), aprovado pela Lei n.° 62/2013, de 26 de Agosto que quando a atividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação, cabe a um tribunal central de instrução criminal a prática dos atos jurisdicionais na fase de inquérito se estiver em causa um dos crimes elencados no n.º 1, de entre os quais consta o crime que aqui está sob investigação, que é o de fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito (vide alínea i) do n.° 1 do artigo 120.° da LOSJ).
6– É evidente, pois, que, 1/1 casa, não só não encontram aplicação as regras gerais de competência territorial previstas no artigo 19.° do CPP, como, também, não está em causa uma singela relação com áreas diversas ou uma localização duvidosa ou desconhecida do crime para que se atenda aos critérios do artigo 21.° do CPP, casos em que seria territorialmente competente o primeiro que tivesse tido notícia do crime.
7– Pese embora estejam cm causa áreas diversas, há outros critérios a atender, quais sejam aqueles que vimos de referir, da LOSJ, que definem não só a competência territorial como, também, a competência material e funcional do Tribunal, atribuindo-a ao Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC).
8– É, pois, manifesto que os elementos constantes dos autos permitiam, quanto mais não fosse porque é o DCIAP quem dirige a ação penal, perceber que os atos jurisdicionais a praticar, ordenar e autorizar durante o inquérito, designadamente os previstos nos artigos 268.° e 269.° do CPP, são, material, funcional e territorialmente da competência do TCIC.
9– Mal se entende, ademais, por que razão se refere o Tribunal a quo ao ato urgente de validação da sujeicão. pelo Ministério Público, do processo a segredo de justiça, que nos termos do artigo 86.°, n." 3 do CPP incumbe ao juiz de instrução. Repare-se que não é este tipo de atos urgentes que a LOSJ, nos artigos 119.°, n.° 2 e 120.°, n.° 5, prevê que possam ser praticados por outro juiz que não aquele a quem atribui competência territorial e material. Estes comandos legais possibilitam, apenas, que o juiz da comarca onde se vai realizar uma diligência de inquérito realize o ato jurisdicional correspondente, se a urgência do mesmo o impuser.
10– Ora, a validação da sujeição do processo a segredo de justiça, que tem o prazo de 72 horas, é um ato jurisdicional que não se realiza noutra comarca para que se possa justificar a intervenção de outro juiz, do que se conclui, com evidência, que o Tribunal a gila praticou um ato urgente para o qual não tinha competência material, uma vez que, para além da lei não lhe incumbir a prática de qualquer ato jurisdicional neste inquérito, o ato não estava a coberto daqueles desvios à competência do TCIC, que são exclusivamente motivados pela necessidade de proximidade física de um juiz em relação ao ato que urge realizar-se.
11– Do mesmo modo, assim, jamais poderá sequer sugerir-se que o mandado de busca e apreensão, cuja nulidade se arguiu, se tratou de um ato urgente do Tribunal a quo, na medida em que, caso se verificasse uma tal urgência — o que não se verifica, já que a promoção do Ministério Público é de 6 de abril e o despacho que ordena a busca é de 11 de abril, sendo que a diligência só se realizou no dia 18 de abril —, a competência seria sempre do juízo de Instrução Criminal do Porto, comarca onde a diligência se realizou, e nunca do juízo de Instrução Criminal de Lisboa ­Juiz ….
12– Assim, o Tribunal a gaio cometeu uma gravíssima ilegalidade ao considerar-se materialmente competente para, ao abrigo do artigo 269.°, n.° 1 alínea c), ordenar a realização de uma busca (bem como, de resto, para validar a sujeição do processo a segredo de justiça).
13– Note-se que não se trata de uma simples incompetência territorial do juiz de instrução que, constituindo urna nulidade processual, é sanável se não for oficiosamente conhecida ou arguida até ao início do debate instrutório, nos termos do disposto no artigo 32.°, n.° 2 alínea a) e, bem assim, do artigo 119.° alínea e) do CPP. Do que se trata, aqui, é de uma incompetência material e funcional, que para além de ter que ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal, pode ser arguida a todo o tempo até ao trânsito cm julgado da decisão final, nos termos do artigo 32.°, n.° 1 do CPP.
14– Trata-se, pois, de uma nulidade insanável, prevista no artigo 119.°, alínea e) do CPP, que tem como efeito a invalidade do ato em que se verifica e de todos aqueles que dele dependerem e que se mostrem afectados pela nulidade, nos termos do disposto no artigo 122.°, n.° 1 do CPP.
15– A gravidade da violação das regras da competência material e funcional fica ainda mais evidente com a proibição da valoração de prova obtida por virtude de um despacho nulo. Nos termos do artigo 126.°, n.° 3 do CPP, Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas. não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações ,sem o consentimento do respectivo titular.
16– Ou seja, tendo a busca sido determinada por autoridade judiciária incompetente, não só fica ferido de nulidade o ato determinado — a busca —, como também padecem do mesmo vício as apreensões a que houve lugar, não podendo as provas assim colhidas ser utilizadas no processo, posto que não houve consentimento do titular do direito para o efeito.
17– Suscitada, erradamente, a sua intervenção nos presentes autos, o Tribunal a quo estava obrigado a declarar-se incompetente, nos termos do artigo 32.°, ti.° 1 e com as consequências do artigo 33.°, n.° 1 do CPP, devendo remeter os autos para o Tribunal competente.
18– De resto, mesmo que num primeiro momento pudesse não dispor de elementos que o obrigassem a declarar-se incompetente — o que não se concebe, na medida em que, conforme se expôs, a investigação encontra-se a ser dirigida pelo DCIAP em moldes que determinam a competência do TCIC —, é incontornável que no momento em que lhe foi apresentada pelo DC1AP, para autorização, a promoção de busca, os elementos dela constantes impunham uma reavaliação da competência para a prática do ato jurisdicional.
19– O Tribunal a quo teria, nesse momento, que declarar-se incompetente e enviar os autos para o Tribunal competente (TCIC).
20– A circunstância, avançada na decisão de que se recorre, de ter sido o Tribunal a quo a validar a sujeição do processo a segredo de justiça não faz com que a sua competência se cristalize, e muito menos que irrelevem acontecimentos supervenientes determinantes de uma alteração de competência material.
21– A manutenção dos autos num Tribunal que entretanto se constata ser incompetente consubstancia uma violação das regras de competência, o que fere as garantias mais elementares de um cidadão.
22– As regras de competência vindas de assinalar, bem como as consequências da sua violação, reconduzidas a nulidade insanável dos atos afectados pelo vício, são densificações e concretizações legais de um direito constitucional fundamental, o do juiz natural. Nos termos do n.° 9 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
23– A garantia. do juiz natural é um direito fundamental subjectivo, inserido nos "direitos, liberdades e garantias", que abrange simultaneamente uma dimensão da prestação — a pretensão a uma definição, segundo regras gerais e abstractas, do juiz competente para conhecer uma causa, a que corresponde um dever de conformação do legislador da garanta do juiz natural nesse mesmo sentido — e uma dimensão de defesa — a proibição de aplicações arbitrárias das regras que definem a competência de um tribunal, a que corresponde um dever dos diferentes poderes do Estado de se absterem dessas aplicações arbitrárias.
24– A garantia do juiz natural visa impedir urna manipulação da composição do tribunal pelos poderes públicos, susceptível de lhes permitir decidir caso a caso qual o juiz competente para apreciar a causa. E "para atingir o objectivo de impedir manipulações na composição do tribunal, a fixação da competência dos juízes deve necessariamente revestir uma certa consistência. Deve apresentar o grau mais elevado possível de precisão e consequentemente não dar azo a lacunas na competência dos juízes, nem a margens de livre decisão evitáveis na aplicação das normas de competência."
25– Assim, caso não se observe a fixação concreta e exata do juiz competente, deparamo-nos com restrições à garantia do juiz natural, as quais carecem de justificação com base em outros direitos e interesses constitucionais, impondo-se uma avaliação à luz do princípio da proporcionalidade.
26– Um afloramento legislativo importante desta garantia constitucional do juiz natural é a previsão, para as várias fases do processo, de remessa dos autos ao tribunal competente quando se verifique que, em face das regras de competência em vigor, o tribunal no qual foram os autos distribuídos não é, afinal, competente.
27– A proibição do desaforamento como dimensão importante do princípio do juiz natural (prevista, aliás, no artigo 39.' da LOS]) não significa, assim, que se imponha a manutenção de uma competência erradamente atribuída a um tribunal.
28– Veja-se, por exemplo, a situação de durante um inquérito se encontrar a ser investigada criminalidade que determina a competência do DCIAP e, bem assim, do TCIC para a prática dos atos jurisdicionais: dando-se o caso de o inquérito se concluir com uma acusação por crime não inserido no catálogo dos artigos 47.º, n.° 1 do EMP, a competência do TCIC não se mantém para proceder à fase de instrução — vide acórdão do Si] n.° 2/2017, de 13/03, disponível em www.dgsi.pt. Não se trata, aqui, de um qualquer desaforamento mas, sim, do cumprimento das
regras de competência, garantindo-se o princípio do juiz natural.

29– Serve isto para dizer que, mesmo que se por hipótese o Juiz de Instrução criminal de Lisboa Juiz … tivesse tido, em algum momento (o que não sucedeu!!) competência para a prática de atos jurisdicionais na investigação em curso, é certo que a mesma cessou no momento em que lhe foi apresentada urna promoção pelo DCIAP em que a factualidade e a subsunção jurídica da mesma determinam a competência do TCIC.
30– Em formulação simples, é manifesto que o Meritíssimo juiz a quo não entendeu que o juiz natural é o juiz que, por determinação legal anterior, for competente para o ato e não, corno, surpreendentemente, parece resultar da sua decisão, o juiz que primeiro tiver intervindo no processo, seja essa intervenção legalmente adequada (o que não é o caso), quer, por maioria da razão, se o não for. A consagração constitucional do juiz natural mais não é do que a garantia do cidadão contra a intervenção do juiz cuja competência para o ato não esteja prevista em lei anterior.
31– Ora, a vingar a tese sufragada no despacho recorrido — de que o juiz é competente para a prática de um ato jurisdicional porque teve intervenção anterior no processo, não obstante não ser, à luz da lei, o juiz competente para a prática do mesmo, mas resultando tal competência apenas dessa sua anterior intervenção — estaria encontrado o caminho para a perversão cio principio do juiz natural, podendo o Ministério Público escolher o juiz que mais lhe conviesse...
32– É, pois, por demais evidente que o mandado de busca emitido pelo Juiz … do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa é nulo, por violação dos artigos 120.°, n.°s 1, 2 e 5 da LOSJ e do princípio do juiz natural consagrado no artigo 32.°, n.° 9 da CRP, nulidade essa que é insanável, nos termos do disposto no artigo 119.°, alínea e), do CPP e acarreta as consequências previstas nos artigos 122.°, n.° 1 e 126.°, n.° 3 do CPP, nulidade e consequências que, em revogação da decisão recorrida, se impõe que sejam declaradas.
Por outro lado,
33– A busca e a apreensão de objetos, enquanto meios de obtenção de prova, encontram-se previstas e reguladas nos artigos 174° e seguintes do CPP. Especificamente no que concerne a buscas e apreensões realizadas em escritório de advogado, o n.°5 do artigo 177.° do CPP prevê que a busca seja, sob pena de nulidade, presidida pessoalmente pelo juiz, que avisa previamente o representante da Ordem dos Advogados e o artigo 180.° do CPP estabelece, além do mais, que, sob pena de nulidade, é proibida a apreensão de documentos abrangidos pelo segredo profissional, salvo se os mesmos constituírem objecto ou elemento de um crime. Ademais, quer a busca quer a apreensão de objectos, só podem ser ordenadas pelo juiz de instrução (que a elas, de resto, tem que assistir), nos termos da alínea e) do n.° 1 do artigo 268.° do CPP.
34– O mandado emitido nos presentes autos, para além de ser nulo nos termos supra expostos, é também nulo porque não foram respeitadas as especificidades que cumpre respeitar quando tais diligências visem um escritório de advogados. Resulta da promoção do DCIAP e do próprio mandado de busca e apreensão e do despacho que o determinou, que o buscado/visado seria o arguido  — assinale-se, já. que a sua constituição como arguido não surge fundamentada ou sugerida nos documentos atrás citados — e que o local da busca seria o seu escritório de advocacia onde está instalada a GMA.
35– Todavia, consta do Auto de Busca e Apreensão, datado de 18.04.2018, dia em que ocorreu a diligência, que a identidade do Buscado é - operando-se, desta forma, uma confusão entre pessoas jurídicas distintas advogado que foi posteriormente constituído arguido e a sociedade de advogados G111A.).
36– De facto, apesar de o visado ser o arguido , o certo é que, na prática, as diligências de busca e apreensão foram direcionadas como se a GMA também fosse ela visada (abarcando as suas instalações): sendo que da documentação entregue, no momento das referidas diligências, não resulta a GMA corno visada mas, antes, corno referência de localização geográfica.
37– Ora, as especificidades próprias da busca realizada em escritório de advogado, ínsitas no artigo 180.° da CPP, têm corno escopo primordial a tutela do segredo profissional, que se erige como um   direito-dever deontológico fundamental e condição da dignidade da advocacia" que "(…) radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense" e que encontra outro "(…) fundamento, de interesse público, directamente ligado à função do advogado como participante indispensável a administração da justiça.".
38– O segredo profissional, e consequente dever de sigilo, está, por isso, naturalmente protegido pela lei: quer no EUA (cf., especialmente, artigos 75.° a 77.°, 92.° e 93.°) quer no Código Penal (cf. artigo 195) e no CPP (cf. artigos 177.°5, 179.°, n.° 2 e 180.°). Ora, «[...] o despacho que ordena a busca a escritório de advogado deve especificar com detalhe quais os documentos que se procura na busca sendo absolutamente inadmissível a utilização de formas amplas e indefinidas como "todos os documentos que indiciem a prática dos crimes..." ou "todos os documentos que revistam inegável interesse para  a investigação.»
39– O mandato emitido pelo Tribunal a giro, ao arrepio da promoção do DCIAP, que apontava para documentos que se referissem "às operações de investimento em causa e que se referem à duas - e para a necessidade de "aceder aos registos contabilísticos e à documentação destes suporte da pessoa colectiva -", referindo-se a documentação atinente ao "projecto" ou "elementos de paira relacionados com o ilícito em investigação", utilizou as fórmulas "todos as elementos que possam esclarecer a investigação e instrução do processo" e" A busca deverá incidir obre a totalidade do imóvel", pelo que autorizou os executantes do mandado a levar todo e qualquer documento relativo independentemente da sua conexão com o crime.
40– Temos, pois, que o mandado de busca e apreensão emitido pelo Tribunal a quo é, também pelas razões vindas de expor, nulo, nos termos do disposto no artigo 118.°, n.° 1 do CPP, por violação dos artigos 75.° a 77.", 92.° e 93.° do EOA, do artigo 195.° do CP e dos 177.", n.° 5, 179.°, n.° 2 e 180.", n." 2 do CPP, com a consequência legal de ser nula a apreensão feita, nos termos do artigo 122.°, n.° 1 do CPP.
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O M. P. na primeira instância respondeu ao recurso:
1– Pugnando pelo efeito meramente devolutivo atribuído ao recurso (fls. 40) porquanto o disposto no art.º 408.º, n.º 3 do CPP, que remete para o n.º 1 do art.º 407.º, igualmente do CPP, não tem aplicação ao caso em apreço.
1°– Entre a decisão recorrida que ordenou a busca e a emissão do mandado referidos pelo recorrente e os atos subsequentes de investigação inexiste qualquer dependência lógica causal que imponha a paralisação do procedimento criminal através do efeito suspensivo do processo.
2°– Assim, o Ministério Público entende que este recurso não tem efeito suspensivo e acompanha o efeito devolutivo que lhe atribuiu o M° Juiz a quo.
3°– Quando a decisão recorrida refere ser indiferente que no local de realização da busca seja exercida a atividade de advocacia através de sociedade, não pretende significar que desconheça o M° Juiz de Instrução os requisitos particulares a que obedece a realização de busca em escritório de Advogado e está a reporta-se apenas às instalações físicas visadas por tal diligência.
4°– Quer do despacho do M° Juiz de Instrução que autoriza a busca, quer do mandado, quer da Pr. do Ministério Público, em que afirma tratar-se do posto de trabalho do Advogado TG…, sito na morada em causa, que se refere corresponder à sede de GMA, resulta estar em causa o local físico visado pela busca e nenhuma confusão foi feita entre TG… e a referida pessoa coletiva.
5°– O escopo da apreensão resulta da Pr. do Ministério Público de fls. 286 a 305 que o despacho que autoriza a busca ordenou fosse junto ao mandado, onde se refere ser: "G.) dossiers das operações em causa e de toda a correspondente documentação que se relacione; registos contabilísticos e financeiros; documentos suporte dos registos contabilísticos; documentos suporte e outras provas relativas a faturação já conhecida e que seja expressamente solicitada, bem como daquela que venha a ser identificada no decurso da realização das buscas que vierem a ser realizadas e que venham a ser, nessa ocasião expressamente solicitadas, bem como os relativos aos processamentos dos pagamentos (registos de fluxos bancários), em suporte papel ou informático. Os respetivos autos consignarão sempre os casos em que as evidências sejam e ou não sejam entregues quando expressamente solicitadas, bem como possíveis justificações que sejam, no momento, invocadas; qualquer outra documentação reportada ao projeto; qualquer documentação ou meio de prova, em qualquer suporte, que, na sequência dos anteriores que ali se venham a ser recolhidos e sejam pertinentes para o objeto da presente investigação (...)".
6°– Carece de qualquer pertinência toda a fundamentação do recorrente à volta da ausência de clarificação do escopo da apreensão e, consequentemente, de quaisquer consequências processuais que dai pretendesse retirar.
7°– Se o conteúdo do que foi objeto de apreensão extravasa ou não o escopo do interesse da investigação, constitui matéria a escrutinar para além do escopo deste recurso.
8°– A competência do DCIAP para o presente inquérito ficou a dever-se não ao invocado artigo 47°, n° 1, al. i) e n.° 3, al. a), do Estatuto do Ministério Público, mas antes ao concreto despacho da Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral da República, ao amparo do disposto na alínea b) do n° 3 do artigo 47° do EMP.
9°– Não foi referido como fundamento a dispersão territorial da factualidade em investigação.
10°– A competência do DCIAP para a realização da investigação não importa necessária e obrigatoriamente a competência do Tribunal Central de Instrução Criminal para a prática dos atos jurisdicionais necessários durante esse inquérito.
11°– A competência do Juiz de Instrução nos presentes autos foi fixada por recurso à disciplina do artigo 21° do CPP, por ser desconhecido o local da concreta consumação do crime ou dos crimes em investigação e na sequência da necessidade urgente de suscitar a validação pelo Juiz de Instrução da decisão do Ministério Público de sujeitar o inquérito ao segredo de justiça, o que se impunha ser feito em prazo curto - 72 horas, como prescrito pelo artigo 86°, n° 3 do CPP.
12°– O critério facultado pela disciplina do artigo 21° do CPP, respeita os princípios do juiz natural, material e territorialmente competente na situação sub judice, pois que sendo desconhecido o elemento relevante para a determinação da competência resultaria na violentação desses princípios o desrespeito de tal critério.
13°– O princípio do Juiz natural a que alude o artigo 32°, n° 9 da CRP visa salvaguardar, nas palavras do Professor Figueiredo Dias "(...) a criação ad hoc, ou da determinação arbitrária ou discricionária expost facto, de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal (...) de impedir que motivações de ordem política ou análoga - aquilo, em suma, que compreensivelmente se pode designar pela raison d'Etat - conduzam a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o Estado-de­direito".3
14°– Tomando conhecimento dos autos, aceitou o M° Juiz de Instrução a sua competência para a prática dos atos jurisdicionais em causa.
15°– Prosseguiu a investigação, tendo já sido fixada a competência do Juiz de Instrução para praticar os atos jurisdicionais necessários no decurso deste inquérito, e só voltará a ter de definir-se, caso venha a ser proferida decisão de acusação, em presença da delimitação do objeto do processo e recolocando-se a necessidade de definição de qual o Juiz de Instrução competente para a fase de Instrução, sendo esta requerida ou o do julgamento, no caso contrário.
16°– A competência do Tribunal é fixada no momento em que a ação é proposta, no dizer do artigo 38° da LOSJ, ali se referindo serem irrelevantes as posteriores modificações de facto.
17°– Não tratando de pretender a equiparação do conceito de ação no âmbito do processo civil para o círculo do processo penal, de tal norma retira-se um princípio relevante para a fixação da competência do Tribunal.
18°– Pese embora o objeto do inquérito apenas se determine com a prolação da decisão de acusação, pode também afirmar-se que durante a investigação, apesar das alterações que possam surgir fruto desta, a competência do Tribunal de Instrução para a prática dos atos jurisdicionais que lhe estão acometidos pela lei, fixa-se em função de tal objeto do inquérito no momento em que tal intervenção seja suscitada.
19°– A ulterior determinação de competência do Tribunal de Instrução em função da fixação do objeto do processo resulta do surgimento de uma nova fase processual em que o Juiz de Instrução intervém não apenas para a prática dos atos para os quais a lei lhe reservou competência, mas na posição de quem a dirige. O mesmo sucederá caso sejam os autos remetidos para julgamento, suscitando-se novo momento de fixação de competência doutro Tribunal.
20°– Em ambas as situações, o que releva é que seja sempre observado o princípio da fixação da competência por lei anterior, o que tem de ser garantido através de critérios de determinação abstrata da competência material.
21°– No caso em apreço, o recurso ao referido artigo 21° do CPP nas referidas circunstâncias, não só é permitido como, no caso, garantiu escrupuloso cumprimento de critérios legais predeterminados, gerais e abstratos para determinação da competência do Tribunal de Instrução chamado a decidir, pelo que não foi nem arbitrária, nem discriminatória.
22°– A interpretação que resulta do Acórdão do STJ n.° 2/2017 confirma a interpretação que vimos de subscrever, ao fixar jurisprudência nos seguintes termos: "(...) Competindo ao TCIC proceder a atos jurisdicionais no inquérito instaurado no DCIAP (..) essa competência não se mantém para proceder à fase de instrução no caso de, na acusação ali deduzida ou requerimento de abertura de instrução, não serem imputados ao arguido qualquer um daqueles crimes ou não se verificar qualquer dispersão territorial da atividade criminosa (...)".
23°– Carece de fundamento legal a invocada nulidade insanável, sendo diverso o regime das consequências que adviriam caso se estivesse perante situação de incompetência do tribunal recorrido.
24°– Caso tivesse o tribunal recorrido de declarar-se incompetente, em observância à disciplina do artigo 33°, n.° 1 do CPP, remeteria o processo para o tribunal competente e este anularia os atos que não se teriam praticado se tivessem ocorrido perante si, ordenando a repetição dos que considerasse necessários para conhecer da causa.
25°– A declaração de incompetência não acarreta necessariamente a declaração de nulidade do processo ou de atos em abstrato considerados, mas antes que tal poderá ocorrer apenas em concreto relativamente a atos que o tribunal considerado competente venha a entender que se não teriam praticado se o processo tivesse corrido perante ele.
26º– Nas palavras do Acórdão supra citado, quanto ao regime do referido artigo 33°, n° 1 do CPP e a propósito das consequências da remessa para o tribunal competente "(...) Estamos perante uma situação de conservação dos atos imperfeitos que se consubstancia no reconhecimento da capacidade para provocar os efeitos correspondentes ao atos válidos, mediante a sua coligação com outros factos sucessivos, que vêm suprir ou tornar irrelevantes as deficiências cometidas (...)".
27°– O arguido deliberadamente colocou no mesmo plano a ausência de decisão de autoridade judiciária para realização de uma busca e a decisão de autorização de realização de busca proferida por Juiz de Instrução que venha a considerar-se não ser o competente, pretendendo com isso confundir situações que não são sequer equiparáveis.
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A Srª PGA junto desta Relação aderiu aos fundamentos da resposta apresentados pelo MP na primeira instância.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP
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Decidindo:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar artºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 410º nº 2 CPP.
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O despacho que ordenou as buscas é do seguinte teor:
Nos presentes autos investiga-se a prática de um crime de obtenção de subsídio previsto e punido pelo art°s. 36° n°s 1 a) e b), 2, 3 e 5 a) do D.L. 28/84 de 20/1.
Assim, para comprovação do crime indiciado e nos termos dos arras. 174° n°. 1, 2 e 3, 177° n°. 5, 178° e 269° n°.1 alínea c), com as formalidades legais previstas no art°. 176°, todos do CPP, autorizo que se procedam a buscas nos locais abaixo indicados, para apreensão de elementos de prova relacionados com o ilícito em investigação:
-.....);
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-....);
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Buscas Domiciliárias:
-....);
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-.....):
-.....) e,
-.....).
Escritórios de Advogados:
-.....) e,
-......).
*
Passe os competentes mandados.
Prazo:30 dias.
*
Junte aos mandados cópia da promoção do MP de fls. 286 a 305.
*
Designo o dia 18 de Abril de 2018 para a realização da diligência na Rua ...), á qual estarei presente.
*
Oficie, via fax, a O.A. solicitando que diligencie pela presença de um representante dessa Ordem nas instalaçães deste Tribunal, pelas 8 horas, do dia agendado.
Autorizo o acesso e pesquisa aos sistemas informáticos se sejam encontrados no decorrer das buscas a realizar procedendo-se às apreensões que no seu decurso se venham a revelar pertinentes.
Expeça carta precatória ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto, a fim de ser agendada a busca ao escritório de advogados sito na Avenida ...
Devolva ao DCIAP.
(Processado em computador e revisto pela signatária)
Lisboa, d.s.”
*
***
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Deste despacho o ora recorrente reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 124 e ss.), nos termos e com os fundamentos do art.º 77.º do EOA.

Simultaneamente reclama para a JIC, fls. 721 e ss., invocando a nulidade do despacho proferido com fundamento quer na incompetência do Tribunal quer do âmbito da busca ordenada e realizada ao escritório da Sociedade de Advogados do qual é sócio.
*

Sobre este despacho recai o despacho de fls.163/164 destes autos de recurso, do seguinte teor:
Na Reclamação apresentada, o arguido -) vieram arguir a nulidade do mandado de busca, alegando que:
– o mandado de busca ao ter sido emitido por um Juiz de Instrução Criminal de Lisboa e fora da situação de caráter urgente consubstancia um caso de incompetência material e funcional por violação dos art.ºs 10.º do CPP, 39.º e 120.º n.ºs 1 i) e 5 da LOSJ e do princípio do juiz natural, previsto no art.º 32.º, n.º 9 da CRP consubstanciando uma nulidade nos termos dos art.ºs 119º e 122 CPP.
– O mandado de busca é nulo porquanto a diligência incidiu sobre a totalidade das instalações onde funciona a GMA, entidade com personalidade jurídica que não é visada na busca.

Tendo em conta que tal questão extravasa o âmbito da fundamentação da reclamação há que dizer o seguinte:
A competência do Juiz de Instrução nos presentes autos foi, já, fixada em momento anterior (necessidade urgente de suscitar a validação pelo JIC da decisão do MP se sujeitar o inquérito ao segredo de justiça) à promoção dos mandados de busca quando, ainda, era desconhecido o local da concreta consumação do crime tendo seguindo o critério do art.º 21º do CPP em respeito pelos princípios do juiz natural, material e territorialmente competentes nestes casos.
No que respeita ao facto de a busca ter incidido sobre a totalidade das instalações da GMA, diga-se que esta sociedade era visada nos mandados, uma vez que ali poder ser encontrada prova com interesse para a investigação, sendo indiferente que nesse local a actividade de advocacia seja exercida através da referida sociedade.
Assim, não se declara a nulidade dos mandados de busca.
Notifique.
*
Devolva ao DCIAP.”
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***
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Decidindo:
A primeira questão que se impõe analisar e decidir é a da (in) competência do JIC para a prática do acto jurisdicional – decisão e emissão de mandados de busca.

No entender do recorrente, dado que à data da decisão já era conhecido nos autos a envolvência de mais do que um local onde teriam/terão sido praticados os factos objecto de investigação, pertencentes a distritos judiciais distintos, o competente para conhecer do pedido de realização das buscas e apreensão dos elementos de prova apresentado pelo MP seria o TCIC e não o JIC.

Note-se, que não obstante a competência para o presente inquérito não se ter ficado a dever, ab initio, ao disposto no art.º 47.º, n.º 1, al. i) e n.º 3, al. a) do Estatuto do Ministério Público mas sim a despacho da Srª procuradora Geral da República “ponderando o inquestionável melindre e gravidade que assume a factualidade a investigar e a especial sensibilidade e complexidade”, a competência do TCIC ou do JIC em nada ficam afectadas ou são determinadas por esse facto. Do mesmo modo, e como bem nota o MP na sua resposta, a competência do DCIAP para a investigação de certo(s) crime(s) não determina a competência do TCIC para a prática dos actos jurisdicionais necessários durante o Inquérito.

Assim, pela circunstância de o Inquérito estar a decorrer no DCIAP não determina a incompetência material dos Juízo de Instrução Criminal (JIC).

A competência material do TCIC tem uma vertente substantiva stricto sensu relacionada com a natureza do crime sob investigação, tout court, ou com a complexidade dos factos ilícitos praticados e que consubstanciam o tipo (como por exemplo acontece sempre que existe criminalidade altamente organizada como seja nas Infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, nomeadamente com recurso à tecnologia informática e nas Infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional) aliada à dispersão territorial espelhada no envolvimento de diferentes comarcas pertencentes a diversos Distritos Judiciais.

Vejamos: o art.º 119.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto estabelece que “compete aos juízos de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, salvo nas situações, previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelos juízos locais criminais ou pelos juízos de competência genérica.”.

Por seu turno, dispõe-se no art.º 120.º, n.º 1, da mesma lei que “a competência a que se refere o n.º 1 do artigo anterior, quando a actividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação, cabe a um tribunal central de instrução criminal, quanto aos seguintes crimes:
a)- Contra a paz e a humanidade;
b)- Organização terrorista e terrorismo;
c)- Contra a segurança do Estado, com excepção dos crimes eleitorais;
d)- Tráfico de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e precursores, salvo tratando-se de situações de distribuição directa ao consumidor, e associação criminosa para o tráfico;
e)- Branqueamento de capitais;
f)- Corrupção, peculato e participação económica em negócio;
g)- Insolvência dolosa;
h)- Administração danosa em unidade económica do sector público;
i)- Fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;
j)- Infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, nomeadamente com recurso à tecnologia informática;
k)- Infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional.”.

A determinação do conceito infracção económico-financeira encontra-se na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que «estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira», e prevê no seu artigo 1.º os tipos crimes que integram o seu âmbito normativo.

Para além dos crimes inscritos no art.º 120.º, n.º 1, integram o catálogo do art.º 1.º da Lei n.º 5/2002.

Da conjugação destas normas, 119.º e 120.º da LOSJ, conclui-se que a competência do TCIC, preenchidos que sejam os pressupostos referidos, é sempre especial relativamente às dos JIC que apenas têm competência para os actos urgentes (n.º 5 do art.º 120.º).

No caso, os factos sob investigação integrarão a prática do crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelo art.º 36.º nºs 1, a), e b), 2, 3 e 5 a) do D.L. 28/84 de 20/1, da competência material do TCIC desde que verificada a dispersão territorial supra referida.

No entender do MP uma vez que que em 07-07-2017, data em que é validada pelo JIC a decisão do MP de aplicar ao inquérito o regime do segredo de justiça, ainda não era conhecido com exactidão o elemento relevante para a determinação da competência e havia urgência na validação da atribuição do segredo de justiça ao Inquérito, era o JIC de Lisboa era competente, por aqui terem sido praticados factos relativos ao crime em investigação, e essa competência fixou-se nesse momento abrangendo a prática dos actos jurisdicionais futuros durante no inquérito, sendo que ainda não é certo agora, data da resposta ao recurso, qual o elemento relevante para a determinação da competência (art.º 21.º do CPP)(!).

Este é igualmente o argumento subjacente à decisão, sumaríssima e pouco fundamentada, diga-se em abono da verdade, sob recurso.
Mas sem razão. Nem a competência se fixou, nem aqui se verifica a situação que o art.º 21.º visa resolver.

Com o devido respeito por opinião contrária, esta tese, a proceder, esvaziaria, de todo, o conteúdo da competência do TCIC!

Sempre que num qualquer inquérito o MP porque ainda se encontrava numa fase embrionária da investigação solicitasse a validação da atribuição do segredo de justiça ao JIC, fixava-se a competência deste independentemente dos crimes que estivessem a ser investigados e que eventualmente até já constassem da notícia ou denúncia do crime, envolvessem ou não várias comarcas pertencentes a Distritos Judiciais distintos! Ou seja, com a prática de um mero acto (não atributivo da competência ao TCIC), abrir-se-ia a possibilidade, vedada pela lei constitucional, de se poder escolher o tribunal competente!

O art.º 21.º do CPP tem que ser interpretado em conjugação com o art.º 120.º da LOSJ, desde logo porque este é mais recente, devendo em caso de dúvida interpretativa (que não é o caso) a interpretação daquele ceder face a este. Mas repita-se não é o caso. Basta que se analisem e interpretem os dois normativos em conjunto.

Ou seja, sempre que estejam em causa inquéritos relativos à prática de crimes do catálogo supra indicado, em que apenas estejam envolvidas mais do que um local pertencente à competência territorial de diversos tribunais MAS do mesmo distrito judicial aplica-se o disposto no art.º 21.º do CPP, quando a investigação tiver objecto esses mesmos crimes e a “actividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação” é competente o TCIC (art.º 120.º, n.º 1 da LOSJ)!

Dito isto, e recuperando o que se disse, se num primeiro momento, para validação da atribuição do segredo de justiça, a base legal invocada, art.º 21.º, seria tanto quanto bastava para que os JIC de Lisboa fossem competente, já a tese de que a prática desse mesmo acto, que se refere no despacho recorrido ter sido urgente (e não permitindo os autos analisar se assim foi ou não, nem sendo objecto de recurso), determinaria a competência dos JIC cai totalmente por terra.

Vejamos: Imaginemos o cenário de o MP averiguar crime relativamente ao qual ainda não tem a certeza se sua maioria dos actos de execução, maior gravidade ou número dos mesmos, ocorreu em Lisboa ou no Porto, mas requer aos JIC de Lisboa a prática de um acto jurisdicional, como no caso a realização de buscas, e no decorrer da investigação vem a apurar-se que afinal só o planeamento do crime foi realizado em Lisboa tendo todos os actos de execução e consumação do crime o foram na cidade do Porto. Mantém-se a competência dos JIC de Lisboa??? Para a prática dos actos jurisdicionais durante o inquérito?

Fazemos aqui apelo à decisão[2] proferida por Abrunhosa de Carvalho, Ac. Rel. Lisboa de 10-04-2014, proc. 56/09.0TELSB-A.L1-9[3], que se transcreve: “Em primeiro lugar, sendo verdade que o CPP quando se refere a processo engloba o inquérito, a instrução (quando haja) e o julgamento, no processo penal, diferentemente do que acontece no processo civil, há uma competência para cada uma destas fases.

Na verdade, existe a competência do MP, no inquérito, a competência do TIC, na instrução, e a competência do tribunal do julgamento.

Durante o inquérito só está definida a competência territorial do MP (art.º 264º do CPP). A competência do JIC para intervir no inquérito só está definida em termos de reserva de jurisdição (art.ºs 17º, 268º e 269º do CPP), não havendo qualquer norma que defina a competência do JIC no inquérito, já que a norma do art.º 288º/2 do CPP, pela sua inserção sistemática se refere à competência para a instrução.

Por outro lado, a competência territorial do MP pode-se ir modificando em face dos resultados da investigação (art.º 264º/2 do CPP), sendo, nesse caso, os autos transmitidos ao MP competente (art.º 266º do CPP). Isto acontece porque a realidade dos factos pode divergir da constante da notícia do crime.

Por isso é que o objecto do processo só se fixa com a acusação ou com o RAI (no caso de arquivamento pelo MP). Até lá podemos dizer que o objecto do processo está em aberto.

Consequência dessa fixação do objecto do processo é que, posteriormente, só se podem fazer alterações nos casos dos art.ºs 358º e 359º do CPP.

Podemos assim dizer que os elementos constantes da notícia do crime são irrelevantes para a determinação do objecto do processo.

O mesmo terá que se dizer dos indícios existentes aquando da primeira intervenção do JIC no inquérito”. (…) “Na verdade, o disposto no art.º 24º/1 da LOFTJ refere-se às acções cíveis, uma vez que a determinação da competência dos tribunais criminais é sempre feita por referência aos factos e não, como no cível, onde pode ser feita pela residência do autor, pela residência do réu, pela situação ou pelo valor dos bens, etc.

Mas mesmo que se entendesse que a instauração do inquérito equivalia à propositura da acção, o que havia que levar em conta eram os factos existentes a essa data e não a notícia deles ou os seus indícios, porque uma coisa são os factos, outra os seus indícios e notícia.

Por assim ser é que, em geral, durante o inquérito, a competência do JIC que nele desempenha as funções jurisdicionais reservadas é feita por referência ao MP que é titular do mesmo, não devendo o JIC interferir com essa competência, que só pode ser posta em causa nos termos dos referidos art.ºs 264º e 266º do CPP.

A não se entender assim, chegaríamos a soluções absurdas.

Vejamos o seguinte exemplo: o MP do Porto teve notícia de um crime de homicídio qualificado, com indícios de que o mesmo ocorrera na área dessa comarca. Em face disso, uma vez que o suspeito tinha sido detido, promoveu a sua audição pelo JIC do Porto e a aplicação de prisão preventiva, o que veio a acontecer. Na semana seguinte são recolhidas provas inequívocas de que, afinal, o homicídio ocorreu em Lisboa e que há que realizar naquela comarca várias diligências de prova. Por isso, nos termos do art.º 266º/1 do CPP, transmite os autos ao MP de Lisboa, que os aceita e vem a deduzir acusação pelo referido crime”. Mas enquanto não deduzir acusação requererá ao JIC de Lisboa a prática dos actos jurisdicionais necessários, e não ao JIC do Porto.
No caso, a entender-se como o defendido pelo MP e seguido no despacho recorrido, obteríamos, como já referimos, situações absurdas e violadoras do princípio do juiz natural: se a prática de um acto tão embrionário como a validação da atribuição do segredo de justiça, a coberto de ser urgente, determinasse a fixação da competência daqueles JIC para os ulteriores termos do processo isso equivaleria à possibilidade de escolha do tribunal competente, com violação do princípio do juiz natural, para todos os actos jurisdicionais a praticar durante o inquérito, quer os mesmos fossem da competência do TCIC quer de um outro MP e correspondentes JIC, cuja competência ainda não estivesse definida nos termos do art.º 21.º do CPP.

Estaria encontrado o caminho para se esvaziar de conteúdo a competência do TCIC, a qual, como é bem de ver, não é evidente quando o MP adquire a notícia da prática de um crime. Esta competência, porque depende da verificação cumulativa de dois pressupostos, um de natureza material, natureza dos ilícitos a investigar, outro de natureza territorial, envolvimento de mais do que uma comarca pertencentes a diversos distritos judiciais, só é conhecida e fixada durante a investigação.

Ora, no caso, quando o MP, que bem fundamenta a necessidade da realização do acto jurisdicional (fls. 69 a 123), requer as buscas já tem conhecimento da natureza do crime está a investigar, e que a sua prática, até pela natureza do ilícito em causa – complexo na sua execução, envolve várias comarcas pertencentes a diversos Distritos Judiciais: Lisboa, Coimbra e Porto – como se vê do que alega a fls. 69 a 123. E estes mesmos factos são do conhecimento da Srª JIC que no despacho que defere a realização das buscas faz menção expressa ao crime que se investiga, obtenção de subsídio previsto e punido pelo art.º 36.º nºs 1, a), e b), 2, 3 e 5 a) do D.L. 28/84 de 20/1, e indica os endereços dos domicílios e sociedades de advogados, objecto das mesmas, que envolvem três Distritos Judiciais: Lisboa, Coimbra e Porto.

Deste modo, quando o MP requer a realização das buscas a Srª JIC deveria ter analisado decidido pela sua incompetência. Preenchidos os pressupostos do art.º 120.º da LOSJ, como estavam, e não estando alegada qualquer situação de urgência por parte do MP, nada mais restava à Srª JIC que declarar-se incompetente para os actos que cuja prática lhe era solicitada, tanto mais que, como a mesma refere no despacho em crise o acto anterior que havia praticado (validação da atribuição do segredo de justiça) o foi numa situação de urgência. Nem se percebe como se fundamenta a aquisição de competência através da prática de um acto que se reconhece ter natureza urgente… como o foi o da validação da atribuição do segredo de justiça. Faz-se apelo a uma circunstância excepcional atributiva de competência para se adquiri a mesma, em violação de norma expressa – o art.º 120.º, n.º 5 da LOSJ.

Do exposto, resulta que os JIC de Lisboa eram/são incompetente para a prática do acto jurisdicional que praticou pertencendo tal competência ao TCIC, atento o disposto no art.º 120.º da LOSJ.

E nem se diga que a decisão e realização das buscas consubstanciaram actos urgentes pois não foi invocada qualquer urgência pelo MP quando requereu a realização das buscas nem isso foi invocado no despacho que as determinou (art.º 120.º, n.º 5 da LOSJ, até porque abrangeu mais do que um local…).

Assim, tem pois razão o recorrente quando invoca a incompetência material dos JIC de Lisboa para a prática do acto. Contudo, a verificação desta incompetência não tem as consequências que o mesmo pretende.

No entender do recorrente a incompetência dos JIC que determinou a realização das buscas, por constituir uma nulidade insanável expressamente prevista no art.º 119º, al. e) do CPP, acarreta a nulidade dos actos subsequentes, nos termos do art.º 122.º, n.º 1 do CPP e por conseguinte das buscas realizadas. Mas não é assim.

O recorrente apela ao regime geral das nulidades, o consagrado nos art.ºs 118.º a 123.º do CPP. Mas no que à nulidade decorrente da inobservância das regras da Competência diz respeito, o regime a observar é o que especificamente se dispõe nos art.ºs 32.º e 33.º do mesmo CPP. Consequentemente, declarada a incompetência do Tribunal, a declaração dos seus efeitos compete, não a este tribunal de recurso, mas sim ao tribunal competente nos termos do disposto no art.º 33.º, n.º 1, o qual decidirá se “anula os actos que se não teriam praticado se perante ele tivesse decorrido o processo e ordena a repetição dos actos necessários (…)”. Ou seja, compete ao TCIC analisar e decidir se praticaria o acto em causa – se decidiria ou não realizar e proceder às buscas requeridas pelo MP e contra as quais se insurge o recorrente.

O recorrente atacou ainda por via deste recurso o âmbito das buscas realizadas. Todavia, tal questão está agora prejudicada. Na verdade, estando em causa apreciar por outro tribunal que não este, se decidiria ou não a realização das buscas e o seu âmbito, não pode este tribunal pronunciar-se sobre o âmbito de execução de uma decisão que ainda não está “validada”.
*

Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa, em:
a)- Julgar parcialmente provido o recurso interposto pelo arguido , e em consequência:
(i)– Declara-se a incompetência dos JIC de Lisboa, para a prática dos actos jurisdicionais praticados, mais concretamente, decisão proferida em 06-04-2018, e consequente realização das buscas abrangidas por essa decisão;
(ii)– Declara-se a competência do TCIC para a prática dos actos jurisdicionais deste inquérito, aqui se incluindo a análise da decisão referida em (i), de 06-04-2018, nos termos e para os efeitos consagrados no art.º 33.º, n.º 1 do CPP.
(ii)– Não conhecer as restantes questões suscitadas atento o decidido em (ii).
b)- Sem custas.



Lisboa, 11 de dezembro de 2018



(Maria Perquilhas) – Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final (art.º 94º, nº 2 do CPP).

(Rui Miguel Teixeira)



[1]Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e  na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271);  o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de  Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363. 

[2]Esta decisão apesar de proferida ao abrigo da vigência da LOTJ, como se vê da indicação dos preceitos legais, mantém plenamente a sua validade e autoridade já que os normativos e em causa se encontram na actual LOSJ, correspondendo a sua melhor interpretação à que é realizada neste acórdão, que mantém assim actualidade e validade.    
[3]Disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/54eeb02450a249b080257cc2003bb3fd?OpenDocument