Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27881/15.0T8LSB-A.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: COMPETÊNCIA
REGULAMENTO (EU) 1215/2012
ARTIGOS 62º E 63º DO CPC REVISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– Em matéria relativa à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial coexistem, actualmente, na nossa ordem jurídica, dois regimes gerais de aferição da competência internacional: (i) o regime emanado do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e (ii) o regime interno estabelecido nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil.

II– O regime interno de competência internacional só será aplicável se o não for o regime comunitário, que é de fonte normativa hierarquicamente superior, face ao primado do direito europeu (cf. artigos 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e 1.ª parte do art.º 59.º do CPC).

III– O decretamento de medidas de administração de um imóvel comum de casal dissolvido, no âmbito de processo especial de suprimento de deliberação de comproprietários (art.º 1002º do CPC), na pendência de acção de liquidação da comunhão conjugal subsequente a acção de divórcio, não incide «em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis» e por isso não se inscreve no âmbito de aplicação do n.º 1 do artigo 24.º, do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro.

IV– O litígio a que respeita a providência requerida nos autos deve antes ser qualificado como relativo a matéria de «regime de bens do casamento», para efeitos da excepção prevista no artigo 1.º, número 2, alínea a), do mesmo Regulamento.

V– As relações jurídicas patrimoniais resultantes directamente do vínculo conjugal ou da sua dissolução, ou seja, as relações jurídicas relativas ao “regime de bens do casamento” devem considerar-se como abrangidas pela excepção prevista no artigo 1º, n.º 2, alínea a), do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, para efeitos de se considerar excluída a aplicação deste instrumento jurídico internacional a tais situações.

(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


1.– Maria Isabel … divorciada, de nacionalidade espanhola e residente em Madrid, propôs, em 2015, uma acção declarativa com processo especial, ao abrigo do disposto no artigo 1002.º do CPC, contra Paulo Cardoso …, casado, de nacionalidade portuguesa, residente em Lisboa, tendo peticionado que o Tribunal a quo [[1]] regulasse o uso da fracção autónoma em causa nos autos, por se tratar de bem comum segundo o regime de bens do casamento, ao qual seria aplicável o regime da compropriedade, “de forma alternada, cabendo um mês a cada um, ou estabelecendo-se outra rotação que o Tribunal considere mais adequada”.

2.– O Réu contestou a acção, por impugnação e por excepção, invocando, neste âmbito e no que aqui releva, a excepção de incompetência absoluta, por falta de competência internacional dos tribunais portugueses, por a acção de divórcio ter corrido e a acção de inventário correr termos em Espanha, onde as medidas de administração dos bens comuns do casal, na sua perspectiva, deveriam ser apreciadas, já que se trata de matéria de regime de bens do casamento, e onde a Autora já solicitou tais medidas, as quais lhe foram negadas. O Réu invocou, ainda, a prejudicialidade, em relação à presente acção, da decisão proferida no processo de inventário a correr termos em Espanha.

3.– Por despacho de 21 de Setembro de 2016, foi ordenada a suspensão do processo até decisão final do processo de inventário a correr termos em Espanha.

4.– Tendo sido proferida decisão definitiva sobre a formação do inventário neste último processo – e apesar de inexistir decisão sobre o procedimento de liquidação e partilha da comunhão conjugal -, a Autora veio requerer o levantamento da suspensão decretada.

5.– O Réu opôs-se ao levantamento da suspensão requerido e, em qualquer caso, renovou a dedução da excepção de incompetência internacional, alegando que deveria ser logo absolvido da instância por a Autora não ter pedido a revisão e reconhecimento da decisão proferida no processo de inventário, nos termos do Código de Processo Civil, por o Regulamento EU 1215/2012, de 12 de Dezembro, não ter aplicação ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do seu artigo 1.º.

6.– Findos os articulados, por despacho datado de 14 de Dezembro de 2017 (ref.ª Citius 371738137), foi decidido (cf. fls. 106 verso e 107):
- julgar improcedente a exceção da incompetência absoluta;
- notificar a Autora, para, no prazo de 20 dias, dar cumprimento ao disposto no art.º 37º do Regulamento (UE) nº 1215/2012.

7.– Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Réu pedindo que seja dado provimento à apelação com a consequência de: (i) ser revogada a decisão recorrida, julgando-se procedente a excepção de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para conhecer da presente acção e absolvendo-se o Recorrente da instância; (ii) ou, caso assim não se entenda, ser suspensa a instância e determinado o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE), para ser confrontado com a questão prejudicial da interpretação da excepção ao âmbito de aplicação do Regulamento (EU) 1215/2012, de 12 de Dezembro, prevista na alínea a) do n.º 2 do art.º 1º desse Regulamento (iii); ou, caso assim não seja entendido, ser revogada e substituída por outra a decisão recorrida que, por um lado julgue procedente a excepção de incompetência em razão da matéria, absolvendo o Recorrente da instância e, por outro, revogue a decisão recorrida na parte em que considerou os tribunais espanhóis a propósito da natureza de bem comum da fracção autónima em causa sujeita ao reconhecimento automático do Regulamento n.º 1215/2012. (cfr. fls. 133 a 134).

A terminar as respectivas alegações formulou as seguintes conclusões[[2]]:

«a)- Objecto do recurso de apelação.
1.– Vem o presente recurso de apelação interposto contra o despacho de 14.12.2017, através do qual o Tribunal a quo, por um lado, julgou improcedente a excepção de incompetência absoluta (fundada quer na violação das regras de competência internacional, quer, subsidiariamente, na violação das regras em razão da matéria) e, por outro, considerou, de forma aparente e implícita, que uma decisão proferida pelos Tribunais Espanhóis relativamente à natureza de bem comum da fracção autónoma em causa nos autos seria objecto de reconhecimento automático ao abrigo do disposto no artigo 36.º do Regulamento n.º 1215/2012;
2.– Sucede, porém, que, salvo o devido respeito, o despacho ora em crise não tem qualquer fundamento, nem de facto, nem de Direito, razão pela qual deve ser revogado e substituído por um outro que julgue procedente a excepção de incompetência absoluta fundada na violação das regras de competência internacional previstas no CPC;
3.– Para o caso de assim não se entender (o que não se concede), deve, em qualquer caso, julgar-se procedente a excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria, assim como revogar-se o despacho recorrido na parte em que considera o Regulamento n.º 1215/2012 aplicável à decisão proferida pelos Tribunais Espanhóis que atribuiu natureza de bem comum à fracção autónoma em causa nos autos;
b)- Recorribilidade imediata da decisão sobre competência absoluta do Tribunal.
4.– O segmento decisório do despacho em crise que julgou improcedente a excepção de incompetência absoluta (fundada quer na violação das regras de competência internacional, quer, subsidiariamente, na violação das regras de competência em razão da matéria) é imediatamente recorrível, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC;
c)- Recorribilidade imediata da decisão sobre a aplicabilidade do Regulamento n.º 1215/2012 à decisão proferida pelos Tribunais Espanhóis
5.– Embora, do ponto de vista técnico, o despacho ora em crise não constitua um verdadeiro “despacho saneador”, é inequívoco que contém uma decisão implícita que, materialmente, decide o “mérito da causa”;
6.– Na verdade, o facto de o Tribunal a quo ter, aparentemente, considerado aplicável o Regulamento n.º 1215/2012 à decisão proferida pelos Tribunais Espanhóis – relativa à atribuição da natureza de bem comum à fracção autónoma em causa nos autos – poderia tornar esta decisão judicial estrangeira automaticamente reconhecida na Ordem Jurídica Portuguesa (ao abrigo do disposto no artigo 36.º do Regulamento n.º 1215/2012), apesar de nem sequer produzir efeito de caso julgado material;
7.– Assim sendo, o despacho ora em crise poderia não permitir ao Recorrente realizar prova quanto à natureza de “bem próprio” do imóvel em causa nos autos no âmbito da presente acção, tal como invocou na contestação, pelo que, e nessa medida, constitui uma decisão sobre o mérito da causa que poderia impedir o ora Recorrente de demonstrar um dos factos essenciais à sua defesa (mas, felizmente, não o único): a natureza de bem próprio da fracção autónoma em discussão nos autos;
8.– Deste modo, a decisão em crise - ao parecer considerar, de forma implícita, que a sentença proferida pelos Tribunais Espanhóis se encontraria abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 - configura uma decisão quanto ao “mérito da causa”, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 644.º do CPC;
d)- Recurso quanto à decisão relativa à incompetência absoluta
9.– Em primeiro lugar, no caso concreto, o Tribunal a quo não aduziu uma única razão para ter decidido (aliás, erradamente) que a matéria “em questão nos presentes autos” se não inclui no âmbito da excepção ao âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 prevista na alínea a) do n.º 2 do seu artigo 1.º;
10.– Por conseguinte, é manifesto que se verifica, desde logo, nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, na parte em que decidiu que a matéria em causa nos autos não se subsume à excepção prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1205/2012, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
11.– Em segundo lugar, o Tribunal a quo considerou que a matéria em causa nos autos se subsumiria ao disposto no artigo 24.º do Regulamento n.º 1215/2012;
12.– Ora, como é evidente, o Tribunal a quo não poderia - sem incorrer em contradição - considerar que os Tribunais Portugueses são exclusivamente competentes para conhecer a presente acção, nos termos do disposto no artigo 24.º do Regulamento n.º 1215/2012 e, simultaneamente, pôr a questão de saber se a regulação do uso de um bem considerado comum pode ser suscitada autonomamente ou tem de ser invocada no processo de inventário e liquidação que corre termos na jurisdição Espanhola;
13.– Em face do supra exposto, é manifesto que a decisão recorrida também padece de nulidade por contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
14.– Em terceiro lugar, e sem prejuízo das nulidades acima invocadas, a verdade é que a decisão que julgou improcedente a excepção de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses é ilegal;
15.– De facto, o Regulamento n.º 1215/2012 não se aplica aos “regimes de bens do casamento”, nos termos e para os efeitos do disposto da excepção prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do aludido regulamento;
16.– Esta excepção já se encontrava consagrada na Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, datada de 27.09.1968 (“Convenção de Bruxelas”), a qual esteve na origem do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro (“Regulamento n.º 44/2001”), e, posteriormente, do Regulamento n.º 1215/2012;
17.– De acordo com o entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência nacional e comunitária (ver, por exemplo, Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades, datado de 27.03.1979, Processo n.º 143/78 e Despacho do Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 2017, Processo n.º C-67/17, disponíveis em http://CURIA.EUROPA.EU/), é inequívoco que a alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012 exclui do âmbito de aplicação deste normativo a regulação da administração de bens relacionados com o regime de bens do casamento;
18.– Ora, no caso concreto, não há a menor dúvida de que a matéria em discussão nos presentes autos consiste na administração de bens relacionados com o “regime de bens do casamento”, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012, pois está em causa o uso, na pendência da dissolução da comunhão conjugal, de um bem que a Autora considera comum segundo esse regime de bens do casamento, sendo tal uso disciplinado por este regime;
19.– Por conseguinte, é manifesto que a matéria dos presentes autos se encontra excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012;
20.– E não se diga, como faz o Tribunal a quo, que a matéria em causa nos presentes autos estaria associada a “matéria de direitos reais sobre imóveis”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 24.º do Regulamento n.º 1215/2012;
21.– De facto, o conceito-quadro relacionado com a “matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis” não abrange, evidentemente, a regulação entre cônjuges ou ex-cônjuges do uso de imóveis que são comuns segundo o regime de bens do casamento;
22.– Ou seja, a definição da titularidade de um bem imóvel como comum ou próprio, assim como a extracção de uma consequência dessa definição para o seu uso, constituem indubitavelmente matérias relativas ao “regime de bens de casamento”, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012;
23.– De resto, o entendimento do Tribunal a quo – aplicação do artigo 24.º do Regulamento n.º 1215/2012 ao caso concreto - levaria a que, por exemplo, um casal cuja comunhão conjugal estivesse a ser liquidada em Espanha, mas que tivesse bens imóveis em quatro Estados-Membros diferentes (por exemplo, França, Alemanha, Itália e Portugal), tivesse de pedir medidas de administração e uso desses imóveis nos tribunais de cada um desses Estados-Membros e que os Tribunais Espanhóis, em que corre termos a liquidação da administração conjugal, e cuja lei se afirma competente para tratar das medidas de administração sobre esses bens na pendência de acção, fossem incompetentes para julgar e decretar tais medidas;
24.– Aliás, a própria Autora já qualificou a matéria em causa nos autos como medidas de administração relacionadas com regimes de bens de casamento (e não com matéria de direitos reais), quando peticionou tais medidas nos Tribunais Espanhóis (cfr. Doc. 2, já junto com a contestação).
25.– Em suma, não há a menor dúvida de que as medidas de administração no quadro do regime de bens do casamento se incluem, inegavelmente, na excepção prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012 e, como tal, a matéria em causa nos presentes autos - porque se trata de medidas de administração no quadro do regime de bens - não é regulada pelo Regulamento n.º 1215/2012;
26.– De resto, e para a hipótese de se entender que a matéria em causa nos autos não se encontra excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 (o que não se concede), REQUER-SE, desde já, a V.as Ex.as o REENVIO PREJUDICIAL da interpretação da alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012 para o Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;
27.– De facto, o Tribunal de Justiça deverá ser confrontado com a seguinte questão interpretativa, prejudicial para a decisão da questão da competência internacional segundo o Regulamento 1215/2012:
A excepção ao âmbito de aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro (“Regulamento n.º 1215/2012”), prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º desse mesmo regulamento, mais especificamente, a parte relativa “aos regimes de bens do casamento”, deve ser interpretada no sentido de também excluir do âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 acções em matéria de administração e uso de bens imóveis comuns segundo o regime de bens de casamento, após ter sido decretada a dissolução do casamento e encontrando-se pendente um processo de liquidação e inventário?
28.– Em quarto lugar, de acordo com o artigo 59.º do CPC, na eventualidade de não existirem “regulamentos europeus” ou outros “instrumentos internacionais” aplicáveis ao caso concreto, a competência internacional dos Tribunais Portugueses deve ser aferida em função das regras internas previstas no CPC;
29.– Sucede que, à luz das regras previstas no CPC, é evidente que, salvo melhor opinião, os Tribunais Portugueses não são competentes para conhecer a presente acção com a forma de processo comum;
30.– De facto, em 26.10.2012, o tribunal de 1.ª instância n.º 79 de Madrid proferiu sentença de divórcio, dissolvendo, assim, o casamento entre a Recorrida e o Recorrente;
31.– Em 24.03.2014, e na sequência do divórcio decretado, a Recorrida requereu um processo de formação de inventário contra o ora Recorrente;
32.– Em 29.01.2015, o tribunal de 1.ª instância n.º 79 de Madrid proferiu sentença relativamente ao inventário da comunhão conjugal entre a Recorrida e o Recorrente;
33.– Em 05.03.2015, o Recorrente interpôs recurso de apelação da aludida sentença de inventário;
34.– Assim sendo, não há a menor dúvida de que os Tribunais Espanhóis têm competência jurídica internacional para conhecer e julgar o processo de formação e liquidação de inventário conjugal;
35.– Ora, o pedido formulado nos presentes autos – regime de alternância no uso da fracção autónoma em causa nos autos – constitui uma medida de administração de um bem (para já incluído na comunhão conjugal), que, como tal, deveria ter sido formulada no processo de inventário que corre nos tribunais Espanhóis;
36.– Aliás, a Recorrida sabe que os Tribunais Espanhóis são os tribunais internacionalmente competentes para conhecer de quaisquer pedidos de administração dos bens integrantes do processo de formação de inventário, na medida em que chegou a peticionar – intempestivamente –medida de administração da fracção autónoma em causa nos autos no âmbito do processo de inventário e partilha que corre nos Tribunais Espanhóis;
37.– Todavia, os Tribunais Espanhóis recusaram a medida de administração peticionada pela Recorrida porquanto a mesma era manifestamente intempestiva;
38.– Ciente disso mesmo, a ora Recorrida tentou agora obter através da presente acção de processo especial instaurada nos Tribunais Portugueses aquilo que deveria ter efectuado em sede do processo de formação de inventário que corre termos nos Tribunais Espanhóis;
39.– De facto, não se verifica nenhum dos factores para atribuir competência internacional aos Tribunais Portugueses para julgarem a presente acção especial, nos termos do disposto no artigo 62.º do CPC;
40.– Em primeiro lugar, não se verifica o factor referido na alínea a) do artigo 62.º do CPC, na medida em que não há coincidência entre a competência territorial e a competência internacional;
41.– Na verdade, não há qualquer norma do Direito Processual Português que estabeleça que a presente situação (em que o divórcio foi decretado por Tribunais Espanhóis, nos quais corre termos o inventário e liquidação da comunhão conjugal em que a Requerida defende que a fracção em causa deve ser integrada) deva ser resolvida por Tribunais Portugueses;
42.– Em segundo lugar, também não se encontra verificado o factor mencionado na alínea b) do artigo 62.º do CPC, visto que a causa de pedir relaciona-se com o divórcio e formação de processo de inventário julgados nos Tribunais Espanhóis;
43.– Em terceiro lugar, também não se encontra verificado o factor referido na alínea c) do artigo 62.º do CPC, visto que o alegado direito da Recorrida (o que não se concede) poderia (e deveria) tornar-se efectivo no processo de inventário que corre nos Tribunais Espanhóis;
44.– Em quarto lugar, não se verifica nenhuma das situações referidas no artigo 63.º do CPC, isto é, não estamos perante matéria de competência exclusiva dos Tribunais Portugueses;
45.– E não se diga, em sentido contrário, que o presente caso constituiria “matéria de direitos reais sobre imóveis” para efeitos do disposto na alínea a) do artigo 62.º do CPC. Na verdade, a matéria em causa nos presentes autos prende-se com relações de família e não de coisas;
46.– De facto, o pedido de alternância no uso da fracção autónoma em causa nos autos constitui matéria relacionada com a administração de bens comuns, e, logo, com a comunhão conjugal (cf. aliás o artigo 1678.º do Código Civil), e, portanto, com as relações de família e não com a regulação de coisas imóveis (direitos reais sobre imóveis);
47.– Em face do supra exposto, é manifesto que os Tribunais Portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar a presente acção de processo especial, o que constitui um caso de incompetência absoluta, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do artigo 96.º do CPC;
48.– Esta incompetência absoluta acarreta a absolvição do Recorrente da acção em causa nos presentes autos, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 576.º e na alínea a) do artigo 577.º, ambos do CPC, o que, desde já, SE REQUER;
49.– A título subsidiário, para a hipótese de se entender que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da presente acção (o que não se concede), sempre se dirá que a presente acção é da competência da secção de família e menores do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa;
50.– No caso concreto, a matéria em causa nos autos refere-se a um bem que, de acordo com a acima referida sentença proferida nos Tribunais Espanhóis (ainda não transitada em julgado por força do recurso de apelação interposto pelo ora Recorrente), e segundo a própria causa de pedir, faz parte de um inventário conjugal;
51.– Por conseguinte, e em qualquer caso, a presente situação é da competência da secção de família e menores do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa;
52.– Em face do supra exposto, e em qualquer caso, REQUER-SE, em qualquer caso, a absolvição do Recorrente da instância por incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 96.º e 99.º do CPC;
53.– Esta incompetência absoluta acarreta a absolvição do Recorrente da acção em causa nos presentes autos, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 576.º e na alínea a) do artigo 577.º, ambos do CPC, o que, desde já, SE REQUER;
e)- Recurso da decisão sobre a aplicabilidade do Regulamento n.º 1215/2012 à decisão dos Tribunais Espanhóis que (aparentemente) considerou a fracção autónoma em causa nos autos como bem comum
54.– Em primeiro lugar, a decisão do Tribunal a quo padece, uma vez mais, de nulidade ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, na medida em que, por um lado, admite que a matéria em causa nos autos é objecto de competência exclusiva dos Tribunais Portugueses, mas, contraditoriamente, entende (implicitamente) que a decisão proferida pelos Tribunais Espanhóis seria susceptível de reconhecimento automático ao abrigo do disposto nos artigos 36.º e 37.º do Regulamento n.º 1215/2012;
55.– De facto, se, como sustenta (erradamente) o Tribunal a quo, a competência para julgar a matéria em causa nos autos é exclusiva dos Tribunais Portugueses para efeitos do disposto no artigo 24.º do Regulamento n.º 1215/2012 (local onde se situa o imóvel), é evidente que não pode haver reconhecimento automático da decisão dos Tribunais Espanhóis sobre tal matéria, que é da competência exclusiva do Estado Português;
56.– Em segundo lugar, a decisão proferida pelos Tribunais Espanhóis relativamente à qualificação como bem comum da fracção autónoma em causa nos autos (sempre sem conceder) não produz efeito de caso julgado material (mas só uma eficácia intra-processual no processo de liquidação), nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 787.º da Ley de Enjuiciamiento Civil, razão pela qual é evidente que a mesma é insusceptível de ser reconhecida (seja a que título for) e ter, enquanto tal, eficácia em Portugal nesta matéria.
57.– Em terceiro lugar, e para a hipótese de se entender que a aludida decisão pode ser reconhecida – o que não se concede -, a verdade é que, a mesma incide sobre a matéria de “regime de bens do casamento”-, isto é, ela cai mesmo “em cheio” na excepção ao âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º desse regulamento, pois é uma decisão proferida em processo de inventário segundo o regime de bens do casamento;
58.– Por conseguinte, e como é evidente, a decisão proferida pelos Tribunais Espanhóis em processo de inventário, que incluiu a fracção autónoma em causa nos autos, nunca poderia, em qualquer caso, ser susceptível de reconhecimento automático nos termos do disposto nos artigos 36.º e 37.º do Regulamento n.º 1215/2012;
59.– Acresce que o Regulamento n.º 2201/2003 também não se aplica aos efeitos patrimoniais do casamento. Na verdade, o Regulamento n.º 2201/2003 apenas se aplica à dissolução do vínculo matrimonial, mas não aos “efeitos patrimoniais do casamento”;
60.– Assim sendo, e considerando que inexiste regulamentação especial (nacional ou comunitária) que conceda um reconhecimento automático na Ordem Jurídica Portuguesa da decisão judicial proferida pelos Tribunais Espanhóis relativamente à fracção autónoma em causa nos autos (sem prejuízo da questão relativa à inexistência de caso julgado material), é evidente que, em qualquer caso, a mesma apenas poderia ter eficácia em Portugal depois de ser revista e confirmada através do processo previsto nos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil.
 (….)
- NORMAS VIOLADAS: Regulamento n.º 1215/2012; artigos 62.º, 63.º, 65.º, 96.º, 97.º, 99.º, 576.º; 577.º; todos do Código de Processo Civil; artigo 122.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto; artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa».

8.– O Réu requereu a junção aos autos, que foi admitida, de parecer de Direito da autoria do Professor Doutor Rui Manuel Moura Ramos, qual se formulam as seguintes conclusões:
«A providência reclamada em juízo - o decretamento de medidas de administração de um imóvel comum do casal, na pendência de acção de liquidação da comunhão conjugal subsequente a acção de divórcio – não incide «em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, para efeitos de competência exclusiva dos tribunais portugueses, nos termos do artigo 24.º, número 1, do Regulamento n.º 1215/2012, devendo antes ser qualificada como relativa a matéria de regime de bens do casamento, para efeitos da excepção prevista no artigo 1.º, número 2, alínea a), do mesmo Regulamento. Em face do que se não pode deduzir daquele acto de direito da União a competência dos tribunais portugueses para decidir o diferendo que perante eles foi levado a julgamento” (cfr. página 13 do parecer de Direito);
- Uma decisão proferida sobre um inventário, que qualificou a fracção em causa como bem comum do casal, não existindo ainda decisão final sobre o procedimento de liquidação da comunhão é, sem qualquer dúvida, uma decisão que resulta directamente do casamento (rectius, da sua dissolução), uma vez que só tem lugar por força e como consequência dessa dissolução, pelo que constitui uma decisão «em matéria de regimes de bens do casamento» para os efeitos da alínea a) do número 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012. Encontra-se, por isso, excluída do âmbito de aplicação do mecanismo de reconhecimento por este instituído (…).
- Tal decisão não pode pois ser executada em Portugal por força do Regulamento n.º 1215/2012, da mesma forma que é insusceptível de predeterminar por si só o conteúdo de uma outra decisão a proferir por um tribunal português” (cfr. páginas 17 e 18 do parecer de Direito).
- A decisão proferida pelos Tribunais Espanhóis relativamente à natureza da fracção autónoma em causa nos autos nem sequer produz, desde logo, efeito de caso julgado material.»

9.– Contra-alegou a Autora, pugnando pela manutenção da decisão em crise e improcedência do recurso (cfr. fls. 170 a 171 e verso).
10.– O recurso foi devidamente admitido por despacho de 07/03/2018, como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo. Neste despacho, o Senhor Juiz a quo indeferiu as nulidades arguidas, com o fundamento de que “não há falta absoluta de motivação e que não se vislumbra que haja oposição entre fundamentos e decisão” (cfr. fls. 187 verso e 188).

11.– Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
              
II– Objecto do recurso e sua delimitação:
De acordo com o disposto nos artigos 5º, 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 3, do CPC, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer oficiosamente. Nestes termos, está este Tribunal da Relação adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso, exceptuadas aquelas que estejam prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608º, n.º 2, do CPC). Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do CPC). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas [[3]] .
Dentro destes parâmetros e decidida que se mostra, por via dos despachos de admissão do recurso proferidos nos autos em ambas as instâncias, a questão da recorribilidade imediata das decisões sobre a incompetência absoluta do Tribunal e sobre a aplicabilidade do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro (cfr. alíneas a) e b) das conclusões), as questões submetidas à nossa apreciação e decisão são as seguintes:
1.ª - Nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação, na parte em que decidiu que a matéria em causa nos autos não se subsume à excepção prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1205/2012, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
2.ª - Nulidade da decisão recorrida, por contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
3.ª - Saber se os Tribunais Portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar o litígio em apreço e, caso assim se decida, apreciar o pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia;
4.ª - Em caso de resposta negativa à questão anterior: Saber o Tribunal a quo é incompetente em razão da matéria, para preparar e julgar o presente litígio.

III–Fundamentação:

A)– Motivação de Facto:
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que estão enunciados no supra elaborado relatório e, para além desses, o seguinte circunstancialismo fáctico processual[[4]]:
1.- Em 26/10/2012, o Tribunal de 1.ª instância n.º 79 de Madrid proferiu sentença de divórcio, dissolvendo o casamento entre a Autora e o Réu (cfr. fls. 46 verso a 48);
2.- Em 24/03/2014, e na sequência do divórcio decretado, a Autora requereu um processo de formação de inventário contra o ora Réu, que correu termos pelo Tribunal de 1ª Instância n.º 79 de Madrid (processo de formação de inventário n.º 10/2014);
3.- Em 29/01/2015, o Tribunal de 1.ª instância n.º 79 de Madrid proferiu sentença relativamente ao inventário da comunhão conjugal entre a Autora e o Réu (cf. fls. 49 verso a 53.
4.- De acordo com a aludida sentença, o artigo 809.º da Ley de Enjuiciamiento Civil 1/2000 ”impõe que a decisão a proferir no processo de formação de inventário deverá resolver “todas as questões suscitadas, aprovando o inventário da comunhão conjugal e decidirá sobre a administração e disposição dos bens comuns” (ibidem);
5.- Ademais, de acordo com a mencionada sentença, deverá ser recusada a adopção de medidas de administração dos bens, uma vez que não foram tempestivamente apresentadas (ibidem);
6.- Ainda de acordo com a aludida sentença de 1.ª instância, o inventário da comunhão conjugal entre a Autora e o Réu é constituído, além do mais e no que aqui releva, pelo seguinte bem: “Apartamento sito na Rua ….1.º Piso, em Lisboa” (cf. fls. 49 verso a 53»;
7.- Já em sede de recurso da referida sentença (Apelação n.º 1358/15), a própria Audiência Provincial Civil de Madrid veio reiterar expressamente, na sua decisão de 22 de Outubro de 2015, que “No ha lugar a lo interessado respecto a la administración del inmueble sito en Lisboa” (cfr. fls. 56 a 57);
8.- Por acórdão de 25 de Outubro de 2017, proferido nos autos de recurso de cassação n.º 665/2017, que correram termos pelo Supremo Tribunal de Madrid, Câmara Civil, foi decidido, além do mais:
“1.º Rejeitar o recurso de cassação interposto pela representante processual do Sr. Paulo C... … contra a sentença proferida em 23 de dezembro de 2016 pela Audiência Provincial de Madrid (Secção 22.a), na peça de apelação n.º 1358/15, dimanante dos autos de julgamento verbal de formação de inventário de comunhão de adquiridos n.º 10/14 do Tribunal de Primeira Instância n.º 79 de Madrid” (cf. fls. 96 a 105).

B)–Motivação de Direito:

1– Primeira questão:
1.1.- Pretende o Recorrente que se revogue a decisão em crise, invocando, para o efeito, a nulidade da mesma, por falta de fundamentação, na parte em que decidiu que a matéria em causa nos autos não se subsume à excepção prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1205/2012, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
1.2.- Para fundar a suposta nulidade, o Recorrente argumenta que o Tribunal a quo não aduziu uma única razão para ter decidido que a matéria “em questão nos presentes autos” se não inclui no âmbito da excepção ao âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 prevista na alínea a) do n.º 2 do seu artigo 1.º.

1.3.- Na decisão recorrida discorreu-se o seguinte:
«(…)
Como é entendimento uniforme na jurisprudência, a competência afere-se pelo pedido formulado pelo A. e pelos fundamentos que este invoca.
A A. pede que o tribunal estipule que as partes têm direito à utilização da fração em pauta de forma alternada, cabendo um mês a cada um, ou estabeleça outra rotação que considere mais adequada, devendo o R. facultar à A. o acesso à fração.
Para tanto, a A. invoca que a fração é um bem comum, que não há acordo quanto ao uso da mesma e que o R. usa a fração e impede a A. de a usar.
O Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de dezembro, é aplicável à matéria em questão nos presentes autos, sendo certo que não se verifica a exceção prevista no seu art. 1º nº 2 al. a).
Nos termos do art. 24º nº 1 do referido regulamento, “têm competência exclusiva os seguintes tribunais de um Estado-Membro, independentemente do domicílio das partes: em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado-Membro onde se situa o imóvel.”
Por força do disposto no art. 122º nº 2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, “os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.
O processo de inventário foi instaurado em Espanha, pelo que o disposto no citado artigo não tem aplicação.
Saber se a A. pode suscitar a questão do uso de bem comum em processo autónomo é questão que não cumpre conhecer no âmbito da apreciação da exceção da incompetência absoluta».

1.4.- O artigo 615º do CPC, sob a epígrafe «Causas de nulidade da sentença», dispõe:
“1.– É nula a sentença quando:
a)- Não contenha a assinatura do juiz;
b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)- O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”

As nulidades previstas nas alíneas b) e c) reconduzem-se a vícios formais que respeitam à estrutura da sentença e as previstas nas alíneas d) e e) referem-se aos seus limites.

O dever de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente tem consagração constitucional no n.º 1 do artigo 205º da CRP, o qual remete para a lei ordinária a fixação da forma como deve ser dado cumprimento a esse dever (cf. art.º 154º, n.º 1, do CPC)

A consequência do vício da falta de especificação dos fundamentos de facto ou de direito alicerçantes da decisão é a nulidade, embora, segundo a doutrina e jurisprudência dominantes, só a falta absoluta de motivação e não a motivação meramente deficiente, parcialmente lacunosa, ou medíocre, conduza àquela nulidade.

No sentido de que só a falta absoluta da especificação dos fundamentos de facto ou de direito e não a fundamentação meramente deficiente, incompleta, medíocre ou pouco convincente, constitui o fundamento da nulidade a que se reporta a alínea b) do n,º 1 do artigo 615º do CPC, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 05.05.2005 (proc. 05B839); de 12.05.2005 (proc. 05B840), de 03.11.2005 (proc. 05B3239), de 14.11.2006 (proc. 06A1986), de 10.07.2008 (proc. 08A2179) e do STA, de 05.11.2002 (proc. 047814, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

1.5.– Ora, no caso em concreto, somos confrontados não com uma falta absoluta de fundamentação, mas com uma fundamentação claramente insuficiente, incompleta e errada, como mais à frente procuraremos demonstrar.

É certo, como sustenta o Recorrente, que o Tribunal a quo não aduziu, como devia, uma única razão para ter decidido que a matéria “em questão nos presentes autos” não se inclui no âmbito da excepção ao âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 prevista na alínea a) do n.º 2 do seu artigo 1.º.

No entanto, considerada a decisão na sua globalidade, constata-se que esse fundamento aduzido pelo Tribunal a quo, sem qualquer justificação das razões que levaram a tal interpretação, não esgota a decisão recorrida.

De facto, para indeferir a excepção de incompetência internacional deduzida pelo Réu, aqui Recorrente, o Tribunal a quo não se limitou a afirmar que a matéria em questão nos presentes autos não se inclui no âmbito da excepção na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 2. Dez., mas aduziu outro fundamento, qual seja o de considerar que ao litígio era aplicável o n.º 1 do artigo 24º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, que atribui competência exclusiva, “em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis”, independentemente do domicílio das partes, aos tribunais de um Estado-Membro onde o imóvel se situa.

Na verdade, o Tribunal a quo, conforme decorre dos fundamentos perfunctoriamente invocados na decisão recorrida, considerou que nos presentes autos está em causa um bem imóvel comum e o desacordo dos comproprietários (Autora e Réu) sobre actos de administração (uso) desse bem comum e que o litígio assim configurado é regulado pelo artigo 24º, n.º 1, do citado Regulamento, por não cair no âmbito da excepção prevista no artigo 2º, n.º 1, alínea a) da mesma fonte normativa.

1.6.– Improcedem, por conseguinte, as conclusões 9ª e 10ª da apelação.
2– Segunda questão:
2.1.- Atentemos, de seguida, à segunda questão suscitada pelo Recorrente - nulidade da sentença, por contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.
2.2.- Em primeiro lugar, regista-se que o Recorrente sempre reconhece que a decisão em crise não é completamente destituída de fundamentação. Ressalta, aliás, dos argumentos que esgrime nas conclusões 11.ª a 13.ª que a sua discordância se relaciona apenas com a insuficiência dos fundamentos invocados e a oposição/contradição entre tal motivação e a decisão propriamente dita.
2.3.- Segundo o Recorrente, “o Tribunal a quo não poderia, sem incorrer em contradição considerar que os Tribunais Portugueses são exclusivamente competentes para conhecer a presente acção, nos termos do disposto no artigo 24.º do Regulamento n.º 1215/2012 e, simultaneamente, pôr a questão de saber se a regulação do uso de um bem considerado comum pode ser suscitada autonomamente ou tem de ser invocada no processo de inventário e liquidação que corre termos na jurisdição Espanhola”.
2.4.- Antes de mais, cabe aqui salientar que constitui entendimento pacífico da doutrina e da nossa jurisprudência que a nulidade prevista no artigo 615º, n.º. 1, al. c) do CPC (correspondente ao art.º 668º, n.º 1, al. c), anterior à reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) só se verifica quando os fundamentos invocados na sentença devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diversa da que a sentença expressa, ou seja, o raciocínio do juiz aponta num determinado sentido e o dispositivo conclui de modo oposto ou diferente (cfr. Prof. Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, pág. 141; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/11/2006, proc. n.º 06B4007 e do Tribunal da Relação de Évora, de 19/01/2012, proc. n.º 1458/08.5TBSTB e de 19/12/2013, proc. nº. 538/09.4TBELV.E1 e de 25/06/2015, proc. nº 855/15.4T8PTM.E1 todos acessíveis em www.dgsi.pt), sabido que essa contradição remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica.

Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando - embora mal - o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos.

2.5.- Revertendo ao caso em apreço, adianta-se, desde já, que não se descortina a apontada desarmonia entre a decisão e os fundamentos invocados.

Na decisão em crise, foi apreciada a excepção de incompetência internacional deduzida pelo Réu, aqui Recorrente, matéria que delimita o âmbito do presente recurso.

Para considerar aplicável o n.º 1 do artigo 24º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, que atribui competência exclusiva, “em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis”, independentemente do domicílio das partes, aos tribunais de um Estado-Membro onde o imóvel se situa, o Tribunal a quo, conforme decorre dos fundamentos perfunctoriamente invocados na decisão recorrida, considerou que nos presentes autos está em causa um bem imóvel comum e o desacordo dos comproprietários (Autora e Réu) sobre actos de administração (uso) desse bem comum.

Parece-nos, assim, salvo melhor opinião, que o Tribunal a quo considerou que o litígio respeitava a direitos reais sobre um imóvel e nessa óptica entendeu aplicável o n.º 1 do artigo 24º do citado Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro.

Não se vê, portanto, que exista incongruência ou desarmonia entre a decisão e os fundamentos invocados.

Acresce que o Tribunal nada decidiu – ou decidiu nada decidir – relativamente à questão, a que faz referência na decisão recorrida, “de saber se a A. pode suscitar a questão do uso de bem comum em processo autónomo”, porquanto entendeu que é questão que “não cumpre conhecer no âmbito da apreciação da excepção da incompetência absoluta”.

Nada tendo decidido ou tendo decidido nada decidir sobre a referida questão, por entender não a tinha de conhecer, o Tribunal a quo não se contradisse, não incorreu na nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.

Não tendo sido construído qualquer silogismo jurídico a partir da questão enunciada, mas não apreciada, circunscrevendo-se a decisão recorrida aos exíguos fundamentos invocados [considerar que o litígio respeita a “matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis], não se pode afirmar, salvo o devido respeito, que exista desconformidade, desarmonia ou oposição entre a decisão e os respectivos fundamentos.

2.6.- Portanto, improcedem as conclusões 11.ª a 13.ª da apelação.

3.– Terceira questão:
- Da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para apreciar o litígio em causa nos autos:
3.1.- Discute-se nos autos a competência internacional dos tribunais portugueses para tramitar e julgar a presente acção.
Sendo a acção instaurada por uma pessoa singular, natural e domiciliada em Espanha contra uma pessoa singular, natural e domiciliada em Portugal, partes essas que foram casadas entre si no regime de comunhão de adquiridos e cujo casamento foi dissolvido por divórcio, e tendo a acção como causa de pedir um direito real (direito à habitação) sobre um bem comum (imóvel) do casal dissolvido, não oferece margem para dúvidas estarmos perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada, transfronteiriça ou transnacional. Essa circunstância coloca o problema da competência internacional para o julgamento da acção que aqui importa decidir.

3.2.- No que concerne à competência internacional dos tribunais portugueses, o art.º 59.º do CPC estabelece:
Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.
Como refere Remédio Marques [[5]], “coexistem na nossa ordem jurídica regras de competência internacional directa impostas por fontes normativas supranacionais, de direito comunitário da União Europeia – os regulamentos comunitários –, que determinam a competência internacional directa dos diferentes tribunais dos Estados membros. As regras de competência internacional (directa), que constam desses regulamentos comunitários, valem tanto para os tribunais do foro (isto é, para os tribunais de um Estado membro onde, em concreto, a ação foi proposta), como para os tribunais de qualquer outro Estado membro.” Diferentemente - acrescenta o citado autor [[6]] -, “as regras que determinam a competência internacional dos tribunais portugueses previstas nos» art.ºs 62º e 63º do CPC «são unilaterais, pois só fixam a competência (internacional) dos tribunais portugueses; um tribunal estrangeiro nunca se pode sentir condicionado no exercício da sua jurisdição pela existência e validade daquelas regras»”.

Porém, este regime interno de competência internacional estabelecido no CPC só será aplicável quando a acção não for abrangida pelo âmbito de aplicação do regime comunitário, que é de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu (cfr. art.ºs 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, 8.º, n.º 4 da Constituição de República Portuguesa e 1ª parte do art.º 59º do CPC) [[7]](2).

3.3.- Sendo Portugal e a Espanha Estados-Membros da União Europeia, importa averiguar se ao litígio dos autos é aplicável, como decidiu a 1ª Instância e defende a Recorrida, o regime comunitário definido pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que revogou o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000, ou se, pelo contrário, se este regime tem de ser afastado, como sustenta o Recorrente, uma vez que a matéria em causa nos presentes autos está excluída do âmbito de aplicação deste Regulamento.

3.4.- Nos presentes autos, a Autora invoca como causa de pedir um direito real (direito à habitação) sobre um bem comum (imóvel) do casal dissolvido (esta é a tese da Autora, plasmada na petição inicial).

Está, assim, em causa uma questão de competência em matéria de «regime matrimonial», na acepção do legislador europeu que foi vertida para o Regulamento (EU) 2016/1103, do Conselho, de 24 de Julho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais (Cf. Jornal Oficial da União Europeia, de 8/07/2016[[8]].

Na definição dada pela alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do referido Regulamento, entende-se por «Regime matrimonial» o conjunto de normas relativas às relações patrimoniais dos cônjuges e às suas relações com terceiros, em resultado do casamento ou da sua dissolução.

Vistas as coisas na acepção do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, ora em análise, o litígio dos autos respeita a matéria conexa com «regime de bens do casamento» e não a «matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis» como considerou – aliás, erradamente – o Tribunal a quo.

Ora, o Regulamento n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, não se aplica aos “regimes de bens do casamento”, por se tratar de matéria expressamente excluída do seu âmbito de aplicação, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do aludido Regulamento.

Trata-se, aliás, de uma excepção que já se encontrava consagrada, em termos algo similares[9], na Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, datada de 27/09/1968, a qual esteve na origem do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro, que foi revogado pelo Regulamento n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro.

Ora, a questão relativa à interpretação a dar ao artigo 1.°, segundo parágrafo, n.º 1, da Convenção de Bruxelas, que excluía do seu âmbito de aplicação «o estado e a capacidade das pessoas singulares, os regimes matrimoniais, os testamentos e as sucessões», já foi colocada, a titulo prejudicial, ao Tribunal de Justiça das Comunidades e este, pronunciando-se sobre a mesma, no acórdão datado de 27/03/1979 (proc. n.º 143/78, proposto por Jacques de Cavel contra Luise de Cavel[10], disponível em www.http://CURIA.EUROPA.EU/), declarou:

«As decisões judiciais que autorizam medidas de protecção provisórias - como a aposição de selos ou o arresto de bens dos cônjuges — no decurso de um processo de divórcio não se inserem no âmbito de aplicação da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judicial e à execução de decisões em matéria civil e comercial, tal como é definido no seu artigo 1.°, uma vez que essas medidas respeitam, ou se encontram estreitamente ligadas, quer a questões relativas ao estado das pessoas implicadas no processo de divórcio, quer a relações jurídicas patrimoniais resultantes directamente do vinculo conjugal ou da sua dissolução».

Mais recentemente, o Tribunal de Justiça das Comunidades (Sexta Secção) foi chamado a pronunciar-se (proc. n.º 67-C/2017, acessível em www.http://CURIA.EU/[[11]] sobre a interpretação do artigo 1.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1) e por DESPACHO datado de 14 de Junho de 2017 declarou:
«O artigo 1.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que um litígio como o do processo principal, relativo à partilha, após pronúncia de um divórcio, de um bem móvel adquirido na constância do matrimónio por cônjuges nacionais de um Estado‑Membro mas residentes noutro Estado‑Membro não está abrangido pelo âmbito de aplicação deste regulamento, mas pelo domínio dos regimes matrimoniais e, portanto, pelas exclusões previstas no referido artigo 1.°, n.° 2, alínea a)».

Por sua vez, ainda no âmbito do mesmo processo de reenvio prejudicial, o Advogado Geral rematou as Conclusões que em 22 de Fevereiro de 1979 apresentou ao Tribunal de Justiça, da seguinte forma:
«Em definitivo, concluímos que em resposta à questão submetida ao Tribunal de Justiça pelo Bundesgerichtshof, o Tribunal declare que um despacho que tem por objecto medidas cautelares, proferido por um órgão jurisdicional de um Estado-membro no decurso de uma acção de divórcio, não está, pela simples razão de ter sido proferido no âmbito de tal processo, fora do âmbito da convenção de 27 de Setembro de 1968, mas que, sempre que o despacho respeite a bens que constituem objecto de litígio entre as partes nesse processo, deve ser considerado como fora do âmbito de aplicação da convenção, a menos que resulte do próprio despacho que os direitos em litígio nasceram independentemente do vínculo conjugal entre as partes».

Na verdade, a definição da titularidade de um bem imóvel como comum ou próprio, assim como o pronunciamento sobre as consequências a retirar dessa definição para o seu uso, constituem, inquestionavelmente, matérias que se têm como compreendidas no âmbito do “regime de bens de casamento”, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012.

As relações jurídicas patrimoniais resultantes directamente do vínculo conjugal ou da sua dissolução, ou seja, as relações jurídicas relativas ao “regime de bens do casamento” caiem, claramente, no âmbito da excepção prevista no artigo 1º, n.º 2, alínea a), do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, o que exclui a aplicação ao caso sub judice deste instrumento jurídico internacional.

É esse, aliás, como se viu, o entendimento da jurisprudência produzida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, que também perfilhamos.

Como bem sustenta o Professor Moura Ramos no seu Parecer junto aos autos, devendo a matéria em discussão nos autos ser qualificada como relativa a matéria de «regime de bens do casamento», para efeitos da excepção prevista no artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, não se pode deduzir deste acto de direito da União Europeia a competência dos tribunais portugueses para decidir o diferendo que perante eles foi levado a julgamento.

Concorda-se, em suma, com o mesmo Parecer quando conclui que “Uma decisão proferida sobre um inventário, que qualificou a fracção em causa como bem comum do casal (…) é, sem qualquer dúvida, uma decisão que resulta directamente do casamento (rectius, da sua dissolução), uma vez que só tem lugar por força e como consequência dessa dissolução, pelo que constitui uma decisão «em matéria de regimes de bens do casamento» para os efeitos da alínea a) do número 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012. Encontra-se, por isso, excluída do âmbito de aplicação do mecanismo de reconhecimento por este instituído (…).”

3.5.- Como se disse, na ordem jurídica nacional vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário e o regime interno; quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, esse regime prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu.
Não sendo esse o caso, como sucede nos autos, afastada que está a aplicação do regime comunitário na determinação da competência internacional, importa recorrer ao regime interno de competência internacional dos Tribunais Portugueses estabelecido nos artigos 62º e 63º do CPC.

3.6.- Atendendo à solução dada à questão anterior, resulta prejudicada a apreciação do pedido de reenvio para o Tribunal de Justiça da União Europeia.

3.7.- Já se referiu que o regime interno de competência internacional dos Tribunais Portugueses encontra-se estabelecido nos artigos 62º e 63º do CPC.
O artigo 62.º, sob a epígrafe, «Factores de atribuição da competência internacional», dispõe:
«1.-Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a)- Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b)- Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c)- Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real».
Por sua vez, o artigo 63.º, sob a epígrafe «Competência exclusiva dos tribunais portugueses», estabelece:
«Os tribunais portugueses são exclusivamente competentes:
a)- Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português; todavia, em matéria de contratos de arrendamento de imóveis celebrados para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos, são igualmente competentes os tribunais do Estado membro da União Europeia onde o requerido tiver domicílio, desde que o arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário e o arrendatário tenham domicílio no mesmo Estado membro;
b)- Em matéria de validade da constituição ou de dissolução de sociedades ou de outras pessoas colectivas que tenham a sua sede em Portugal, bem como em matéria de validade das decisões dos seus órgãos; para determinar essa sede, o tribunal português aplica as suas regras de direito internacional privado;
c)- Em matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal;
d)- Em matéria de execuções sobre imóveis situados em território português;
e)- Em matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português».

A regra da coincidência entre a competência internacional e a competência interna estabelecida na alínea a) do artigo 62.º do CPC deve ser entendida como feita para os artigos 70.º a 84º do mesmo diploma legal, que estabelecem as regras de competência em razão do território.

Está em causa uma acção relativa ao suprimento de deliberação da maioria de comproprietários sobre actos de administração (uso) de imóvel comum (cf. artigo 1002º do CPC), segundo a petição inicial, sendo entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência que a excepção de incompetência se afere pelo pedido formulado pela Autora e pelos fundamentos que invoca.

Ora, não estando em causa uma acção referente a direitos reais ou pessoas de gozo sobre imóveis, hipótese contemplada no art.º 70.º, nem uma acção relativa ao cumprimento de obrigação ou a efectivar responsabilidade civil baseada em acto ilícito ou fundada no risco, situação prevista no artigo 71.º ou qualquer uma das hipóteses de previstas nos artigos 72.º a 79.º ou 81.º a 84.º do CPC, aplica-se a regra geral estabelecida no n.º 1 do artigo 80.º do mesmo diploma, segundo a qual é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu.

No caso, as partes estão de acordo que os Tribunais Espanhóis têm competência internacional para conhecer e julgar o processo de formação e liquidação de inventário conjugal.

Acresce que foram os Tribunais Espanhóis que proferiram sentença de divórcio e a sentença de formação de inventário, por iniciativa da Autora, que aí começou e impulsionou esse processo.
O artigo 807.º da “Ley de Enjuiciamiento Civil” estabelece que o processo de inventário e liquidação será da competência do Tribunal de 1.ª Instância que decretou o divórcio.

O pedido formulado nos presentes autos constitui, como bem sustenta o Recorrente, uma medida de administração de um bem incluído na comunhão conjugal (segundo a Autora), que, como tal, deveria ter sido formulada no processo de inventário que corre nos tribunais Espanhóis.

Decorre do já aludido artigo 809.º da “Ley de Enjuiciamiento Civil 1/2000” que todas as questões, incluindo em matéria de administração de bens comuns, devem ser peticionadas no processo de formação de inventário.

Em suma, verifica-se o factor princípio da coincidência entre a competência internacional e a competência interna referido na alínea a) do artigo 62.º do CPC.

A tudo acresce que, como bem reconhece o Recorrente nas respectivas alegações, a Recorrida chegou a peticionar uma medida de administração da fracção autónoma em causa nos autos mo âmbito do processo de formação de inventário e liquidação que corre seus termos nos Tribunais Espanhóis mas viu recusada tal medida, por intempestivamente requerida.

Neste contexto, entendemos que existem elementos ponderosos de natureza pessoal (local do domicílio e nacionalidade do Réu) e real (localização do imóvel) que justificam a atribuição da competência internacional aos Tribunais Portugueses para preparar e julgar a acção, à luz do critério da necessidade estabelecido na segunda parte da alínea c) do artigo 62.º do CPC [“se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que a entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”].

Logo, é de concluir o foro internacionalmente competente para conhecer do litígio é o do Estado Português, e não do Estado Espanhol, quer por referência ao critério geral de competência estabelecido no artigo 80.º do CPC, aplicável ex vi art.º 62º, alínea a), do mesmo diploma, quer à luz do critério da necessidade, previsto na segunda parte da alínea c) desta disposição legal, o que neste caso também se verifica.

3.8.- Improcedem, portanto, as conclusões 14.ª a 48.ª da apelação.
4.– Quarta questão:
- Saber se o Tribunal a quo é incompetente em razão da matéria, para preparar e julgar o presente litígio.
4.1.– Alega, por fim o Recorrente, a título subsidiário, para a hipótese de se entender que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da presente acção que a mesma é da competência da secção de família e menores do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Argumenta, para tanto, que no caso concreto, a matéria em causa nos autos refere-se a um bem comum que, de acordo os Tribunais Espanhóis e segundo a própria causa de pedir, faz parte de um inventário conjugal e que, por isso mesmo, a situação em causa é da competência da secção de família e menores do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

 Termos em que requerer a absolvição do Recorrente da instância por incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 96.º e 99.º do CPC.
4.2.- O artigo 122.º da Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto, que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário (doravante “LOSJ”), no que concerne à competência relativa ao estado civil das pessoas e família, dispõe[12]:

«1– Compete às secções de família e menores preparar e julgar:
a)- Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b)- Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c)- Acções de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d)- Acções de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e)- Acções intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966;
f)- Acções e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g)- Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família.
2– As secções de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos».

É tradicionalmente entendido como acções que versam sobre o estado das pessoas, as acções de interdição e de inabilitação – cfr. José A. Dos Reis, in Comentário ao Cód. de Proc. Civil, vol. 3º, pág. 625; Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, 5ª ed. pág. 53; Lebre de Freitas, in Cód. de Proc. Civil, anotado, vol. I, pág. 552 e Jacinto Rodrigues Bastos, in Notas ao Cód. de Proc. Civil, vol. II, pág. 96 da 3ª ed.

Ana Prata, in “Dicionário Jurídico”, pág. 509/510, define estado civil, como “uma situação integrada pelo conjunto das qualidades definidoras do estado pessoal que constam obrigatoriamente de registo civil, sendo o estado pessoal a situação jurídica da pessoa, no que toca, entre outras, à idade (menoridade, maioridade, emancipação), relações familiares (casado, solteiro, divorciado, viúvo), relações com o Estado (nacional, estrangeiro, naturalizado, etc.), à situação jurídica (interdito, inabilitado)”.
Por outro lado, Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 96 da 5ª ed., define esse mesmo conceito como a expressão da condição jurídica da pessoa, enquanto maior ou menor, capaz ou incapaz.

Para Neves Ribeiro, in “O Estado nos Tribunais”, 2ª ed. , 1994, pág. 205, as ações sobre o estado das pessoas pressupõem um facto registado, que tem subjacente uma declaração de vontade capaz de ter eficácia modificativa, extintiva ou constitutiva de estado civil.

E o assento n.º 1/92, Diário da República, n.º 134, de 11/06/1996, pág. 2794 entende as acções sobre o estado das pessoas como aquelas cuja procedência se projecta sobre o estado civil de alguém – divórcio, separação de pessoas e bens, investigação de paternidade, impugnação de legitimidade, interdição, impugnação de impedimentos para o casamento, autorização para o casamento (…).

Não estando, claramente, em causa uma acção sobre o estado das pessoas, vejamos se a situação dos autos cai no âmbito do n.º 2 do artigo 122º da LOSJ, a que se faz referência na decisão recorrida para logo se afastar a sua aplicação ao caso, por o inventário para partilha dos bens do casal dissolvido (Recorrente e Recorrida) correr termos nos Tribunais Espanhóis.

No n.º 2 do artigo 122º do LOSJ desenvolveu-se uma particular competência para os tribunais de família e menores, contemplada de forma mais restrita no regime anterior (alínea d) do n.º 1): “Inventários requeridos na sequência de acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, bem como os procedimentos cautelares com aqueles relacionados” para que, a competência das secções de família e menores passasse a abranger, ainda, os casos em que a lei confere competência aos tribunais na generalidade dos processos de inventário na sequência de separação judicial de pessoas e bens ou só de bens, bem como na seguimento da dissolução do casamento, em qualquer das suas modalidades.

Acontece que no caso que nos ocupa, os processos de divórcio e de formação de inventário correram termos nos Tribunais Espanhóis e que no âmbito deste segundo processo este foro não conheceu do pedido de administração do bem em causa (ali considerado bem comum do casal, por decisão transitada em julgado).

Ora, tendo o processo de inventário sido proposto em Espanha, parece-nos, tal como considerou a 1ª Instância,  que a referida norma (n.º 2 do art.º 122.º da LOSJ) não tem aplicação ao caso, caindo a situação sub judice na alçada dos tribunais comuns, que têm competência residual para todos nos casos que não sejam da competência especializada de determinada categoria de tribunais.

5.– Em conclusão: o Juízo Central Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa, é internacionalmente competente e em razão da matéria para dirimir o presente litígio (artigos 62.º, alíneas a) e b), 2ª parte e 80.º do CPC e 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ).

6.– Consequentemente, improcede a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida, ainda que com base em diferentes fundamentos.

IV–Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente e manter a decisão recorrida, embora com diferentes fundamentos.
*
Custas pelo Recorrente - artigo 527º do Código de Processo Civil.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 24 de Maio de 2018



Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho              
Maria Manuela Gomes



[1]O processo corre termos pelo Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juiz 10.
[2]Que se transcrevem na íntegra e com respeito pelo texto original, salvo quanto a lapsos de escrita evidentes e ortografia.
[3]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil. Almedina, 2017, 4ª edição revista, pág. 109.
[4]A sua aquisição para os autos resulta de acordo das partes e prova documental.
[5]Cfr. Acção Declarativa à Luz do Código Revisto,Coimbra Editora, 2007, p. 173.
[6]Obra citada, p. 174.
[7]Cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal da Justiça da União Europeia de 8.09.2010, no processo C-409/06 (Winner Wetten GmbH contra Bürgermeisterin der Stadt Bergheim), publicado na Colectânea de Jurisprudência 2010-I-08015.
[8]Este instrumento de direito europeu, em matéria de competência internacional, em especial os considerandos (3), (24), (34) e os artigos 3º, n.º 1, alínea a) e 5.º do Regulamento, apesar de aplicável apenas a partir de 29 de Janeiro de 2019, aporta um forte contributo à compreensão da matéria em discussão no presente recurso de apelação.
[9]Na Convenção de Bruxelas a expressão utilizada era “regimes matrimoniais”, o equivalente à expressão “regime de bens de casamento” que passou a constar, em substituição daquela, do Regulamento (EU) n.º 1215/2012.
[10]A que alude o Recorrente na 17ª conclusão.
[11]Neste processo, citado pelo Recorrente, estava em causa a partilha de um veículo automóvel na sequência da dissolução do casamento entre as partes.
[12]Na versão originária, vigente à data da propositura da acção.