Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10523/19.2T8LSB.L1-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO CASAL
ARROLAMENTO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O Juízo de Família e Menores é o tribunal competente para um procedimento cautelar de arrolamento que é dependência de processo de inventário subsequente ao divórcio, que corre termos no notário com vista à partilha dos bens comuns do casal, sendo requerido o arrolamento de um bem que naquele processo foi indicado como bem comum a partilhar, que a Requerente invoca ser bem comum.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. Relatório
Vem MB… intentar procedimento cautelar de arrolamento no Juízo de Família e Menores de Lisboa, contra AI…, pedindo que seja arrolado o imóvel que identifica.
Alega, em síntese, para fundamentar o seu pedido, que a presente providência é dependente de processo de inventário que corre termos em Cartório Notarial, com vista à separação dos bens comuns do casal formado pela Requerente e pela Requerida, já tendo sido dissolvido o casamento por sentença proferida em processo de divórcio que correu termos. Refere que o imóvel em questão integra a relação de bens comuns a partilhar, tendo a Requerente tomado conhecimento de que a Requerida pretende proceder à sua venda, já tendo contactado uma imobiliária para o efeito, antecipando-se a uma decisão judicial sobre a titularidade e partilha do bem, receando a Requerente que a mesma venha a locupletar-se com a totalidade do produto da venda. Mais alega que se trata de um imóvel que foi adquirido com o produto da venda de um outro imóvel que era bem comum por ter sido adquirido na constância do matrimónio.
Citada, a Requerida veio deduzir oposição, começando por suscitar a incompetência do tribunal em razão da matéria e a ilegitimidade da Requerente, impugnando os factos alegados e referindo que o imóvel em causa é um bem próprio seu, por ter sido adquirido depois da dissolução do casamento. Conclui pela sua absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, pela improcedência do pedido.
A Requerente veio responder defendendo a improcedência das exceções suscitadas, resposta que foi admitida pelo tribunal por se destinar ao exercício do contraditório sobre as exceções invocadas,
Foi proferido despacho, que julgou procedente a exceção dilatória da incompetência do tribunal, com o seguinte teor:
“As secções de família e menores são competentes, em razão da matéria, para apreciar e decidir os procedimentos cautelares que sejam preliminares ou incidentes das acções, para as quais são, materialmente, competentes.
In casu, temos que, não obstante alegue que o presente arrolamento se deve ter por incidente de um processo de inventário pendente, certo é que, como bem salienta a requerida, o bem imóvel que se pretende ver arrolado não é um bem comum do extinto casal que as partes formaram e, como assim é, não poderemos concluir pela existência de uma tal relação de dependência/instrumentalidade, já que o inventário em causa tem em vista, justamente, a partilha dos bens comuns.
Atente-se que o bem em causa não é comum porquanto, conforme resulta da análise das certidões juntas aos autos, foi um bem adquirido, somente, pela requerida em data posterior à data à qual, por força do decidido na sentença que o decretou, nos termos previstos no artigo 1789.º, número 2, do Código Civil, retroagiu, para efeitos patrimoniais, o divórcio.
A retroacção de tais efeitos implica, justamente (e como ficou decidido nessa outra acção que corre termos entre as mesmas partes, na Instância Central Cível), que compõem o património comum do extinto casal – e, como assim é, serão objecto de partilha – os bens existentes no seu património à data da separação, o que não sucede no caso do bem imóvel cujo arrolamento se requer.
Isto significa que não é, de facto, materialmente competente este Juízo de Família e Menores de Lisboa para apreciar e decidir o procedimento cautelar de arrolamento instaurado, o que declaro, absolvendo a requerida, AI…, da instância, nos termos previstos nos artigos 122.º da LOSJ e 96.º, alínea a), 97.º, número 2, 98.º, 99.º, 576.º, números 1 e 2, e 577.º, alínea a), do Código de Processo Civil.”
É com esta decisão que a Requerente não se conforma e dela vem interpor recurso, pedindo a sua revogação e substituição por outra que considere o tribunal materialmente incompetente para a acção, apresentando, para o efeito, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A)Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nestes autos, em 19 de Agosto de 2019, através da qual se decidiu que “(não é, de facto, materialmente competente este Juízo de Família e Menores de Lisboa para apreciar e decidir o procedimento cautelar de arrolamento instaurado, o que declaro, absolvendo a requerida, AI…, da instância (…).”
B) Salvo o devido respeito entende a Recorrente que, na decisão recorrida, o Tribunal a quo não fez uma correcta aplicação do Direito, ao ter assim decidido e, com os fundamentos ali enunciados, em violação dos artigos 65.º, 403.º e seguintes do CPC, que do art.º 122.º, n.º 2 da LOSJ.
C) Na sequência do divórcio decretado entre Recorrida e Recorrente, corre termos, no Cartório Notarial PN… o processo de inventário n.º …/…, com vista à partilha dos bens comuns do dissolvido casal (Recorrente e Recorrida).
D) O bem imóvel objecto dos presentes autos consta da relação de bens comuns do processo de inventário (verba 18, do activo, bens imóveis).
E) Corre termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Instância Central, Secção Cível – J…, sob o Processo n.º …/…, uma acção de simples apreciação, com vista a apreciar a titularidade do bem imóvel em questão, sem que atá ao momento tenha transitado em julgado qualquer decisão ali proferida.
F) O imóvel sub judice foi adquirido com dinheiro do dissolvido casal – verba três do activo, direitos de crédito, da relação de bens que integra o processo de inventário – designadamente, com o produto da venda (em Julho de 2015) do bem comum do (então) casal, a fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente ao … andar direito, destinada a habitação do prédio urbano sito em S. Paulo, Marquês de Pombal, Calçada …, n.ºs …. …, … e …ª, freguesia de S. Paulo, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número … da freguesia de S. Paulo, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de S. Paulo (Extinta). (Cfr. Doc. n.º 5 junto com a PI).
G) O contrato promessa de compra e venda do imóvel foi celebrado na constância do matrimónio, em 25 de Junho de 2015, por Recorrente e Recorrida.
H) O referido contrato promessa foi aditado, através de documento escrito, igualmente, outorgado por Recorrente e Recorrida que ali intervieram AMBAS na qualidade de promitentes compradoras, em 26 de Junho de 2015. (Cr. Doc. n.º 1 junto aos autos com o requerimento de 08 de Julho de 2019).
I) Os pagamentos quer do sinal, quer do reforço de sinal, foram feitos com dinheiros comuns das partes e em duas tranches, também durante a constância do matrimónio.
J) Atento o anúncio de venda, a Recorrente tem justo e fundado receio que a Recorrida venda o imóvel em questão.
K) A presente providência cautelar é dependente do processo de inventário n.º …/…, que corre termos, no Cartório Notarial PN…, sendo deste processo seu incidente, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 403.º e seguintes, do CPC.
L) A aferição da propriedade do bem objecto dos presentes autos não fica resolvida com a factualidade que dá conta que o mesmo foi adquirido em data posterior ao divórcio entre Recorrente e Recorrida.
M) Impunha-se ao Tribunal a quo, preliminarmente apurar, nomeadamente, da existência de indícios de que o produto monetário utilizado nessa compra resultou, ou não, de dinheiro do (dissolvido) casal.
N) A Recorrente fez prova sólida e bastante do direito relativo aos bens.
O) A tese de que a aquisição pela Recorrida ocorreu em data posterior àquela que foi fixada para efeitos patrimoniais do divórcio entretanto decretado, peca, salvo o devido respeito, por não ter sustentáculo quer de facto, quer de Direito.
P) Pese embora toda a prova documental carreada para os autos, o Tribunal a quo ignorou por um lado, que se trata de um bem que integra a relação dos bens dos autos de inventário e, por outro lado, ignorou ainda o Tribunal a quo os indícios de que se trata de bem comum, litigioso, porquanto adquiridos com dinheiros comuns do dissolvido casal.
Q) Encontrando-se pendente processo de inventário para partilha de bens comuns do extinto casal, assiste à Recorrente legitimidade para requerer o presente procedimento cautelar de arrolamento. Como incidente do processo de inventário, tendo em conta a utilidade de que daí resultará para efeitos de especificação dos bens comuna a partilhar e/ou prova de titularidade dos direitos relativos a esses mesmos bens (art.º 403.º n.º 2, do CPC).
R) A Recorrente provou que há séria probabilidade do bem a arrolar ser comum.
S) Por outro lado, os juízos especializados de Família e Menores são os tribunais materialmente competentes para julgar os procedimentos cautelares que sejam incidentais dos processos de inventário instaurados na sequência de separação de divórcio (cfr. Artigo 122.º n.º 2, da LOSJ).
T) Pelo exposto supra, o Tribunal a quo mostra-se competente, em razão da matéria, para apreciação destes autos cautelares, atenta a decisão recorrida, proferida em violação quer dos artigos 65.º, 403.º e seguintes do CPC, quer do artigo 122.º, n.º 2 da LOSJ.
A Requerida veio responder ao recurso pugnando pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.
II. Questões a decidir
A questão a decidir, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do C.P.C.- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine é apenas uma:
- da (in)competência do tribunal em razão da matéria;
III. Fundamentos de Facto
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito
- da (in)competência do tribunal em razão da matéria
Insurge-se a Recorrente contra a decisão do tribunal a quo que concluiu pela sua incompetência em razão da matéria para a tramitação do presente procedimento de arrolamento.
A decisão recorrida considerou que o bem que se pretende ver arrolado não é um bem comum do extinto casal, não obstante o pedido de arrolamento seja indicado como incidente de processo de inventário pendente, concluindo que o Tribunal de Família e Menores não é materialmente competente para o apreciar.
É pacífico que para se aferir da competência do tribunal em razão da matéria há que ter em conta o pedido e a causa de pedir em que aquele se funda, atendendo à relação material controvertida tal como ela é apresentada pelo autor e ao pedido que dela decorre. Vd. neste sentido, Manuel de Andrade, in. Noções Elementares de Processo Civil, pág. 91.
Tal como nos diz o Acórdão do STJ de 12/02/2009 no proc. 09A0078 in www.dgsi.pt : “A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns”
Como é sabido, os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual, conforme previsão do art.º 40.º da Lei 62/2013 de 26 de agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário - e art.º 64.º do C.P.C. ao disporem que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Este princípio é aliás, desde logo, expresso no art.º 211.º n.º 1 da CRP que dispõe: “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
O art.º 65.º do CPC remete para as leis de organização judiciária a determinação das causas que são da competência dos tribunais e secções dotados de competência especializada.
A Lei 62/2013 de 26 de agosto – LOSJ - vem na subsecção IV nos art.º 122.º a 124.º regular sobre a competência dos juízos de família e menores.
No art.º 122.º é fixada a competência destes juízos quanto a matérias relacionadas com o estado civil das pessoas e família, sendo contempladas no n.º 1 deste artigo diversas ações que compete a estes juízos preparar e julgar; acrescenta o n.º 2: “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”  
O procedimento cautelar de arrolamento vem previsto nos art.º 403.º ss. do CPC, e como é regra nos procedimentos cautelares, é dependente da causa que tenha por fundamento o direito que se pretende acautelar, tal como dispõe o art.º 364.º n.º 1 do CPC para as providências cautelares não especificadas e é expressamente estabelecido para o arrolamento no art.º 403.º n.º 2 que refere: “O arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.”
De acordo com a Lei 23/2003 de 5 de março que instituiu o regime jurídico do processo de inventário, é no âmbito de tal processo que, em regra, devem ser decididas as divergências dos interessados relativas à relação de bens apresentada, nos termos dos art.º 32.º ss. de tal diploma, não obstante o notário, por sua iniciativa ou a requerimentos das partes possa remetê-las para os meios comuns, conforme previsto nos art.º 16.º e 36.º, regulando este último:
“1- Quando a complexidade da matéria de facto ou de direito tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o notário abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios judiciais comuns.
2 - No caso previsto no número anterior, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu.
3 - Pode ainda o notário, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às ações competentes, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 17.º”
No caso, não é referido que foi determinado pelo notário no âmbito do inventário em questão remeter as partes para os meios comuns, com vista à decisão sobre o direito de propriedade do imóvel em causa.
A Requerente vem propor a providência de arrolamento de um bem imóvel que alega ser bem comum do casal agora divorciado, visando acautelar a dissipação de tal bem de que também se arroga titular e que, segundo indica, está relacionado como bem comum no âmbito do processo de inventário para separação dos bens comuns do casal que corre termos no notário.
Como se referiu e é pacífico, a competência do tribunal tem de ser avaliada à luz dos termos em que a Requerente configura a ação – do pedido e da causa de pedir por ela apresentados no requerimento inicial.

A decisão recorrida, em lugar de se ater ao pedido e à causa de pedir indicados pela Requerente, para apreciar previamente do pressuposto processual que é a competência do tribunal, pronunciou-se sobre o mérito da providência ao decidir que o bem que se pretende arrolar não é bem comum do casal.
Ora, o reconhecimento ou não do direito da Requerente não interfere com a determinação da competência do tribunal, mas antes com a verificação ou não dos requisitos necessários ao decretamento da providência e por isso com o conhecimento do mérito do pedido, competindo à Requerente fazer a prova do direito que alega ter relativamente ao bem cujo arrolamento requer.
Nestes termos e tendo em conta que estamos perante um procedimento cautelar de arrolamento que é dependência do processo de inventário subsequente ao divórcio, que corre termos com vista à partilha dos bens comuns do casal, e sendo requerido o arrolamento de um bem que naquele processo foi indicado como bem comum a partilhar, que a Requerente invoca ser bem comum, já se vê que, competindo aos juízos de família e menores exercer a competência conferida aos tribunais nestes processos de inventário específicos, é o juízo de família e menores o competente para conhecer da presente providência de arrolamento intentada.
Impõe-se a revogação da decisão proferida, reconhecendo-se a competência do juízo de família e menores para tramitar e decidir a presente providência.

V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se o presente recurso interposto pela Requerente procedente, revogando-se a decisão recorrida que se substitui por outra que considera o juízo de família e menores competente em razão da matéria para apreciar e decidir a presente providência.
Custas pela Recorrida.
Notifique.
                                       *
Lisboa, 24 de outubro de 2019
Inês Moura (relatora)
Laurina Gemas (1ª adjunta)
Gabriela Cunha Rodrigues (2ª adjunta)
(assinado eletronicamente)