Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1670/09.0YRLSB-9
Relator: GUILHERMINA FREITAS
Descritores: CONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
JOGO DE FORTUNA E AZAR
PROCESSO SUMÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Na tensão dialéctica entre a liberdade e a segurança o conceito constitucional de forças de segurança não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artº 27.º, n.º 1, da C.R.P.)
A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) foi criada pelo DL n.º DL 237/2005, de 30 de Dezembro. Subsequentemente, o DL nº 274/2007, de 30 de Julho aprovou a orgânica da ASAE, mantendo as atribuições gerais inicialmente previstas para esta autoridade.
Entre as atribuições gerais previstas no primeiro diploma não se previam, todavia, as competências actualmente contempladas nas als. z) a ab) do artº 3.º, nº 2, do DL nº 274/2007.
As novidades constantes do DL nº 274/2007 contemplam a atribuição de poderes de órgão e autoridade de polícia criminal, decorrente do artº 15º e a concessão do direito de uso e porte de arma ao pessoal de inspecção da ASAE contemplado no artº 16.º, do DL n.º 274/2007.
II - A actuação da ASAE, no âmbito das referidas atribuições, enquadra-se no conceito constitucional de “forças de segurança” a que se refere a al. u) do artº 164º da CRP e, nessa medida, os arts. 3º, al. aa) e 15º, do Dec. Lei nº 274/2007, de 30/7 enfermam de inconstitucionalidade orgânica, por violação de reserva de lei da Assembleia da República.
III - O artº 381.º, nº 1 do CPP prevê as situações em que há lugar a julgamento em processo sumário. Considerando a inconstitucionalidade orgânica acima afirmada, nenhuma das previsões ali em referência cobre a situação dos autos. E sendo assim, manifesto é que o julgamento em processo sumário realizado importou a nulidade insanável estabelecida no artº 119.º, al. f) do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório

1. No âmbito do Proc. 31/08.2ECLSB do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Loures, foi submetido a julgamento, em processo sumário, o arguido J…, acusado da prática, em autoria material, de um crime de exploração ilícita de jogo p.p. nos termos dos art.º 108º nº 1 do Decreto-lei nº 422/89 de 2 de Dezembro, com referência ao artºs 1º e 4º nº 1 al. g) do mesmo diploma, na redacção dada pelo Decreto-lei nº 10/95 de 19 de Janeiro.
2. Realizado o julgamento veio o mesmo a ser condenado pela prática do referenciado crime na pena de 180 dias de prisão, substituídos por igual número de dias de multa, à taxa diária de € 15,00, e em 50 dias de multa à mesma taxa, o que perfaz a multa global de € 3450 (três mil, quatrocentos e cinquenta euros) a que correspondem 213 dias de prisão.
3. O arguido apresentou recurso desta decisão.
4. O MºPº na 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
5. O recurso foi admitido por despacho de fls. 111 dos autos.
6. Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve proceder.
7. Cumprido o disposto no nº 2 do artº 417º, o arguido nada disse.
8. No exame preliminar o, então, relator proferiu despacho, ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 417º do C.P.Penal, a convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso, convite esse que foi aceite, conforme resulta de fls. 130 dos autos.
9. Assim, da motivação do recurso, extrai o arguido as (novas) conclusões que, de seguida, se transcrevem:
a) O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito, não obstante a verificação dos vícios das als. a) e b) do nº 2 e do art.° 410.° do CPP, vícios estes resultante do texto da sentença recorrida;
b) A sentença recorrida dá como provado que o recorrente tinha em cima do balcão no momento da fiscalização um jogo de fortuna ou azar e fundamenta que as testemunhas referiram à data da fiscalização que o argido se identificou como explorador do estabelecimento, sendo que tais declarações não tem valor de prova, por carecerem de conhecimento pessoal e directo de tais factos (n.°s 3, 10 e 11 dos factos provados);
c) A sentença recorrida não dá como provado, claramente e sem margem para dúvidas, que o recorrente fosse o explorador do estabelecimento e em consequência da máquina em causa ou que desenvolvesse qualquer função relacionada com o mesmo (estabelecimento) ou com a mesma (máquina);
d) Do texto da sentença recorrida resultam os vícios constantes als. a) e b) do n.° 2 do art.° 410.° do CPP;
e) A sentença recorrida violou o art.º 108.°, n.°s 1 e 2 do DL 422/89; 127.° do CPP e art.° 374° do CPP.
f) Foram igualmente violados os princípios da presunção de inocência do recorrente a o in dúbio pro reo, pois sem prova cabal e que a tal decisão conduza, decide-se condenar o recorrente pela prática do crime de que vem acusado, fundamentando-se inclusivamente a decisão de facto em contradição com essa mesma decisão de facto, num ponto de facto essencial para toda a decisão recorrida, pois não se dá como provado que à data da fiscalização o arguido fosse o explorador do estabelecimento e da máquina em causa, porque o que o recorrente alega e defende quanto à revogação da sentença recorrida pela verificação dos vícios do n.° 2 do art.° 410.° do CPP, decorre tão somente do texto da decisão recorrida.
g) E nem sequer o reenvio para novo julgamento resolverá o problema da falta de prova patente no texto da decisão recorrida, pois o que as testemunhas irão novamente dizer será certamente o que já disseram na l.ª audiência de julgamento, impondo-se a absolvição do recorrente.
O recorrente conclui como nas motivações apresentadas.
10. Notificada a Digna Procuradora Geral Adjunta das novas conclusões apresentadas pelo recorrente, renovou o parecer outrora emitido no sentido da improcedência do recurso.
11. Em 8/9/2009, através do requerimento de fls.134 a 137, dirigido a este Tribunal da Relação, veio o recorrente arguir a nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal, suscitando a inconstitucionalidade orgânica da al. aa) do artº 3º e artº 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP, pedindo que seja declarado nulo todo o processado, extraindo-se da nulidade a declarar as legais consequências.
12. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (artº 410º nº 2 e 3 do C.P.Penal).
Assim sendo, as questões a apreciar por este Tribunal ad quem, de acordo com as conclusões do recorrente, são:
- vícios do artº 410º nº 2 al. a) e b) do C.P.Penal;
- a violação do disposto nos artºs 108º nºs 1 e 2 do Dec. Lei 422/89 de 2/12 e 127º e 374º, estes do C.P.Penal.
Previamente, porém, será apreciada a questão suscitada no requerimento autónomo de fls.134 a 137, apresentado pelo recorrente em 8/9/2009, a saber, a da invocada nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal decorrente da inconstitucionalidade orgânica dos artºs 3º al. aa) e 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP, uma vez que, a proceder tal questão, fica prejudicado o conhecimento das restantes.
2. A decisão recorrida
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
“1. Pelas 15.00 horas do dia 29 de Janeiro de 2008, no Café “A …”, sito na Rua…, nº … na Bobadela, área desta comarca de Loures, o arguido J…, possuía sobre o balcão daquele estabelecimento comercial de sua pertença, uma máquina electrónica tipo roleta, ligada à corrente eléctrica e pronta a jogar.
2. Tal máquina aceita moedas de 50 cêntimos, de 1 ou 2 euros e após a respectiva inserção em ranhura a esse efeito destinada desenvolve um jogo que consiste em disparar um ponto luminoso que percorre vários orifícios existentes no respectivo mostrador, que ilumina à sua passagem, até que se fixa aleatoriamente num deles.
3. Aqui, se o orifício onde a luz se fixou corresponde a um dos números do mostrador designadamente 1, 2, 10, 50, 100, 200, o jogador terá direito a igual número de euros por cada ponto corresponder a um euro.
4. Se o orifício onde a luz se fixou é algum dos demais – sem referência a pontos – o jogador nada ganha;
5. Por esta forma a máquina desenvolve um jogo de fortuna ou azar uma vez que desenvolve o tema próprio do jogo da roleta, pagando prémios em dinheiro, por resultado totalmente dependente da sorte, não carecendo de qualquer perícia ou destreza do jogador.
6. O arguido conhecia o funcionamento do jogo desenvolvido pela máquina que detinha, a qual tinha, em adequado moedeiro o montante de € 6, e que do funcionamento desta o próprio arguido pagava prémios em dinheiro, por conversão dos pontos obtidos pelo jogador e que não tinha autorização para a sua exploração.
7. Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que tal conduta lhe era vedada por lei.
8. Para além da exploração do café “A …”, com os inerentes proventos financeiros, e da ausência de antecedentes criminais, desconhecem-se outras condições de vida do arguido, o qual habita um bairro onde são modestas as condições de vida dos habitantes e frequentadores do café.”
Quanto aos factos não provados consignou-se:
“Não há factos não provados.”
Relativamente à fundamentação da decisão de facto, ficou expresso:
“O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base no auto de notícia, no CRC e nos depoimentos de A… e de B… , inspectores da ASAE que após denúncia anónima sobre a existência de uma máquina de jogo no café da arguida aí se deslocaram, confirmaram a denúncia encontrando a máquina apreendida, a qual, como tantas outras que já apreenderam e postas em exploração à disposição do público, apenas aceita moedas de uso corrente iguais ou superiores a 50 cêntimos, resultando da sua utilização o pagamento de um prémio exclusivamente em dinheiro, não existindo qualquer outra contrapartida, factos que apesar de já os conhecerem também lhes foram relatados pelo arguido alegando-lhes este desconhecer ser crime, embora soubesse ser ilegal a exploração da máquina.
A clareza, certeza e serenidade dos depoimentos prestados não permitem ajuizar de forma que não seja a de se confirmar a matéria da acusação, designadamente estar-se perante pessoa dotada de inteligência e sabedora das regras da vida em sociedade e das consequências para quem não as cumpre.”
No que concerne à fundamentação de direito escreveu-se:
“O arguido vem acusado da prática, em autoria material de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido nos termos do art.º 108º nº 1, do Decreto-lei nº 422/89 de 2 de Dezembro, com referência aos artigos 1º e 4º nº 1 al. g) do mesmo diploma, na redacção dada pelo Decreto-lei nº 10/95 de 19 de Janeiro.
Dispõe o artº 108º nº 1 que “Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até dois anos e multa até 200 dias.
Dispõe por sua vez o nº 2 que “será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade explorador.
De acordo com o artigo 1º “Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.
A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6º a 8º, é o que dispõe o artº 3º , dedicando-se o Artigo 4.º a elencar, exemplificadamente, os “Tipos de jogos de fortuna ou azar”
1 - Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a) Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero;
b) Jogos bancados em bancas simples: black-jack/21, chukluck e trinta e quarenta;
c) Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps;
d) Jogo bancado: keno;
e) Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo;
f) Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
2 - É permitido às concessionárias adoptar indiferentemente bancas simples ou duplas para a prática de qualquer dos jogos bancados referidos na alínea a) do n.º 1 deste artigo.
3 - Compete ao membro do Governo da tutela autorizar a exploração de novos tipos de jogos de fortuna ou azar, a requerimento das concessionárias e após parecer da Inspecção-Geral de Jogos.

Dos “tipos de jogos de fortuna ou azar” previstos no artigo 4º, cuja exploração é autorizada nos casinos constam na alínea g) o tipo de “Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.

A esta luz impõe-se concluir que os factos provados consubstanciam o cometimento pelo arguido dos pressupostos objectivos – exploração sem autorização de jogos dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte - e subjectivos (conhecimento, liberdade e vontade) do imputado crime de jogo ilegal, por a conduta estar abrangida na norma incriminatória - artº 108 nº 1 -.

***
Constatado o cometimento dos factos crime e a susceptibilidade da punição impõe-se proceder à escolha e determinação da medida pena
Da escolha da pena.
Relativamente à escolha da pena aplicável, muito embora as normas acima citadas prevejam, cumulativamente a pena de prisão e a pena de multa, não se justifica no caso concreto a imposição da pena de prisão, aparentemente o arguido está socialmente inserido, não tem antecedentes criminais, e o delito em si não representa do ponto de vista do meio em que o arguido se insere um foco de alarme, instabilidade ou insegurança social, sendo a pena de multa suficiente para realizar de forma adequada as finalidades da punição, podendo à mesma associar-se com vantagem a sempre almejada prevenção geral.
A pena a impor será a de multa parte resultante da conversão e parte da previsão.
***
Da medida da pena
Resta-nos, pois, determinar a medida concreta da pena, dentro da respectiva moldura penal abstracta – prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
Nos termos do artigo 71º do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências da prevenção (geral e especial), devendo atender-se a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente.
Quanto ao grau de ilicitude do facto, resultante da máquina que detinha tem-se por elevado dentro do respectivo tipo.
O dolo é o directo.
As necessidades de prevenção geral são elevadas, atendendo ao conjunto de interesses sociais, administrativos, penais e tributários salvaguardados pela lei do jogo.
O arguido não confessou os factos cuja censura merece.
Aparenta ser de boa condição económica e social.

Assim, atendendo-se à moldura da pena prevista para o crime em causa, e aos factores acima descritos, entende-se adequada a pena de 180 dias de prisão substituídos por igual número de dias de multa e a de 50 dias de multa.

Quanto à fixação da quantia correspondente a cada dia de multa, a mesma deverá ser fixada entre € 5 e € 500, atendendo à situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais - artigo 47º, nº2 do Código Penal.
No caso concreto, face à aparência da situação económica concreta do arguido, à motivação do enriquecimento fácil e cómodo associado ao jogo, deve a multa afastar-se do limite mínimo por fora a ser fortemente dissuasora quer para o arguido quer para eventuais interessados em defraudarem as legítimas expectativas associadas ao jogo legal, entendendo-se adequado fixá-la no triplo do mínimo, sendo assim fixada em € 15,00 a taxa diária.”
3. Analisando
A questão prévia suscitada pelo recorrente no requerimento autónomo de fls. 134 a 137, a saber, a nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal decorrente da inconstitucionalidade orgânica dos artºs 3º al. aa) e 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP
Alega o arguido/recorrente que as normas constantes dos artºs 3º al. aa) e 15º do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, diploma que cria a ASAE, são organicamente inconstitucionais, pois violam a al. u) do artº 164º da CRP, na medida em que criam um órgão de polícia criminal com competências próprias para inclusivamente deter cidadãos e lavrar autos de notícia, como foi o caso dos autos, sendo tal matéria da competência absoluta da Assembleia da República.
Mais alega, que os inspectores da ASAE que lavraram o auto de notícia que deu origem aos autos, não o poderiam ter feito, por não terem poderes como órgão de polícia criminal, atenta a inconstitucionalidade das normas supra referidas.
Alega, ainda, o arguido/recorrente, que não poderiam tais inspectores ter procedido à elaboração do auto de notícia, nem poderiam tê-lo sujeitado a prestação de TIR, nem tê-lo detido, nem sequer o Tribunal a quo poderia ter optado pela forma de processo sumário, tendo ocorrido, dessa forma, desde o início dos autos, a nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal.
Vejamos.
Com o Dec. Lei 274/2007 de 30/7, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, abreviadamente designada por ASAE (a qual foi criada pelo Dec. Lei 237/2005 de 30/12), viu as suas atribuições alargadas, competindo-lhe, nos termos do disposto no nº 2 do artº 3º daquele diploma legal, entre outras, as seguintes:
aa) Desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal, I.P.;
ab) Colaborar com as autoridades judiciárias nos termos do disposto no Código de Processo Penal, procedendo à investigação dos crimes cuja competência lhe esteja especificamente atribuída por lei.
Por sua vez, o artº 15º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Órgão de polícia criminal” veio estabelecer o seguinte:
1- A ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
2- São autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos no Código de Processo Penal:
a) O inspector-geral
b) Os subinspectores-gerais;
c) Os directores regionais, designados por inspectores-directores;
d) O director de serviço de planeamento e controlo operacional e os inspectores-chefes;
e) Os chefes de equipas multidisciplinares.
E no artº 16º do mesmo Dec. Lei atribui-se o direito ao pessoal de inspecção e dirigentes dos serviços de inspecção da ASAE de possuírem e usarem arma de todas as classes previstas na Lei nº 5/2006 de 23/2, com excepção da classe A, distribuídas pelo Estado, com dispensa da respectiva licença de uso e porte de arma, valendo como tal o respectivo cartão de identificação profissional.
Ora, de acordo com o disposto na al. u) do artº 164º da CRP é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o “Regime das forças de segurança”.
Por seu turno, o artº 272º da CRP sob a epígrafe “Polícia” preceitua:
1. A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.
2. As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário.
3. A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
4. A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional.
A propósito da apreciação de um pedido de fiscalização de constitucionalidade relativo ao Decreto nº 204/X, da Assembleia da República, o qual aprova uma nova orgânica da Polícia Judiciária, refere o Tribunal Constitucional no Ac. nº 304/2008 de 30/5/2008 que “o regime das forças de segurança mereceu uma especial atenção do legislador constitucional devido, por um lado, ao papel fundamental que elas desempenham na garantia de funcionamento da vida em sociedade num Estado de direito e, por outro lado, à possibilidade de afectação dos direitos e liberdades dos cidadãos que pode resultar da sua actividade. Se aquele interesse reclama operacionalidade e eficácia das forças de segurança, o segundo exige que a lei conforme a sua actividade de modo a que não se possam verificar restrições desproporcionadas àqueles direitos e liberdades. Foi a procura da garantia da obtenção de um ponto de equilíbrio entre estes dois interesses, mesmo que cintilante e precário, por força da pressão de temores sociais com sentidos opostos, que motivou o legislador constitucional a consagrar especiais exigências neste domínio, sobretudo ao nível da definição dos órgãos competentes e da forma dos actos normativos necessários à regulamentação de tal matéria.
O legislador constitucional não ignorou que na tensão dialéctica entre os direitos à liberdade e segurança, consagrados no artº 27º, nº1, da C.R.P., a actividade das forças de segurança interna do Estado desempenha um papel fundamental que justifica especiais preocupações relativamente a outros sectores da Administração Pública.
Sendo esta actividade de elevada importância e risco que está na mira das referidas directrizes constitucionais, o conceito constitucional de “forças de segurança” não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artigo 27º, nº 1, da C.R.P.).”
E, um pouco mais à frente, refere-se, ainda, no mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional que “O”regime das forças de segurança” referido na al. u) do artº 164º, da C.R.P., deve, pois, ser entendido apenas na acepção de regime geral das forças de segurança, o qual contemplará os fins e os princípios que devem nortear as forças de segurança, a previsão dos corpos que as devem compor, o modo de inter-relacionação entre eles, as grandes linhas de regulação destes corpos e os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos.”
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se a actuação da ASAE, no âmbito das atribuições e poderes de autoridade de polícia criminal, que lhe foram conferidos nos artºs 3º alíneas aa) e ab) e 15º do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, e no de órgão de polícia criminal aí consignado, se há-de integrar, ou não, no conceito de “forças de segurança” a que alude a al. u) do artº 164º da CRP, sendo, pois, da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o seu regime.
Parece-nos, salvo o devido respeito por opinião contrária, e à semelhança do que foi entendido no Acórdão desta mesma Relação e Secção, proferido em 25/6/2009, no âmbito do NUIP 358/08.3ECLSB.L1-9, disponível in www.dgsi.pt, que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Como aí se refere, entre os actos de polícia que traduzem restrições de direitos fundamentais assume, desde logo, relevância, a detenção de cidadãos.
Assim, a actuação da ASAE, no âmbito das supra referidas atribuições, enquadra-se no conceito constitucional de “forças de segurança” a que se refere a al. u) do artº 164º da CRP e, nessa medida, os artº 3º als. aa) e ab) e 15º do Dec. Lei 274/2007 de 30/7 enfermam de inconstitucionalidade orgânica, por violação de reserva de lei da Assembleia da República.
E, padecendo tais normas de inconstitucionalidade orgânica, há que extrair as devidas consequências ao nível do direito processual penal.
Reportando-nos à situação do presente recurso.
Na qualidade de órgão de polícia criminal, o Srº Inspector da ASAE que lavrou o auto de notícia de fls. 3 dos autos, procedeu à detenção do arguido/recorrente, em flagrante delito, nos termos do disposto nos artºs 255º nº 1 al. a) e 256º nº 1 do C.P.Penal, constituiu-o arguido, sujeitou-o a termo de identidade e residência, procedeu à sua libertação, decorrida uma hora após a detenção, e notificou-o nos termos da al. a) do nº 3 do artº 385º do C.P.Penal.
Não fora essa detenção em flagrante delito, os autos não teriam seguido a forma de processo sumário, como seguiram, por não estar preenchido um dos requisitos a que alude o artº 381º do C.P.Penal.
A lei processual penal só permite que a detenção em flagrante delito seja efectuada por qualquer pessoa se não estiver presente qualquer autoridade judiciária ou entidade policial, nem puder ser chamada em tempo útil – alínea b) do nº 1 do artº 255º do C.P.Penal – mas, ainda assim, a pessoa que proceder à detenção terá de entregar de imediato o detido a uma destas entidades, a quem caberá redigir auto sumário de entrega e proceder de acordo com o disposto no artº 259º do C.P.Penal, situação que não ocorreu no caso dos autos.
E não se diga, conforme se refere no supra referido Acórdão desta Relação e Secção “que pelo facto de a actuação da ASAE no âmbito do processo penal se inserir numa actividade de órgão de polícia criminal, esta surgir sempre subordinada à direcção de uma autoridade judiciária. Uma tal afirmação ignoraria todo o campo de actuação cautelar deixado aos órgãos de polícia criminal também no âmbito do inquérito criminal com incidência nos direitos fundamentais dos visados. E é neste ponto que reside, indubitavelmente, a justificação para a imposição de acto legislativo: a essencialidade da matéria a regular traduzida no impacto da actividade policial na esfera da liberdade dos cidadãos.”
Estando ferida de inconstitucionalidade orgânica a norma que atribui poderes de autoridade de polícia criminal à ASAE, sem os quais não poderia esta entidade proceder à detenção do arguido/recorrente da forma como o fez, há que concluir, que a realização do julgamento dos autos, em processo sumário, sem estarem reunidos os respectivos requisitos essenciais, deu lugar à nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal.
No mesmo sentido, que o incumprimento dos requisitos essenciais do processo sumário gera a nulidade insanável prevista na alínea f) do artº 119º do C.P.Penal, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição actualizada, 2008, em anotação ao artº 381º.
Julgando-se procedente a questão suscitada pelo recorrente no requerimento autónomo de fls.134 a 137, relativa à nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal, decorrente da inconstitucionalidade orgânica dos artºs 3º al. aa) e 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP, prejudicado fica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em julgar procedente a questão prévia suscitada pelo recorrente no requerimento de fls. 134 a 137 e, em consequência:
A) Julgar organicamente inconstitucionais os artºs 3º al. aa) e 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP.
B) Declarar nulo o julgamento realizado em processo sumário, revogando-se a sentença recorrida, devendo os autos baixar à 1ª instância onde caberá decidir do destino a dar à notícia da infracção e aos bens apreendidos.
Sem custas.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2009

Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).

Guilhermina Freitas
Calheiros da Gama