Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1589/09.4TMLSB-A.L1-1
Relator: RUI VOUGA
Descritores: INVENTÁRIO
PASSIVO
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR IMPOSSIBILIDADE DA LIDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–  O inventário requerido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1326º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil destina-se, não apenas a partilhar bens, mas a pôr termo à comunhão conjugal, a qual é muito mais abrangente do que mera comunhão de bens.

II–  Assim, a circunstância de o património comum dum ex-casal ser constituído apenas por dívidas, inexistindo qualquer activo, não constitui impedimento a que seja instaurado processo especial de inventário para separação das meações, inexistindo fundamento legal para restringir a aplicação do processo de inventário para partilha aos casos em que haja bens, rectius activo, a partilhar.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível da Relação de Lisboa.


Relatório:


... MARIA DA ...  intentou contra o seu ex-marido JOÃO ... ... ...,  por apenso aos autos de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que correram termos no 3º Juízo de Família e Menores de Lisboa, Inventário para partilha judicial do património comum do ex-casal constituído pela Requerente e pelo Requerido (nos termos do artigo 1404º do Código de Processo Civil de 1961).

A Requerente foi nomeada cabeça de casal (por Despacho datado de 7/03/2014, a folhas 10).

Em 28/03/2014, a Requerente prestou compromisso de honra e declarações de cabeça-de-casal (cfr. Auto de compromisso de honra e declarações de cabeça de casal constante de folhas 13-14).

Em 22/04/2014, a cabeça de casal apresentou um requerimento no qual referiu não existir qualquer activo à data do divórcio (7/11/2011), sendo a relação de bens constituída apenas por passivo (cfr. fls. 6).

Através de requerimento apresentado em 17/11/2014 (a fls. 43), a cabeça-de-casal reiterou ser a relação de bens constituída apenas por passivo, não existindo qualquer activo à data do divórcio (07-11-2011), esclarecendo ainda que não existem créditos da Requerente sobre o Requerido (visto não terem sido pagas, após o divórcio, nenhumas prestações relativas aos empréstimos contraídos junto do BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A.).
A cabeça-de-casal juntou com esse requerimento dois contratos de crédito pessoal dos quais resulta a natureza comum das dívidas contraídas pela Requerente e pelo Requerido junto do BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A..

Em 3/12/2014, o credor BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, SA reclamou a inclusão na relação de bens duma dívida adicional, respeitante ao saldo devedor da conta de depósitos à ordem titulada por Requerente e Requerido, no montante de capital de € 268,96, à data de 25/03/2011, a acrescer às duas dívidas já relacionadas pela cabeça-de-casal (nos montantes de € 13.317,35 e de € 1.352,76).

Em 17/12/2014, a cabeça-de-casal veio aditar à relação de bens uma verba adicional relativa a passivo, correspondente ao saldo devedor da conta de depósitos à ordem titulada por Requerente e Requerido, no montante de capital de € 268,96.

O Requerido foi citado para os termos do inventário e notificado da relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal/Requerente, não tendo deduzido oposição ao inventário, nem reclamado contra a aludida relação de bens.

Por Despacho datado de 7/01/2016, o Tribunal, invocando o disposto no artigo 277.º, al. e), do C.P.C., julgou extinta, por impossibilidade da lide, a presente instância de inventário para partilha dos bens subsequente a divórcio requerida por ... MARIA DA ..., ficando as custas a cargo da requerente (nos termos do artigo 536.º, n,º 3 do C.P.C.).

Inconformada com o assim decidido, a Requerente interpôs recurso do aludido Despacho de 7/01/2016 - que foi recebido como de apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (arts. 644º, nº 1, al. a), 645º, nº 1, al. a), e 647º, nº 1, todos do Novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho) -, tendo extraído das alegações que apresentou as seguintes conclusões:
«I– O inventário requerido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1326º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil destina-se, não apenas a partilhar bens, como foi entendido na aliás douta sentença recorrida, mas a pôr termo à comunhão conjugal, a qual é muito mais abrangente do que mera comunhão de bens
II– A aliás douta sentença recorrida restringe a aplicação do processo de inventário para partilha às casos em que haja bens, rectius activo, a partilhar, restrição que não resulta da lei, assim inobservando o princípio de que ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.
III– O património conjugal abrange mais do que o activo (os bens) pertencentes aos cônjuges, integrando também as responsabilidades de ambos, pelas quais responde em primeiro lugar o património conjugal e subsidiariamente o património de cada um dos cônjuges, na medida da sua respectiva responsabilidade e nos termos do regime de bens aplicável.
IV– O entendimento de que a partilha se destina a partilhar apenas o activo da comunhão conjugal esvaziaria de sentido todas as disposições legais que regulam a comunicabilidade de dívidas entre os cônjuges, designadamente o disposto no art. 1691º, nº 2 do Cód. Civil.
V– A Recorrente vê-se confrontada com a comunhão de patrimónios que perdura para além da extinção da sociedade conjugal, tendo o direito de ver cessada a comunhão conjugal, por via da separação de meações, porquanto não pode ser obrigada a manter-se em comunhão patrimonial com o seu ex-cônjuge.
VI– A todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (art. 2º do Cód. de Proc. Civil).
Ao direito da Recorrente de ver separadas as meações e extinto o património conjugal corresponde a acção/processo de inventário.
VII– No caso do Acordão referido na sentença recorrida a impossibilidade de partilha decorre do facto de ter ocorrido separação de meações no âmbito de um processo executivo, e subsequente adjudicação da meação ao ex-cônjuge não executado, ou seja, da inexistência de meação, e não da inexistência de bens, não sendo aquela jurisprudência aplicável ao caso dos autos, a não ser para contrariar o entendimento constante da aliás douta sentença recorrida.
VIII– Ao julgar a lide impossível, a aliás douta sentença recorrida violou, por inadequada interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 2º e 1326º, nº 3, ambos do CPC, e 1724º e 1732º, ambos do CC.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e ordenando-se a baixa dos autos para prosseguimento da acção, com o que se fará JUSTIÇA !»

A parte contrária não apresentou contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

O  OBJECTO  DO  RECURSO
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quempossa ou deva conhecer ex officio,é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintéctica, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º) [3] [4]. Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º, 1ª parte, do C.P.C., aplicável ex vi do art. 713º, nº 2, do mesmo diploma) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 660º, nº 2, do C.P.C., ex vi do cit. art. 713º, nº 2).
No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pela cabeça-de-casal ora Apelante que o objecto do presente recurso está circunscrito a uma única questão:
1)– Se a circunstância de o património comum dum ex-casal ser constituído apenas por dívidas, inexistindo qualquer activo, não constitui impedimento a que seja instaurado processo especial de inventário para separação das meações, nos termos do artigo 1404º do então vigente Código de Processo Civil de 1961, inexistindo fundamento legal para restringir a aplicação do processo de inventário para partilha aos casos em que haja bens, rectius activo, a partilhar.


FACTOS  PROVADOS
Mostram-se unicamente provados, com relevância para a apreciação do mérito do presente recurso, os factos exaustivamente descritos no Relatório, para os quais se remete.

O  MÉRITO  DO  RECURSO

1)– A circunstância de o património comum dum ex-casal ser constituído apenas por dívidas, inexistindo qualquer activo, não constitui impedimento a que seja instaurado processo especial de inventário para separação das meações, nos termos do artigo 1404º do então vigente Código de Processo Civil de 1961, inexistindo fundamento legal para restringir a aplicação do processo de inventário para partilha aos casos em que haja bens, rectius activo, a partilhar ?

O tribunal “a quo” louvou-se no seguinte argumentário, para concluir pela extinção da instância, por impossibilidade da lide, no presente inventário subsequente a divórcio:
«Antes de mais, diremos que o desiderato destes autos não é a verificação ou não da existência de passivo, sendo a sua finalidade muito específica e por todos consabida, que é a de pôr fim à indivisão do acervo comum do ex-casal.
Aliás, tal resulta, desde logo, do n.º 3 do artigo 1326.º do C.P.C., quando se estatui que “o inventário pode destinar-se, nos termos previstos nos artigos 1404.º e seguintes, à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges”.
Por outro lado, estabelece mencionado artigo 1404.º, n.º 1 que “decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio (…), qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens, salvo se o regime de bens for o de separação”.
Diremos, assim, que inexistindo um único bem a partilhar, o presente processo mostra-se inútil ou mesmo impossível, pois não há lugar a qualquer partilha.
A situação idêntica, embora superveniente, se refere o Ac. do STJ, de 11-05-1995, CJ Ac STJ, 1995, tomo II, pg 83: “I – A falta de tempestiva oposição ao inventário não inibe qualquer interessado de, em momento posterior, pedir se ponha termo ao processo, invocando causa legal justificativa, como a inexistência de bens a partilhar. II – Correndo execução entre ex-marido e ex-mulher, cujo divórcio fora declarado por sentença, a adjudicação a um deles de direito que o outro tinha à meação nos bens comuns, inexistindo outros bem do executado, provoca inutilidade superveniente da lide no inventário para partilha subsequente a divórcio, por subsequente falta de bens a partilhar”.
Na verdade, os presentes autos de inventário têm um atributo específico, sendo destinados a pôr fim (a extinguir, para usar as palavras da Lei) à “comunhão de bens entre os cônjuges” (artigos 1326.º n.º 3 do C.P.C. e 1724.º e 1732.º do C.C.), tendo uma natureza própria, distinta dos demais.
Pelo exposto, inexistindo bens comuns a partilhar, não existe a razão pela qual foi requerido o presente inventário que, recordamos, se destinaria a pôr fim à comunhão de bens entre os cônjuges.»
Em dissonância com este entendimento, sustenta a cabeça-de-casal ora Recorrente que a circunstância de o património comum dum ex-casal ser constituído apenas por dívidas, inexistindo qualquer activo, não constitui impedimento a que seja instaurado processo especial de inventário para separação das meações, nos termos do artigo 1404º do então vigente Código de Processo Civil de 1961, inexistindo fundamento legal para restringir a aplicação do processo de inventário para partilha aos casos em que haja bens, rectius activo, a partilhar.
Quid juris ?
A questão a resolver no presente recurso não é inédita, tendo já sido objecto de várias decisões, nomeadamente nesta Relação, onde, aparentemente, tem prevalecido a tese (sufragada pelo tribunal “a quo”) segundo a qual, “Em inventário na sequência de divórcio inexistindo quaisquer bens comuns, sendo relacionada tão só uma dívida de terceiro da responsabilidade de ambos os cônjuges, não se justifica o prosseguimento do inventário.” - cfr., explicitamente neste sentido, o Acórdão desta Relação de 7/07/2011 (Proc. nº 9172/08.5TMSNT-A.L1-2; relator – MARIA JOSÉ MOURO), cujo texto integral está acessível on-line in: www.dgs.i.pt .[5] [6] [7].
Os argumentos aduzidos em favor da tese de que não se justifica o prosseguimento do inventário subsequente a divórcio quando inexistem quaisquer bens comuns e são apenas relacionadas dívidas para com terceiros da responsabilidade de ambos os cônjuges são – nuclearmente – os seguintes:
– As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento – art. 1688º do CC -  logo com o divórcio – art. 1788º do CC. Isto, embora os efeitos do divórcio, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, se retrotraiam à data da propositura da acção – art. 1789º do CC;
– Nos termos do art. 1689º do CC (sob o título «Partilha do casal. Pagamento de dívidas»), cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a esse património (nº 1); havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum e só depois as restantes (nº 2); acresce que os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum, mas não existindo bens comuns, ou sendo insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor (nº 3 da aludida disposição legal);
– Em consonância com o disposto neste artigo, o CPC (no art. 1404º) regula o processamento do inventário em consequência, designadamente, do divórcio, estabelecendo desde logo que decretado este «qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens» (isto salvo se o regime de bens do casamento for o da separação);
– Seguindo o inventário em consequência do divórcio o processamento previsto nos arts. 1326º e seguintes do CPC – nº 3 do art. 1326º e nº 3 do art. 1404º, ambos do CPC – os arts. 1345º e 1346º determinam que o cabeça de casal elaborará uma relação de bens indicando o valor atribuído a cada um deles e relacionará em separado as dívidas;
– Afigura-se resultar das disposições legais acima citadas que o objectivo do inventário na sequência do divórcio é a partilha de bens consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges (se o regime for o da separação não há lugar ao inventário): a partilha de bens «constitui a finalidade última do inventário»;
– No que concerne ao pagamento de dívidas a matéria está dividida por duas disposições legais – os arts. 1689º e 1697º [ambos do Cód. Civil];
– Torna-se necessário, antes de mais, determinar o volume do património que responde pelas dívidas; daí cada cônjuge dever conferir o que deve ao património comum em virtude de pagamentos de dívidas da sua exclusiva responsabilidade, consoante resulta do nº 1 do art. 1689º e do nº 2 do art. 1697º do CC;
– Será também esse o momento de os cônjuges se exigirem recíprocamente o pagamento das dívidas entre si quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles o qual se torna credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer (nº 1 do art. 1697º do CC); tal crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal (a não ser que vigore o regime da separação);
– Por fim, haverá que referir o pagamento de dívidas a terceiros: Atento o disposto no nº 2 do art. 1689º e no art. 1695º do CC, os credores comuns são pagos com preferência pelos bens comuns do casal; quando haja dívidas a solver serão pagas as dívidas comunicáveis, à custa da massa dos bens comuns e saldadas estas poderão ser pagas, então as restantes;
– Todavia, o pressuposto dos nºs 1 e 2 do art. 1689º do CC para a partilha do casal é o da existência de bens, mais concretamente a existência de um património comum;
– Do ...amento das disposições legais citadas entende-se resultar que, inexistindo quaisquer bens comuns e sendo relacionada pelo requerente do inventário e cabeça de casal, ora apelante, tão só uma dívida de terceiro da responsabilidade de ambos os cônjuges, não se justifica o prosseguimento do inventário;
- Subjacente ao processo de inventário está o interesse em dar destino a um conjunto de bens, os bens comuns do casal; Esses bens serão partilhados entre os cônjuges, havendo, todavia, que ressalvar as dívidas pelas quais aquele património comum responde, nos termos desenhados pela lei civil.
– Não havendo património comum não cumpre, através do processo de inventário, «partilhar dívidas»;
– Os credores comuns, em acção comum, poderão sempre demandar os cônjuges pelas respectivas dívidas, respondendo pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges, na falta de bens comuns, «solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges» (nº 1 do art. 1695º do CC);
– Tal como o cônjuge que satisfaça com bens próprios dívidas comuns poderá demandar o outro cônjuge com vista a obter ressarcimento, também através de acção comum.
Em dissonância com esta orientação, entendeu-se, porém, no Acórdão desta Relação de 1/06/2010 [8] (Proc. nº 2104/09.5TBVFX-A.L1-7; relator – ABRANTES GERALDES) que, “Apesar da inexistência de bens comuns, o facto de existirem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges basta para que se requeira a abertura de processo de inventário que possibilita a liquidação global das relações patrimoniais estabelecidas entre os cônjuges”.
Para assim concluir, tal aresto convocou os seguintes argumentos:
– Como é natural, o processo de inventário destina-se essencialmente a assegurar a distribuição dos resultados líquidos do património indiviso, para o que deverão ser ainda consideradas as dívidas perante terceiros;
– Assim o revela o art. 1404º, nº 1, do CPC, que prevê o processo especial de inventário para “partilha de bens”, ou outras normas do processo para onde remete o nº 3, designadamente o art. 1340º, nº 3, quando se refere à relação de todos os bens que hão-de figurar no inventário, o art. 1345º, quando as dívidas são relacionadas em separado dos bens que integram o património comum e todas as normas dos arts. 1354º e segs. sobre a aprovação do passivo;
– A existência desse activo parece também estar pressuposta na norma substantiva do art. 1697º, nº 1, do CC, que enuncia que a exigibilidade das compensações é diferida para o “momento da partilha dos bens”;
– Todavia, importa compreender que as regras do processo de inventário para onde remete o art. 1404º do CPC se destinam primacialmente a regular a partilha de bens que integram um património hereditário: Uma vez que os herdeiros apenas respondem pelos encargos na medida dos bens inventariados (art. 2071º, nº 1, do CC), compreende-se que, inexistindo activo a partilhar, não haja lugar a inventário que, na realidade, daria resultados meramente platónicos;
– Todavia, o regime subsequente à extinção do património comum por força do divórcio não tem equivalência com a partilha de herança;
– Tendo em conta a especificidade do estatuto patrimonial dos cônjuges que emerge da sociedade conjugal sob o regime de comunhão geral de bens ou de comunhão de adquiridos, a responsabilidade de cada um dos cônjuges perante terceiros não é afectada pelo divórcio; Ainda que não restem bens comuns a partilhar, responderão pelas dívidas os bens próprios de cada cônjuge que existirem na data do divórcio e ainda os bens que cada um vier a adquirir posteriormente;
– Por outro lado, pode ocorrer a necessidade de serem efectuadas compensações, por forma a tutelar os interesses do cônjuge que tenha sido prejudicado por dívidas que eram da exclusiva responsabilidade do outro ou de que era co-responsável, maxime quando tenham sido executados bens próprios daquele;
– Sendo diverso o circunstancialismo que rodeia a partilha da herança e a partilha dos activos e dos passivos patrimoniais dos cônjuges depois do seu divórcio, em lugar da aplicação directa das regras do processo de inventário, importa que sejam ponderadas as especificidades da relação conjugal, com os juízos e os ajustamentos procedimentais necessários a integrar uma realidade que não se circunscreve, como ocorre com a herança indivisa, à relacionação preferencial do activo patrimonial comum;
– Sem embargo de a partilha dos activos constituir a razão que essencialmente justifica o recurso ao processo de inventário, através deste processo podem ainda regular-se, em termos definitivos, os efeitos patrimoniais do divórcio, ainda que não existam bens comuns a partilhar, desde que existam dívidas do casal ou compensações a efectuar entre eles;
– É que, em face dos terceiros credores, quando não existam bens comuns que responsam pelas dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, respondem os bens próprios de quaisquer dos cônjuges (art. 1695º, nº 1, do CC);
– E em relação a eventuais compensações que devam ser efectuadas correspondentes a créditos de algum dos cônjuges sobre o outro, não havendo bens comuns, respondem os bens próprios do cônjuge devedor (art. 1689º, nº 3);
– É verdade que, negado o acesso ao processo de inventário, nada obstaria a que o ex-cônjuge requerente do inventário instaurasse acção declarativa com processo comum destinada a convencer o outro da existência de dívidas comuns e a exigir a sua responsabilidade;
– Porém, tendo em conta a especificidade do casamento que terminou com o divórcio, não parece ajustado que se desconsidere a utilidade do processo de inventário para regular de forma unitária todos os efeitos patrimoniais do divórcio que envolvem os cônjuges entre si e os cônjuges e terceiros;
– Para o efeito, o procedimento mais ajustado é o processo de inventário, até porque em lugar de “partes”, são convocados os “interessados”;
– Por outro lado, é a tramitação específica de tal processo, bem diversa da demarcação de fases e da estrutura e objectivos do processo comum de declaração, que permite a composição final dos interesses de ambos os ex-cônjuges, ainda que apenas em relação ao passivo e sua forma de pagamento;
– Esta virtualidade é evidente em relação ao passivo face a terceiros, uma vez que as dívidas que forem aprovadas pelos interessados consideram-se judicialmente reconhecidas, devendo a sentença condenar no seu pagamento, nos termos do art. 1354º, nº 1, do CPC.
– Mas ainda que as dívidas não sejam aprovadas pelos interessados, não está afastada a possibilidade de o tribunal reconhecer a sua existência total ou parcial, com os mesmos efeitos, nos termos dos arts. 1355º e 1356º do CPC.
– Com este resultado se pode evitar a posterior demanda de algum ou de ambos os cônjuges por parte de cada um dos diversos credores;
– Ademais, tanto em relação à responsabilidade perante terceiros como em relação à liquidação das responsabilidades entre os cônjuges, o inventário possibilita a sua liquidação de forma global permitindo que, extinto o casamento, cada um dos cônjuges possa ver definitivamente apurada as responsabilidades decorrentes de tal relação jurídica sem correr o risco de ser sucessivamente importunado pelo outro cônjuge com exigências cujo apuramento se possa arrastar e com as inerentes dificuldades de prova;
– Ora, o processo de inventário, pela sua própria estrutura e natureza, permite que se faça o apuramento global de todas as responsabilidades, sem prejudicar o interesse nem de terceiros nem de qualquer dos interessados;
– O processo de inventário, com a sua tramitação específica, constitui assim o meio mais ajustado e mais expedito para se operar a liquidação das relações patrimoniais que cessaram com o divórcio, podendo nele ser resolvidas de forma unitária, simplificada e eficaz todas as questões pendentes depois do divórcio, sem os encargos ou os riscos que importa a remessa dos interessados (e dos credores) para os meios comuns.
Quid juris ?
Ponderando todos os convincentes argumentos invocados neste último aresto para se concluir pela adequação do processo de inventário, dada a sua tramitação específica (onde, em lugar de “partes”, são convocados os “interessados”), para nele serem resolvidas, unitária, simplificada e eficazmente, todas as questões pendentes entre os ex-cônjuges após o divórcio, tendo em vista a liquidação definitiva das relações patrimoniais que cessaram com o divórcio, constata-se que nenhum deles é postergado pela lacónica afirmação de que, inexistindo património comum a partilhar entre os ex-cônjuges, os credores comuns poderão sempre, em acção comum, demandar os ex-cônjuges pelas respectivas dívidas, respondendo pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges, na falta de bens comuns, «solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges» (nº 1 do art. 1695º do CC) – afinal o único argumento substancial em que se escuda a tese contrária à que fez vencimento neste Acórdão de 1/06/2010.
Como assim, o recurso procede, quanto à única questão suscitada pela ora Apelante, impondo-se revogar o Despacho sob censura e ordenar o prosseguimento do processo de inventário instaurado no tribunal “a quo” a requerimento daquela, designadamente para o efeito de ser designada data para a realização de uma conferência de interessados, nos termos dos arts. 1352º e seguintes do Código de Processo Civil de 1961.

DECISÃO:
Acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao presente recurso de Apelação, revogando a decisão recorrida e ordenando o prosseguimento do presente processo de inventário, no tribunal “a quo”, nomeadamente para o efeito de ser convocada uma conferência de interessados (nos termos dos artigos 1352º e seguintes do Código de Processo Civil de 1961).
Sem custas.


Lisboa, 24-10-2017


Rui Torres Vouga (relator)
Maria do Rosário Gonçalves (1º Adjunto)
José Augusto Ramos  ( 2.º Adjunto)
           

[1]Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2]Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3]O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4]A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO ... (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
[5]Cfr., também no sentido de que, «Face à inexistência de tais bens, existindo embora dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, não se verifica fundamento legal para instauração do mesmo», o Acórdão desta Relação de 11/10/2012 (Proc. nº 16285/11.4T2SNT.L1-8; relator – ILÍDIO SACARRÃO MARTINS), cujo texto integral está acessível on-line in: www.dgs.i.pt .
[6]Cfr., igualmente no sentido de que «O inventário instaurado na sequência de divórcio destina-se à partilha dos bens comuns», pelo que, «Face à inexistência de tais bens, existindo embora dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, não se verifica fundamento legal para instauração do mesmo», o Acórdão desta Relação de 19/02/2015 (Proc. nº 1520/13.2TJLSB.L1-8   ; relator – CATARINA ARELO MANSO), cujo texto integral está acessível on-line in: www.dgsi.pt .
[7]Também na Relação de Évora, já se entendeu que, «Não existindo qualquer activo a partilhar, a simples persistência de parte de uma dívida relacionada, sem que nenhum credor tenha requerido a insolvência nem os interessados tenham deliberado nesse sentido, não constitui justificação para a continuação do inventário, dado que as dívidas que neste tipo de inventário podem ser relacionadas são apenas aquelas da responsabilidade de ambos os cônjuges, pois que só por estas respondem os bens comuns nos termos do direito substantivo (art. 1695º, nº 1 do CC), pelo que nada mais há a decidir no processo.» - Acórdão de 7/12/2012 (Proc. nº 637/06.4TMSTB-B.E1; relator – JOSÉ LÚCIO), acessível (o texto integral) in: www.dgsi.pt.
[8]Cujo texto integral está acessível on-line in: www.dgsi.pt.