Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
974/16.0PEOER.L1-9
Relator: MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONVENÇÃO DE ISTAMBUL
INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
ESTATUTO DE PROTECÇÃO À VÍTIMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1.O crime de violência doméstica deve ser encarado e tratado como violação dos direitos humanos, e sobre o “estado” dos direitos das vítimas, independentemente do género.
2. A Convenção de Istambul, sobretudo do disposto no seu artº 12º, nº 5 que impõe aos Estados que garantam que a cultura, os costumes, a religião, a tradição ou a pretensa honra não sirvam de justificação para actos de violência.
3. Nos termos do disposto no artº 428º do CPP, sob a epígrafe “Poderes de Cognição”, as relações conhecem de facto e de direito, e nos termos do disposto no artº 426º do mesmo diploma legal o reenvio só se impõe quando não for possível decidir da causa;
4.Nos termos do disposto no artº 431º a decisão do tribunal da 1ª instância pode ser modificada a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe servirem de base; b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do disposto no nº 3 do artº 412º do CPP….
5. O recurso interposto pelo MºPº não o foi no interesse do arguido, e a assistente interpôs recurso por ter um concreto interesse em agir, conforma ac STJ de uniformização de jurisprudência nº8/99, in fine, …quando tem um concreto e próprio interesse em agir,”- , pelo que no conhecimento do recurso não está este Tribunal “ad quem” limitado pelo disposto no artº 409º do CPP.
6.Não é por ter exercido o direito de formular pedido cível que o depoimento de uma vítima pode ser posto em causa, obrigará a um maior escrutínio por parte do julgador se este tiver alguma desconfiança plausível, no caso concreto, não por força de um direito exercido de acordo com a lei.
7.Com efeito, a ofendida tem o estatuto de vítima, conforme decorre dos autos a fls.8, logo, nos termos do disposto no artº 16º da Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro, tem direito a uma indemnização por parte do agente do crime, no âmbito do processo penal.
Por outro lado, em processo penal vigora o princípio da adesão ínsito no artº 77º , prevendo o artº 82º A do CPP a possibilidade de reparação da vítima em casos especiais.
8. A utilização de quaisquer meios de violência física ou psíquica, directa ou indirecta, sobre pessoas ou coisas afasta, desde logo, uma culpa sensivelmente diminuída….
9. A circunstância atenuante geral de ausência de antecedentes criminais não assume aqui particular relevo, pois não há culpa sensivelmente atenuada quando o agente utilize repetidamente a violência física e psíquica sobre a vítima, Silva Dias, 2007, 111.
10. O comportamento do arguido, que passou ainda a cortar a água, o gás e a luz à mulher e aos filhos, e a proferir ameaças de que não se gozariam da casa de morada de família, demonstrou que as finalidades da prevenção especial – proteger a integridade física e psíquica da Mulher e dos filhos, não podem ser atingidas através da imposição de uma pena suspensa ( sumário elaborado pela relatora).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

 O MºPº e MCJJN vieram interpor recurso da decisão proferida nos autos de processo abreviado que entendeu absolver F N da prática de um crime de violência doméstica p.p. pelo artº 152º, nº 1 a), nº 2, nº4 e nº 5 do Código Penal.
Entende o MºPº que a decisão recorrida enferma de falta de fundamentação, por não ter dado cumprimento ao dever de efectuar a apreciação crítica das provas, logo, que enferma da nulidade prevista no artº 374º, nº 2 do CPP.
Entende ainda que a referida nulidade decorrente da falta de exame crítico da prova é um obstáculo à sindicância do juízo probatório subjacente à sentença recorrida.
Impugna a matéria de facto dada como não provada, indicando os pontos concretos da matéria de facto que se encontram incorrectamente julgados, e os meios de prova que impõe decisão diversa da recorrida.
PEDE que se declare a nulidade por falta de fundamentação da decisão recorrida e que verificada a existência de vício de erro notório na apreciação da prova se revogue a decisão recorrida e se proceda à sua substituição por outra que considere provados os factos constantes da acusação, com fundamento no depoimento da demandante, do filho, testemunhas, e prova documental existente nos autos, e condene o arguido pela prática do crime de violência doméstica p.p. pelo artº 152º do C Penal.
Nesta Relação, em Parecer fundamentado, o MºPº pede igualmente a revogação da decisão recorrida, com substituição por outra que condene o arguido pela prática do crime de que foi acusado.
O recorrido entende que a decisão recorrida se deve manter por ter sido proferida em consequência da aplicação ao caso do princípio do “in dúbio pro reo”.

Cumpre apreciar e decidir, após vistos legais e conferência:
Conforme resulta claramente das conclusões apresentadas pelo MºPº na bem elaborada motivação do recurso, as questões a decidir, tal como ficaram delimitadas, são as de saber se a decisão recorrida enferma de nulidade de falta de fundamentação por não ter procedido ao exame crítico das provas, e se enferma de vício de conhecimento oficioso de erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º, nº 2 c) do CPP.
Vejamos, então:
O texto da decisão recorrida é o seguinte
…”

Sentença
***
1. Relatório.
Para julgamento em processo abreviado, o Ministério Público acusou o arguido AA - casado, nascido a (……), natural de (……..), filho de NN de MM, portador do CC nº …………., residente no ………………………………, Carnaxide  – da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previstos e punidos nos termos do artigo 152º, nº 1 al. a), nº2, nº4 e nº5 do Código Penal.
A ofendida deduziu pedido de indemnização civil, tendo peticionado a condenação do arguido a pagar-lhe 10.000 (dez mil) euros a título de indemnização de danos não patrimoniais que são emergentes da violência doméstica que lhe infligiu (fls. 204-207).
O arguido contestou a acusação, tendo oferecido o merecimento dos autos, e o pedido de indemnização civil, tendo negado genericamente a autoria dos factos que lhe são imputados.
Inexistem nulidades ou quaisquer excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa, mantendo-se válida e regular a presente instância.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais.
***
2. Fundamentação de facto.
2.1.Factos provados.
Apreciada criticamente a prova produzida e examinada em audiência de julgamento, julgam-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
- factos da acusação:
A. A ofendida, BB, e o arguido casaram entre si em ………… em Moçambique, fixando residência pouco depois em Portugal, primeiro em ……………., e a partir de 2008 no ………………., em Carnaxide, onde ainda residem.

B. Desse relacionamento nasceram CC… em …, DD e EE, ambos nascidos em ………….

C. Por despacho de 29-05-2016, a fls. 88 dos autos, por se considerar imputada a prática dum crime de violência doméstica ao arguido, foi determinada a suspensão provisória do inquérito por um período de dezoito meses, mediante as injunções de o arguido não contactar por qualquer meio com a ofendida, à excepção de assuntos indispensáveis relacionados com os filhos de ambos, e de frequentar o programa de agressores de violência doméstica ministrado pela DGRS.

D. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
2.2.Factos não provados.
Apreciada criticamente a prova produzida e examinada em audiência de julgamento, julgam-se não provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
1. A relação do arguido com a ofendida sempre foi pautada por discussões motivadas por ciúmes, em que este a insulta chamando-a de “puta”, principalmente após o nascimento dos filhos gémeos, de 2007 até à actualidade.

2. Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido pegou no telemóvel da sua mulher para saber com quem a mesma tinha contactado.

3. Em outras ocasiões, abriu a mala da ofendida para se inteirar de tudo o que se encontrava no seu interior, e abriu a correspondência da mulher para verificar com quem a mesma tem contactos.

4. Várias vezes o arguido perseguiu a ofendida nas suas deslocações para os seus vários locais de trabalho, residências particulares onde efectua limpezas.

5. Em diversas ocasiões, no interior da residência do casal no …………….., em Carnaxide, e na presença dos filhos de ambos, o arguido dirigiu-se à sua mulher e disse-lhe: “A mãe é uma vagabunda, cobra venenosa, cabrona, puta, vagabundinha, andas com vários homens”.

6. Em Outubro de 2016 e em Fevereiro de 2017, o arguido por várias forçou a ofendida a manter relações sexuais consigo, agarrando-a com força.

7. No dia 08-10-2016, quando estavam ambos em casa de uns amigos do casal, o arguido dirigiu-se a esses amigos do casal e disse-lhes em frente à sua esposa que a ofendida era “uma bandida, uma prostituta que anda com outros homens”, no intuito de a humilhar publicamente.

8. De seguida o arguido ausentou-se daquela divisão da casa dos amigos e momentos depois voltou e disse aos gritos “venho buscar o que é meu”; quando os amigos perguntaram o que era dele o arguido respondeu “a BB”, e saiu com a ofendida daquela casa, levando-a pela mão e obrigando-a a entrar na viatura automóvel.

9. Ao conduzir de regresso a casa muito depressa, a ofendida pediu-lhe para conduzir com calma, tendo o arguido retorquido “isso foi destinado para nós morrermos aqui no carro”, no intuito de amedrontar a sua esposa, o que conseguiu.

10. Quando chegaram a casa e os filhos do casal viram a ofendida assustada e a chorar, o filho mais velho, CC, começou a discutir com o arguido, tendo nesse instante a ofendida intercedido para pararem.
11. Vendo a esposa a interferir dessa forma, o arguido agarrou-a e atirou-a para o chão, o que provocou em BB dores no corpo.

12. O arguido não permite que a ofendida tenha amigas, exige-lhe que esteja sempre em casa e não a deixa ver ninguém.

13. Apesar de já não manterem uma relação conjugal, o arguido e a ofendida permanecem a viver na mesma casa, uma habitação social fornecida pela Câmara Municipal de Oeiras, o que gera muitos conflitos e discussões entre eles.

14. Desde que a ofendida apresentou queixa, o arguido continua a ameaçá-la e a importuná-la dizendo-lhe “só estou à espera do divórcio, vou assinar, mas não te vou deixar em paz, não vais viver a tua vida, és uma ingrata, trouxe-te de Moçambique tens de me servir, vai-te sair caro, vais pagar”.

15. Ao perseguir, agredir, ameaçar e insultar a sua esposa, tanto em casa perante os filhos como fora de casa perante outras pessoas, o arguido agiu com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, maltratar a ofendida, provocando-lhe com as suas condutas medo e humilhação, afectando o seu bem estar psicológico.

16. O arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava a ofendida, debilitando-a psicologicamente, prejudicando o seu bem estar e ofendendo-a na sua honra e dignidade humana.

17. Agiu livre, deliberada e conscientemente, conhecendo o carácter proibido e punido por lei da sua conduta.

18. Apesar da imposição destas injunções, e de saber que se as violasse seria acusado da prática dum crime de violência doméstica, o arguido não cumpriu satisfatoriamente a condição de frequentar o programa ministrado pela DGRS e continuou a importunar a ofendida, dentro de casa da família.

19. Assim, desde a suspensão do processo o arguido continuou a controlar a correspondência da ofendida, vendo e abrindo as cartas que a mesma recebe pelo correio para ver quem as envia e quem a ofendida contacta, privando-a de receber correspondência.

20. Para além disso, as discussões do arguido com a ofendida mantêm-se constantes, com aquele a insultar a esposa em frente aos filhos, chamando-a de “puta, cobra venenosa, vais com vários homens, diz que vai para o trabalho quando vai encontra-se com homens”.

21. No intuito de intimidar a ofendida, o arguido disse ao filho mais velho do casal para tomar conta dos irmãos, pois um dos progenitores iria sair de casa e, quando isso sucedesse, se fosse ele, arguido, a sair, a ofendida não ficaria a usufruir da casa, insinuando que não a vai deixar viva para usar a casa sozinha.

22. Desde meados de Julho de 2017 até pelo menos Janeiro de 2018 o arguido exerce uma grande pressão e transtorno psicológico sobre a ofendida, com o intuito de a forçar a sair de casa.

23. Uma das formas de pressão que o arguido exerce sobre a ofendida é a de cortar a electricidade, a água e o esquentador quando a ofendida tem de se levantar de madrugada para tomar banho e ir trabalhar, deixando-a muito transtornada por não conseguir fazer a sua vida de trabalho em paz com este tipo de comportamento do arguido.

24. Esta actuação do arguido gera frequentes discussões com a ofendida, muitas vezes às 05h00 da madrugada quando a ofendida se prepara para ir trabalhar.

25. Ao continuar a ameaçar e insultar a sua esposa, dentro da residência do casal e perante os seus filhos menores, o arguido continuou a agir com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, maltratar a ofendida, provocando-lhe com as suas condutas medo e humilhação, afectando o seu bem estar psicológico.

26. O arguido agiu sempre consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava a ofendida, debilitando-a psicologicamente, prejudicando o seu bem estar e ofendendo-a na sua honra e dignidade humana.

27. Agiu livre, deliberada e conscientemente, conhecendo o carácter proibido e punido por lei da sua conduta.

28. A demandante sentiu ao longo do tempo descrito nos autos vergonha e vexame com as expressões e imputações, atentatórias da sua honra, proferidas pelo demandado.

29. A demandante passou a ser uma pessoa receosa, com medo e a chorar com facilidade.

30. Face ao comportamento do arguido/demandado, a vergonha, o vexame, nervosismo e mágoa apoderaram-se da demandante.
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2.3.Motivação da decisão sobre a matéria de facto.
O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise crítica, segundo as regras de experiência comum e juízos de normalidade, do conjunto da prova testemunhal (testemunhas da acusação: depoimento de BB (filho do arguido e da ofendida), JJ (agente da PSP); testemunhas da assistente: SS (amiga da assistente) e PP..(antiga empregadora da assistente)), documental (Auto de notícia de fls. 4 a 7, Assentos de casamento e de nascimento de fls. 72 a 77, docs. de fls. 127, 129, 130, 134, petição inicial de divórcio, de fls. 211-212; recibos de remuneração do arguido, de fls. 222-v e 223; Certificado de Registo Criminal; Relatório Social) e por declarações da assistente /demandante, BB, e do arguido.
A assistente confirmou ter sido vítima de violência infligida pelo arguido no tempo, lugar e modo descritos na acusação.
O arguido negou a autoria de qualquer violência infligida na assistente, designadamente a que vem descrita na acusação.
Qualquer um deles sustenta que o outro quer (o arguido por meio do crime que lhe é imputado, a assistente por meio deste processo) expulsar o outro da casa de morada de família, a qual, segundo prova documental junta nos autos, é casa de habitação social que foi arrendada a ambos por entidade camarária.
A somar a esse presuntivo interesse da assistente na decisão da presente causa, a mesma tem igualmente interesse em obter ganho de causa na decisão do pedido de indemnização civil que, pelo valor de € 10.000, 00, intentou contra o arguido.
Subsistindo duas versões contraditórias sobre a ocorrência dos factos vertidos na acusação, inexiste prova documental e pericial que corrobore a versão incriminatória da assistente.
Outrossim, também a prova testemunhal não corroborou a versão incriminatória da assistente, porquanto das testemunhas ouvidas apena se apurou que o arguido era ciumento, desconfiava que a assistente mantinha relacionamentos com outros homens, imputando-lhe atos desse tipo, e que em algumas circunstâncias - de número, frequência e data que não lograram precisar concretamente- controlou alguns movimentos e comunicações da assistente, sem que se tenha logrado que o fez em modo coincidente com o descrito na acusação, tanto mais que nesse libelo é-lhe imputada uma atuação desse tipo desde sempre, ou desde o início da coabitação com a assistente, ao passo que esta última, a par do seu filho, imputa a existência de discussões motivadas por ciúmes e controle de movimentações a partir do nascimento dos filhos gémeos.
Com relevo para a decisão da presente causa avultam as declarações do filho do arguido e da assistente em como o seu progenitor chamava vadia à sua progenitora, o que foi igualmente referido por esta última. Todavia, a acusação imputa ao arguido a proclamação de outros nomes de cariz injurioso, que não o de vadia, conforme imputação confirmada pela assistente, mas negada pelo filho desta, segundo uma contradição que se afigura inexplicável em virtude de aquela ter dito que foi sucessivamente injuriada pelo modo descrito na acusação no interior da casa de morada de família e na presença desse filho. Se assim fora, o filho da arguida teria que ter corroborado as demais declarações incriminatórias da assistente, no que tange a ter sido sucessivamente injuriada, ameaçada e controlada, mas o certo é que este não o fez. De resto, condutas típicas de violência doméstica, verificadas no tempo, lugar e segundo o modo descritos na acusação, não foram confirmadas pelo filho da arguida, o qual apenas relatou a esse respeito o que ouviu dizer da sua mãe. Em último lugar, o filho do arguido e da assistente admitiu estar de relações cortadas com o primeiro, pelo que não se trata de testemunha imparcial e isenta.
A testemunha JJ.. não presenciou qualquer facto ilícito típico durante a interacção do arguido com a assistente, tendo apenas tomado conhecimento do que esta lhe participou por ele ser agente da Polícia de Segurança Pública. O seu depoimento foi irrelevante.
A testemunha SS.. disse ter ouvido o arguido dizer nomes injuriosos às mulheres que acompanhavam a assistente, mas referiu não ter presenciado uma injúria que ele tenha proferido a esta última. De resto, só sabe o que ouviu dizer da assistente, pois não presenciou nada directamente.
A testemunha PP.. não presenciou directamente a ocorrência de qualquer um dos factos vertidos na acusação, tendo apenas relatado o que ouviu dizer da assistente, tendo apenas tomado conhecimento direto de um telefonema que o arguido lhe fez numa madrugada, o qual interpretou como manifestação de um comportamento controlador das movimentações da assistente.
As supracitadas testemunhas aludiram a um carácter ciumento do arguido, bem como a uma conduta da sua parte que era controladora da liberdade de movimentação e comunicação da assistente, em termos que não são coincidentes com os descritos na acusação, quanto ao seu início, à sua frequência e duração, pelo que daí não se pode concluir pela ocorrência desses factos.
Em suma, as declarações incriminatórias da assistente foram refutadas pelo arguido e não foram corroboradas de modo isento, verosímil, coerente e, portanto, credível pelos depoimentos das supracitadas testemunhas, cujo teor se fundou quase exclusivamente em depoimentos de ouvir dizer da assistente da assistente.
A assistente tem interesse, pessoal e patrimonial na decisão da presente causa, pois poderá obter o direito a usar exclusivamente a casa camarária arrendada a ambos se o arguido for condenado por violência doméstica, além do que deduziu pedido de indemnização em € 10.000, 00. Não sendo pessoa isenta e imparcial, as suas declarações não foram corroboradas pelo depoimento do seu filho, o qual também não é isento e imparcial em virtude de ter cortado relações com o seu progenitor e negou ter ocorrido a presença de factos típicos de violência doméstica que segundo a sua progenitora teria presenciado, assim como não foram corroborados por depoimentos com razão de ciência direta sobre tais atos ou por prova documental e/ou pericial (documentos médicos, hospitalares, exames, …).
O arguido presume-se inocente, tanto mais que não tem antecedentes criminais, pese embora a muita antiguidade e duração da violência doméstica que lhe foi imputada.
Destarte, subsiste dúvida séria, razoável sobre a ocorrência dos factos supra enumerados de 1 a 30, pelo que se julgam não provados.
Os factos supra elencados sob as alíneas A) e B) julgam-se provados com fundamento nas declarações do arguido, da assistente e no teor dos assentos de nascimento dos filhos de ambos.
O facto supra elencado sob a alínea C) julga-se provado com fundamento no processado nos presentes autos a respeito da decisão de suspensão provisória do processo e subsequente revogação.
O facto supra elencado sob a alínea D) julga-se provado com fundamento no Certificado de Registo Criminal do arguido.
***
3. Enquadramento jurídico-penal.
Diante a falta de prova de que o arguido infligiu violência de qualquer tipo à assistente/demandante e que esta sofreu danos em sua consequência, é dispensável tecer-se quaisquer considerações jurídicas sobre o tipo de crime de violência doméstica, impondo-se a absolvição do arguido da sua prática, bem como do pedido de condenação a pagar indemnização civil para reparação e compensação de danos emergentes desse ilícito.
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4. A decisão.
Nos termos expostos, julgam-se improcedentes a acusação e o pedido de indemnização civil formulados nos autos, e, em consequência, decide-se absolver AA dos mesmos.
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Sem custas do processo penal, dada a isenção subjectiva de que goza o Ministério Público (cf. art. 522.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
*
Consequentemente, decide-se condenar a demandante BB a pagar as custas processuais devidas pelo pedido de indemnização civil, do qual saiu vencida, fixando-se a taxa de justiça pelo valor mínimo legalmente previsto -  nos termos dos artigos 515.º, n.º 1, al. a), 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º e 530.º do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 524.º do Código de Processo Penal.
*
Deposite-se e notifique-se – cf. artigo 372.º, n.º 5 do Cód. Proc. Penal.
*
Notifique-se e deposite-se a presente sentença (cf. art. 372.º, n.º 5 do CPP).
*
(texto processado informaticamente e revisto pelo signatário – cf. artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
**
Oeiras, 05 de novembro de 2018.
O juiz de direito,

…”
Apreciando a 1ª das questões suscitadas pelo MºPº e pela recorrente, nas motivações respectivas, a saber, a da existência de falta de exame crítico das provas produzidas em sede de audiência que se reconduz à nulidade da mesma decisão por falta de fundamentação:
Como resulta de leitura da motivação da convicção, a decisão recorrida não enferma de nulidade por falta de exame crítico da prova.
A valoração da prova foi efectuada, apesar do preceituado no artº 77º do CPP e do artº 16ºLei 130/2005, de 4 de Setembro, que impõe ao Tribunal a fixação de indemnização mesmo sem ser requerida.
Vejamos o seguinte excerto:
…”
O arguido negou a autoria de qualquer violência infligida na assistente, designadamente a que vem descrita na acusação.
Qualquer um deles sustenta que o outro quer (o arguido por meio do crime que lhe é imputado, a assistente por meio deste processo) expulsar o outro da casa de morada de família, a qual, segundo prova documental junta nos autos, é casa de habitação social que foi arrendada a ambos por entidade camarária.
A somar a esse presuntivo interesse da assistente na decisão da presente causa, a mesma tem igualmente interesse em obter ganho de causa na decisão do pedido de indemnização civil que, pelo valor de € 10.000, 00, intentou contra o arguido.
Subsistindo duas versões contraditórias sobre a ocorrência dos factos vertidos na acusação, inexiste prova documental e pericial que corrobore a versão incriminatória da assistente.
Outrossim, também a prova testemunhal não corroborou a versão incriminatória da assistente, porquanto das testemunhas ouvidas apena se apurou que o arguido era ciumento, desconfiava que a assistente mantinha relacionamentos com outros homens, imputando-lhe atos desse tipo, e que em algumas circunstâncias - de número, frequência e data que não lograram precisar concretamente - controlou alguns movimentos e comunicações da assistente, sem que se tenha logrado que o fez em modo coincidente com o descrito na acusação, tanto mais que nesse libelo é-lhe imputada uma atuação desse tipo desde sempre, ou desde o início da coabitação com a assistente, ao passo que esta última, a par do seu filho, imputa a existência de discussões motivadas por ciúmes e controle de movimentações a partir do nascimento dos filhos gémeos.
…”

A apreciação crítica da prova foi efectuada, e as declarações da ofendida foram desvalorizadas porque o Tribunal “a quo” entendeu que o facto de ambos pretenderem a casa de morada de família ( que será atribuída/partilhada em sede de processo de divórcio já intentado) e o facto de a ofendida ter formulado pedido de indemnização cível contra o aqui arguido, ou seja, o de pretender obter ”ganho/proveito” por força do presente processo assim o determinavam.
Sucede que a ofendida tem o estatuto de vítima, conforme decorre dos autos a fls.8, logo, nos termos do disposto no artº 16º da Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro, tem direito a uma indemnização por parte do agente do crime, no âmbito do processo penal.
Por outro lado, em processo penal vigora o princípio da adesão ínsito no artº 77º , prevendo o artº 82º A do CPP a possibilidade de reparação da vítima em casos especiais.
Concorde-se ou não, esta foi a solução jurídica encontrada pelo legislador.
Assim sendo, não pode o depoimento da vítima ser desvalorizado por qualquer preconceito genérico sobre eventual ganho de causa, ou de proveito obtido por via do processo, tanto mais que presta juramento.
A função do julgador é exactamente separar o trigo do joio, e valorar a prova de acordo com a credibilidade que lhe merecem, ou não, os intervenientes processuais.
Não é por ter exercido o direito de formular pedido cível que o depoimento de uma vítima pode ser posto em causa, obrigará a um maior escrutínio por parte do julgador se este tiver alguma desconfiança plausível, no caso concreto, não por força de um direito exercido de acordo com a lei.
No fundo, ao invocar um eventual proveito decorrente de ganho de causa para colocar os dois no mesmo plano, bem como uma disputa em torno da casa (que merecerá análise em separado) está o o Tribunal “a quo” a afirmar que acreditou no que a vítima disse, mas que tem dúvidas em condenar só com  prova resultante das suas declarações, e confirmada parcialmente pelas outras testemunhas.
Daí que tenha referido genericamente que o arguido prestou declarações, negando ter praticado o crime, para concluir pela aplicação do princípio do “in dúbio pro reo”.
O mesmo se passa com a questão da alegada luta pela casa.
Dos autos decorre que a casa é um arrendamento camarário em nome dos dois, e que a CMO só pode atribuir outra casa depois daquela ter sido atribuída a um dos cônjuges, por força do divórcio.
A ofendida declara a fls 34 que até já foi à CMO para pedir uma casa para si e para os filhos, nas que lhe responderam que teria de aguardar pelo divórcio.
E declara que não quer ir para uma casa abrigo por causa dos filhos.
Tem os seus três filho sinalizados.
Essa situação encontra-se documentada a fls 52 dos autos, em documento da CPCJ de Oeiras, uma vez que o menor CC foi sinalizado por abandono escolar.
Na entrevista, estiveram presentes a Mãe e o menor, que não deram o consentimento à intervenção por ser necessário o consentimento dos Pais.
Nas declarações prestadas a fls. 67, refere o arguido que  …”está disposto a aceitar o pedido de divórcio apresentado pela queixosa que lhe disse estar disposta a mudar de residência”
Foi a ofendida que requereu a suspensão provisória do processo. – a fls 79, no despacho do MºPº e fls. 83,no despacho judicial, tendo o arguido concordado com ela.
(cumpre aqui referir que a Convenção de Istambul no seu artº 48º determina que os Estados afastem a possibilidade de recurso a todos os meios de resolução alternativa de litígios/conciliação obrigatória, para evitar a dupla vitimização, todavia, cumpre salientar que casos há em que resulta).
Se a intenção da ofendida fosse a que lhe é assacada na decisão recorrida, não teria ela mesma requerido que fosse aplicada a suspensão provisória do processo para tentar resolver o problema a bem, sem julgamento.
A ofendida tem o problema da estabilidade dos menores para resolver, designadamente para que não continuem sinalizados por abandono escolar, e como ela própria refere, vai buscar forças aos filhos, e como ela própria referiu em julgamento está esgotada pela situação.
Apesar de ter concordado com a suspensão provisória do processo, o arguido não cumpriu com as injunções, continuou na casa de morada de família, e manteve-se o mau estar decorrente dos maus tratos psíquicos e físicos (desligar a água/esquentador é também físico).
A fls. 99, a ofendida pediu ao Tribunal que resolvesse a situação pois passou a ser ameaçada de morte, e não quer ir para uma casa abrigo, conforme sugestão da PSP, correr o risco de perder o emprego, uma vez que trabalha a dias em M………, Q……… e L………., e por causar transtorno à matrícula dos filhos que já efectuara, na C………..
O arguido juntou documento a fls 109, dirigido ao Presidente da CMO, em que requer a atribuição de uma casa por não ter sítio para morar.
Em 10.08.2017, o IRS informa que o arguido se mantém na casa em que vivem as vítimas, achando este que o arguido entende que quem deve sair de casa é a ofendida, conforme terá verbalizado em entrevista efectuada.
A CMO informa em nome de quem se encontra o arrendamento social, e que não pode atribuir novo arrendamento sem que o Tribunal de Família e Menores defina a casa de morada de família, e a respectiva regulação das responsabilidades parentais dos filhos menores. – docº de fls 130, datado de 2.08.2017, da Divisão de Gestão do Parque habitacional da CMO, dirigido a F. N..
Analisando os documentos, conclui-se que a CMO não exclui, muito pelo contrário, a possibilidade de atribuição de novo arrendado habitacional, mas só o pode fazer depois de reguladas as responsabilidades parentais e de atribuída a casa de morada de família.
Assim sendo, não pode o litígio em torno da casa servir para desvalorizar a palavra da ofendida, sabido como é que estes são os problemas da maior parte dos divórcios não consensuais, sobretudo quando existem filhos.
A ofendida até veio aos autos juntar parecer do psicólogo clínico no sentido de que para ela …” para uma total reabilitação psicológica e para futura segurança da sua família…, seria melhor…” começar uma nova fase da sua vida com os seus filhos num local em que não hajam recordações de eventos de violência percepcionados como traumáticos…”
O MºPº entendeu no seu despacho de fls. 142 que ainda se não podia imputar o incumprimento ao arguido, dada a resposta da CMO.
Surge então a informação da DGRSP no sentido de que o arguido comparece sempre que convocado mas se não mostra reactivo à intervenção.
Em novas declarações, esclarece que o arguido recebe 750 euros mensais e o abono dos 3 filhos, e não contribui paras as despesas, e  que o arguido referiu que se fosse ele a sair a ofendida não ficaria a usufruir da casa, conversa tida com o filho mais velho e ouvida pela ofendida e pelos outros dois filhos.
Após a suspensão do processo, o arguido passou a desligar a electricidade e o esquentador, obrigando-os a aquecer água para tomar banho, passou a cortar também a água.
Estes factos levaram o MºPº que considerara justificado o incumprimento por parte do arguido, a considerar finda a suspensão provisória do processo, e a deduzir acusação.
Na sequência da acusação, a ofendida deduz pedido cível por danos morais e o arguido contesta o pedido cível negando a prática dos factos e dizendo que a assistente quer prejudicar monetariamente o seu marido, pretendendo obter um enriquecimento à custa do demandado.
Ora, analisados os autos, verifica-se que a ofendida requereu a suspensão provisória do processo e que procurou resolver a situação dela e dos filhos, e que o arguido não se mostrou motivado para a intervenção do IRS, ou para encontrar qualquer solução que permitisse proteger os filhos do ambiente de conflitualidade e que lhe permitisse cumprir com as condições impostas na suspensão provisória do processo.
Todos estes elementos, assim considerados, afastam a conclusão de que o presente processo se destina a permitir que a ofendida fique com a casa de morada de família, e que só pretende obter enriquecimento à custa do arguido.
Também por via deste segmento de raciocínio, estava vedado ao Tribunal “a quo” concluir pela descredibilização das declarações da ofendida, e por uma absolvição por dúvidas.
Cumpre agora analisar as declarações do arguido prestadas em audiência de julgamento.
Ouvida a prova produzida em audiência de julgamento, disse o arguido que …”neste momento, trabalha num escritório de advogado…tudo o que ela assinou e escreveu é mentira, não se quer divorciar, esteve 3 anos sem mulher mas que as coisas não melhoraram, a dormir na mesma cama; que como ela dizia “eu não tenho falta de homem, ele lhe dizia quando sais, tens homem, por isso não quer nada comigo; confirmou  o episódio do carro, quando foi buscar a mulher a casa de amigos, alegadamente, por entender que era muito tarde e que os meninos estavam sozinhos; dá explicações para ter mexido na carteira e no telemóvel, mas negando as intenções de controlo que lhe são atribuídas; diz que cumpriu o programa mas não tem qualquer documento que o comprove; dá explicações para a manutenção dos contactos com a mulher; diz que já saíu de casa, que foi morar casa desse advogado.
Perguntado pelo Mmo Juiz “o senhor e a sua esposa estão a ver quem fica com a casa?!  Resposta: Não, isso não!

Entende o MºPº que tendo a assistente e o filho prestado juramento cabia ao Tribunal dizer qual o motivo pelo qual não acreditava naqueles depoimentos, ao invés de não lhes conceder credibilidade por razões genéricas, e por entender que precisavam de ser corroborados por outros meios de prova.
Este entendimento colide com os princípios sobre prova.
Assim, no que concerne aos factos 1, 3 a 6, e 13 da decisão recorrida, que se reportam ao conjunto de situações recorrentes de violência psicológica que o arguido exerceu sobre a assistente, injurias, ameaças, formas de controlo e perseguições movidas pelo arguido movidas por ciúmes, ocorridas antes da suspensão provisória do processo, estes foram corroborados pela assistente e parcialmente por prova testemunhal.
Parte dos eventos foi corroborada pelo filho do arguido no depoimento prestado na sessão de julgamento de 5 de Abril de 2018.
O mesmo sucede com o conjunto de factos  não provados de 7 a 11, que se reporta a factos ocorridos em 8 de Outubro de 2016., e com os factos não provados 18 a 20 e 22 a 24., e com o conjunto de factos 15 a 17 e 25 a 27.
Na muito bem elaborada motivação de recurso de impugnação da matéria de facto, especificou os pontos da matéria de facto que se encontravam, a seu ver, mal julgados, quais as provas que se impunham decisão diversa da recorrida, indicou concretamente as passagens consignadas em acta, e para maior facilidade de consulta procedeu à sua transcrição.

Vejamos, então:
Ouvida toda a prova produzida em audiência, e analisada a detalhada motivação do MºPº, com análise da prova indicada, ouvidas as declarações prestadas pela assistente, que depôs de forma calma, e sem animosidade, declarando-se apenas exaurida, esgotada com toda esta situação, e as declarações do filho, igualmente prestadas sem qualquer animosidade, conclui-se que assiste razão ao MºPº e à assistente quando entendem que a decisão recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova e que deve ser revogada, e substituída por outra que considere provada a matéria constante do libelo acusatório.

Cumpre salientar que nos termos do disposto no artº 428º do CPP, sob a epígrafe “Poderes de Cognição”, as relações conhecem de facto e de direito, que nos termos do disposto no artº 426º do mesmo diploma legal o reenvio só se impõe quando não for possível decidir da causa, e que nos termos do disposto no artº 431º a decisão do tribunal da 1ª instância pode ser modificada a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe servirem de base; b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do disposto no nº 3 do artº 412º do CPP….
Cumpre salientar ainda que o recurso interposto pelo MºPº não o foi no interesse do arguido, e que a assistente interpôs recurso por ter um concreto interesse em agir, conforma ac STJ de uniformização de jurisprudência nº8/99, in fine, …quando tem um concreto e próprio interesse em agir,” , pelo que no conhecimento do recurso não está este Tribunal “ad quem” limitado pelo disposto no artº 409º do CPP.

Assim definidos os precisos limites da intervenção deste Tribunal de recurso,

MATERIA DE FACTO PROVADA:
1.A ofendida, BB, e o arguido casaram entre si em (………..) em Moçambique, fixando residência pouco depois em Portugal, primeiro em (………..), e a partir de 2008 no (…………….) em Carnaxide, onde ainda residem.
2.Desse relacionamento nasceram CC em (…………), DD e EE, ambos nascidos em (…….).

3.Por despacho de 29-05-2016, a fls. 88 dos autos, por se considerar imputada a prática dum crime de violência doméstica ao arguido, foi determinada a suspensão provisória do inquérito por um período de dezoito meses, mediante as injunções de o arguido não contactar por qualquer meio com a ofendida, à excepção de assuntos indispensáveis relacionados com os filhos de ambos, e de frequentar o programa de agressores de violência doméstica ministrado pela DGRS.

4.A relação do arguido com a ofendida sempre foi pautada por discussões motivadas por ciúmes, em que este a insulta chamando-a de “puta”, principalmente após o nascimento dos filhos gémeos, pelo menos, de 2007 até à actualidade.
5.Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido pegou no telemóvel da sua mulher para saber com quem a mesma tinha contactado.
6.Em outras ocasiões, abriu a mala da ofendida para se inteirar de tudo o que se encontrava no seu interior, e abriu a correspondência da mulher para verificar com quem a mesma tem contactos.
7.Várias vezes o arguido perseguiu a ofendida nas suas deslocações para os seus vários locais de trabalho, residências particulares onde efectua limpezas.
8.Em diversas ocasiões, no interior da residência do casal no (…………….) Carnaxide, e na presença dos filhos de ambos, o arguido dirigiu-se à sua mulher e disse-lhe: “A mãe é uma vagabunda, cobra venenosa, cabrona, puta, vagabundinha, andas com vários homens”.
9.Em data não concretamente determinada mas posterior a outubro 2016, arguido forçou a ofendida a manter relações sexuais consigo, agarrando-a com força.
10.No dia 08-10-2016, enquanto a ofendida se encontrava em casa de uns amigos do casal, o arguido compareceu no local, com o intuito de levar a assistente para casa, se necessário pela força e contra sua vontade.
11.De seguida o arguido ausentou-se daquela divisão da casa dos amigos e momentos depois voltou e disse aos gritos “venho buscar o que é meu”; quando os amigos perguntaram o que era dele o arguido respondeu “a BB”, e saiu com a ofendida daquela casa, levando-a pela mão e obrigando-a a entrar na viatura automóvel.
12.Ao conduzir de regresso a casa muito depressa, a ofendida pediu-lhe para conduzir com calma, tendo o arguido retorquido “isso foi destinado para nós morrermos aqui no carro”, no intuito de amedrontar a sua esposa, o que conseguiu.
13.Quando chegaram a casa e os filhos do casal viram a ofendida assustada e a chorar, o filho mais velho, CC, começou a discutir com o arguido, tendo nesse instante a ofendida intercedido para pararem.
14.Vendo a esposa a interferir dessa forma, o arguido agarrou-a e atirou-a para o chão, o que provocou em BB dores no corpo.
15.O arguido não permite que a ofendida tenha amigas, exige-lhe que esteja sempre em casa e não a deixa ver ninguém.
16.Apesar de já não manterem uma relação conjugal, o arguido e a ofendida permanecem a viver na mesma casa, uma habitação social fornecida pela Câmara Municipal de Oeiras, o que gera muitos conflitos e discussões entre eles.
17.Desde que a ofendida apresentou queixa, o arguido continua a ameaçá-la e a importuná-la dizendo-lhe “só estou à espera do divórcio, vou assinar, mas não te vou deixar em paz, não vais viver a tua vida, és uma ingrata, trouxe-te de Moçambique tens de me servir, vai-te sair caro, vais pagar”.
18.Ao perseguir, agredir, ameaçar e insultar a sua esposa, tanto em casa perante os filhos como fora de casa perante outras pessoas, o arguido agiu com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, maltratar a ofendida, provocando-lhe com as suas condutas medo e humilhação, afectando o seu bem-estar psicológico.
19.O arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava a ofendida, debilitando-a psicologicamente, prejudicando o seu bem-estar, e ofendendo-a na sua honra e dignidade humana.
20.Agiu livre, deliberada e conscientemente, conhecendo o carácter proibido e punido por lei da sua conduta.
21.Apesar da imposição destas injunções, e de saber que se as violasse seria acusado da prática dum crime de violência doméstica, o arguido não cumpriu satisfatoriamente a condição de frequentar o programa ministrado pela DGRS e continuou a importunar a ofendida, dentro de casa da família.
22.Assim, desde a suspensão do processo o arguido continuou a controlar a correspondência da ofendida, vendo e abrindo as cartas que a mesma recebe pelo correio para ver quem as envia e quem a ofendida contacta, privando-a de receber correspondência.
23.Para além disso, as discussões do arguido com a ofendida mantêm-se constantes, com aquele a insultar a esposa em frente aos filhos, chamando-a de “puta, cobra venenosa, vais com vários homens, diz que vai para o trabalho quando vai encontra-se com homens”.
24.No intuito de intimidar a ofendida, o arguido disse ao filho mais velho do casal para tomar conta dos irmãos, pois um dos progenitores iria sair de casa e, quando isso sucedesse, se fosse ele, arguido, a sair, a ofendida não ficaria a usufruir da casa, insinuando que não a vai deixar viva para usar a casa sozinha.
25.Desde meados de Julho de 2017 até pelo menos Janeiro de 2018 o arguido exerce uma grande pressão e transtorno psicológico sobre a ofendida, com o intuito de a forçar a sair de casa.
26.Uma das formas de pressão que o arguido exerce sobre a ofendida é a de cortar a electricidade, a água e o esquentador quando a ofendida tem de se levantar de madrugada para tomar banho e ir trabalhar, deixando-a muito transtornada por não conseguir fazer a sua vida de trabalho em paz com este tipo de comportamento do arguido.
27.Esta actuação do arguido gera frequentes discussões com a ofendida, muitas vezes às 05h00 da madrugada quando a ofendida se prepara para ir trabalhar.
28.Ao continuar a ameaçar e insultar a sua esposa, dentro da residência do casal e perante os seus filhos menores, o arguido continuou a agir com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, maltratar a ofendida, provocando-lhe com as suas condutas medo e humilhação, afectando o seu bem estar psicológico.
29.O arguido agiu sempre consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava a ofendida, debilitando-a psicologicamente, prejudicando o seu bem-estar, e ofendendo-a na sua honra e dignidade humana.
30.Agiu livre, deliberada e conscientemente, conhecendo o carácter proibido e punido por lei da sua conduta.
32.A demandante sentiu ao longo do tempo descrito nos autos vergonha e vexame com as expressões e imputações, atentatórias da sua honra, proferidas pelo demandado.
33.A demandante passou a ser uma pessoa receosa, com medo e a chorar com facilidade.
34.Face ao comportamento do arguido/demandado, a vergonha, o vexame, nervosismo e mágoa apoderaram-se da demandante.

Factos não provados:
Os constantes da acusação apresentada pelo arguido, designadamente, que a assistente quer obter ganho à custa do arguido.

Factos provados do pedido cível:
Todos os que são comuns à acusação, e ainda os descritos em 32, 33 e 34, supra.

Fundamentação da convicção:

A convicção do Tribunal “ad quem” assenta desde logo, nas declarações prestadas pelo arguido, fugindo às respostas directas, dando explicações para os comportamentos descritos na acusação, em que atribue a culpa dos mesmos à assistente, não mostrando qualquer compreensão para com a situação da mulher ou dos filhos menores, sobretudo para com a situação destes, igualmente vítimas dos comportamentos que tem para com a mulher.
No sem entender, tudo se resume ao facto de a mulher que se levanta às 05 horas da manhã para fazer limpezas, e trabalha todo o dia em limpezas, em várias casas, para sustentar os filhos, não ter disponibilidade para a vida conjugal por ter outra pessoa (palavras suas, em audiência).
A partir desta construção que fez, surgiram as situações de controlo e ciúme.
Aliás, cumpre salientar que quando responde à pergunta sobre se perseguia a assistente até ao local de trabalho, o arguido acaba por confirmar as queixas desta pois dá como explicação o facto de ter de passar naqueles locais para levar os filhos à escola, e para, depois, ir para o trabalho, o que não é verdade.
As palavras da assistente e do filho a respeito das agressões descritas na acusação, em resultados dos ciúmes constantes, mereceram credibilidade.
Nenhum dos dois revelou animosidade, o menor foi ouvido perante o Pai, o que contraria o recomendado pela Convenção de Istambul sobre protecção das vitimas de violência, e de violência doméstica, e ainda assim, depôs com calma.
A convicção do Tribunal assentou no conjunto de toda a prova documental junta aos autos, já enunciada para analisar se a decisão recorrida enfermava, ou não, de erro notório na apreciação da prova, e ainda no recente estudo sobre a condição das mulheres em Portugal, seus horários de trabalho, e situação … de cansaço em que se encontram.
Vejamos este excerto de artigo publicado no Expresso, da autoria da jornalista Ana França:
…”Há mulheres com companheiro que têm o mesmo ou menos tempo livre do que aquelas que não têm ninguém que as ajude em casa. Por isso, quem sofre quando a mulher não tem qualquer ajuda nas tarefas domésticas? E quando é discriminada no emprego ou quando é alvo de violência doméstica? Não, não é só ela, é toda a sociedade - mais divórcios, mais absentismo laboral por culpa do cansaço extremo, menos contribuições para a segurança social. Laura Sagnier, coordenadora do maior estudo algum dia feito sobre a mulher portuguesa, “As mulheres em Portugal, hoje”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, diz ao Expresso que a situação é “brutal e arrasadora”.

….O problema não é só não receberem. Isto acaba por contaminar imenso as relações, …  salvo raras exceções, que o ideal para a educação das crianças é terem os pais juntos. Isto tem menos probabilidade de acontecer se as mulheres se chatearem com os maridos pelo cansaço que a relação impõe. E ainda por cima em Portugal há muitas mulheres com emprego que não dependem, ou não dependem totalmente, do homem.
Exatamente. Em Portugal a percentagem de mulheres com emprego pago é de 71%, em Espanha é de apenas 59%. …”

Para compreensão dos fenómenos de agressão e violência no Quotidiano, socorreu-se ainda este Tribunal de recurso dos ensinamentos de Marie France Hirigoyen nas obras “Assédio, coacção e violência no quotidiano” e Assédio no trabalho, ambas da editorial Pergaminho, médica psiquiatra, psicanalista e terapeuta  familiar ,com formação em apoio à vítima tanto em frança como nos Estados Unidos, acções de formação junto de médicos do trabalho e de quadros de empresas públicas e privadas.
Finalmente, como instrumento de trabalho socorreu-se ainda do texto da Convenção de Istambul, sobretudo do disposto no seu artº 12º, nº 5 que impõe aos Estados que garantam que a cultura, os costumes, a religião, a tradição ou a pretensa honra não sirvam de justificação para actos de violência.
Os depoimentos das testemunhas inquiridas em julgamento, embora sem presenciar factos directos, permitem concluir qual a postura do arguido.
Se a mulher está ao telefone e ele insulta as amigas com quem aquela está a falar!....

O DIREITO:
O conjunto dos factos provados integra a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artº 152º nº 1 a) e nº 2 a), 4 e 5, todos do Código Penal.
Dispõe o referido artigo que …1 quem de modo reiterado, ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos a) ao cônjuge…é punido com pena de 1 a 5 anos de prisão;
Nº 2 :… se o agente praticar o facto…na presença de menor ou no domicilio comum é punido com a pena de 2 a 5 anos de prisão.
 
O crime de violência doméstica deve ser encarado e tratado como violação dos direitos humanos, e sobre o “estado” dos direitos das vítimas, independentemente do género.

…”
O agressor não é sempre do sexo masculino, e a vítima não é sempre do sexo feminino, mas … a nível estatístico, essa é a realidade mais comum. A nível estatístico, o homem é normalmente o perpetrador do crime e a mulher a vítima. Não obstante, … a violência doméstica não escolhe géneros e, cada vez mais, vemos homens como vítimas de violência doméstica. Infelizmente, não considero que a nossa sociedade esteja minimamente preparada para combater esse tipo de violência, com a agravante de existirem muitos preconceitos relativamente a essa questão. … a violência doméstica contra homens existe, apenas não é denunciada por vergonha e preconceito. “….
Maria Inês Ramos Nunes de Freitas, Dissertação de Mestrado em Direito Criminal, sob a direcção Drª Conceição Cunha, sobre ”Medidas de Protecção para Vítimas de Violência Doméstica” Nota Prévia.

No caso vertente, durante anos a fio, o arguido movido por ciúmes a seu ver justificados, dirigiu a sua mulher  …”atitudes, comportamentos e palavras que considerados em separado podem ser anódinos mas cuja repetição os torna destruidores…”
Através das perseguições, da reiterada imputação de condutas de infidelidade, de reiterada desconfiança, de injurias, de controlo de correspondência e telefone, quer o arguido impor a sua vontade de continuar casado à assistente, (trouxe-te de Moçambique, és uma ingrata, tens de me servir), e de continuar casado à sua maneira, sem qualquer respeito pela pessoa da sua Mulher, a quem deve respeito,…, cooperação e assistência, nos termos do disposto no artº 1672º do Código Civil, sob a epígrafe “deveres dos cônjuges”, e sem respeito pelas pessoas que são os filhos menores a quem deve proteger – artº 1901º - responsabilidades parentais na constância do matrimónio, 1877º, 1878º, 1885º, todos daquele mesmo diploma legal, sobre a duração e conteúdo das responsabilidades parentais, e conteúdo das responsalidades parentais em relação à pessoa dos filhos.
Segundo o Larrousse, Enciclopédia Universal, violência é a imposição coerciva de uma vontade com vista a alterar determinada situação, modificar comportamentos de pessoas ou, simplesmente, suprimi-las.
Como refere Marie France Hirigoyen, in Assédio no Trabalho, capítulo 12, “O que se passa entre as pessoas”, …seria um erro acreditar que os processos de violência são diferentes consoante se situem nas relações privadas ou num contexto profissional….as etapas que visam o esmagamento de uma pessoa, e, depois, a sua destruição são as mesmas em qualquer contexto: a violência é inicialmente destilada em doses homeopáticas e paralisa, através de procedimentos de dominação, a vítima que deixa de se poder defender…
Em todas as situações de conflito, cada um dos protagonistas tem o seu ponto de vista e o seu próprio interesse a defender…quando evocam o diferendo…parecem não estar a falar da mesma coisa…quando o assedio moral é provocado por um individuo….este julga estar a agir como age visto que a sua vítima o merece; …a pessoa visada, pelo menos inicialmente, não tem a certeza de não ser responsável por aquilo que lhe está a suceder…” ibidem.

E na obra “assédio, coacção e violência no quotidiano”, capítulo sobre “a violência privada”. Pág 36 e ss:

“Os procedimentos … são utilizados muito habitualmente quando dos divórcios e separações. Trata-se de um processo defensivo que se não pode, de antemão, considerar patológico. É o lado repetitivo e unilateral do processo que traz o efeito destruidor….
…, o objectivo é desestabilizar o outro e fazê-lo duvidar de si mesmo e dos outros.
Quanto mais forte é a pulsão do domínio maiores são o ressentimento e a cólera, as vítimas defendem-se mal, …a sua culpabilidade leva-as a mostrarem-se generosas, esperando assim escapar ao agressor que … não raro, …tendo empurrado o paceiro para a culpa, …”serve-se desse facto em seu proveito.
…”
…”Na realidade, receando eles próprios ser manipulados, e não sabendo quem manipula quem, os juízes jogam com prudência e mantêm essas situações de violência… como estão”.

Como é que isto nos ajuda a deslindar o caso vertente:

Em situação de perda, a seu ver justificada, (é preciso ter em conta a sua idade, a educação, a sua inserção socio profissional) o arguido inicia um processo de violência que começa nas injúrias, nas quezílias constantes por ciúmes com atribuição de infidelidades, injúrias à frente dos filhos menores, controlo de telefone e correspondência, de saídas, e intensifica essa conduta passando a cortar o gás, a electricidade, a água, sem querer saber do desconforto cruel infligido à mulher que se levanta às 05horas da manhã para ir fazer limpezas, e acaba o dia de trabalho às 09 horas da noite, e aos filhos, obrigados a lavar-se com água fria e a estar à luz da vela.
Não quer saber das consequências que as injúrias e os maus tratos psíquicos infligidos à assistente poderão ter na formação dos filhos menores, na sua formação enquanto pessoas.
Este processo passou por obrigá-la a cumprir o chamado débito conjugal pela força, violando-a, e finalmente, culminou na ameaça, proferida através dos filhos de que se saísse de casa a assistente não se iria gozar da casa.
Estamos perante um processo em crescendo, levado a efeito por um individuo em perda, que opta por lidar com esse processo exercendo violência sobre o outro, a quem culpa.
O dolo é pois intenso.
Agrava a situação o facto de estes maus tratos psíquicos decorrerem no interior da habitação, se prolongarem por vários anos, e de terem como destinatários os 3 filhos do casal. (também eles, vítimas e com necessidade de serem constituídos como tal).

Na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal deve ponderar, para efeitos preventivos especiais e gerais, que a pena deve ser tanto mais gravosa quando a vítima já tenha sofrido agressões anteriores da mesma pessoa.
Apesar do enquadramento que se efectuou já, do arguido, profissionalmente inserido, considerando a idade, a educação, a mentalidade, para compreensão/ integração da situação, não pode o Tribunal de julgamento, como referimos já anteriormente, permitir que a cultura, os costumes, a religião, a tradição ou a “pretensa honra” sirvam de justificação para actos de violência- artº 12º, nº 5 da Convenção de Istambul.
No caso vertente, há que atender ainda ao facto de o arguido não ter mostrado preocupação em cumprir as injunções que foram impostas, aquando da suspensão provisória do processo, e de ter intensificado as condutas agressivas após essa suspensão.
O arguido não tem antecedentes criminais.
Todavia, tal circunstância atenuante geral não assume aqui particular relevo, pois não há culpa sensivelmente atenuada quando o agente utilize repetidamente a violência física e psíquica sobre a vítima, Silva Dias, 2007, 111.
A diminuição sensível da culpa supõe menor exigibilidade de conduta diversa por parte do agente. Falta o requisito legal da diminuição sensível da culpa sempre que o agente para cometer os factos, usa de ameaça grave, violência, … A utilização de quaisquer meios de violência física ou psíquica, directa ou indirecta, sobre pessoas ou coisas afasta, desde logo, uma culpa sensivelmente diminuída….
A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição…
Também afasta a culpa diminuta a circunstância de o agente ter sido advertido por algum órgão do Estado …uma vez que se não deixou motivar pelos valores da ordem jurídica, apesar de estes lhe terem sido lembrados.”
Anotações 28, 29 e 30 ao artº 30º in Comentário do CP, Pinto Albuquerque.

DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA:

Como vimos já,
a conduta do arguido integra a previsão do artº 152º, nº 1 a) e nº 2 a), do Código Penal, cuja moldura pena é de 2 a 5 anos de prisão.

Dispõe o artº 70º do Código Penal que
 …se aos crimes foram aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa de liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

E, nos termos do disposto no artº 71º, nº1 do mesmo diploma, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Por seu turno, o artº 40º do Código Penal estabelece que a aplicação das penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos, e a reintegração do individuo na sociedade.

E estabelece como elemento balizador o de que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.

Assim, tendo presente que os bens jurídicos a proteger são o direito à vida e à integridade física e psíquica da assistente e dos filhos menores, o seu direito à liberdade e a viver sem medo permanente - tarefa essencial do Estado em relação a todos os cidadãos cfr artº9ºCRP, tendo presente ainda o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente (quer para com o cônjuge quer para com os filhos), a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime, a falta de preparação para manter conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através de uma pena, (no caso vertente, o cumprimento dos deveres de respeito decorrentes da celebração do casamento e a proibição de atingir física e psicologicamente outra pessoa, neste caso, o cônjuge e os filhos) entende-se adequada a pena de 3 anos de prisão.

SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO:

Dispõe o artº 50º do Código Penal que

1.O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (que como vimos, visam em primeiro lugar, a protecção dos bens jurídicos, logo, a protecção do direito à vida e à integridade física e psíquica, e à liberdade, das vítimas).
No caso vertente, o comportamento do arguido demonstrou que as finalidades da prevenção especial – proteger a integridade física e psíquica da Mulher e dos filhos, não podem ser atingidas através da imposição de uma pena suspensa.
O arguido, requerida que foi a suspensão provisória do processo, não cumpriu as injunções que lhe foram impostas, e passou a ter comportamentos ainda mais graves e ameaçadores.
A única forma de garantir que não continua a usar comportamentos que se traduzem em maus tratos psíquicos, e físicos, contra os elementos da família, assistente e filhos, é através da imposição de uma pena efectiva.
Do mesmo modo, só a imposição de uma pena efectiva preencherá, para além das finalidades de prevenção especial – conseguir que o arguido interiorize o desvalor dos comportamentos e se reintegre na sociedade, as necessidades prementes de prevenção geral no que à violência em geral, e à violência doméstica concerne.

DO PEDIDO CÍVEL:

A assistente deduziu pedido cível contra o arguido tendo como causa de pedir o conjunto de factos que se traduziram em injurias, ameaças, em casa, à frente dos filhos e perante terceiros, pressão psicológica exercida através de corte de água e electricidade quando tem de se levantar às 5 da manhã para ir trabalhar, e que lhe causaram enorme sofrimento, desgosto, vexame e humilhação, por se terem passado à frente dos filhos, de terceiros, e por atingirem também os filhos, com consequências até na prestação escolar.
Aliás, a assistente, perguntada, sente-se esgotada com esta situação e foi buscar forças aos filhos.
Teve de recorrer a apoio psicológico no Balcão de Igualdade de Género de Oeiras, que disponibiliza atendimento psicológico e jurídico a vítimas e agressores de violência doméstica e seus familiares.

No entender do psicólogo clínico que a acompanha no referido gabinete, deveria recomeçar a sua vida noutro sítio em que não tivesse memórias de actos sentidos como traumáticos.
Tem sofrido danos morais que ainda não terminaram.
Esses danos morais, pela gravidade e pelo tempo durante o qual se prolongaram merecem a tutela do direito.
Na sua fixação, ter-se-á ainda em atenção que o sofrimento da assistente foi agravado pelo facto de ter visto os filhos atingidos pelas condutas do arguido.
Tudo ponderado, tendo presentes o disposto no artº 77º do CPP, o artº  16º da Lei 130/2015, de 4 de Setembro, os artºs 483º, 487º, 486º e 496º do Código Civil, entende-se ser de julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido cível formulado pela assistente e condenar o arguido a pagar-lhe a quantia de 5000 euros a título de danos morais.

No mais, o pedido cível improcederá.

Os menores têm igualmente direito ao Estatuto de  Vítimas, pelo que assistente e filhos deverão beneficiar da protecção prevista no artº 15º da Lei nº 130/2015, pelo que as autoridades competentes deverão assegurar-lhes protecção adequada e suficiente para prevenir possibilidades de retaliação, sobretudo, no período que mediar entre a prolacção da presente decisão, e o inicio do cumprimento da pena em que o arguido foi condenado, tanto mais que o arguido vai ainda condenado ao abrigo do disposto no artº 152º, nº 5, na proibição de contacto com a vítima que inclui o afastamento do local da residência, pelo período de 3 anos, para garantir que após o cumprimento da pena e durante este, aquando das medidas de flexibilização da pena, se manterá afastado.
Conforme se decidiu no Ac do Tribunal Constitucional de 14 de Dezembro 1994…” a ampla margem de discricionariedade facultada ao juiz na graduação da sanção da inibição da faculdade de conduzir permite, perfeitamente, fixá-la, em concreto, segundo as circunstâncias do caso, desde logo, conexionadas com o grau de culpa do agente, NADA na Lei Fundamental exigindo que as penas acessórias tenham de ter , no que respeita à sua duração, correspondência com a pena principal (BMJ 446º, suplemento, 102) Logo, em situação mais premente, que tem a ver com a protecção de bens jurídicos essenciais,  a margem de discricionariedade tem maior justificação na aplicação da sanção acessória.

Finalmente, até ao trânsito da presente decisão, ao abrigo do disposto no artº 200º do CP e artº 16º da Lei nº 130/2015 – cautelarmente, fica o arguido obrigado a cumprir a proibição de contactos imposta, com afastamento da residência.

Decisão:
Termos em que acordam, após vistos e conferência:
a) Julgar procedente o recurso interposto pelo MºPº e pela assistente e, em consequência, revogar a decisão recorrida que substituem por outro que condena o arguido na pena de 3 anos de prisão efectiva pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p.p. pelo artº 152º, nºs 1 a) e nº 2 a), 4 e 5 do Código Penal, e na medida de proibição de contactos com a assistente, que inclui o afastamento da residência, pelo período de 3 anos.
b) Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido cível formulado pela assistente, e, em consequência, condenar o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de 5000 euros por danos morais.
c) Julgar, no mais, improcedente o pedido cível formulado.
d) Conceder também aos menores filhos do casal o Estatuto de Vítimas, com direito à protecção prevista no artº 16º da Lei nº 130/2015, incumbindo às autoridades da área da residência prevenir as possibilidades de represálias, designadamente, em consequência da presente decisão, sobretudo, no período que decorrer até ao trânsito respectivo, impondo ao arguido cautelarmente, a medida de proibição de contactos com a assistente,  com afastamento da residência, prevista no artº 200º nºd) do CP.
Para o efeito, ser-lhes-á de imediato comunicado o presente acórdão, bem como às autoridades policiais da área da residência, ao Gabinete de Apoio e aos IRS.
Dar-se á conhecimento, de imediato, à vitima/assistente de que foi proferido acórdão, através do Il Defensor/mandatário.

Fixar a taxa de justiça em 3 ucs.
Registe e notifique, nos termos legais.
Lisboa, 21 de Março 2019