Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8595/08.4YYLSB-B.L1-1
Relator: JOÃO AVEIRO PEREIRA
Descritores: ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
OCUPAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
CUMULAÇÃO SUCESSIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/26/2010
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – O contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante da dívida é título executivo também para as quantias devidas pelo uso do locado para além do termo do contrato.
II – Nada impede a cumulação sucessiva deste título executivo com aquele que se refere às rendas propriamente ditas, referentes ao período de vigência do contrato de arrendamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – Relatório

Na acção executiva comum, para pagamento de quantia certa, com processo sumário, que PARQUE ..., S.A., move, no 3.º Juízo de Execução de Lisboa, contra A... & S..., LDA., a exequente recorre da decisão que lhe indeferiu liminarmente o requerimento de cumulação sucessiva de execuções.
A Recorrente concluiu assim as suas alegações:
1. A obrigação pecuniária que impende sobre o inquilino, uma vez resolvido o contrato de arrendamento, de continuar a pagar a renda, agora a título de indemnização, até à entrega do locado, tem natureza contratual. A situação contratual (arrendamento) pré-existente projecta-se, mantendo-se factualmente a anterior situação de correspectividade: pagamento de uma prestação pecuniária igual à renda que se encontrava convencionada enquanto permanecer a ocupação/não entrega do locado.
2. O n.º 2 do art. 15.º da Lei 6/2006, de 27/2, deverá ser interpretado no sentido de compreender essas prestações pecuniárias, previstas no art. 1045 do Código Civil, ou seja, de também permitir a formação de título executivo, nos termos naquele previstos, para a acção executiva de cobrança das mesmas rendas a título de indemnização.
3. Subsidiariamente. Tendo sido junto aos autos, com a execução inicial, o contrato de arrendamento assinado pela inquilina/Executada e, com o requerimento de cumulação sucessiva, certidão judicial comprovativa da não entrega do mesmo locado, permitindo a determinação da quantia exequenda por simples cálculo aritmético, inexiste manifesta falta ou insuficiência de título, al. c) do n.º l do art. 46 do C.P.C.. Pelo que, atento o princípio do aproveitamento da actividade processual já realizada, a doutrina que dimana do poder de direcção e do principio da cooperação, e o n°3 do art. 812-E do C.P.C., impunha-se o convite à Exequente-Apelante para suprir a irregularidade e não, sem mais, o indeferimento liminar.
Nestes termos e mais de direito, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, e admitindo-se a cumulação sucessiva da execução.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Atenta a simplicidade das questões a decidir, vai ser proferida decisão sumária pelo relator, nos termos do art.º 705.º do CPC.
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Uma vez que são as conclusões das alegações da recorrente que delimitam o objecto do recurso, a questão que aqui importa decidir é se há ou não lugar à pretendida cumulação sucessiva de execuções.
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II – Fundamentação
A. Com interesse para a decisão da causa mostra-se assente o seguinte:
1. No dia 12-11-2008, veio a exequente requerer a execução de outro título, juntando, para o efeito, uma cópia de uma carta registada com aviso de recepção que remeteu à executada, através da qual lhe deu a conhecer que era devedora de uma determinada quantia pecuniária a título de indemnização prevista no art.º 1045.º do código civil.
2. No requerimento executivo, foi alegado pela exequente o seguinte:
Obrigação de pagamento de quantia certa: valor das rendas, a título de indemnização, pela não restituição do locado (sito na Rua ..., Lote ..., módulos ..., em Lisboa) após a cessação do contrato de arrendamento.
A Exequente Parque ..., S.A., vem requerer no mesmo processo a execução de outro título para pagamento de quantia certa contra a Executada A... & S..., Lda.
Nos autos sob o n°.../08.OYYLSB, da 1a Secção do 1° Juízo de Execução de Lisboa, corre contra a Executada uma execução para entrega de coisa certa. A Executada foi citada aos 14/03/2008 para entregar o locado.
Aos 28/07/2008 a Exequente comunicou à Executada, por carta registada c/A.R., o montante das rendas em divida, a título de indemnização, correspondente ao valor das rendas (em singelo) vencidas de Março/2007 até Março/2008, e ao dobro do valor das rendas vencidas a partir de Abril de 2008 inclusive até 28 Julho de 2008 (doc. 1).
3. A Exequente enviou à Executada a referida carta registada com aviso de recepção, datada de 28-07-2008, com o seguinte teor:
Registada c/A.R
Exmos. Senhores,
Pela notificação judicial avulsa proc. n° .../07.6TJLS8 da 3a Secção do 1° Juízo Cível de Lisboa foi dado conhecimento a essa sociedade, aos 30/10/2007, que considerávamos resolvido o contrato de arrendamento celebrado acs 16/02/2001 referente à fracção "U" sita na Rua ..., Lote ..., módulos ..., em Lisboa.
Foi-lhes ainda comunicado, pela mesma supra referida notificação judicial avulsa, que essa sociedade tinha em dívida, em Fevereiro 2007, de rendas vencidas € 263.561,29 e de encargos e despesas € 9.188,86.
Nos termos do art. 1045 n°1 do Código Civil, findo o contrato de arrendamento, e enquanto o locado não for restituído, o inquilino é obrigado a pagar até ao momento da restituição a renda que se encontrava estipulada. Em conformidade com o n°2 do mesmo preceito legal tal valor é elevado para o dobro logo que o inquilino se constitua em mora.
Tendo essa sociedade sido citada para a execução destinada à entrega coerciva do locado, a qual corre sob o n° .../08.0(YLSB pela 1a Secção do 1° Juízo de Execução de Lisboa, aos 14/0312008, existe mora a partir desta data. (fls. 6 a 8 destes autos de recurso, em separado)

B. Apreciação jurídica
A principal questão suscitada neste recurso, saber se há ou não lugar a cumulação sucessiva de execuções, desdobra-se em duas subquestões, quais sejam a de saber se existe efectivamente um título executivo sucessivo [1)] e se, na afirmativa, é admissível a dita cumulação [2)].
1) Do título executivo
As espécies de títulos executivos estão taxativamente elencadas no art.º 46.º, n.º 1, do CPC. Na al. c) deste preceito encontram-se previstos, como títulos executivos, «os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa certa ou de prestação de facto». Além destes, são também títulos executivos «os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva - al. c) do artigo.
Neste caso, há que ter em consideração o disposto no art.º 15.º, n.º 2, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, segundo o qual «o contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida».
Perante isto, será que um tal título executivo vale também para as quantias devidas pelo uso do locado para além do termo do contrato?
Na decisão recorrida entendeu-se que não, pois, segundo aí se lê, extinto o contrato de arrendamento, já não se pode falar em rendas, nem em arrendatário, pelo que restará recorrer a uma acção declarativa para eventual condenação do executado no pagamento da indemnização a que alude o art.º 1045.º do código civil.
A Recorrente sustenta tese contrária, defendendo que o n.º 2 do art.º 15.º da Lei n.º 6/2006, de 27-2, deverá ser interpretado no sentido que lhe convém, ou seja, de compreender essas prestações pecuniárias previstas naquele art.º 1045.º, permitindo a formação de título executivo para a acção executiva de cobrança das mesmas rendas a título de indemnização.
Por sua vez, o art.º 1045.º do código civil dispõe que «1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida». A indemnização será elevada para o dobro logo que o locatário se constitua em mora (n.º 2)
Como se vê, apesar de o contrato de arrendamento ter findado, a lei continua a designar por locatário o obrigado a pagar a renda ou o aluguer, que as partes tenham estipulado. Portanto, contrariamente ao defendido na decisão recorrida, é a própria lei que usa termos jurídicos decorrentes do contrato, como locatário, o mesmo que arrendatário (locatário de imóvel), e renda. Isto permite desde logo concluir pela ocorrência de uma espécie de ultravigência do contrato extinto, para efeitos de cobrança de todas as rendas devidas e que com ele estão conexionadas. Não se trata de uma solução única no nosso ordenamento jurídico, pois, algo semelhante acontece no tocante às sociedades comerciais, quando uma sociedade dissolvida mantém a sua personalidade jurídica tão-só para efeitos da sua liquidação.
No caso presente o n.º 2 do supra referido art.º 15.º não restringe a formação de título executivo à acção para pagamento de renda na pendência do contrato de arrendamento. Portanto, afigura-se não dever ser o intérprete e aplicador a fazer uma tal distinção restritiva.
Outra preocupação manifestada na decisão recorrida é a que se prende com a comunicação ao arrendatário do montante da renda em dívida, com a observância do formalismo previsto nos n.ºs 1 a 6 do art.º 9.º do NRAU. Todavia, logo no n.º 1 se refere que as comunicações legalmente exigíveis entre as partes, relativas à cessação do contrato de arrendamento são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de recepção.
O caso em análise prende-se também com a cessação do contrato de arrendamento e, como se verifica pela carta de fls. 6-7 e seu aviso de recepção de fls. 8, a Exequente comunicou devidamente à Executada o montante da dívida, aludindo até à anterior notificação judicial avulsa pela qual resolvera o contrato de arrendamento.
Deste modo, uma tal missiva, indicando o montante da renda, juntamente com o contrato de arrendamento em causa não podem deixar de constituir título executivo relativamente às rendas, sejam estas anteriores ou posteriores à cessação do contrato, desde que anteriores à restituição do local arrendado.
Na verdade, perante as disposições legais acima equacionadas, não faria sentido que o senhorio, depois de ter feito cessar o contrato de arrendamento, tivesse que instaurar uma acção executiva para reaver o local arrendado e uma acção declarativa para cobrar as rendas indemnizatórias entre aquela cessação e a restituição do imóvel. Uma tal solução, além de kafkiana, seria injusta, pois penalizava demasiado o senhorio e contribuiria ou para o aumento dos litígios, em quantidade e em duração, ou para desmotivar os credores de rendas de fazerem valer o seu direito em juízo. Não pode ter sido isto que o legislador quis consagrar, sendo certo que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei ou à sua terminologia, mas deve ter também em consideração as circunstâncias em as normas são aplicadas, neste caso, a necessidade de simplificação e economia processuais, bem como economia de custos – art.º 9.º do código civil.

2) Da cumulação sucessiva
Nos termos do art.º 54.º do CPC, enquanto uma execução não for julgada extinta, pode o exequente requerer, no mesmo processo, a execução de outro título, desde que não exista nenhuma das circunstâncias que impedem a cumulação, sem prejuízo do disposto no número seguinte (n.º 1), salvo quando as execuções tiverem fins diferentes [(art.º 53.º, n.º 1, al. b)]. Contudo, este obstáculo cessa logo que a execução iniciada com vista à entrega de coisa certa ou de prestação de facto seja convertida em execução para pagamento de quantia certa (n.º 2)
No caso em apreciação, o requerimento executivo refere-se à cumulação sucessiva deste título com outro no processo n.º 8595/08.4YYLSB, do mesmo juízo e secção, ambos para pagamento de quantia certa, o inicial relativo às rendas em dívida à data da resolução contratual e o segundo referente às rendas indemnizatórias posteriores à extinção do contrato até à restituição do imóvel.
Nesta conformidade, não se vê aqui obstáculo que possa impedir a pretendida cumulação sucessiva de execuções, razão por que a decisão recorrida não pode subsistir.

III – Decisão
Pelo exposto, julgo procedente o recurso e, por consequência:
1) revogo a decisão recorrida; e
2) ordeno a sua substituição por outra que admita a cumulação sucessiva, seguindo-se os ulteriores termos processuais legais.
Custas a final.
Notifique.
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Lisboa, 26 de Julho de 2010

João Aveiro Pereira