Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4372/2005-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: CONTRATO DE ATRIBUIÇÃO
RESCISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: 1 - Para que o IFADAP possa proceder à rescisão unilateral do contrato de financiamento, denominado “contrato de atribuição de ajuda”, é necessário que ocorra o incumprimento culposo por parte do respectivo beneficiário.
2 - A interrupção ou inexecução do projecto de investimento devida a intempérie de anormal gravidade, não pode ser imputada ao beneficiário que tenha desenvolvido com a devida diligência a exploração agrícola financiada pelo IFADAP.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


Veio nos presentes autos (A) deduzir embargos de executado contra Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas – IFADAP, alegando e em síntese que:
Em Julho de 1987 apresentou um projecto de investimento ao IFADAP, que o aprovou, vindo a ser celebrado o acordo de atribuição de ajuda, de 23/2/88 posteriormente alterado em 27/9/88.
Logo no início da execução do projecto, duas das estufas foram parcialmente destruídas pelos fortes ventos. Do que foi dado conhecimento ao IFADAP por carta de 2/3/89.
E no Outono de 1989 as estufas já instaladas foram destruídas pela tempestade que assolou a zona, obrigando a embargante à sua integral reconstrução.
Nesse inverno, vendavais fortíssimos arrasaram as estufas reconstruídas.
As ajudas recebidas no âmbito do contrato haviam sido integralmente aplicadas no projecto. A última tranche, de 500 contos, não permitia custear a reconstrução das estufas e execução integral do projecto.
Daí que o IFADAP tenha implementado um programa especial com vista a apoiar a recuperação dos prejuízos. Em 29/10/90 foi celebrado o respectivo contrato de concessão de ajuda.
Contudo o montante de tais ajudas era insuficiente para a reparação dos prejuízos sofridos.
Uma vez que nem com a última tranche do contrato exequendo seria possível recuperar os prejuízos, a embargante não diligenciou o seu levantamento.
Por outro lado, a inflação ocorrida no triénio 1989/91 conduziu a desfasamentos entre os valores projectados e os reais, tornando inviável a execução integral do projecto inicial.
Após diversas reuniões tidas com representantes do IFADAP, a embargante comunicou em 17/2/92, que o projecto apreciado e aprovado pelo IFADAP se tornara inviável, face aos motivos acima expostos.
Por carta de 14/9/92 o IFADAP comunicou à embargante que fora deliberado rescindir unilateralmente o contrato de atribuição de ajudas. Requerida a reapreciação da deliberação, o IFADAP comunicou à embargante, por carta de 3/5/93 que a nova análise efectuada não conduzira a qualquer alteração à decisão anterior.
Exigindo à embargante o pagamento do montante da ajuda atribuída e respectivos juros.
No entanto, a embargante não é responsável pela não execução do programa, a qual se deveu a motivos fortuitos. Além disso, os juros com mais de cinco anos, encontram-se prescritos.

O embargado contestou, alegando que em relação ao projecto inicial apenas foram implantados 2.000 dos 5.750 m2 de estufas subsidiadas, não tendo sido construído o poço e apenas tinha sido adquirido um sistema de rega de cerca de 2.000 m2.
A situação de inexecução foi localmente verificada como também o foi a inexistência de quaisquer obras de recuperação.

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Realizou-se o julgamento, vindo a ser proferida decisão que julgou os embargos improcedentes.

Inconformada recorre a embargante, concluindo:
- A questão da “celebração de seguros que lhe permitissem reconstruir as estufas”, referida na sentença recorrida, não havia sido suscitada pelas partes, pelo que o Tribunal dela não podia tomar conhecimento.
- O que provoca a nulidade prevista no artº 668º nº 1 d) do CPC.
- A embargante não assumiu com o embargado uma obrigação de garantia mas sim uma obrigação de resultado.
- A embargante obrigou-se a aplicar integralmente a ajuda concedida na execução do projecto de investimento, mas não assumiu o risco da não verificação do mesmo.
- A embargante aplicou toda a ajuda recebida no projecto, não tendo podido concluí-lo devido às intempéries.
- Face às situações de caso fortuito, o incumprimento não pode ser imputável à embargante.

O IFADAP defende a bondade da decisão recorrida.
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Com interesse para o presente recurso, foi dado como provado que:
1. Em Julho de 1987 a embargante apresentou um projecto de investimento ao IFADAP, que o aprovou nos termos de concessão de ajuda que constam do contrato de atribuição, a fls. 10 e ss.
2. A embargante apresentou candidatura aos apoios no âmbito do POT Out/Inv, a qual foi aprovada pelo IFADAP.
3. A aprovação e contratação do projecto referido em 1. teve por base o orçamento apresentado pela embargante, para construção e implantação de estufas com a área de 1920 m2.
4. Por carta de 14/9/92 junta a fls. 19, o IFADAP comunicou à embargante que fora deliberado rescindir unilateralmente o contrato de atribuição de ajudas referente ao projecto.
5. Tal deliberação baseou-se na “verificação da não execução dos investimentos conforme o aprovado”.
6. A embargante requereu a reapreciação dessa deliberação, o que veio a ocorrer, não conduzindo contudo a qualquer alteração à decisão anterior.
7. No Outono de 1989 as estufas estavam já instaladas em cerca de metade da área prevista.
8. E foram destruídas pela tempestade que assolou a zona.
9. A embargante procedeu à sua reconstrução.
10. No Inverno que se seguiu as estufas reconstruídas foram de novo destruídas por vendavais.
11. Tendo a embargante procedido de novo à sua reinstalação.
12. As ajudas recebidas no âmbito do contrato celebrado com o IFADAP foram totalmente aplicadas na execução do projecto.
13. Em visita à exploração agrícola da embargante, o IFADAP constatou que, no âmbito do primeiro projecto, apenas se implantou cerca de metade da área prevista das estufas subsidiadas, não havia sido construído o poço e apenas havia sido adquirido um sistema de rega para cerca de metade da área prevista.
14. Tendo o IFADAP solicitado à embargante a justificação dessa situação, o que aquela fez por carta junta a fls. 16.
15. O IFADAP informou a embargante de que poderia comparecer nos serviços, em 7/1/92, tendo esta comparecido e ficado de apresentar justificação para a verificada inexecução do projecto.

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Cumpre apreciar.
Estamos perante um contrato de financiamento, denominado “contrato de atribuição de ajuda”, celebrado entre a recorrente e o IFADAP.
Nos termos de tal contrato, a ora embargante estava, além do mais, obrigada a:
- Aplicar integralmente a ajuda concedida na execução do projecto de investimento anexo, com vista à realização dos objectivos visados e aprovados.
- Actuar por forma a cumprir pontualmente a execução do projecto de investimento anexo.
Daqui resulta que a embargante tinha de concretizar o projecto que apresentara ao IFADAP e fora por este aprovado, utilizando as verbas recebidas exclusivamente em tal projecto.
É verdade que a embargante satisfez esta última exigência, já que todo o dinheiro que recebeu do IFADAP foi aplicado na exploração agrícola projectada.
E também é verdade que não logrou dar integral cumprimento à outra obrigação, ou seja, pôr de pé e em execução o projecto que merecera a aprovação e financiamento do IFADAP, nomeadamente tendo implantado apenas metade da área prevista de estufas subsidiadas, não tendo construído o poço e adquirindo um sistema de rega para cerca de metade da área prevista.
Foi com base em tal situação que o IFADAP, em 14/9/92 comunicou à embargante que fora deliberado rescindir unilateralmente o contrato de atribuição de ajuda.
Nos termos do contrato junto a fls. 79, no ponto F.1, “no caso de incumprimento pelo beneficiário de qualquer das suas obrigações ou de desaparecimento, que lhe seja imputável, de qualquer dos requisitos da concessão de ajuda, o IFADAP poderá, unilateralmente, rescindir este contrato ou modificá-lo nos termos da correspondente decisão das entidades competentes”.
Em caso de rescisão unilateral do contrato, nos termos citados, fica o beneficiário obrigado a reembolsar o IFADAP das importâncias recebidas a título de ajuda, acrescidas de juros calculados desde a data em que tais importâncias foram colocadas à sua disposição.
Na sentença recorrida considerou-se que do contrato resultou, para a embargante, uma obrigação de resultado e não uma simples obrigação de meios. Daí que, tendo-se obrigado a construir a exploração agrícola nos moldes que haviam sido aprovados, a embargante devesse ter usado de diligência, celebrando seguros que lhe permitissem reconstruir as estufas sem gastar a totalidade do dinheiro recebido do IFADAP, estando tal dinheiro reservado nomeadamente para a construção do poço e para a compra do sistema de rega.
Estes argumentos surpreendem-nos, já que nunca foi invocada pelo IFADAP qualquer falta de diligência da embargante, nem as partes mencionaram em momento algum a questão a questão dos seguros.
Parece-nos existir um esforço do Mº juiz a quo para atribuir à embargante uma conduta negligente conducente a um incumprimento culposo, esforço esse totalmente à revelia da matéria de facto alegada pelas partes e dada como provada. Nem sequer sabemos, já que a sentença o não refere, se o julgador se inteirou da possibilidade de celebrar um tal tipo de seguro em 1989.
Isto não determina a nulidade da sentença, já que tal matéria não foi levada à factualidade provada, não representando pois a introdução de factos novos e não alegados. Trata-se apenas de uma questão abordada a título de argumentação, quase a título exemplificativo, mas manifestamente infeliz já que faz orienta a causa para o âmbito da negligência, a qual não fora invocada.
Mas isto revela que também o Mº juiz a quo não terá deixado de se sentir impressionado pelo facto de o contrato ser resolvido pelo simples motivo de a embargante não ter construído o projecto na dimensão prevista, independentemente das razões que a levaram a tal.
Sendo certo que a cláusula F1 alude claramente à culpa do beneficiário (“... que lhe seja imputável ...”).
Da matéria de facto dada como provada, salientamos os seguintes pontos:
- “No Outono de 1989 as estufas estavam já instaladas em cerca de metade da área prevista”.
- “E foram destruídas pela tempestade que assolou a zona”.
- “A embargante procedeu à sua reconstrução”.
- “No Inverno que se seguiu as estufas reconstruídas foram de novo destruídas por vendavais”.
- “Tendo a embargante procedido de novo à sua reinstalação”.
- “As ajudas recebidas no âmbito do contrato celebrado com o IFADAP foram totalmente aplicadas na execução do projecto”.

Parece manifesto que a embargante começou o projecto normalmente e que, face à sucessão de factores climatéricos incontroláveis – tempestades – foi forçada a utilizar as verbas do financiamento em repetidas reconstruções das estufas já instaladas em Outubro de 1989.
Daqui resultando que já não dispôs de verba para construir as restantes estufas e o poço.
Não se vislumbra qualquer conduta negligente da emnbargante, mas antes a conduta normal de uma pessoa a braços com problemas que a ultrapassam em absoluto, e que, perante isso, tenta salvar aquilo que já realizou, mesmo que à custa da impossibilidade de cumprir a totalidade do projecto.
Note-se que não se prova qualquer deficiência ou falta de previsão na construção das estufas que as tornasse mais vulneráveis a intempéries ou qualquer outra circunstância que nos permitisse concluir que a embargante não usara da diligência devida. Pelo contrário, mostra-se que actuou de modo que se afigura sensato, perante a anormalidade das situações que teve de enfrentar.
E que tais situações foram anormais comprova-o, se necessário fosse, o facto de o próprio Secretário de Estado da Agricultura ter implementado o Programa Operacional Temporais Out/Inv, visando “a melhoria da competitividade da agricultura e promoção do desenvolvimento rural pela reconstituição do potencial produtivo agrícola após os temporais ocorridos em determinadas regiões do País nos meses de Outubro de 1989 e Janeiro de 1990” – artº 6º da contestação do IFADAP.

Das obrigações contratuais assumidas pela beneficiária sobressaem, como vimos, para lá de ter de aplicar a ajuda concedida exclusivamente no projecto, “com vista à realização dos objectivos fixados e aprovados” e o actuar de modo a cumprir pontualmente a execução do projecto de investimento.
Poder-se-á falar aqui de um verdadeiro incumprimento?
A embargante usou a ajuda exclusivamente no projecto, com vista à realização dos objectivos aprovados, já que não se prova, nem sequer alega, que tenha por algum modo modificado tal projecto.

Por outro lado, a embargante actuou de modo a cumprir a execução do projecto. Se não logrou concretizá-lo, tal deveu-se a razões inteiramente alheias à sua vontade. De resto, é manifesto que, na ausência de qualquer uso indevido ou abusivo das verbas do financiamento, a embargante era a primeira interessada em concretizar o projecto, visando o conjunto de estruturas agrícolas a que dedicava a sua vida.
A actuação da embargante mostra que esta procurou salvar o que podia ser salvo, recuperar algumas das estufas na impossibilidade de as implementar todas, enfim de salvaguardar o máximo possível da sua exploração agrícola.
Nos termos do artº 432º nº 1 do CC, é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção.
No caso dos autos, foi exactamente convencionado no contrato de ajuda, a possibilidade de o IFADAP rescindir unilateralmente o contrato em caso de incumprimento pelo beneficiário de qualquer das suas obrigações ou de desaparecimento, que lhe seja imputável, de qualquer dos requisitos da concessão de ajuda.
Ora, a Aª não chegou verdadeiramente a incumprir nenhum dos pontos da cláusula D do contrato. Na sentença recorrida considerou-se que ocorrera incumprimento do ponto D.4. Contudo, como vimos, a embargante sempre actuou de forma a cumprir pontualmente a execução do projecto de investimento; mesmo depois da destruição das estufas, usou a verba da ajuda para as reconstruir – e isto por duas vezes – até chegar à conclusão que o financiamento seria já insuficiente para dar total satisfação ao projecto, ou seja, construir as estufas em toda a área previamente definida e o poço.
E mesmo que em termos estritamente objectivos, de resultado, se pudesse falar de incumprimento, ele não resultava de uma actuação menos diligente da embargante: e o ponto D.4 do contrato fala exactamente da obrigação da beneficiária de actuar de forma a cumprir pontualmente a execução do projecto.
Logo, a resolução contratual do IFADAP não respeitou os termos contratuais, já que se não verifica nenhum dos motivos elencados na cláusula F.1 que a justificam.
De resto, prevendo-se na cláusula F a possibilidade de modificação do contrato e estipulando a cláusula G que o IFADAP poderá, a todo o tempo, constituir garantia real sobre bens do beneficiário, face a tudo o que se disse, nomeadamente a destruição das estufas implantadas, por duas vezes, fruto de intempéries, cuja violência e singularidade foram devidamente assumidas pela Secretaria de Estado, parece desproporcionada a atitude do IFADAP, colocando a beneficiária numa situação altamente delicada, com um projecto agrícola reduzido a metade e uma dívida expressiva, que irão colocá-la numa situação ainda pior do que antes de requerer a ajuda do IFADAP.
Entendemos a preocupação do embargado em impedir abusos ou até situações de menor diligência: mas, como resulta da matéria dada como provada, nada disso ocorre na situação dos autos.

Conclui-se, assim, que a rescisão unilateral do contrato pelo IFADAP viola os termos do contrato celebrado com a embargada.

Face ao exposto acorda-se em dar provimento à apelação, julgando procedentes os embargos.
Sem custas.

LISBOA, 6 de Julho de 2005

António Valente
Sacarrão Martins
Teresa Pais