Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24781/15.8T8LSB.L1-4
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I–O erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410.º n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, consubstancia-se num vício de raciocínio na apreciação das provas, que se revela pela simples leitura da decisão recorrida; as provas apontam em determinado sentido e na decisão conclui-se em termos opostos, o que é passível de ser detectado por qualquer pessoa de mediana formação, e não ocorre no caso vertente.
II–O “princípio in dúbio pro reu”, está reservado para os casos de impasse probatório, e não para o presente em que apenas se verifica a existência de duas versões (parcialmente) contraditórias, em que uma delas, a da acusação, se pode razoavelmente considerar como menos sólida ou consistente.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


AA LDA. veio, nos termos do disposto no art.º 33º da Lei n.º 107/2009 de 14 de Setembro, interpor recurso de impugnação da decisão administrativa proferida pela ACT – AUTORIDADE PARA AS CONDIÇÕES DO TRABALHO  que lhe aplicou a coima de € 2 .52,00 pela prática da infracção prevista no art.º 79.º n.º 1 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.

Realizou-se a audiência de julgamento.

Proferida sentença foi concedido provimento ao recurso interposto e, em consequência, absolvida a arguida.

Inconformado com esta decisão dela recorre o Ministério Público, concluindo, em síntese, as suas conclusões de recurso do seguinte modo:

-A Mma Juíza ao absolver a arguida violou o princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, pois em face da prova testemunhal produzida em julgamento, deveria ter sido dado como provado que entre o condutor BB e a arguida existia uma relação laboral, trabalhando o mesmo como motorista, sob as ordens, direcção e fiscalização da arguida, que agiu de forma consciente, bem sabendo que não havia celebrado qualquer seguro de acidente de trabalho a favor daquele.

Foi cometido “erro notório na apreciação da prova”.

A arguida respondeu ao recurso, no sentido da manutenção da decisão recorrida.

Nesta Relação teve o MP vista dos autos.

II–FUNDAMENTAÇÃO.

a)Matéria de facto.

1.-No dia 29.03.2012, pelas 8h30m, no Parque Norte da Ponte 25 de Abril em Lisboa, CC conduzia um veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (…) , propriedade da arguida.
2.-Tendo o referido condutor sido objecto de uma fiscalização, o mesmo declarou ao inspector da ACT que o fiscalizou que se encontrava ao serviço da arguida desde 2.02.2012, com o horário de trabalho das 8 h às 16/17 horas e descanso semanal aos sábados e domingos, auferindo um vencimento de euros 750,00 mensais.
3.-A arguida não havia transferido a responsabilidade emergente de acidente de trabalho relativamente a CC para uma entidade legalmente competente.
4.-No dia, hora e local referidos no n.º 1, o condutor em causa transportava material da arguida para quatro clientes da margem sul do Tejo, sendo portador das guias de transporte.

b)O Direito.

Como é sabido, o âmbito do recurso está delimitado pelo teor das respectivas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim, importa aquilatar se ocorreu erro notório na apreciação da prova e violação do princípio da livre apreciação da prova.

Nos termos dos artigos 66.º e 75.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo DL 433/82, de 27/10 (RGCO), com as alterações decorrentes do DL 356/89, de 17/10, pelo DL 244/95, de 14/9, pelo DL 323/2001, de 17/12 e pela Lei 109/2001, de 24/12), em caso de recurso de decisões referentes a processos por contra-ordenações, a 2.ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância. Estatui, com efeito, o n.º 1 do citado artigo 75.º que “se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá de matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal (CPP), por força do preceituado nos artigos 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do RGCO, aplicando-se subsidiariamente o regime do CPP ao processo contra-ordenacional.

Nos termos do art.º 410.º n.º 2 do CPP:
Mesmo nos casos que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
(…)

c)Erro notário na apreciação prova”.
De acordo com a citada disposição legal, verifica-se erro notório na apreciação da prova quando do próprio texto da decisão recorrida emergem contradições insanáveis, intrínsecas à própria decisão, por si só ou conjugadas com as regras de experiência.

O erro notório na apreciação da prova, consubstancia-se, pois, num vício de raciocínio na apreciação das provas, que se revela pela simples leitura da decisão recorrida. As provas apontam num sentido e a decisão conclui em termos opostos, o que é notoriamente detectável.

O “princípio da livre apreciação da prova” contemplado no art.º 127.º do CPP  significa que “ … a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.Todavia, essa liberdade de apreciação não se traduz em qualquer poder arbitrário ou incontrolado do julgador, na medida em que o mesmo baseia a sua convicção de acordo com as regras da experiência comum, e a normalidade das circunstâncias, passíveis de motivação e de controlo (Acórdão do Tribunal Constitucional de 19.11.96, BMJ, pág. 93).

Insurge-se o recorrente pelo facto de se não ter dado como provado que BB nas circunstâncias de tempo e lugar referidos nos factos provados exercia a sua actividade de motorista, sob as ordens, direcção e fiscalização da arguida. E que esta agiu sem o cuidado a que estava obrigada.

Pretende, em suma, que a versão apresentada por aquele em audiência não – de que havia pedido emprestado à arguida o veículo para transportar mobília pessoal e que esta lhe pediu para transportar mercadoria da empresa para entrega na margem sul, por mero favor, o que aceitou, não corresponde ao que aquele disse na altura ao agente autuante (em que declarou trabalhar para a arguida), nem ao que consta das suas declarações prestadas perante a ACT.

Sendo o dito BB amigo do gerente da arguida, pertencente o veículo à arguida, sendo nele transportada mercadoria desta, para ser entregue a clientes da margem sul, a arguida tentou inverter a situação contra as regras da experiência comum, ao apresentar a versão de que o motivo principal da utilização do seu veículo era no interesse pessoal do condutor BB. Tratando-se de uma justificação sem sentido e inaceitável, em que tudo foi combinado com o condutor para pôr em causa a versão que inicialmente apresentou.

Da posição do MP, acima sumariada, resulta pretender o mesmo colocar em causa a matéria de facto provada que, em seu dizer, assentou uma versão “construída” pela arguida, que contraria as regras da experiência comum, o princípio da livre apreciação da prova, e redunda em erro notório na apreciação da prova.

Mas não lhe assiste razão.

Na verdade, lendo a decisão impugnada, nela se enuncia em termos lógicos, e à luz das regras da experiência, as razões que levaram o tribunal a convencer-se da realidade dos factos vertida na decisão recorrida. Considerou-se a versão da testemunha, o condutor da viatura na altura, o qual tendo sido confrontado com o teor do auto de notícia, referiu não se lembrar de ter dado tais informações e que ficou muito nervoso com a fiscalização por ter receado não poder efectuar o dito transporte.

A testemunha DD, da ACT, confirmou o teor do auto de notícia, mas também afirmou que o dito BB ficou muito nervoso aquando da fiscalização, tendo notificado a arguida para comprovar a celebração do contrato de seguro, e esta afirmado que aquele, na altura, não era seu trabalhador.

Acresce que a testemunha EE, reforçou a versão da arguida, tendo dito que deu um mobília ao BB que estava a separar-se e precisava de mobiliário para a nova residência que se encontrava na margem sul, sendo necessário ir buscá-la. E porque aquele não tinha transporte lembraram-se de pedir uma carrinha emprestada ao gerente da arguida, mais referindo que aquele estava desempegado.

Ora, perante tais versões dos factos, não se vislumbra ocorrer qualquer vício de raciocínio, à luz das regras da vida e a experiência, ao não se considerar provado o tipo de vínculo existente entre o mencionado BB e a arguida. Pois, como se disse naquela decisão, se é indubitável que na altura da fiscalização aquele se encontrava a efectuar um transporte de mercadoria no interesse e por conta da arguida, não se apuraram (outros) elementos que nos permitam concluir pela existência da subordinação jurídica, designadamente ordens, direcção ou fiscalização por parte daquela. A que acresce a circunstância de nada se ter provado quanto a horário de trabalho e local (zona) de trabalho.

Os dados factuais ao nosso dispor,  não nos permitem alicerçar a versão pretendida pelo MP, não sendo sequer necessário recorrer ao “princípio in dúbio pro reu”, reservado que se encontra este para os casos de impasse probatório, o que manifestamente se não verifica na presente situação em que apenas verifica a existência de duas versões (parcialmente) contraditórias, em que uma delas, a da acusação, se pode razoavelmente considerar como menos sólida ou consistente.

Para além disso, não resulta do texto da decisão recorrida qualquer erro notório na apreciação da prova, passível de ser detectado por qualquer pessoa de mediana formação.

III–DECISÃO.

Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Sem custas por delas estar isento o MP.



Lisboa, 01-06-2016.



Albertina Pereira
Leopoldo Soares