Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
208/13.9TELSB-E.L1-5
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
PODERES DO JUIZ
INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Durante o inquérito, o JIC pode conhecer a excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por violação das regras de competência internacional.
- Nessa fase, o JIC ao fazer um juízo de mérito sobre o inquérito, em violação de competências exclusivas do Ministério Público e do princípio do acusatório, comete a nulidade insanável do art.119, al.b, CPP.
- Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a investigação de factos integradores do crime de branqueamento, nomeadamente através de movimentos financeiros aqui ocorridos, mesmo que os factos relativos aos crimes precedentes tenham ocorrido noutro Estado e em relação a eles não tenha sido exercido procedimento criminal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I.
Nos autos de inquérito n.º 208/13.9TELSB que, para efeitos de actos jurisdicionais, corre termos no Tribunal Central de Instrução Criminal, o Mmo. JIC proferiu o seguinte despacho:
“MHJ, veio, através de requerimento de fls. 2907ss, requerer a declaração de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal alegando, em síntese, os seguintes fundamentos:

Os presentes autos emergiram de certidão extraída do inquérito n.º 142/12.0TELSB em consequência do instituto da separação de processos.

O aludido inquérito, por sua vez, teve origem na averiguação preventiva n.º 85/11, baseada numa queixa, e aditamento posterior, apresentados por AP, cidadão de nacionalidade angolana, exonerado das suas funções Angola junto das Organizações Internacionais, em Genebra, em consequência de práticas criminosas, do exercício daquela função, que culminaram na respectiva condenação, em 15 de Março de 2000, pelo Tribunal Supremo da República de Angola, pelo crime de apropriação ilegítima de bens, na pena de 4 (quatro) anos de prisão maior, no pagamento de Kz 1.500,00 de imposto de justiça e na obrigação de indemnizar o Estado Angolano em USD 1.259.251,17 (um milhão, duzentos e cinquenta e nove mil, duzentos e cinquenta e um dólares e oitenta e sete cêntimos), quantia esta de que fraudulentamente se apropriou.

Posteriormente, à apresentação da queixa e com vista a procurar acusar o requerente pela prática dos alegados factos que deram origem aos presentes autos - crime precedente do branqueamento de capitais previsto na lei portuguesa alegadamente praticado em Angola (“corrupção”) – ou seja, já no decurso dos presentes autos, o aqui assistente, RM, apresentou em Angola duas queixas-crime visando o ora requerente e outros cidadãos angolanos.

Tais participações, como aliás está demonstrado nos presentes autos, deram origem na Procuradoria-Geral da República de Angola aos correspectivos autos de inquérito n.ºs 04/2012 e 06-A/2012, ambos objecto de arquivamento.

Ora, nem o MP português, nem os Tribunais portugueses têm, como é consabido, competência para prosseguir investigações em Portugal por supostos factos praticados por um cidadão angolano, em Angola, quando neste País – que é soberano - os processo onde se investigavam os factos que deram origem aos presentes autos foram arquivados.

Ocorre assim, como é bom de ver, uma manifesta situação de incompetência absoluta do Tribunal o que, nos termos dos Art.ºs 4.º a 6.º do CP, 32.º do CPP e 96.º, 97.º e 99.º do CPC, constitui excepção prévia, aliás do conhecimento oficioso, que determina a imediata absolvição do recorrente da instância.

O requerente não é sujeito passivo fiscal residente em Portugal, o mesmo sucedendo com as empresas estrangeiras de que foi e é accionista, pelo que não se mostram preteridas quaisquer obrigações fiscais declarativas perante o Estado português, inexistindo também quaisquer antecedentes criminais, nem qualquer crime precedente.

ANGOLA é um país soberano com o qual, em 23 de Novembro de 2005, Portugal assinou a Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP);

A competência internacional dos Tribunais portugueses em matéria penal encontra-se definida nos Art.ºs 4.º a 6.º do Código Penal.

Nos presentes autos, a fls. 726, através do douto despacho ali inscrito, foi o cidadão RM de Morais – igualmente de nacionalidade angolana - admitido «…a intervir nos presentes autos na qualidade de Assistente – ex vi do Art.º 68.º - 1, al. e) e n.º 4 do CPP. »

Sucede que, como genericamente consta da denúncia, os alegados crimes denunciados – “corrupção” e “branqueamento de capitais” - teriam ocorrido em Angola onde, aliás, o requerente reside e exerce funções governativas.

Tais factos ocorridos em Angola consubstanciariam em tese o crime precedente do branqueamento de capitais especificamente exigido pela lei portuguesa, ou seja, é manifesto que os factos que deram origem aos presentes autos têm Angola e unicamente Angola como o lugar definido da sua alegada consumação.

Com efeito, o requerente tem e teve contas bancárias em instituições de crédito portuguesas há muitos anos e todas as transferências efectuadas para as contas identificadas nos presentes autos tiveram origem em fundos próprios e/ou em pagamentos/restituições de terceiros, designadamente empresas, conexos com os investimentos empresariais do requerente, isto é, todos os valores têm origem lícita.

As acusações imputadas pelo denunciante e pelo assistente ao requerente – a título de crime precedente do crime de branqueamento tipificado na lei penal portuguesa - não têm qualquer fundamento jurídico-legal, nem qualquer relevância criminal como aliás resulta do arquivamento dos processos em Angola.

Com efeito, atendendo aos referidos arquivamentos e não tendo o requerente quaisquer antecedentes criminais, nem processos-crime em investigação em Angola, onde reside e exerce funções governativas, automaticamente existe uma impossibilidade objectiva de verificação do tipo inerente ao crime de branqueamento de capitais p.p. no art.º 368.º-A do CP português.

Atente-se, por ora, apenas na análise desta questão, olvidando momentaneamente que os factos que deram origem aos presentes autos têm definido como lugar da sua consumação ANGOLA, que o recorrente é cidadão nacional angolano, reside em Angola e nunca foi sujeito passivo fiscal residente em Portugal (é naturalmente contribuinte fiscal em Angola).

Pelo que, não será possível demonstrar a verificação do facto típico e ilícito precedente que aquela norma penal exige como elemento do tipo e, sendo isto impossível, é evidente que não há, nem pode haver, crime de branqueamento de capitais.

Assim, tratando-se de cidadão estrangeiro, residente em país estrangeiro, in casu em Angola, que nunca foi sujeito passivo fiscal residente em Portugal, sem quaisquer antecedentes criminais e sem processos-crime, contra si pendentes, por algum dos crimes constantes do referido catálogo de crimes previsto no Art.º 368º-A – como sucede com o recorrente -, é inútil prosseguir a investigação.

Desde logo, não sendo o recorrente sujeito passivo fiscal residente em Portugal, não se mostram preteridas quaisquer obrigações fiscais declarativas perante o Estado Português.

Porquanto, como é consabido, o crime de branqueamento constitui uma criminalidade derivada ou de segundo grau, dado que pressupõe a prévia concretização de um ilícito. Neste sentido, entre outros, decidiu o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de Setembro de 2014, no âmbito do referido inquérito n.º 142/12.4TELSB.L1.

Assim, a primeira conclusão a retirar deste facto é a de que tendo os presentes autos partido de uma denúncia apresentada contra o aqui requerente, cidadão angolano com residência em Luanda, por alegados factos ocorridos, supostamente, em Angola, não tem o MP português competência para abrir inquérito aos referidos factos e muito menos para prosseguir com uma investigação sobre os mesmos factos quando os processos em que o requerente era visado em Angola, por denúncia do aqui assistente, foram arquivados na República de Angola.

No caso vertente, o Estado Português apenas poderia actuar de acordo com o princípio da universalidade, ou da protecção de bens jurídicos comuns a toda a humanidade, a saber, nos crimes de escravidão, (artº 159º), tráfico de pessoas (160º), rapto (161º), abuso sexual de crianças e de menores dependentes (artºs 171º e 172º) de lenocínio de menores e de pornografia de menores (175º e 176º), danos contra a natureza, poluição e de poluição de perigo comum. (sublinhado nosso).

Quer isto dizer que os factos integradores do crime precedente que o MP ilegalmente pretende continuar a investigar em Portugal, foram já investigados em Angola, País soberano, subscritor da identificada Convenção de auxílio judiciário em matéria penal no âmbito da CPLP.

Logo, a prossecução da presente acção penal em Portugal viola o princípio do “ne bis in idem”, segundo o qual ninguém pode ser duplamente punido pelo mesmo crime, e do qual resulta a exclusão de novo julgamento em Portugal no caso de o agente ter sido absolvido pelo Tribunal do estado onde foi praticado o facto e no caso de ter sido condenado e ter cumprido a respectiva pena.

De harmonia com o disposto nos artºs 4º do CPP e 96º do Código de Processo Civil actualizado, «determinam a incompetência absoluta do Tribunal: a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional (…).»

«A incompetência absoluta (…) deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal (…)» (artº 97º do CPC) e implica a absolvição da instância (artº 99º do CPC).

Conclui, referindo que existe assim questão prévia de que o JIC deve, nos termos da lei, conhecer oficiosamente, e que obsta à decisão sobre o mérito da causa por falta absoluta de competência dos Tribunais portugueses, sob pena de violação dos princípios sobre competência internacional, impondo-se nos termos do disposto nos art.ºs 4.º a 6.º do CP e 32.º do CPP e 96.º do CPC actualizado, o conhecimento oficioso da excepção da incompetência absoluta do Tribunal o que, por sua vez, determina a absolvição do recorrente da instância nos termos dos art.ºs 97.º e 99.º do CPC.

O Ministério Público respondeu, conforme consta de fls. 3019ss referindo, em resumo, o seguinte:

Os presentes autos tiveram origem numa denúncia onde são relatados factos justificativos da suspeita de que o requerente, entre outros, se encontraria a utilizar o sistema financeiro português para introduzir, de forma camuflada, na economia legítima, de quantias monetárias obtidas através de actividade económica exercida em Angola com violação das regras legais sobre as incompatibilidades vigentes em Angola.

A prática dos factos denunciados é susceptível de enquadrar a prática dos crimes de corrupção ou tráfico de influência, ou prevaricação ou burla qualificada.

Que em relação ao suspeito é referido que o mesmo utilizará a sociedade WWC, SGPS S.A., para introduzir em Portugal os capitais obtidos de forma ilícita.

Que tal factualidade é susceptível de enquadrar a prática de um crime de branqueamento de capitais p e p pelo artº 368º A do CP.

Que o presente inquérito visa apurar as alegadas suspeitas de introdução em Portugal, através de manobras de dissimulação, de quantias obtidas em Angola de forma ilícita.

Que os documentos juntos aos autos pelo requerente fizeram com que subsistissem dúvidas quanto à conformidade dos movimentos financeiros o que justificou o prosseguimento da investigação.

Sendo a matéria em investigação susceptível de integrar um crime de branqueamento de capitais o mesmo será punível ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional.

Que o objecto do presente inquérito consiste em factos distintos dos factos ocorridos em Angola.

Para além disso, resulta das diligências de inquérito, que existem indícios que o facto precedente ao branqueamento tenha ocorrido, também, em Portugal, nomeadamente crime de burla qualificada ou abuso de confiança relacionado com os movimentos financeiros verificados no BES.

Conclui que, nos presentes autos, por força dos princípios da autonomia e da territorialidade, o Estado português tem competência para a investigação e punição desse crime razão pela qual deve ser indeferido o requerido.

Cumpre decidir:

Os presentes autos de inquérito tiveram início no dia 14-11-2013, com base na certidão de fls. 2ss, extraída do inquérito nº 142/12.0TELSB, na sequência de uma denúncia apresentada por APe começou logo a correr contra pessoa determinada, entre eles, o requerente MHJ.

Por despacho judicial de fls. 1352, com data de 21-11-2013, foi aceite a competência deste TCIC para a prática dos actos jurisdicionais no presente inquérito e no mesmo despacho foi confirmada a aplicação do regime de segredo de justiça.

Nesse mesmo despacho judicial, na sequência da promoção do Mº Pº de fls. 1348 e 1348, foi referido que o objecto dos presentes autos centra-se na factualidade denunciada a qual é susceptível de integrar a prática dos crimes de associação criminosa p e p pelo artº 299º, branqueamento de capitais p e p pelo artº 368-A ambos do CP, praticados em território nacional, tendo como crime precedente os de corrupção, burla, fraude fiscal, indiciariamente praticados em Angola e ainda crimes de tráfico de influência p e p pelo artº 335º do CP, corrupção activa com prejuízo do comércio internacional p e p pelo artº 7º da Lei 20/2008, de 21/04.

A fls. 1357 foi confirmada, nestes autos, o estatuto de assistente a RM. Por despacho de fls. 2015, com data de 12-08-2014, foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277º nº 1 do CPP, quanto aos factos relativos ao suspeito MHJ.

Por despacho de fls. 2041ss, com data de 15-09-2014, foi determinado, no âmbito dos poderes hierárquicos, que o inquérito prosseguisse nos termos do artigo 262º nº 1 do CPP.

O prazo de duração máxima do presente inquérito é de 14 meses, por força do disposto no artigo 276º nº 1, 3, 4 e 215º nº 2 al. c), contados desde o dia 14-11-2013, ou seja, 14-1-2015

Por despacho judicial de fls. 2443 foi adiado por 3 meses o acesso aos presentes autos, nos termos do artigo 89º nº 6 do CPP, ou seja, até ao dia 14-4-2015.

Por promoção de fls. 2581, com data de 14-4-2015, veio o Mº Pº promover a prorrogação do prazo de acesso aos autos por mais 18 meses.

Por despacho judicial de fls. 2691, de 5-5-2015, foi adiado o acesso aos autos até ao dia 5-11-2016.

Investigam-se nos presentes autos a origem das importâncias creditadas na constas das quais o suspeito Manuel Hélder Vieira Júnior é titular, co-titular ou que o mesmo se encontra autorizado a movimentar.

São as seguintes as contas:

Nº 16555819 do BCP, relativa aos movimentos de 6-9-2006, 16-6-2007, 8-6-2007, 5-3-2008, 21-4-2008, 7-8-2008, 21-1-2011, 13-09-2011, 27-5-2008, 4-6-2008;

Nº 40183515 do BCP, relativa aos movimentos de 5-9-2006, 23-5-2007, 8-6-2007, 5-7-2007, 11-7-2007 e 18-7-2007;

Nº 36700598446 do BCP, relativa aos movimentos de 2-11-2010, 22-11-2010;

Nº 45342520991 do BCP, relativa aos movimentos de 25-09-2007, 10-10-2007, 8-11-2007, 14-12-2007, 5-3-2008, 12-3-2008, 23-4-2008, 30-7-2010, 13-8-2010, 31-1-2011, 27-9-2011, 22-10-2012, 25-9-2007, 10-10-2007, 7-7-2009;

Nº 45359937535 do BCP relativa aos movimentos de 11-7-2008, 11-07-2008, 23-7-2008, 24-7-2008, 9-7-2008, 15-7-2008, 7-8-2008, 5-9-2008, 29-9-2008, 14-5-2009, 31-5-2010;

Nº 64062.3 do BPI relativa aos movimentos de 10-1-2011, 14-7-2011, 13-09-2011, 2-11-2011, 15-12-201, 2-4-2012, 4-6-2012, 5-1-2011, 20-1, 2011, 3-8-2011, 13-9-2011;

Nº 5524484500 do Banco BIG, relativa aos movimentos de 21-5-2009;

Nº 1978100001 do Banco Privado Atlântico-Europa relativa aos movimentos de 26-1-2010, 23-7-2010, 22-2-2013;

Nº 1978120001 do Banco Privado Atlântico-Europa relativa aos movimentos de 23-12-2009 e 30-12-2009;

Nº 000309086524 do BES relativa aos movimentos de 6-7-2009, 30-12-2009, 28-5-2010, 3-6-2010, 4-6-2010, 8-3-2012, 9-3-2012, 25-05-2012, 19-9-2012;

Nº 000323978449 do BES relativa aos movimentos de 11-11-2011;

Nº 000614081587 do BES relativa aos movimentos de 16-1-2009, 18-7-2012;

Nº 903034760018 do BES relativa aos movimentos de 1-10-2010, 13-10-2010, 14-9-2011, 29-6-2012;

Nº 903034770005 do BES relativa os movimentos de 18-5-2011, 8-6-2011, 24-6-2011, 22-11-2011, 13-12-2011;

Nº 903035200008 do BES relativa aos movimentos de 13-1-2009, 26-2-2010, 1-10-2010, 18-5-2011, 4-6-2012, 29-6-2012;

Nº 903041580003 do BES relativa aos movimentos de 25-2-2009, 3-3-2009, 26-1-2010, 27-10-2010, 2-11-2010, 15-11-2010, 26-1-2011, 27-1-2011, 9-3-2011, 18-5-2011, 8-6-2011, 7-9-2011, 5-4-2012, 19-7-2012, 9-8-2012, 5-9-2012, 23-11-2012, 7-1-2013;

Nº 903044010003 do BES relativa aos movimentos de 29-10-2009, 9-11-2009, 25-11-2009, 4-12-2009, 25-6-2012;

Nº 903044410001 do BES relativa aos movimentos de 13-1-2009, 26-2-2010, 4-6-2012, 10-01-2013;

Nº 903049160003 do BES relativa aos movimentos de 13-1-2009, 26-2-2010, 4-6-2012;

Nº 903053540001 do BES relativa aos movimentos de 30-1-2009, 22-4-2009, 18-5-2009, 22-10-2009, 26-10-2009, 30-10-2009, 26-11-2009, 27-11-2009, 4-12-2009, 6-10-2010, 18-10-2010, 2-11-2010, 4-11-2011, 18-5-2011, 8-6-2011, 19-8-2011, 7-9-2011, 30-9-2011, 28-11-2011.

O suspeito MHJé cidadão angolano, contribuinte fiscal e residente em Angola.

O mesmo tem investimentos em Portugal circunscritos à WWC, SGPS, SA a qual é accionista do Banco BIG, CD – I. Lda., WWWSU Lda.

No dia 6-1-2012 RM apresentou denúncia, junto da Procuradoria-Geral da República de Angola contra, entre outros, o suspeito MHJ por este ter usado e abusado do seu cargo público e do poder de influência que detém junto do Presidente da República e praticado factos susceptíveis de enriquecimento ilícito, violação da lei das actividades petrolíferas.

Na sequência dessa denúncia, correu termos junto da PGR de Angola o inquérito nº 4/2012, o qual terminou com despacho de arquivamento, proferido em 7-2-2013, pela inexistência de indícios susceptíveis de integrar a prática de crime.

Como refere e bem o Mº Pº a fls. 3024, o requerente é apenas suspeito nos presentes autos razão pela qual não assume a qualidade de sujeito processual faltando-lhe, por isso, legitimidade para invocar a alegada excepção de incompetência. Porém, atento 32º nº 1 do CPP a mesma pode ser conhecida oficiosamente razão pela qual, iremos conhecer da mesma.

Do crime de branqueamento de capitais

Resulta do disposto no artº 368 -A, do Código Penal que: quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal é punido com pena de prisão de 2 a 12 anos.

Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.

Esclarece o nº1 deste preceito legal que se consideram vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação dos factos ilícitos típicos de (…) corrupção e demais infracções referidas no nº1 da Lei nº 36/94, de 20 de Setembro, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou a duração máxima superior a cinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham.

O chamado branqueamento de capitais é legalmente descrito como um processo destinado a um certo fim, a ocultação ou dissimulação de um conjunto de características de bens de origem ilícita (origem, localização, disposição, movimentação, propriedade) pelo que a casuística do branqueamento de capitais é inesgotável (Do crime de Branqueamento de Capitais” Introdução e Tipicidade, Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Almedina, 2001).

Como se refere no acórdão do STJ no NUIPC 14/07.0TRLSB.S1. O branqueamento de capitais (dinheiro ou outros bens) consiste no procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações; traduz-se no desenvolvimento de actividades, em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.

Segundo Lourenço Martins, Branqueamento de capitais: Contra medidas a nível internacional e nacional, Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 9, Fasc. 3.º, Julho-Setembro 1999, págs. 450/1, o branqueamento de capitais (dinheiro ou outros bens) consiste no procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações; traduz-se no desenvolvimento de actividades, em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.

Rodrigo Santiago, O «Branqueamento» de capitais e outros produtos do crime, RPCC, 1994, págs. 501/2, o branqueamento passa, ou pode passar, por dois momentos: um primeiro, conhecido por money laundering, e um outro chamado recycling. “O money laundering constitui o núcleo essencial do branqueamento. Pretende-se, através das operações que visam alcançá-lo, que as vantagens ou incrementos patrimoniais, resultantes do facto criminoso anterior, sejam rapidamente libertadas dos vestígios da respectiva origem criminosa. Normalmente, neste momento, as referidas «vantagens» são ainda constituídas por dinheiro em numerário, e o respectivo branqueamento concretiza-se em negócios de curto prazo, os quais visam, como se referiu, dissimular não só a sua origem, como a respectiva identificação. É normalmente, o que se passa através da troca do dinheiro «sujo» por outros valores monetários, designadamente por notas de maior valor, ou pela troca desse dinheiro por outros bens facilmente transportáveis, como sejam jóias, metais e pedras preciosas, títulos de participação, abertura de contas bancárias noutros países, de preferência em nome de pessoas colectivas, negócios de Bolsa, aquisição de lotaria premiada, etc. Já a recycling, quando chega a ter lugar, se concretiza em operações ou «manipulações» através das quais os incrementos referidos, já previamente «lavados», vão ser objecto de «tratamentos» de forma a que ganhem a aparência de se tratar de objectos de proveniência lícita, com a sua consequente reentrada no normal circuito económico. O que sucede, por via de regra, com a aplicação do dinheiro em grandes negócios, como pizarias e salas de espectáculos, ou através da ligação a negócios bancários ou de sociedades financeiras».

A punição do branqueamento visa tutelar a pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime, ou mais especificamente, o interesse do aparelho judiciário na detecção e perda das vantagens de certos crimes. (sic Ac. Rel Porto de 07-02-2007 – Proc. 06165509 in www.dgsi.pt).

Para Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2010, na nota prévia ao artigo 368.º-A, n.º 4, pág. 951, o bem jurídico protegido pelo crime de branqueamento de capitais, nas suas diversas alíneas, é o da administração da justiça, o da perseguição e confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa, repetindo agora na nota 2 ao artigo, na pág. 955, que o bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, na sua particular vertente da perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa. Reale Júnior, Figura típica e objecto material do crime de “Lavagem de dinheiro”,

Condição objectiva do tipo de branqueamento é a verificação de um facto ilícito típico subjacente, definido pela lei, de onde sejam provenientes as vantagens que se dissimulam.

É pressuposto do branqueamento de capitais a existência de um de certos crimes precedentes previstos no “catálogo” legal, de cuja prática sejam provenientes os bens cuja origem se pretende dissimular.

É, por isso, indispensável demonstrar tal efectiva proveniência, não bastando apurar que o agente manipulou bens cuja origem licita não resulta clara.

É um crime doloso. Terá de haver a intenção de ocultar a origem ilícita das vantagens ou de favorecer um agente do facto precedente. Esse dolo deverá ser específico na medida em que se exige um efectivo conhecimento da proveniência das vantagens.

O processo de dissimulação do branqueamento passa, em regra, pelas seguintes fases:

Colocação - introduz-se os bens ou produtos, normalmente dinheiro, em algum ponto do circuito financeiro e económico legal.

Camuflagem (nuclear) - efectuam-se operações sucessivas de transformação ou transferência daquele dinheiro de modo a tornar difícil detectar-lhe a origem e o rasto; são, por exemplo, feitas sucessivas transferências para outras contas ou instituições financeiras de outras pessoas, frequentemente em outros países, de tal modo que a partir de certo ponto se torna praticamente impossível identificar a origem.

Integração - faz-se a utilização dos bens já lavados nomeadamente, o dinheiro em actividades lícitas que podem ir desde a compra de bens de luxo até ao investimento em actividades económicas.

Como vimos, as condutas tipificadas no nº 2 do art. 368-A do CP, que integram o tipo objectivo do crime de branqueamento, são, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 7-2-2007: «(i) a conversão de vantagens; (ii) a transferência de vantagens; (iii) o auxílio de alguma operação de conversão de vantagens; (iv) o auxílio de alguma operação de transferência de vantagens; (V) a facilitação de alguma operação de conversão de vantagens; (vi) a facilitação de alguma operação de transferência de vantagens.

A operação de «conversão» consiste “na alteração da natureza e configuração dos bens gerados ou adquiridos com a prática do facto ilícito típico subjacente, enquanto a «transferência» traduz-se “quer na deslocação física dos bens, quer na alteração jurídica ao nível da titularidade ou do domínio.

Quanto ao tipo subjectivo, exige o nº 2 do artigo 368-A do CP, a intenção de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal».

Uma vez verificados os elementos constitutivos do tipo de crime de branqueamento de capitais cumpre saber se os tribunais portugueses têm competência para conhecer dos factos em investigação nos presentes autos.

Na verdade, estamos perante uma denúncia apresentada contra o requerente Manuel Júnior, cidadão angolano com residência em Luanda, por alegados factos subjacentes ocorridos, supostamente, em Angola no qual o Mº Pº português abriu o presente inquérito quanto aos referidos factos.

É inquestionável a competência do tribunal português para conhecer do crime de branqueamento cometido em território nacional em que os ilícitos típicos subjacentes foram praticados também em território nacional. Questão mais complexa surge nos casos em que o crime subjacente é praticado no exterior. Na verdade, o crime de branqueamento de capitais tem um carácter transnacional, ou seja, coloca-nos perante novas formas de criminalidade resultantes do fenómeno da globalização que resultam em problemas ao nível da aplicação da lei penal no espaço.

A este propósito escreve Alberto Silva Franco, em “Globalização e criminalidade dos poderosos”, publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, Fasc. 2.º, Abril-Junho 2000, a págs. 206/7 «não se poder deixar de reconhecer que o modelo globalizador produziu novas formas de criminalidade que se caracterizam, fundamentalmente, por ser uma criminalidade supranacional, sem fronteiras limitadoras, por ser uma criminalidade organizada, e por ser uma criminalidade que permite a separação tempo-espaço entre a acção das pessoas que actuam no plano criminoso e a danosidade social provocada. Tal criminalidade, desvinculada do espaço geográfico fechado de um Estado, espraia-se por vários outros e se distancia nitidamente dos padrões de criminalidade que tinham sido até então objecto de consideração penal. A criminalidade económica, a criminalidade das drogas, a criminalidade ecológica, a criminalidade organizada etc., enfim, os crimes of the powerful, dependem em face das várias fases de sua operacionalidade, de um número elevado de acções delituosas, que podem até ser devidamente caracterizadas; no entanto, enquanto expressão de criminalidade montada na base de um sistema reticulado, não se sabe, ao certo, o lugar de sua realização e nem se mostra descomplicada a identificação dos seus autores».

Por sua vez, José de Faria Costa em Direito Penal Económico e Europeu, Volume III, Coimbra Editora, 2009, págs. 106 e 107 refere que: «O princípio da territorialidade constitui, dentro da nossa actual civilização jurídicocultural, a pedra de toque de toda a problemática da aplicação da lei penal no espaço”, axioma que é integrado por outros princípios – v. g., defesa dos interesses nacionais, do pavilhão, da nacionalidade, do princípio da aplicação universal – o que permite que, mesmo quando não possa funcionar o princípio da territorialidade, a lei penal nacional se aplique, desde que se verifique um conjunto de circunstâncias consagrado explicitamente pelo legislador, aumentando-se o âmbito da lei penal nacional e respondendo, também deste modo, a duas atitudes essenciais que se devem ter nesta área: a) punir ou expulsar (punire aut dedere) e b) evitar a todo o custo que uma infracção fique sem punição».

Quanto a aplicação da lei penal no espaço, o artigo 4.º do Código Penal, refere que: «Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados: a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses».

A aplicação espacial do direito penal assenta nos seguintes princípios, consagrados nos artigos 4º e 5º do CP, o princípio da territorialidade, o princípio da nacionalidade, o princípio da defesa dos interesses nacionais, o princípio da universalidade, o princípio da administração supletiva da lei nacional e o princípio da aplicação convencional.

Segundo o princípio da territorialidade o Estado aplica o direito penal a todos os factos juridicamente relevantes cometidos no seu território, definido no artigo 5º da CRP, independentemente da nacionalidade do agente.

De acordo com o princípio da defesa dos interesses nacionais, o estado pune os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses nacionais.

Por sua vez, segundo o princípio da aplicação universal, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses da humanidade, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima e do local onde foram cometidos.

O princípio da administração supletiva da lei nacional, nos termos do qual o estado pune os factos juridicamente relevantes cometidos fora do território nacional contra estrangeiros por estrangeiros que se encontram em Portugal mas que não podem ser extraditados.

Por fim, de acordo com o princípio da aplicação convencional da lei penal nacional, esta é aplicável sempre que o estado Português se vincule, por tratado ou convenção internacional a julgar certos factos pela lei nacional.

Quanto ao crime de branqueamento o artigo 368.º A nº 4º, do CP refere que: A punição pelos crimes previstos nos números 2 e 3 tem lugar ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores.

Daqui decorre que a punição pelos crimes de branqueamento abranja expressamente os casos em que os factos que integram a infracção principal tenham sido praticados fora do território nacional.

Deste modo, quanto ao crime de branqueamento, as regras de aplicação espacial da lei penal portuguesa permanecem inalteradas, sendo necessário que os actos de conversão, transferência ou ocultação ocorram, ao menos parcialmente, em território nacional ou a bordo de navio ou aeronave portugueses (artigos 7.º e 4.º do CP), ou que, ocorrendo no estrangeiro, o agente seja de nacionalidade portuguesa (artigo 5.º, n.º1, alínea c)) ou haja sido pedida a sua extradição e esta não possa ser concedida (artigo 5.º, n.º1, alínea e).

Voltando ao caso concreto, verifica-se, atento o teor da denúncia, que os factos que deram origem aos presentes autos alegadamente ocorreram em Angola, sendo que o suspeito é angolano e residente em Luanda. Assim, quanto a estes factos não existem dúvidas que o Mº Pº português carece de competência para os investigar, na medida em que não se verificam os pressupostos enunciados no referido artigo 5º do CP.

Verifica-se, também, que os factos que deram origem à denúncia apresentada junto do Mº Pº em Portugal são os mesmos que deram origem a uma denúncia junto da PGR de Angola e que culminou num despacho de arquivamento.

Como vimos, o suspeito fez juntar a estes autos uma certidão da decisão de arquivamento do inquérito crime que correu termos junto da PGR de Angola, a qual consta de fls. 2930ss decisão essa invocada como meio de prova.

Assim sendo, os factos que alegadamente estão na origem dos proventos ilícitos de que o suspeito movimentou junto dos bancos portugueses, conforme contas bancárias e movimentos acima referidos, resultam, segundo a investigação em curso, de factos supostamente ocorridos em Angola e que já foram objecto de investigação neste país.

Com efeito, se tivermos em conta a denúncia que deu origem aos presentes autos e a denúncia que deu origem ao inquérito crime da PGR de Angola, verifica-se que os factos objecto de ambos os processos é o mesmo, independentemente da qualificação jurídica que mereceram em ambas os processos. Assim, se os factos são os mesmos e culminaram com uma decisão de arquivamento em Angola o principio do ne bis in idem impede que esses mesmos factos sejam de novo investigados nos presentes autos.

O ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.

Quando nos referimos “aos factos”, estamos a referir na realidade uma hipótese. Com efeito, o processo penal funda-se sempre em hipóteses fácticas com algum tipo de significado jurídico.

Em face do exposto, a existência de uma investigação em Portugal por esses mesmos factos viola o princípio do “ne bis in idem”, consagrado no artigo 29º nº 5 da CRP, segundo o qual ninguém pode ser duplamente punido pelo mesmo crime o que também impede o Mº Pº em Portugal de prosseguir a acção penal quanto a esses factos.

Como vimos supra, e mostra-se reforçado pelo Mº Pº a fls. 3020, o presente inquérito visou apurar da veracidade das enunciadas suspeitas respeitantes à alegada introdução em Portugal, através de manobras de dissimulação, de quantias obtidas em Angola através da prática do conjunto de factos descritos na denúncia.

Na sequência da investigação em curso, foram identificados um conjunto de movimentos financeiros passíveis, segundo o titular da acção penal, de conferir credibilidade às suspeitas formuladas, ou seja, as quantias monetárias inerentes aos referidos movimentos financeiros são, alegadamente, de proveniência ilícita e as condutas do suspeito, através das referidas operações, visou introduzi-las no mercado financeiro português como meio de desfrutar das vantagens económicas conferidas pela sua posse e ocultar ou dissimular a sua origem ilícita ou proveniência.

Deste modo, a questão que se coloca neste momento, face á decisão tomada pelo Mº Pº de Angola quanto aos mesmos factos, é a de saber se o Mº Pº em Portugal tem competência para prosseguir com a investigação relativa aos movimentos financeiros ocorridos em Portugal que, quanto à sua origem, já foi objecto de decisão por um outro Estado soberano.

Paralelamente a isso, o suspeito fez juntar aos autos documentação bancária relativa às operações identificadas a fls. 1493 a 1582 com vista a justificar as mesmas, apesar de sobre ele não recair o ónus de demonstrar a licitude dos alegados fluxos financeiros, mas sim ao titular da acção penal demonstrar o carácter ilícito dos mesmos.

Acresce, ainda, conforme consta do despacho de arquivamento de fls. 2065 a 2067, que o suspeito é detentor em Angola de vários investimentos empresariais e em Portugal é accionista da WWC que por sua vez é detentora de participações sociais em várias empresas.

A este propósito, José de Faria Costa, O branqueamento de capitais (Algumas reflexões), 1992, pág. 69, a actividade de branqueamento é ela já uma criminalidade derivada, de 2.º grau ou induzida de outras actividades, pois só há necessidade de “branquear” dinheiro se ele provier de actividades primitivamente ilícitas.

Pedro Caeiro, A consunção do branqueamento pelo facto precedente, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, 2010, versando agora o artigo 368.º-A, do Código Penal, pág. 200, nota 35, afirma que o tipo do branqueamento exige apenas que as vantagens provenham de um facto ilícito típico, não de um crime, donde a punição do branqueamento não depende da efectiva punição pelo facto precedente

Por sua vez, Germano Marques da Silva, Notas sobre branqueamento de capitais em especial das vantagens provenientes da fraude fiscal, Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos /Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2007 refere a págs. 456: o crime de branqueamento acompanha o crime designado, dificultando a actuação da justiça, quer na sua descoberta e punição, quer na perda das vantagens do crime que é consequência da condenação (artigo 111.º do CP). Mas o branqueamento não consiste simplesmente no aproveitamento das vantagens adquiridas com a prática do crime, é mais do que isso, é um facto praticado com o fim de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que os agentes sejam perseguidos ou submetidos a uma reacção criminal, é, enfim, um facto praticado com o fim específico de dificultar a acção da justiça. O simples aproveitamento das vantagens do crime não constitui ainda branqueamento, só o sendo quando os factos típicos são praticados com aquela intenção específica. Por isso que pode existir concurso real de crimes entre o crime designado e o crime de branqueamento, quando praticados pelo mesmo agente, porque são diversos os factos e diversos são os bens jurídicos protegidos pelas incriminações.

Mais adiante a pág. 459, o mesmo autor reafirma que o crime de branqueamento é um crime contra a realização da justiça, na medida em que através da sua prática o agente persegue o fim de dissimular a origem ilícita dos bens a branquear ou «evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal», sendo que dissimular a origem ilícita dos bens é uma forma de evitar a perseguição criminal. O crime de branqueamento é praticado para ocultar ou garantir o proveito do crime antecedente, havendo entre eles uma conexão material de tal modo que o crime subjacente compõe a própria estrutura do branqueamento; no plano ontológico o crime de branqueamento é mais um elo na cadeia do crime subjacente e, por isso, que alguns entendem que ambos têm a mesma natureza».

Tendo em conta os ensinamentos acima referidos e a estreita relação entre os actos de branqueamento e o facto ilícito precedente e tendo estes factos precedentes, alegadamente, sido consumados num outro país soberano que já tomou posição quanto a esses mesmos alegados ilícitos subjacentes, faz com que os tribunais portugueses, neste caso o Mº Pº, careçam de competência para a prossecução da investigação por não estarem verificados os requisitos do artigo 5º do CP.

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, citado no ARL de 26-3-2015, NUIPC 147/13.3TELSB «o princípio da universalidade ou da aplicação universal visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional ou que … o Estado Português se obrigou internacionalmente a proteger. Não se trata …da facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela lei interna o que conduziria à existência de um jus puniendi estadual sem qualquer fronteira e fomentador, por isso, em larga medida, de conflitos internacionais de caracter jurídico-penal».

Atento o disposto no artigo 96º do CPC, aplicável ao caso concreto por força do artigo 4º do CPP, «determinam a incompetência absoluta do Tribunal a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional;».

A incompetência absoluta constitui uma excepção dilatória, a qual pode ser conhecida oficiosamente e conduz à absolvição da instância – artigos 577º a), 97º e 99º, todos do CPC.

Em face do exposto, sendo o suspeito um cidadão angolano, residente em Angola, contribuinte fiscal em Angola, os alegados factos subjacentes terem sido consumados em Angola, tendo esses alegados factos sido objecto de investigação criminal em Angola, faz com que os tribunais portugueses sejam incompetentes, sobe pena de violação das regras de competência internacional, para investigar e julgar os factos que constituem o objecto dos presentes.

Assim sendo, julgo verificada a excepção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional e em consequência absolvo MHJ da instância.”

Inconformado com o mesmo, veio o M.º P.º interpor o presente recurso de cujas motivações concluiu:
O objecto do presente recurso
1.
O presente recurso é interposto do despacho proferido pelo M.mo juiz de instrução junto do Tribunal Central de Instrução Criminal, de fls. 3032 a 3052, através do qual julgou verificada a exceção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional e, em consequência, absolveu MHJ da instância.

A forma de aferição da competência dos tribunais portugueses quanto ao crime de branqueamento.
2.
A definição da competência dos tribunais portugueses é legalmente estabelecida através da tipificação de determinados elementos de conexão que se têm que verificar no caso concreto.
3.
No ordenamento jurídico-penal, as "regras de competência" devem ser buscadas na conjugação das normas materiais e adjetivas materiais que, contidas respetivamente no Código Penal e no Código de Processo Penal, determinam os casos em que aos factos é aplicável a lei penal e processual penal portuguesas (art. 4º, do Código Penal, e art. 6º, do Código de Processo Penal), sendo o relevante elemento de conexão, em primeira mão, o território onde ocorre o facto tipificado como crime.
4.
O crime de branqueamento trata-se de um crime comum, de um crime de execução vinculada e de um crime de mera atividade, uma vez que se esgota (consuma-se) com o empreendimento da própria ação descrita no tipo legal, independentemente da ocorrência de qualquer resultado.
5.
A consumação do crime de branqueamento ocorre, assim, no momento em que se verificam os atos de transferências de vantagens, que consubstanciam também o próprio ato de dissimulação da sua natureza e titularidade.
6.
O tipo legal do crime de branqueamento compreende as seguintes ações: (1) converter, (2) transferir, (3) auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, (4) ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos (cf. art. 368°-A, n.°s 2 e 3, do Código Penal).
7.
Uma das características genericamente apontadas pela doutrina e jurisprudência ao crime de branqueamento é a circunstância de se tratar de um crime de conexão, um pós-delito, já que exige, na sua construção típica, a ocorrência de um facto ilícito típico precedente que tenha gerado as vantagens que serão objeto da atuação delituosa que o integra (a designada predicated offensé) - cf. art. 368o-A, n.° 1, do Código Penal.
8.
Perante este quadro típico, e recuperando o que supra se explanou quanto ao modo como se mostra estabelecido jurídico-penalmente o modo de aferição da competência dos tribunais portugueses, reconduzível à afirmação de que, em princípio, é a geografia dos factos praticados (aqueles que hajam sido praticados, para além do mais, em território português) o elemento de conexão determinante para este efeito, no que concerne ao crime de branqueamento, tendo presente a sua estrutura típica importa averiguar onde ocorreram aquelas condutas objetivas descritas no art. 368°-A, n.°s 2 e 3, do Código Penal: tipo legal: os atos de conversão, transferência, auxílio ou facilitação a alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, e os atos de ocultação ou de dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
9.
A concretização de alguma destas condutas em território português, no que agora interessa, determina assim a competência dos tribunais portugueses para delas conhecer, já que, nos termos dos art.s 4º, do Código Penal, e 6º, do Código de Processo Penal, a lei penal e a lei processual penal portuguesas são-lhes aplicáveis.

A ilegalidade, a nulidade e inconstitucionalidade da decisão recorrida.
10.
Apesar de no despacho recorrido se afirmar que "a punição pelos crimes de branqueamento [abrange] expressamente os casos em que os factos que integram a infração principal tenham sido praticados fora do território nacional" e que, "quanto ao crime de branqueamento, as regras de aplicação da lei penal portuguesa permanecem inalteradas, sendo necessário que os atos de conversão, transferência ou ocultação ocorram, ao menos parcialmente, em território português", o M.mo juiz a quo enceta outro tipo de considerações que, face ao quadro legal supra descrito, surgem despropositadas e contrárias à lei, porque extravagantes ao nível de análise necessário à definição da competência dos tribunais portugueses.
11.
Ao invés de fazer assentar a decisão proferida na circunstância (verificável ou não) de alguma das condutas típicas do crime de branqueamento (os atos de conversão, transferência, auxílio ou facilitação a alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, e os atos de ocultação ou de dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos) ter ocorrido em território português para daí extrair uma conclusão quanto à competência dos tribunais portugueses, na decisão ora colocada em crise recorre-se a um conjunto de argumentos que, pela sua substância, envolvem uma leitura deturpada das funções do juiz de instrução e do Ministério Público na fase do inquérito e, deste modo, determinam uma ilegal, nula e inconstitucional conclusão.
12.
Com efeito, o exercício efetuado na decisão recorrida de análise das circunstâncias fácticas que possam ter rodeado o facto ilícito típico reconduz-se, inexoravelmente, a um ato que visa averiguar se o mesmo ocorreu e se o mesmo se revela tipicamente relevante para efeitos do crime de branqueamento. Trata-se, no fundo, de um raciocínio que, face à tipologia criminal do branqueamento, se integra numa atividade dirigida à investigação da existência de um crime (o crime de branqueamento), à determinação dos seus agentes e da sua responsabilidade.
13.
Essa atividade reconduz-se, materialmente, a um ato de inquérito (cf. art. 262°, n.° 1, do Código de Processo Penal) que se revela absolutamente desenquadrado da atividade legalmente atribuída ao juiz de instrução criminal nesta fase processual (cf. art. 17°, do mesmo diploma legal).
14.
A atividade dirigida à investigação da existência de um crime mostra-se legal e constitucionalmente reservada ao Ministério Público [cf. art.s 263°, n.° 1, 262°, n.° 1, 53°, n.° 2, do Código de Processo Penal, Io, 2o, 3o, n.° 1, al. c), e 75°, n.° 1, do Estatuto do Ministério Público, e art. 219°, n.°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa].
15.
A decisão proferida pelo tribunal a quo é, nestes termos ilegal, por não se conformar com os limites legalmente estabelecidos à atividade do juiz de instrução em fase de inquérito.
16.
Além disso, a decisão sob recurso mostra-se impeditiva de o Ministério Público exercer o seu poder decisório quanto ao encerramento do inquérito, tendo esta atividade sido, afinal, desenvolvida à sua revelia pelo M.mo juiz a quo.
17.
Ora, tratando-se de caso de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, a decisão mostra-se, além disso, ferida de nulidade insanável, nos termos do que dispõe o art. 119°, al. b), do Código de Processo Penal.
18.
Em obediência ao preceituado no artigo 32°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa, a estrutura acusatória do processo penal português implica a cisão entre as funções daquele que investiga daquele que julga.
19.
Num processo de estrutura acusatória, o poder judicial está, sob pena de perder a sua imparcialidade e de agir ilegitimamente ex officio, vinculado pelo pedido do Ministério Público ou do assistente. "Arvorar-se o juiz em paladino da pretensão punitiva, sem o Ministério Público, seria voltar a um sistema inquisitório puro (...), [sendo que] qualquer intervenção do juiz à revelia do Ministério Público, para se pronunciar sobre a justiça do caso e antes mesmo do exercício da acção penal, seria inadmissível" (José Souto de MOURA, "Inquérito e Instrução", in CEJ (org.), Jornadas de Direito Processual Penal — O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1995, p. 115).
20.
Por seu turno, o art. 219°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, definindo as funções e estatuto do Ministério Público, densifica, do ponto de vista orgânico, uma das dimensões da estrutura acusatória do processo penal, ao consagrar esta magistratura como aquela a quem compete, entre o demais, o exercício da ação penal orientada pelo princípio da legalidade. Concomitantemente, tal norma constitucional proclama a autonomia do Ministério Público, seja em relação aos demais órgãos de poder do Estado, seja em relação à magistratura judicial.
21.
Tais referentes constitucionais foram densificados legalmente no Estatuto do Ministério Público [cf. art.s 1º, 2º, 3º, n.° 1, al. c), e 75°, n.° 1], assim como no Código de Processo Penal, onde se estabeleceu que compete ao Ministério Público dirigir o inquérito [cf. art.s 53°, n.° 2, al. b), e 263°, n.° 1], enquanto atividade dirigida à investigação da existência de um crime, à determinação dos seus agentes e da responsabilidade destes (cf. art. 262°, n.° 1, do Código de Processo Penal).
22.
O Ministério Público surge assim, na estrutura processual penal portuguesa, como o dominus da fase de inquérito, cabendo-lhe a sua direção e a tomada de decisões com vista à prossecução da sua finalidade: a decisão sobre a acusação ou o seu arquivamento.
23.
Neste contexto, a intervenção jurisdicional na fase de inquérito é contida, prendendo-se com aqueles atos que, nos termos do art. 269°, do Código de Processo Penal, estejam na disponibilidade decisória do juiz de instrução, ou com aqueloutros que devam ser pessoalmente praticados por aquele (cf. art. 268°, do mesmo diploma legal).
24.
Qualquer interpretação das normas processuais penais, designadamente dos art.s 17°, 53°, n.° 2, al. b), 262°, n.° 1, 263°, n.° 1, 268° ou 269°, do Código de Processo Penal, que admita uma intervenção judicial conformadora do destino do processo tem subjacente uma matriz essencialmente inquisitória que colide com a malha constitucional positivada.
25.
Os fundamentos em que assenta a decisão recorrida, mais do que razões atinentes ao elemento de conexão determinante em termos processuais penais da competência dos tribunais portugueses, consubstanciam uma análise, de cariz decisório, quanto à verificação in casu de um dos requisitos objetivos típicos do crime de branqueamento: a exigência do crime subjacente gerador de vantagens.
26.
A decisão proferida, sustentada nas invocadas razões, assume-se como uma decisão de encerramento do processo, in casu, de encerramento do inquérito, a fase em que o mesmo se encontra, considerando que lhe subjaz, ainda que tal não tenha sido expressamente invocado, um juízo de insuficiência indiciária assente na circunstância de, no entender do M.mo juiz de instrução, se não verificar um dos requisitos típicos do ilícito, a existência de um facto típico precedente penalmente relevante para efeitos da qualificação dos factos como crime de branqueamento.
27.
Ora, tal atividade é constitucionalmente vedada ao juiz de instrução, sendo violadora dos art.s 32°, n.° 5, e 219°, n.°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, uma interpretação dos art.s 17°, 53°, n.° 2, al. b), 262°, n.° 1, 263°, n.° 1, 268° ou 269°, do Código de Processo Penal, que admita uma conformação do processo em fase de inquérito pelo juiz de instrução à revelia do poder decisório do Ministério Público.
28.
Não se inscreve; de igual modo, nas funções do juiz de instrução na fase de inquérito apreciar a competência ou a incompetência do Ministério Público para a direção do inquérito.
29.
Na prossecução da sua actividade judiciária, como já se referenciou, o Ministério Público atua com autonomia, quer em relação aos demais poderes do Estado, quer em relação à magistratura judicial, impedidos de qualquer ingerência na materialidade do exercício da ação penal no caso concreto, seja no que respeita às diligências a realizar visando prosseguir as finalidades do inquérito, seja no que concerne ao ato decisório de encerramento do inquérito, o momento para que se dirige toda a atividade empreendida nesta fase processual
30.
E, igualmente, ao Ministério Público que, neste contexto de autonomia e com vinculação a critérios estritos de legalidade, cabe, face a uma notícia de crime, determinar a sua competência para a direção do inquérito e para o exercício da acção penal.
31.
A plasticidade da fase de inquérito, em que não se mostra estabilizado o objeto do processo e ais que se admite uma dinâmica diversa daquela mais estanque característica das subsequentes fases processuais, implica uma idêntica flexibilidade na abordagem da questão da competência dc Ministério Público para a direção do inquérito e para o exercício da acção penal, porquanto a mesma pode vir a ser colocada e respondida em termos muito diversos consoante os diferentes estádios de desenvolvimento da actividade investigatória empreendida.
32.
Pode, aliás, suceder que as finalidades de inquérito possam ser alcançadas apenas através dc desenvolvimento de competências próprias do Ministério Público, sem que seja chamado a intervir, por desnecessidade em função daquelas finalidades, o juiz de instrução, bastando para isso que a investigação não envolvesse a realização de diligências de inquérito dependentes da intervenção daquele sujeito processual (cf. art 268°e 269º, do Código de Processo Penal).
33.
Ora, na decisão sob recurso não foram tomadas em consideração estas circunstâncias, tendo, através da mesma, o M.mo juiz a quo declarado, ainda que implicitamente, o Ministério Público português carecido de "competência para a prossecução da investigação". 34.
Não é admissível, por força das regras processuais definidoras da competência do Juiz de instrução e do Ministério Público [cfr. art.s 17º, 53º, n.º 2, al. b) 263º, n.º 1 , e 267º, do Código de Processo Penal, das normas estatutárias desta magistratura (1º, 2º, 3º, n.º 1, al. c), e 75°, n.º 1, do Estatuto do Ministério Público] e, bem assim, do estatuto constitucional reservado ao Ministério Público (cf. art. 219°, da Constituição da República Portuguesa), que o juiz de instrução possa, em fase de inquérito, determinar a carência, ou não, de competência do Ministério Público para prosseguir com determinado inquérito.
35.
A convocação do art. 4º, do Código de Processo Penal e do regime adjetivo civil envolve, conforme decorre do seu teor, a constatação de caso omisso.
36.
In casu, não se surpreende caso omisso que permita a convocação de tal norma e, por esta via, do regime processual civil, já que o art. 33°, n.° 4, do Código de Processo Penal, dispõe que, se para conhecer de um crime não forem competentes os tribunais portugueses, o processo é arquivado.
37.
Tal norma não pode ser isoladamente lida e aplicada sem que se tome em consideração toda a unidade do sistema jurídico em que se insere (cf. art. 9º, n.° 1, do Código Civil), sendo evidente que se mostra vedado ao juiz de instrução determinar o arquivamento do processo enquanto o mesmo se mantiver na fase de inquérito.
38.
A apreciação jurisdicional da decisão de encerramento de inquérito tomada pelo Ministério Público apenas é processualmente possível na fase de instrução se o juiz de instrução for para o efeito convocado por quem tenha para tal legitimidade, nos termos dos art.s 286°, e ss., do Código de Processo Penal.
39.
O mesmo se diga da figura da "absolvição da instância", a que se recorreu na decisão a quo.
40.
O juiz de instrução não tem poderes para impedir que o Ministério Público (ou o assistente ou outro sujeito processual) o convoque a tomar posição sobre determinadas questões nos termos legalmente prescritos, não podendo deixar de apreciar todas as questões que, durante a fase de inquérito lhe venham a ser apresentadas, ainda que seja para se declarar incompetente para o efeito.
41.
E, deste modo, ilegal a decisão do M.mo juiz a quo, por violação do disposto no art. 17°, do Código de Processo Penal.
42.
O Mmo. juiz a quo excedeu, em conclusão, os seus poderes, violando as normas ínsitas aos art.s 4º, 17°, 53°, n.° 2, al. b), 263°, n.° 1, 262°, n.° 1, e 267° do Código de Processo Penal, e 1º, 2º, 3º, n.° 1, al. c), e 75°, n.° 1, do Estatuto do Ministério Público, através de uma interferência na atividade do Ministério Público, comprometendo irremediavelmente a acusatoriedade do processo.
43.
Nestes termos, violou o princípio do acusatório e a autonomia do Ministério Público, consagrados, respetivamente, no art. 32°, n.° 5, e 219°, da Constituição da República Portuguesa, ao interpretar os art.s 17°, 53°, n.° 2, al. b), 262°, n.° 1, 263°, n.° 1, 268° ou 269°, do Código de Processo Penal, por forma a admitirem uma conformação do processo em fase de inquérito pelo juiz de instrução à revelia do poder decisório do Ministério Público.

A competência dos tribunais portugueses para conhecer dos factos em causa nos presentes autos.
44.
Os presentes autos tiveram origem numa certidão de uma denúncia onde são relatados, em suma, factos justificativos da suspeita de que um conjunto de indivíduos, entre os quais MHJ, se encontrariam a utilizar o sistema financeiro português para proceder à introdução camuflada na economia legítima, de quantias por si obtidas através do desenvolvimento de atividade económica e negocial, em Angola, ao arrepio das incompatibilidades legais relativas a titulares de cargos políticos, apenas possível em função dos cargos públicos e políticos por si ocupados naquele País, e por via do exercício de influência indevida junto dos órgãos decisores do governo angolano. Essa atividade, prossegue a denúncia, determinou que sectores estratégicos como o dos petróleos, telecomunicações, banca, comunicação social e diamantes estejam dominados pelos referenciados indivíduos. Tal factualidade, de acordo com a denúncia apresentada e os seus sucessivos aditamentos, mostra-se violadora da legislação criminal angolana relativa à titularidade de cargos de responsabilidade política, já que se mostra vedada ao dirigente político a participação económica em negócio sobre o qual tenha poder de influência e decisão (cf. fls. 2 a 24).
45.
A prática dos enunciados factos é passível de enquadramento na tipicidade dos crimes de corrupção ou tráfico de influência, ou prevaricação ou burla qualificada, prevista, respetivamente, pelo disposto nos art.s 374°, 335°, 218°, do Código Penal, e nos art.s 18°, e 11°, daLein.0 34/87, de 16-07.
46.
Especificamente em relação a MHJ é referenciado que utilizará, entre outras, a sociedade WWC, SGPS, SA, sediada em Portugal, para introduzir os capitais assim acumulados na economia portuguesa.
47.
Tal factualidade é passível, em abstrato, de consubstanciar a comissão, em Portugal, do crime de branqueamento, p. e p. pelo disposto no art. 368°-A, do Código Penal.
48.
O objeto dos presentes autos prende-se com a análise dos movimentos financeiros que foram detetados, em instituições de crédito a operar em território português, envolvendo, entre outros, MHJ e um conjunto de sociedades por si nominalmente detidas ou materialmente controladas.
49.
Nos termos do disposto no n.° 4 do art. 368°-A, do Código Penal, o crime de branqueamento é punido ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores.
50.
Tal imposição de transterritorialidade resulta da vinculação do direito português a regras europeias, especificamente, à Diretiva n.° 91/308/CEE, do Conselho, de 10 de Junho de 1991, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais, que, no seu art. 1º estabelece que ocorrem manobras de branqueamento ainda quando as atividades que geraram os bens detetados nessas manobras se tenham desenvolvido no território de outro Estado membro ou em país terceiro.
51.
Esta forma de construir o crime de branqueamento não atribui, contudo, à jurisdição Portuguesa um princípio de universalidade para a perseguição deste tipo de crime, já que na conformação do crime de branqueamento, como já se referenciou, há que atender ao local da prática das manobras típicas e à localização do agente que as desenvolveu, sendo certo que o que se visa perseguir são essas manobras e não os atos ilícitos que estão na origem dos fundos
52.
No caso dos presentes autos, o objeto do inquérito trata-se precisamente de factos autónomos e distintos dos da prática daqueles consubstanciadores de factos ilícitos típicos alegadamente ocorridos em Angola: os movimentos financeiros detetados que refletem, com elevada probabilidade, face às suas características, a intenção de ocultar a sua real origem e dissimular a sua natureza ilícita.
53.
A punição pelo crime de branqueamento pressupõe a existência prévia da ocorrência de facto ilícito típico, mas não necessariamente a verificação de um facto ilícito típico punível anterior, não sendo necessária a verificação prévia de um crime, de uma condenação pela sua prática ou até da sua perseguição criminal, sendo irrelevante a existência de um despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, quanto a determinados factos, considerando que tal despacho, não só não tem, pela sua natureza não jurisdicional, a virtualidade de produzir caso julgado, como assenta em fundamentos de cariz não definitivo, suportados na ausência de prova.
54.
A necessidade de se verificar um nexo de causalidade entre a prática do facto ilícito típico precedente e a obtenção da vantagem não significa que o crime de branqueamento não seja legalmente conformado como um crime autónomo que visa dar proteção a um específico bem jurídico.
55.
A autonomia do crime de branqueamento em relação à predicated offense constata-se, desde logo, na circunstância de o objeto da atividade descrita tipicamente pela prescrição penal serem apenas e só as vantagens tipicamente relevantes nos termos definidos no art. 368º-A, n.° 1, do Código Penal.
56.
Os bens jurídicos tutelados pela incriminação do branqueamento são colocados em crise através das condutas tipificadas como consubstanciando o respetivo tipo, independentemente do local onde foi praticado o facto ilícito típico que gerou as vantagens seu objeto, sendo a conduta igualmente lesiva de tais bens jurídicos quer o facto que originou as vantagens tenha sido cometido em território nacional (ou nas suas extensões juridicamente admissíveis) quer tenha o mesmo sido praticado no estrangeiro.
57.
A jurisprudência portuguesa pronunciou-se recentemente nesse sentido. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014 [(Raul Borges), proc. n.° 14/07.0TRLSB.S1, disponível em www.dasi.pt] concluiu-se que "[o] crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente", que "[desde] que se tenha verificado a prática do crime base e sejam praticados atos subsumíveis ao tipo de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respetivo agente será penalmente perseguido mesmo nos casos em que por exemplo, o autor do crime base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal por tal crime se encontre prescrito" e que «[pode] haver "crime de branqueamento", mesmo que os fatos subjacentes não sejam criminalmente puníveis».
58.
A decisão em apreço ignorou por completo a realidade que subjaz à criminalização de manobras de branqueamento e a construção dogmática que determinou, olvidando a autonomia plena do crime de branqueamento em relação ao ilícito subjacente, ocupando-se, erroneamente como supra já se explanou, em averiguar da existência, ou não, deste último ilícito.
59.
Em conclusão, a decisão sob recurso é ilegal, na medida em que obliterando a autonomia do crime de branqueamento em relação ao facto precedente não se revela em conformidade com o que dispõem conjugadamente os art.s 368°-A, n.° 4, 4º, al. a), do Código Penal, e o art. 6º, do Código de Processo Penal.
60.
A decisão de que se recorre, para além do que ficou expresso, ignorou por completo a circunstância de nos presentes autos o objeto do inquérito se ter entretanto alargado.
61.
No desenrolar do presente inquérito, foi detetado um conjunto de interações financeiras estabelecidas entre MHJ e um conjunto de sociedades por si nominalmente detidas ou materialmente controladas e o Banco Espírito Santo Angola, através de uma conta que esta instituição mantinha no Banco Espírito Santo, em Lisboa, Portugal.
62.
As finalidades próprias do inquérito (cf. art. 262°, n.° 1, do Código de Processo Penal) impõem que tal matéria seja considerada na análise em curso nos presentes autos (cf. art.s 262°, n.° 2, e 267°, do Código de Processo Penal).
63.
Se assim é, ainda mais veemente é a conclusão de que inexiste, in casu, qualquer questão quanto à competência dos tribunais portugueses: se as diligências de inquérito vierem a confirmar esta suspeita, afinal o próprio facto precedente do crime de branqueamento (que será passível de consubstanciar a comissão de crime de burla qualificada ou de abuso de confiança, pp. e pp., respetivamente, pelo disposto nos art.s 218° e 205°, do Código Penal) terá ocorrido igualmente em Portugal.
64.
Nesta parte, a decisão em apreço revela-se igualmente ilegal, por violação do art. 97°, n.° 5, do Código de Processo Penal, uma vez que assenta a sua fundamentação em pressupostos incompletos, que olvida e omite da sua análise fáctica e jurídica.
65.
Por tudo o exposto, nos presentes autos, por força dos princípios da autonomia e da territorialidade (cf. art. 4o, do Código Penal, e 6o, do Código de Processo Penal), o Estado português tem assim competência para a investigação e punição deste crime (cf. art. 219°, da Constituição da República Portuguesa) e o Ministério Público tem o dever de promover o respetivo processo penal (cf. art.s 48° e 262°, n° 2, do Código de Processo Penal).”
Termina no sentido de ser revogado o despacho recorrido, “porquanto exorbitante das competências do juiz de instrução, em violação da Constituição da República Portuguesa e da lei, devendo ser determinado ao M.mo juiz a quo que o substitua por outro que se limite a apreciar a questão que lhe foi colocada, a competência dos tribunais portugueses para conhecer dos factos em apreço no presente inquérito, mais se determinando que decida, pelas razões expostas, por indeferir o requerimento que lhe foi apresentado, declarando os tribunais portugueses competentes para conhecer dos factos em causa nos presentes autos.”

Ao recurso e motivação do M.º P.º veio responder o recorrido MHJ, concluindo:
“1) Os presentes autos emergiram de certidão extraída do inquérito n.º 142/12.0TELSB em consequência do instituto da separação de processos.
2) O aludido inquérito, por sua vez, teve origem na averiguação preventiva n.º 85/11, baseada numa queixa, e aditamento posterior, apresentada por AP, cidadão de nacionalidade angolana, exonerado das suas funções junto das Organizações Internacionais, em Genebra, em consequência de práticas criminosas no exercício daquela função e que culminaram na respectiva condenação, em 15 de Março de 2000, pelo Tribunal Supremo da República de Angola, pelo crime de apropriação ilegítima de bens, queixa inicial e aditamento onde o ora recorrido não é denunciado, nem sequer mencionado.
3) Na referida queixa e no respectivo aditamento o identificado AP imputa genericamente ao ora requerente e aos demais denunciados, sem a mínima especificação de qualquer facto concreto, a prática de “corrupção” em Angola e “branqueamento de capitais“.
4) Posteriormente, à apresentação da queixa e com vista a procurar acusar o recorrido pela prática dos alegados factos que deram origem aos presentes autos - crime precedente do branqueamento de capitais previsto na lei portuguesa alegadamente praticado em Angola (“corrupção”) – ou seja, já no decurso dos presentes autos, o aqui assistente, RM, apresentou em Angola duas queixas-crime visando o ora recorrido e outros cidadãos angolanos.
5) Tais participações, como aliás está demonstrado nos presentes autos, deram origem na Procuradoria-Geral da República de Angola aos correspectivos autos de inquérito n.ºs 04/2012 e 06-A/2012.
6) Sucede que, como o MP bem sabe e não ignora, tais inquéritos que correram os respectivos termos na República de Angola foram ambos objecto de doutos despachos de arquivamento cujas certidões estão há anos juntas aos presentes autos a fls. … e a fls. …
7) Tais factos alegadamente ocorridos e denunciados em Angola consubstanciariam em tese o crime precedente de branqueamento de capitais especificamente exigido pela lei portuguesa.
8) O crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente, mas não o é geneticamente. A lei é clara na definição dos critérios: exige como pressuposto genético ou sine qua non da investigação e condenação do crime de branqueamento a prévia concretização de um ilícito, que tenha produzido vantagens, sendo que só a partir daqui o branqueamento ganha, então, autonomia, não obstante o “ilícito” precedente não ter sido punido, ou já não seja punível.
9) Todos os factos expostos e documentados, quer em Portugal quer em Angola, são, só por si, demonstrativos de que não foi cometido qualquer crime precedente previsto no Art.º 368.º-A do Código Penal.
10) Doutra banda, a competência internacional dos Tribunais Portugueses encontra-se definida nos artºs 4º a 6º do Código Penal.
11) Cortejando os ensinamentos do douto Tribunal da Relação de Lisboa, em 26 de Março de 2015, no âmbito do processo 147/13.3TELSB-9, de que foi Relatora a Exma. Sra. Dra. Juiz Desembargadora Margarida Vieira de Almeida, onde bem é sublinhada a anotação do Prof. Pinto de Albuquerque ao art.º 5.º do CP, «1. a aplicação espacial do direito penal a factos cometidos fora do território nacional assenta em cinco princípios: da nacionalidade, da defesa dos interesses nacionais, da universalidade, da administração supletiva da lei nacional e da aplicação convencional.
12) No caso vertente, o Estado Português apenas poderia actuar de acordo com o princípio da universalidade, ou da protecção de bens jurídicos comuns a toda a humanidade, a saber, nos crimes de escravidão, (artº 159º), tráfico de pessoas (160º), rapto (161º), abuso sexual de crianças e de menores dependentes (artºs 171º e 172º) de lenocínio de menores e de pornografia de menores (175º e 176º), danos contra a natureza, poluição e de poluição de perigo comum.
13) Por outro lado, nos termos do disposto no nº 1 do art. 6º do CP (restrições à aplicação da lei portuguesa), «A aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação.»
14) Entender-se de forma diversa seria permitir que o assistente, em conluio com MP, tentasse, como tentou, pelo recurso às jurisdições portuguesa e angolana, obter uma decisão que lhe fosse favorável.
15) Ora, uma vez que o branqueamento «para assumir relevância típica, terá de ser uma vantagem “proveniente” do crime subjacente e, como tal de origem ilícita» - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-07-2013 (Rui Gonçalves), proc. n.º 1/05.2JFLSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt;
16) E comprovado que está que os factos que deram origem aos presentes autos têm definido o seu lugar de consumação em Angola - imputação genérica de “corrupção” em Angola na denúncia de fls. 1 e segs. e as queixas-crime apresentadas pelo assistente em Angola já foram objecto de arquivamento em Angola, onde o recorrido, cidadão nacional angolano, reside, exerce funções governativas e é contribuinte fiscal, resulta inequívoca a incompetência do Estado português para investigar e perseguir criminalmente o recorrido por tais factos.
17) Ademais, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-04-2011 (Rui Gonçalves), proc. n.º 250/06.6PCLRS.L1-3, disponível em www.dgsi.pt:
«A excepção de caso julgado materializa o disposto no art. 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Por isso, o caso julgado é considerado como uma causa de extinção da acção penal.
18) (…) A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento (…), mas é obvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do “mesmo crime”(…).
XV. Quanto ao âmbito de protecção subjectivo destas garantias penais, trata-se obviamente de direitos universais, (…), pelo que não há lugar para os reservar para as pessoas de nacionalidade portuguesa, excluindo os estrangeiros. Todas as pessoas, pelo facto de o serem, gozam destas garantias (…).» - Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao art. 29º, nº 5 da CRP, in CRP anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 497 e 498, notas XI e XV.
19) Mutatis mutandis, a essência da questão diz respeito à forma insidiosa, ilegal e discriminatória como o recorrido – cidadão angolano, aliás, membro do Governo da República de Angola, e residente em Angola, país independente e soberano onde é sujeito passivo fiscal – está a ser investigado em Portugal por factos alegadamente praticados em Angola (Imagine-se!) quando está documentalmente provado nos presentes autos o arquivamento, em Angola, dos dois processos correspondentes às queixas apresentadas na Procuradoria-Geral da República de Angola pelo aqui assistente no âmbito de uma manobra política em benefício político de terceiros.
20) O Art.º 1.º da Constituição da República de Angola prescreve que «Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano, que tem como objectivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social.».
21) Soberania quer dizer, antes de tudo, autonomia, isto é, a capacidade de se dotar das suas próprias normas, da sua própria Constituição e ordem jurídica, com exclusão da aplicação de quaisquer outras, com excepção das resultantes nos casos admitidos pela sua Lei Suprema e Fundamental e a ela conformes.
22) Independente significa dizer, em primeira linha, a soberania política em sentido político formal, mas também a auto-determinação, ou seja, independência política em sentido material - não sujeição a nenhum outro país - fundamentando assim o conceito de independência nacional, proclamada no dia 11 de Novembro de 1975, data em que entrou em vigor a primeira Lei Constitucional da história de Angola.
23) De harmonia com o disposto nos artºs 4º do CPP e 96º do Código de Processo Civil, «determinam a incompetência absoluta do Tribunal: a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional (…).»
24) «A incompetência absoluta (…) deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal (…)» (artº 97º do CPC) e implica a absolvição da instância (artº 99º do CPC).
25) Segundo o decidido no Ac. TRL de 2 de Junho de 2016 (Margarida Vieira de Almeida), proc. n.º208/13.9TELSB-D.L1, 9ª secção, «das normas contidas no art. 32º do Código de Processo Penal resulta que a incompetência do tribunal è por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final.
Ora, se assim é, então caberia ao M.mo juiz a quo ter conhecido da incompetência deduzida pelo recorrente, uma vez que se está perante um inquérito onde já existiu intervenção jurisdicional.»
26) Outrossim, sobre o tema da competência do JIC neste inquérito, decidiu o Ac. TRL de 24 de Setembro de 2015 (Antero Luís), proc. n.º 208/13.9TELSB-B.L1, 9ª secção, «(…) Não nos parece curial que, estando em causa, alegadamente, direitos liberdades e garantias dos cidadãos, se possa argumentar com a autonomia de um órgão do Estado, neste caso o Ministério Público, para se poder defender a inexistência de sindicância jurisdicional desse mesmo órgão, no que respeita à sua actuação no processo criminal, de que tem o domínio (…).»
27) Vem o MP cantar loas ao princípio do acusatório e da autonomia, designadamente no que respeita ao exercício da acção penal, quando a questão central, no que ao recorrido diz respeito é de administração da justiça e de defesa dos direitos, liberdades e garantias do recorrido.
28) Tendo em conta as incidências processuais da excepção incompetência internacional dos Tribunais portugueses na esfera jurídica do recorrido, quer na sua dimensão constitucional, por agressão aos seus direitos, liberdades e garantias – designadamente, de igualdade (art. 13º da CRP), de acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP), ao bom nome e reputação (art. 26º da CRP), à propriedade privada (art.52º da CRP), à aplicação da lei criminal (art. 29º e 32º da CRP), quer na sua dimensão processual por violação dos arts. 4º a 6º do CP e 32º do CPP e 96º, 97º e 99º do Código de Processo Civil - não poderia, no caso em apreço, o juiz de instrução deixar de apreciar a excepção arguida.
29) Mormente quando, na verdade, tudo isto poderia e deveria ter sido evitado se o MP, uma vez que os direitos, liberdades e garantias são de aplicação directa e vinculam, outrossim, entidades públicas, ao abrigo do art. 18º CRP, e considerando o disposto no nº 1 do art. 277º do CPP, aquando da junção a estes autos da prova do arquivamento em Angola, tivesse proferido de imediato despacho de arquivamento por inadmissibilidade legal do procedimento ou, sob a alçada do art.32º do CPP poderia ter deduzido a excepção de incompetência internacional.
30) Nem o MP português, nem os Tribunais portugueses têm competência para prosseguir investigações em Portugal por supostos factos praticados por um cidadão angolano, em Angola, quando neste País – que é soberano - os processo onde se investigavam os factos que deram origem aos presentes autos foram arquivados e tais arquivamentos estão documentalmente comprovados nos autos.
31) Bem andou o JIC a quo ao decidir que «tendo em conta (…) a estreita relação entre os actos de branqueamento e o facto ilícito precedente e tendo estes factos precedentes, alegadamente, sido consumados num outro país soberano que já tomou posição quanto a esses mesmos alegados ilícitos subjacentes, faz com que os tribunais portugueses, neste caso o Mº Pº, careçam de competência para a prossecução da investigação (…).» e em consequência absolvendo o ora recorrido da instância.
32) Em sintonia, aliás, com o decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no douto Acórdão de 2 de Junho de 2016 (Margarida Vieira de Almeida), proc. n.º208/13.9TELSB-D.L1, 9ª secção, emergente dos presentes autos de inquérito em que foi ali recorrente o cidadão angolano LFN, ao expressamente «…Declarar a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal, definida nos art.ºs 4.º a 6.º do Código Penal, para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País, LFN, nesse mesmo País, com as consequências legais dela resultantes – absolvição da instância.»”
Termina no sentido de ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o douto despacho recorrido.

Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto nos autos.

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Adoptando uma sistemática de tratamento algo diferente da comum começaremos pelo final do despacho recorrido na parte relativa à consequência jurídica que o Mmo. JIC retira, depois de afirmar a verificação da excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses por violação das regras de competência internacional, ao determinar a absolvição de MHJ da instância.
O primeiro reparo que essa decisão concreta nos suscita diz respeito à não aplicação do disposto no art.º 33º n.º 4 CPP onde se estabelece como consequência da declaração de incompetência o arquivamento do processo, efeito bem diferente do que foi decretado.
Compreende-se que essa concreta decisão acarreta, por sua vez, consequências diferentes, mormente no tocante à possibilidade de reabertura do inquérito nos termos consignados no art.º 279º CPP, possibilidade essa que fica precludida definitivamente se for, como foi, decretada a absolvição, mas que uma decisão de arquivamento não obstaculiza.
Depois, mostra-se desajustado o efeito atribuído à incompetência dos tribunais portugueses – a absolvição da instância do denunciado – quando ainda não existe, como sucede no caso, arguido formalmente constituído; a realidade processual apenas permite afirmar da existência de uma investigação, ainda nos seus primórdios de determinação dos actos materiais eventualmente constitutivos do ilícito de branqueamento de capitais e da respectiva autoria, apesar de, pelos termos da investigação, os indícios apontarem para o recorrido.

Outro dos aspectos que importa referir diz respeito à oportunidade de intervenção do Mmo. JIC atenta a fase de inquérito em que o procedimento se encontra.
Nesta fase processual, a lei processual penal estabelece as possibilidades de intervenção judicial por normas dispersas ou seja, em actos concretamente tipificados na lei, designadamente os constantes dos art.ºs 286º e seguintes do CPP, intervenção essa que podemos caracterizar como garantística.
Na realidade, quando, apreciando os diversos argumentos desenvolvidos no despacho recorrido em que Mmo. JIC aprecia a existência de violação do princípio ne bis in idem, em resultado do confronto das certidões oriundas de autoridades judiciárias angolanas juntas aos autos […os factos que alegadamente estão na origem dos proventos ilícitos de que o suspeito movimentou junto dos bancos portugueses, conforme contas bancárias e movimentos acima referidos, resultam, segundo a investigação em curso, de factos supostamente ocorridos em Angola e que já foram objecto de investigação neste país.
Com efeito, se tivermos em conta a denúncia que deu origem aos presentes autos e a denúncia que deu origem ao inquérito crime da PGR de Angola, verifica-se que os factos objecto de ambos os processos é o mesmo, independentemente da qualificação jurídica que mereceram em ambas os processos…], e manifesta a impossibilidade de que esses mesmos factos sejam de novo investigados nos presentes autos, o Mmo. JIC encontra-se a produzir apreciação de mérito sobre a investigação na medida em que parece excluir a possibilidade de constatação de ocorrência de outro ilícito para além daquele(s) que fora(m) objecto de investigação e posterior arquivamento pelas autoridades judiciárias angolanas, Ora, essa apreciação mostra-se deslocada no tempo processual em que nos encontramos já que, em sede de inquérito, o Mmo. JIC apenas detém a competência que, para esta concreta fase processual, se encontra estabelecida no art.º 268º CPP, não se vislumbrando que esta apreciação venha referida na alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito ou possa inferir-se de outro preceito.
Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 28.01.2009, disponível em www.gde,mj.pt/jtrp: “Dispõe o art. 262º n.º 1 do C. de Processo Penal que «O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação».
O inquérito tem, então, um duplo sentido: o de fase processual («é uma fase em sentido lógico, já que é dominado por actos pertinentes a uma mesma ideia, a uma finalidade determinada: a decisão sobre a acusação; é também uma fase em sentido cronológico, enquanto os actos que lhe correspondem e que a caracterizam em sentido lógico são contíguos no tempo; o inquérito, em sentido lógico e cronológico, inicia-se com um despacho do Ministério Público e finda, em sentido lógico, com a decisão que sobre ele tomar o Ministério Público, e, em sentido cronológico, com o requerimento de abertura da fase da instrução ou com a remessa a tribunal de julgamento») e o de actividade processual («o termo inquérito é usado no CPP num sentido mais restrito, compreendendo apenas a actividade de investigação e recolha de provas sobre a existência de um crime e determinação dos seus agentes, que tem lugar na fase processual também designada inquérito»).
É assim que, quando o CPP se refere aos actos de inquérito significa tão-só as diligências de investigação e de recolha de prova que hão-de servir para a decisão do Ministério Público, mas quando se refere à direcção do inquérito e aos actos do juiz de instrução durante o inquérito está a tomar a palavra num sentido mais amplo, de fase processual. O conjunto dos actos de inquérito constituem o inquérito, enquanto actividade; todos os actos que ocorrem no decurso da fase processual do inquérito e têm por fim a decisão sobre a acusação constituem o inquérito, enquanto fase processual em sentido lógico, e todos os actos praticados entre a decisão do Ministério Público de abrir o inquérito e o requerimento de abertura de instrução ou a remessa do inquérito para o tribunal do julgamento, fazem parte da fase processual denominada inquérito, tomada agora em sentido cronológico»[2].
Ora, a direcção do inquérito é da competência (exclusiva, portanto) do Ministério Público (art. 263º, n.º 1, do C. de Processo Penal) sendo que, por isso, e para a realização das finalidades do inquérito, pratica os actos e assegura os meios de prova, nos termos do art. 267º do C. de Processo Penal.
É certo que esta norma está dirigida, decisivamente, à actividade de investigação e recolha de provas, que, por vezes, “necessita” (imposição legal) da intervenção do juiz de instrução criminal, quer para os consentir, quer para os praticar, ainda que, em regra, sob a sua promoção – v. os arts. 17º, 267º, 268º, n.º 1, als. a) a f), e 269º, n.º 1, als. a) a d), do C. de Processo Penal; e Germano Marques da Silva[3], quando ensina: «não obstante, os actos de inquérito, em sentido estrito, que a lei reserva à competência do juiz de instrução, não lhe cabe apenas apreciar da admissibilidade desses actos, mas também da sua oportunidade e conveniência; mesmo na interpretação prevalecente e restritiva do art. 32º, n.º 4, da Constituição, é reservada à competência do juiz de instrução a prática dos actos de investigação, ainda que na fase processual do inquérito, que se prendam com os direitos fundamentais; importa distinguir os actos de inquérito e os actos do juiz praticados no decurso do inquérito, já que nem todos os actos do juiz praticados no decurso do inquérito são actos de inquérito e, por isso, não estão sujeitos à promoção do Ministério Público; a este propósito parece-nos importante referir os poderes de investigação autónoma do juiz de instrução, ainda mesmo na fase do inquérito, para efeito de fundamentar a sua decisão sobre medidas de coacção; enquanto actos de investigação tenham essa finalidade podem ser praticados ou ordenados pelo juiz de instrução, oficiosamente ou a requerimento de qualquer sujeito processual interessado».
Mas ela mais permite, como inferência lógica: a afirmação de que a intervenção do juiz de instrução no inquérito é necessariamente excepcional. Porquanto, como escreve o Prof. Germano Marques da Silva[4], “competindo a direcção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se se tratar de actos necessários à salvaguarda dos direitos fundamentais (que são os referidos nos arts. 268º e 269º do CPP).
No mesmo sentido se pronuncia o Ac.R.P. de 20/01/99[5]: “O actual sistema processual penal impõe que o inquérito seja dirigido pelo Ministério Público, em que a lei deixa ao seu critério a escolha dos actos e diligências necessárias à realização da sua finalidade. (...) Os actos a praticar pelo juiz de instrução estão definidos nos artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal, onde não cabe a sindicância ao modo como a investigação é feita”.
Não sofre qualquer contestação e não vale a pena voltar a repetir-se que, sendo o Mº Público, na fase de inquérito, o “dominus” do processo (como é habitual dizer-se), a ele compete determinar as diligências reputadas pertinentes e adequadas à investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não.
De acordo com o que dispõe o art. 17º do C. de Processo Penal, compete ao juiz de instrução exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, nos termos previstos nesse Código.
Ora, segundo o artº 268ºdo C.P.Penal, sob a epígrafe “actos a praticar pelo juiz de instrução”, “1. Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;
c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos dos artigos 177.º, n.º 3, 180.º, n.º 1, e 181.º;
d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do nº 3 do artigo 179.º;
e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;
f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.”
Os actos contemplados no preceito seguinte como sendo da sua competência exclusiva naquela fase, são os de ordenar ou autorizar:
a) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do art. 177.º;
b) Apreensões de correspondência, nos termos do art. 179.º, n.º 1;
c) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 190.º;
d) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.
Pese embora, como se disse, a direcção do inquérito seja da exclusiva competência do Mº Pº, ainda assim é possível encontrar um domínio de excepção onde é possível admitir (mais não seja para melhor poder testá-lo), uma intervenção pontual do juiz de instrução criminal sobre a legalidade das iniciativas processuais assumidas pelo Ministério Público no inquérito: a dos actos “necessários à salvaguarda dos direitos fundamentais”. Aliás, na interpretação prevalecente do art. 32.º, n.º 4, da Constituição é reservada à competência do juiz de instrução a prática dos actos de investigação, ainda que na fase processual do inquérito, que se prendam com os direitos fundamentais.”
[2] Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., revista e actualizada, 2000, págs. 71 e 72/73.
[3] Germano Marques da Silva, in ob. cit., pág. 80.
[4] Ob. citada, pág. 79.
[5] Proferido no Proc. nº 9811045, disponível em www.dgsi.pt/jtrp
Nesta perspectiva de Juiz das garantias cuja exacta medida da sua capacidade interventiva no inquérito é a que lhe é legalmente fixada/atribuída, podemos concluir que as considerações que se mostram tecidas no despacho recorrido excedem os limites legais de pronunciamento acima referidos, enquanto actos no inquérito que cabem ao Mmo. JIC realizar ou actos de cuja autorização depende a respectiva realização, tudo nos termos previstos nos art.ºs 268º e 269º CPP.
Se os factos que alegadamente estão na origem dos proventos ilícitos de que o suspeito movimentou junto dos bancos portugueses coincidem ou não com os ilícitos denunciados às autoridades judiciárias angolanas, por estas investigados e objecto de decisão de arquivamento proferida por estas, é uma questão que o titular do inquérito terá de enfrentar no desenrolar do presente inquérito e, finda a investigação, se concluir por essa coincidência, ou não, proferir decisão em conformidade - tal como estabelecem os art.ºs 277º e 283º CPP.
Para além disso, a afirmação dessa coincidência (entre o ilícito subjacente denunciado nos autos e os ilícitos denunciados a/investigados pelas autoridades judiciárias angolanas) parece excluir a possibilidade de o M.º P.º, no decorrer deste inquérito descobrir outro qualquer ilícito, mesmo que cometido em país estrangeiro, mas que não possam, por efeito da regra da competência internacional dos tribunais portugueses, o(s) possível (eis) autor(es) serem julgados e punidos em Portugal e, mais grave que isso, excluir à partida a possibilidade de esse ilícito subjacente ter sido cometido em Portugal dado que a investigação ainda não se mostra esgotada.
Como acima dissemos, o pronunciamento pelo Mmo. JIC acerca da virtude da investigação e da influência que sobre a mesma tem a certidão emitida pelas autoridades judiciárias angolanas mostra–se processualmente deslocada dado que para essa intervenção teria de se encontrar requerida, admitida e aberta a instrução, fase processual que, tal como dispõe o art.º 288º n.º 1 CPP, é da competência de um juiz de instrução.
Assim sendo, tal como o recorrente aponta no seu recurso, na conclusão “26. A decisão proferida, sustentada nas invocadas razões, assume-se como uma decisão de encerramento do processo, in casu, de encerramento do inquérito, a fase em que o mesmo se encontra, considerando que lhe subjaz, ainda que tal não tenha sido expressamente invocado, um juízo de insuficiência indiciária assente na circunstância de, no entender do M.mo juiz de instrução, se não verificar um dos requisitos típicos do ilícito, a existência de um facto típico precedente penalmente relevante para efeitos da qualificação dos factos como crime de branqueamento.” e “ 27. Ora, tal atividade é constitucionalmente vedada ao juiz de instrução, sendo violadora dos art.s 32°, n.º 5, e 219°, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, uma interpretação dos art.s 17°, 53°, n.º 2, al. b), 262°, n.º 1, 263°, n.º 1, 268° ou 269°, do Código de Processo Penal, que admita uma conformação do processo em fase de inquérito pelo juiz de instrução à revelia do poder decisório do Ministério Público.”
Acresce, agora quanto à bondade das considerações tecidas no despacho recorrido acerca da necessidade de verificação de um facto ilícito típico subjacente, definido pela lei, de onde sejam provenientes as vantagens que se dissimulam, sendo pressuposto do branqueamento de capitais a existência de um ou de mais crimes precedentes previstos no “catálogo” legal, de cuja prática sejam provenientes os bens cuja origem se pretende dissimular, importa lembrar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014 proferido no proc. 14/07.0TRLSB.S1, disponível em www.gde.mj.pt/jstj, também referido na decisão recorrida, em que se concluiu: "[o] crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente", que "[desde] que se tenha verificado a prática do crime base e sejam praticados atos subsumíveis ao tipo de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respetivo agente será penalmente perseguido mesmo nos casos em que por exemplo, o autor do crime base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal por tal crime se encontre prescrito" e que «[pode] haver "crime de branqueamento", mesmo que os fatos subjacentes não sejam criminalmente puníveis».
Ora, o despacho recorrido, ao estabelecer uma relação de dependência entre ambos os crimes, desprezou a realidade justificadora da criminalização de manobras de branqueamento e a construção dogmática daí decorrente, esquecendo que o crime de branqueamento tem total autonomia em relação ao ilícito subjacente, pondo o acento tónico da respectiva argumentação somente em afirmar da existência, ou não, desse ilícito subjacente.

Tal como o próprio despacho recorrido admite “É inquestionável a competência do tribunal português para conhecer do crime de branqueamento cometido em território nacional em que os ilícitos típicos subjacentes foram praticados também em território nacional., pelo que se mostra verificado o pressuposto da al. a) do art.º 4º CP e, não estando a investigação objecto do inquérito já terminada - de molde que se imponha como adquirido que o(s) crime(s) subjacente(s) seja(m) o(s) que consta(m) da denúncia que deu origem aos presentes autos, cujo conteúdo não limita o âmbito da investigação, ou coincida(m) com o(s) referido(s) na investigação realizada e arquivada a final pelas autoridades judiarias angolanas, o despacho em questão não pode subsistir.
Acresce que, tal como resulta dos autos e o próprio despacho recorrido tem por pacifico, os factos investigados (traduzidos em movimentos financeiros) ocorreram em Portugal, a alegação relativa a abuso de poder, desrespeito por soberania nacional de país estrangeiro ou motivação politica para a realização do inquérito mostra-se esvaziada de sentido e fundamento.
Reconhecendo, por um lado, ao Mmo. JIC poderes de apreciação da excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por violação as regras definidoras da sua competência internacional, por outro, impõe-se, em consequência do qua acima mencionámos, conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, reconhecendo aos tribunais portugueses a competência internacional para presente investigação.

III.
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso interposto pelo M.º P.º, revogando o despacho recorrido e, nos termos dos art.ºs 4º al. a) do CP e 6º do CPP, reconhecer aos tribunais portugueses a competência internacional para investigar os factos objecto do inquérito.
Sem custas.
Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.
Lisboa, 20 de Junho de 2017

João Carrola

Luís Gominho