Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1572/2006-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
ESCRITA COMERCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I-No âmbito do direito à contraprova, visando-se demonstrar que o concessionário, após a cessação do contrato, não deixou de continuar a receber retribuição por contratos negociados ou concluídos entretanto, não tendo, assim sendo, direito a indemnização de clientela, deve ser deferido o pedido de notificação para junção de facturas emitidas desde a data de cessação do ‘contrato de concessão’ respeitantes a transacções efectuadas.
II-Prevalece o dever de cooperação das partes para a descoberta da verdade, que tem o seu fundamento legal no disposto nos artigos 266.º,n.º1 e 519.º,n.º1 do Código de Processo Civil, sobre a protecção do segredo da escrituração mercantil.
(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa ( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.

Intentou A…Lda. acção declarativa comum, sob a forma de processo ordinário, contra J…, Lda..

Em audiência preliminar, elaborada a competente base instrutória, veio a R. requerer ao Tribunal que se dignasse “ ordenar a notificação da A. para, dentro do prazo que venha a ser designado pelo Tribunal, mas que se sugere não seja superior a dez dias, depositar na Secretaria fotocópia das facturas emitidas desde a data da cessação do “ Contrato de Concessão. “.

Notificada, veio a A. a considerar que “ …dos documentos cuja junção é requerida resultaria o acesso a informação privilegiada a que à Ré não é lícito aceder, designadamente por conter informação relativa a toda a clientela e outras informações que a A. entende serem confidenciais e próprias do seu comércio, sendo matéria que a Lei nem mesmo aos sócios ( não titulares de funções de gestão ) assegura sem reservas.

Note-se, além disto, que a requerida junção se reporta a documentos produzidos no período pós-contratual, i.e., nada releva para a decisão da causa.

A matéria indicada no douto requerimento de fls. e cuja contraprova a Ré se propõe fazer com a requerida junção de facturas é matéria cujo ónus de prova está claramente a cargo da A., mas mais que isso, é matéria relativamente à qual se pediu a condenação da Ré em montante a liquidar em execução de sentença, sendo portanto despicienda qualquer informação que, nesta fase declarativa, seja obtida.

A contabilização concreta dos danos incorridos é matéria que há-de ser apreciada no âmbito do referido incidente de liquidação. “.

Foi proferido o despacho de fls. 124 a 125, nos seguintes termos : “ Não colhe, salvo o devido respeito, o argumento obstáculo da confidencialidade de dados dos clientes, uma vez que não está em causa matéria relativa a direitos fundamentais ou de personalidade, reportando-se ao que se vislumbra aos documentos de exercício da actividade comercial, que além do mais, serão devidamente confinados ao âmbito do processo judicial em curso.

No que se refere ao facto que se pretende provar e à regra da repartição do ónus da prova, não existe fundamento processual que impeça a circunstância, sendo certo que, ademais no nosso sistema funciona o regime do princípio do inquisitório mitigado, importando acima de tudo a descoberta da verdade material, à parte do ónus de prova, e não esquecendo que no caso concreto a Ré reconveio.

Donde, deverá a A. depositar na secretaria tal documentação ( que ficará em pasta anexa ) em 40 dias.

Por último, a questão de sustentar tal facto um pedido ilíquido da A. em nada altera a exigência legal da prova ( ou contraprova ) do dano, sem prejuízo de a sua concretização numérica ser realizada a posteriori. “.

É desta decisão que vem interposto o competente agravo, que veio a ser admitido conforme despachos de fls.129 e 130.

Juntas as competentes alegações, a fls. 13 a 20, formulou a agravante as seguintes conclusões :

1º - O dever de colaboração das partes cessa, para além de outros casos legalmente previstos, e relativamente aos documentos atinentes à actividade dos comerciantes, nos termos dos artsº 41º e seguintes, do Código Comercial.

2º - Prevê o art.º 42º, do Código Comercial que : “ a exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro, e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de quebra “.

3º - Estabelece, por outro lado, o art.º 43º, do Código Comercial que, fora dos casos previstos no art.º 42º, “ só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida “.

4º - Não é, assim, possível à R. ter acesso aos documentos cuja junção requereu.

5º - Sequer se vislumbra como podem os documentos cuja junção se requer auxiliar na determinação da verificação ou não do ponto 60º, da base instrutória : não se pretende provar que não houve aumento de facturação, mas tão só demonstrar que, pelo facto de o contrato dos autos ter cessado, a facturação da agravante sofreu um impacto negativo.

6º - O que a agravante alega e pretende demonstrar é que a cessação dos contratos... teve impacto negativo na sua facturação, de tal modo que se tal cessação não tivesse ocorrido, a facturação teria sido certamente muito superior.

7º - Por outro lado, se o que a Ré pretende é a demonstração de que a facturação da agravante não diminuiu, bastar-se-á certamente com a análise de demonstrações financeiras que se reportem ao período pós-contratual.

8º - Operando agravante e agravada no mesmo mercado – o automóvel – não é legítimo obrigar-se o concorrente a prestar determinadas informações sobre o seu comércio, designadamente aquelas que se prendam com a identificação da clientela. Essas hão-de ser sempre confidenciais e só disponibilizadas quando o interesse seja o próprio e este assim o pretenda ou consinta.

9º - É esta a protecção que o Código Comercial lhe confere e que o art.º 519º, do Código de Processo Civil não afasta.

10º - Impõe-se a conclusão de que não fez o ilustre julgador a melhor aplicação das disposições legais pertinentes, designadamente do art.º 519º, do Código de Processo Civil e dos artsº 42º e 43º, do Código Comercial.

Apresentou a agravada resposta, pugnando pela manutenção do decidido, formulando, nesse sentido, as seguintes conclusões :

1º - Um dos pedidos formulados pela agravante consiste na condenação da agravada no pagamento de uma indemnização de clientela, nos termos do art.º 33º, do regime jurídico da agência.

2º - A atribuição da sobredita indemnização pressupõe, entre outros factores, que o principal venha a beneficiar consideravelmente, após a cessação do contrato, da actividade desenvolvida pelo agente e que este deixe de receber qualquer retribuição por contratos negociados ou concluídos após a cessação do contrato.

3º - A agravada tem conhecimento de que, não obstante a cessação da vigência do acordo celebrado com a agravante, esta continuou a vender peças e acessórios da marca... e a prestar assistência técnica aos veículos daquela marca.

4º - A agravada não se encontra munida de todos os elementos de prova que permitam convencer o Tribunal – de forma séria e inequívoca - da falsidade da tese defendida pela agravante a este propósito.

5º - A junção das facturas emitidas pela agravante desde o termo da vigência do convénio sub judice permitirá ao Tribunal a quo concluir, sem a menor hesitação, pela não verificação dos pressupostos de que a Lei faz depender a atribuição do direito a uma indemnização de clientela ( o que revela a importância da diligência em discussão no presente recurso ).

6º - A jurisprudência tem entendido que os dados ligados exclusivamente à “ esfera pessoal simples dos cidadãos “ ( isto é, aqueles dados que dizem respeito à identificação, residência, profissão, entidade empregadora e situação patrimonial não se integram no art.º 519º, nº 3, alínea b), do Cod. Proc. Civil.

7º - Os nossos Tribunais Superiores têm decidido que na ponderação dos interesses em causa – interesse público da administração da justiça e confidencialidade sobre a identidade dos clientes de uma determinada entidade – é desproporcionando, do ponto de vista ético-jurídico, a prevalência do dever de segredo.

8º - De qualquer forma e com base no art.º 168º, do Código de Processo Civil, sempre o acesso ao presente processo pode ser limitado se se entender que o seu conteúdo pode causar dano à intimidade privada dos clientes da agravante.

9º - Á luz do entendimento jurisprudencial do que vem disposto nos artsº 40º e seguintes do Código Comercial, pouco importa que a agravante não tenha interesse na realização da diligência requerida pela agravada.

10º - O nº 1, do art.º 519º- A, do Código de Processo Civil retira do âmbito de aplicação do nº 3 do art.º 519º, do mesmo diploma, os dados referentes à identificação e residência ( entre outros ).

Foi proferido despacho de sustentação conforme fls. 131.

II – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.

São as seguintes as questões jurídicas essenciais que importa dilucidar :

Da obrigatoriedade de junção aos autos pela agravante da documentação de natureza comercial que o Tribunal, a solicitação da agravada, determinou. Da sua importância probatória. Do prejuízo susceptível de ser provocado ao apresentante. Interesse prevalecente.

Passemos à sua análise :

Sustenta a agravante que, operando no mesmo mercado – o automóvel – que a agravada, não deve ser obrigada a prestar à sua concorrente determinadas informações sobre o seu comércio, designadamente aquelas que se prendem com a identificação da clientela, que são confidenciais – só podendo ser disponibilizadas quando o interesse seja do próprio e este assim pretenda ou consinta.

Apreciando :

Estriba essencialmente a A… a legitimidade da sua recusa em juntar aos autos fotocópia das facturas ( emitidas desde a data da cessação do contrato de concessão que manteve com a R. ) no preceituado nos artsº 42º e 43º, do Código Comercial.

Estabelece o primeiro dos ditos preceitos que :
“ A exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro, e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de quebra “.

Acrescenta o segundo :

“ Fora dos casos previstos no artigo precedente, só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida “.

Conforme se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência, de 22 de Abril de 1997, publicado in BMJ nº 466, págs. 86 a 92 : “ O artigo 43º, do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519º, nº 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida “.

Acontece que a revisão do Código de Processo Civil de 1995/1996 eliminou, em termos formais, o nº 4, do art.º 519º, que passou a constar do art.º 534º, nos seguintes termos : “ A exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos rege-se pelo disposto na legislação comercial “.

Saliente-se que foi simultaneamente suprimida a anterior redacção deste último preceito legal, que se referia às situações de exame ou inspecção limitada, prevista no art.º 43º, do Código Comercial. (Era a seguinte a respectiva redacção : “ O disposto nos artigos anteriores não é aplicável aos livros de escrituração comercial, nem aos documentos relativos a ela “)

Pelo que o único critério a tomar em consideração, neste particular, é o do nº 3, alínea c) e do nº 4, do art.º 519º, do Cod. Proc. Civil, não sendo proibido o exame ou inspecção especificada aos livros de documentação comercial e a documentos a ela atinentes, das partes ou de terceiros, ainda que não tenham interesse ou responsabilidade na questão. (Neste sentido, vide acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Março de 2004, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIX, tomo II, págs.. 84 a 86 ; vide José Lebre de Freitas, in “ Código de Processo Civil Anotado, Volume II, págs.. 437 e 438, onde refere “O Decreto-Lei nº 329-A/95 fundiu este preceito com o do anterior 519º, nº 4, circunscrevendo a sua previsão à exibição judicial por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos, deixando de referir a exclusão da aplicação dos preceitos anteriores e remetendo, pura e simplesmente, para a legislação comercial ( … ) A exibição por inteiro dos livros e da escrituração comercial está, em princípio, vedada, mas tal não impede o exame ou inspecção parcial, na parte em que seja necessária à prova, para tanto bastando que se requeira o exame da escrituração que for necessária para apuramento de determinados factos “)

De resto, já anteriormente se entendia que a protecção do sigilo comercial deveria ser entendida cum grano salis, sendo de afastar o princípio segundo o qual ninguém era obrigado a fornecer provas em seu prejuízo, considerando-se, ao invés, que a escrita do comerciante é comum às partes em litígio. (Vide Abel Pereira Delgado, in “ O carácter secreto da escrituração comercial “, publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XVII, Abril-Dezembro, págs.. 95 a 98). (Vide sobre este ponto Luiz Cunha Gonçalves, in “ Comentário ao Código Comercial Português “, págs.. 112 e 113). (Entende o Prof. Pinto Coelho que a escrituração mercantil não é mais secreta que quaisquer outros assentos ou escritos particulares ( Lições de Direito Comercial, I, pág.. 539 )).

Refere, mesmo, o Prof. Menezes Cordeiro que a evolução mais recente tem levado, na prática, ao aparecimento de diversas normas opostas ao que resultaria do Código Comercial, em matéria de protecção do segredo da escrituração mercantil. (Vide “ Manual de Direito Comercial “, pág.. 303)

In casu, estamos perante uma situação de contraposição entre o dever de cooperação das partes para a descoberta da verdade, que tem o seu fundamento legal no disposto nos artsº 266º, nº 1 e 519º, nº 1, do Cod. Proc. Civil, e a invocada protecção devida à documentação de natureza comercial.

Haverá, portanto, que decidir qual destes interesses deverá prevalecer.

Nesse sentido, torna-se imperioso aquilatar da importância probatória da documentação em causa para a apreciação do mérito do pleito, conjugadamente com a análise do prejuízo susceptível de ser provocado ao apresentante - forçado ao cumprimento dessa determinação do Tribunal.

Vejamos :

Quanto à importância probatória da documentação cuja junção se ordenou :

Os documentos em causa visam, na óptica da Ré requerente, a contraprova da matéria incluída nos pontos 60º, 87º e 94º, da base instrutória. (Têm estes pontos da B.I. a seguinte redacção : “Facturação que foi negativamente marcada não só pela cessação da venda de veículos novos, mas sobretudo e também pela cessação da venda de peças sobressalentes, acessórios e pela cessação da prestação de serviço oficial autorizado ? “ ( ponto 60º ) ; “ Não sendo mais nem Concessionária, nem Oficina Autorizada da Marca...r, a A. não logra escoar e vender aquele elevado stock ? “ ( ponto 87º ) ; “ Clientela que, com a retirada da representação, a A. fiou inteiramente privada ? “ ( art.º 94º ))

A A., ora agravante, alegou e pretende demonstrar que a cessação dos contratos… teve um impacto negativo na sua facturação, de tal modo que, se tal cessação não tivesse ocorrido, a facturação teria sido certamente muito superior.

Tendo, desta forma, a A. deduzido pedido indemnizatório assente na quebra de facturação em consequência da extinção do contrato de concessão que as unia, pretende a Ré demandada, através desta via, contrariar os fundamentos de facto dessa pretensão, tornando claro que a primeira continuou, não obstante a cessação daquele acordo, a vender peças e acessórios da marca... e a prestar assistência técnica aos veículos daquela marca.

A verificação dos pressupostos do direito indemnizatório da A. neste tocante ( e independentemente da sua quantificação ) traduz-se, no fundo, na demonstração dum facto negativo.

Ou seja, alega a demandante que, depois de cessar o contrato de concessão, deixou de vender ( e facturar ) a mercadoria da marca..., que havia acumulado em stock na perspectiva da manutenção do contrato que a vinculava à Ré.

O direito subjectivo que lhe assistirá radica na circunstância de não se ter verificado determinado facto que, sem a extinção da concessão, viria naturalmente a ocorrer : a contínua venda de produtos marca... ( mormente viaturas e peças sobressalentes ), com os consequentes ganhos económicos, expressos na respectiva facturação.

O que determinou, causalmente, perda de clientela ( os clientes… deixaram de lhe adquirir aquela mercadoria ).

Neste contexto, cumpre perguntar : como será possível fazer a demonstração deste facto negativo – inexistência das vendas esperadas e consequente quebra dessa facturação ( que não doutra ) – sem apresentar a prova de que as transacções efectivamente realizadas não tiveram por objecto – como acontecia antes - mercadorias da marca… ?

Não tendo a Ré acesso à documentação comercial da A., o meio naturalmente idóneo para demonstrar a existência, ou não, de quebra de facturação após a extinção do contrato de concessão, por este concreto motivo, é precisamente a junção ao processo das facturas que foram por esta emitidas no período em referência.

Está, pois, aqui em causa a obtenção do meio de prova adequado, seguro e inequívoco, atentas as inevitáveis dificuldades relacionadas com a demonstração de algo que devia ter acontecido mas não se concretizou.

A diligência probatória em discussão assume assim, indiscutivelmente, o maior relevo para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio.

Esta mesma conclusão não se encontra prejudicada pela circunstância de ser a A. quem está onerada com o ónus de prova relativamente à demonstração desta materialidade, nem pelo facto de haver formulado um pedido condenatório cuja quantificação deverá fazer-se em sede de liquidação a operar em execução de sentença. (A questão não está, nesta fase, em saber quanto é que a A. perdeu mas, ao invés e a montante, se perdeu efectivamente alguma coisa com a extinção do vínculo contratual com a Ré).
Ao não revelar o teor da documentação que, “ preto no branco “, permite ao Tribunal afirmar se se verificam ou não os pressupostos de indemnizar, a A. deixa a Ré numa posição enfraquecida quanto à demonstração, que se propõe legitimamente fazer, de que afinal a A. continuou a vender mercadoria da marca..., não podendo ser essa a razão para a invocada quebra de facturação.

O direito à contraprova (Artigo 346º, do Código Civil) é aqui absolutamente legítimo e pertinente, não podendo ser exercido, eficazmente, de forma diversa.

No que concerne ao prejuízo susceptível de ser provocado ao apresentante forçado ao cumprimento da determinação do Tribunal :

Sustenta a agravante que não é legítimo ver-se obrigada a prestar informações confidenciais sobre o seu comércio, designadamente aquelas que se prendem com a identificação da clientela, a um seu concorrente.

Ora, o que está em discussão é a apresentação em juízo das facturas comerciais emitidas pela A., após a cessação do contrato de concessão. (Que identificam, basicamente, a data da transacção, o respectivo montante, a pessoa do adquirente e, principalmente ( com particular interesse para os autos ) o objecto específico que foi transaccionado)

A apresentação em juízo de facturação comercial é relativamente comum, não se vislumbrando de que forma a actividade comercial da A. possa vir a ser verdadeiramente afectada pela divulgação, confinada aos limites e finalidades próprias deste processo, daquele tipo de informações.

Não está em causa a divulgação da composição e organização interna da A., de elementos pessoais desta ou dos seus representantes, da suas estratégias comerciais ou sequer da sua situação financeira e patrimonial global.

Num mercado aberto, transparente e concorrencial – que se afirma pela qualidade do serviço prestado – não se vê que a possibilidade de conhecimento pela Ré da identidade do comprador x, da venda do veículo ou da peça y, bem como do preço z, possa redundar numa perturbação grave e particularmente onerosa da actividade económica da A.. (Noutras situações mais delicadas de divulgação de elementos pessoais ao Tribunal, foi decidida a prevalência do dever de cooperação sobre a protecção do sigilo. Vide, acórdão da Relação de Évora de 13 de Junho de 2002, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, tomo III, págs.. 262 a 263 ; acórdão da Relação do Porto de 26 de Maio de 2003, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, tomo III, págs.. 175 a 177 ; acórdão da Relação do Porto de 28 de Junho de 2004, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIX, tomo III, págs.. 202 a 204 ; acórdão da Relação do Porto de 10 de Março de 2003, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, tomo II, págs.. 164 a 166 ; acórdão da Relação de Lisboa de 1 de Julho de 2004, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIX, tomo IV, págs.. 71 a 73)

Interesse prevalecente.

Está também aqui em causa o denominado direito à prova. (Sobre este ponto, vide Miguel Teixeira de Sousa, in “ Estudos sobre o Novo Processo Civil “, págs.. 55 a 58)

Versando a questão em apreço – verificação dos pressupostos do direito de indemnizar pela quebra de facturação após a extinção do contrato de concessão – sobre factos que podem ser seguramente esclarecidos pela junção de determinada documentação em posse duma das partes, deverá o próprio tribunal providenciar no sentido da remoção dos obstáculos que se erguem em torno desse cabal esclarecimento. (Vide art.º 266º, nº 4, do Cod. Proc. Civil)

Isto porque, segundo as linhas orientadoras inerentes à reforma do Código de Processo Civil, introduzida a partir do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, incumbe o dever às partes de cooperarem em sentido material, visando fundamentalmente o correcto apuramento da matéria de facto, imprescindível para a adequação da decisão de direito. (Vide José Lebre de Freitas, in “ Código de Processo Civil Anotado “, 1º Volume, pág.. 473)

O interesse público na boa administração de justiça tem aqui que prevalecer sobre a defesa da não revelação de documentação de natureza comercial (Que nada tem a ver com o conjunto de toda a escrituração comercial da A), atendendo ao particular relevo desse meio de prova e ao relativo e indefinido impacto comercial que poderá ter a circunstância duma concorrente ter tido conhecimento, no âmbito específico deste processo judicial, das informações constantes dessa mesma documentação. (Vide acórdão da Relação de Lisboa de 18 de Novembro de 2004, publicado in www.dgsi.pt, número de processo 9105/2004-6 ; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Outubro de 1991, publicado in www.dgsi.pt., número de processo 002987, número convencional JSTJ00012170)

Também a própria natureza específica dos documentos em questão – simples facturas, vulgaríssimas no giro comercial – não impõem quaisquer especiais deveres de sigilo que se sobreponham ao interesse da descoberta da verdade e da justa composição do litígio. (Decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Novembro de 1997, sumariado in www.dgsi.pt, número de processo 97A826, número convencional JSTJ00033670 : “ A escrituração comercial não é mais secreta que quaisquer outros assentos ou escritos particulares, pelo contrário, e precisamente porque é imposta por lei para permitir conhecer em cada momento o estado do negócio e fortuna do comerciante, isto é, porque se destina a constituir essencialmente um meio de prova, a escrita pode ser objecto de exame, até, embora em casos especiais, contra a vontade e os interesses daquele a quem pertence. “.)

De resto, qualquer prova minimamente credível que a A. quisesse produzir a propósito da temática em referência, implicaria, necessária e inevitavelmente, o fornecimento de informações desta natureza à parte contrária.

Ao tomar a iniciativa de alegar, enquanto causa de pedir, a quebra de facturação, a A. teria sempre que, em sede probatória, revelar à sua concorrente números concretos respeitantes à sua actividade comercial e particularmente à sua facturação, cujos efeitos, em termos de prejuízo em favor duma concorrente, não seriam substancialmente diversos dos que resultam da junção aos autos dos documentos em referência.

Pelo que não há justificação para alterar a decisão recorrida.

III - DECISÃO :

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar não provido o agravo, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela agravante.

Lisboa, 2 de Maio de 2006.

( Luís Espírito Santo )

( Soares Curado )

( Roque Nogueira )