Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1492/13.3TALRS.L1-9
Relator: RENATA WHYTTON DA TERRA
Descritores: COMPETÊNCIA
SUSPENSÃO DO PROCESSO TRIBUTÁRIO
PRESCRIÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- Estando em causa o apuramento do montante a entregar ao fisco, estamos perante uma questão prejudicial a ser conhecida na jurisdição própria, não tendo lugar o princípio da suficiência do processo penal previsto no artigo 7.º do Código de Processo Penal, o qual consiste na competência do tribunal penal para decidir todas as questões prejudiciais penais e não penais que interessarem à decisão da causa.
II- O procedimento meramente tributário é distinto do procedimento pelo crime tributário e por isso, se a definição da situação tributária é questão prejudicial relativamente ao crime tributário, deve ser previamente determinada.
III- Este princípio de suspensão do processo penal tributário constitui um desvio à regra da suficiência do processo penal, consagrado no n.º 1 do artigo 7.º do Código de Processo Penal, por se considerar que o processo de impugnação judicial ou a oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário, constituem questão não penal, prejudicial ao conhecimento de um crime tributário.
IV- A impugnação judicial é meio processual tributário (art.º 101.º, a), da LGT), que põe em causa a subsistência da obrigação tributária. A questão a resolver in casu era uma questão não penal, questão prejudicial, a ser resolvida na jurisdição própria, ultrapassando o princípio da suficiência previsto no art.º 7.º do CPP.
V- Não houve violação do disposto no artigo 47.º do RGIT por o prazo de prescrição do procedimento criminal ter ficado suspenso até ao trânsito em julgado do acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte. Decorre do n.º 3 do art.º 7.º do CPP, que a suspensão não pode prejudicar a realização de diligências urgentes de prova.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
No âmbito do Processo n.º 1492/13.3TALRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 3, por sentença proferida a 14.7.2022 e depositada no mesmo dia, foi decidido:
a) Absolver os arguidos A e B da prática do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, n.º 1, al. a) e c) e art.º 104º, n.º 3 do RGIT, pelo qual vinham pronunciados;
b) Absolver a sociedade arguida da prática do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, n.º 1, al. a) e c) e art.º 104º, n.º 3 do RGIT e art.º 7º do mesmo diploma pelo qual vinha pronunciada;
c) Condenar os arguidos A e B como co-autores materiais de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103º, n.º 1, al. a) c) do RGIT, indo cada um condenado na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de €6, o que perfaz a multa global de €1.800.
d) Condenar a sociedade arguida pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 7º, n.º 1 e 3 e 103º, n.º 1, al. a) e c) do RGIT, na pena de multa em 350 dias de multa à taxa diária de €8 (oito euros), o que perfaz a multa global de €2.800 (dois mil e oitocentos euros).
e) Condenar os demandados no pagamento ao Estado Português da quantia de €236.305,73, (duzentos e trinta e seis mil trezentos e cinco euros e setenta e três cêntimos) acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo pagamento.
***
Inconformados com tal decisão, dela vieram os arguidos D., B e A interpor o presente recurso, que, na sua motivação, após dedução das alegações, culmina com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
“1ª. Conjuntamente com o presente recurso, como se dispõe no art.º 407º, nº 3, do CPP, deverá ser julgado, o recurso autónomo, interposto pelos arguidos em 01/03/2022, nos termos do qual, quanto à prescrição, deverá o mesmo ser julgado procedente, por provado, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que declare a prescrição do procedimento criminal, em data muito anterior à prolação da acusação, do que resulta a impossibilidade processual (art.º 71.º do CPP) para a dedução do pedido de indemnização civil e, consequentemente, ordenar-se o arquivamento dos autos, ficando, assim, prejudicado o conhecimento do mérito da causa.
2ª. De toda a prova documental e da prova produzida em audiência, resulta que a gerência, de facto e de direito, da D., à data dos factos, em 2004, era exercida pelo sócio maioritário E, a quem todos os adquirentes afirmaram ter comprado os seus apartamentos e com quem negociaram os respectivos preços pagos e declarados.
3ª. Contrariamente ao que decidiu a sentença recorrida, no facto descrito no ponto 3 do probatório, nem da prova constante dos autos nem da prova produzida em audiência, designadamente, dos depoimentos dos adquirentes das fracções autónomas vendidas pela sociedade arguida em 2004 (que declararam ter sempre negociado apenas com o pai, gerente e sócio maioritário da sociedade), não resulta que se possa afirmar, com verdade, que os arguidos A e B, exercessem, à data dos factos em 2004, a gerência de facto da D.
4ª. Relativamente à venda das frações autónomas que estão em causa, não resulta dos autos qualquer prova de que os dois arguidos tivessem participado na decisão de estipular os preços de venda de qualquer das frações, em concreto, nem na respetiva negociação com os compradores.
5ª. A prova constante dos autos e a produzida em audiência, impunham uma decisão contrária à da sentença recorrida, no sentido de não poderem os arguidos serem responsabilizados pela prática de quaisquer dos factos dolosos, constitutivos do tipo de ilícito criminal, em que foram condenados pelo tribunal a quo, pelo que devem os mesmos ser absolvidos do crime que lhes foi imputado.
6ª. Ao contrário do que decidiu a sentença recorrida, no facto descrito no ponto 4 do probatório, não resulta, nem da prova constante dos autos nem da prova produzida em audiência, que os arguidos A e B tivessem formulado qualquer propósito de obter qualquer vantagem patrimonial indevida, na venda das fracções autónomas em causa.
7ª. Ao contrário do que decidiu a sentença recorrida, as declarações da senhora inspectora tributária da AT quanto à matéria dos factos e à recolha de prova nos autos, não poderiam ser tidas em conta na sentença, uma vez que a testemunha foi clara ao declarar em audiência que não teve qualquer intervenção nem quanto à matéria da prova dos factos nem quanto à recolha da prova.
8ª. Ao contrário do que decidiu a sentença recorrida, no facto descrito no ponto 5 do probatório, não resulta, nem da prova produzida em audiência nem da prova constante dos autos, qualquer prova bastante que permita afirmar, com verdade, como ali vem referido, que possa ser imputada à sociedade arguida e, muito menos, aos arguidos A e B, qualquer declaração de valores nas escrituras inferiores aos valores reais.
9ª. Contrariamente à sentença recorrida, verifica-se que, nem da prova constante dos autos nem da prova produzida em audiência, não foi recolhida qualquer prova de que a sociedade arguida e, muito menos, os arguidos A e B, tenham recebido dos adquirentes quaisquer valores superiores aos das escrituras.
10ª. Os tribunais não podem dar como provado, para efeitos penais, que o valor declarado pelos adquirentes dos imóveis para efeitos de liquidação do IMT, corresponda ao valor real que foi pago ao vendedor do imóvel.
Sobretudo, quando, como é o caso, não exista qualquer prova documental, nem qualquer outra, do recebimento desse mesmo valor pelo vendedor do imóvel.
11ª. Contrariamente à sentença recorrida, da prova constante dos autos e da prova produzida em audiência, não resulta que possa ser imputável à sociedade arguida e, muito menos, aos arguidos A e B, a obtenção de vantagem patrimonial indevida no valor de 236.305,73 euros.
12ª. Contrariamente à sentença recorrida, quer da prova constante dos autos quer da prova produzida em audiência, não resulta que possa ser imputável à sociedade arguida e, muito menos, aos arguidos A e B, a prática de qualquer facto ilícito constitutivo do tipo de fraude fiscal, p. e p. pelo art.º 103º, nº 1, alíneas a) e c), do RGIT.
13ª. Ao contrário do que entendeu a sentença recorrida, na única aquisição (de um total de 6 frações autónomas em causa nos presentes autos) em que, segundo as declarações da respectiva adquirente, existem indícios de uma suposta vantagem patrimonial obtida pela sociedade arguida, verifica-se que essa vantagem, a comprovar-se, seria de 22.700 euros x 25% de taxa de IRC. Sendo aquela, em qualquer dos casos, inferior a 15.000 euros, pelo que o facto que lhe teria dado origem não é punível, por força do disposto no art.º 103º, nº 2, do RGIT.
14ª. Ao contrário do que decidiu a sentença recorrida quanto ao pedido de indemnização civil em que os demandados foram condenados, verifica- se que o mesmo, em face da prova produzida, carece de justificação legal e deveria, por isso, ter sido liminarmente rejeitado pelo tribunal. Pelo que os demandados deveriam ter sido absolvidos do pedido.
15ª. SEM CONCEDER, mesmo que houvesse lugar a condenação, deveria ter sido corrigido o valor do pedido de indemnização civil, na medida em que o montante do imposto, alegadamente, devido ao Estado, não seria de 236.305,73€, como foi pedido e como foi a condenação da sentença recorrida, mas sim, de 5.675 euros, ou, no máximo, de 74.324,00€, como acima se demonstrou.
16ª. A sentença recorrida reconhece, expressamente, que o que estava em causa no processo judicial tributário, não era a discussão da situação tributária de cuja definição dependesse a qualificação criminal dos factos imputados nos presentes autos. Pelo que, a suspensão do processo penal violou a norma do art.º 47º do RGIT
17ª. Sendo a suspensão ilegal, e tendo os factos ocorrido em 26/10/2004, o prazo máximo de 7 anos e 6 meses de prescrição do procedimento criminal, deverá ter-se por verificado em 26/04/2012.
18ª. Normas jurídicas violadas: Artºs 47º, nº 1 e 103º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2, todos do RGIT, Art.º 121º, nº 3, do Código Penal, artºs 483º a 498º do CCivil e Art.ºs 20º, nº 4 e 32º, nº 2, ambos da CRP.
Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso, por provado, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída POR ACÓRDÃO QUE:
a) declare a prescrição do procedimento criminal em 26/04/2012, data muito anterior à prolação da acusação; ou, se não for julgado prescrito o procedimento criminal,
b) absolva os arguidos do crime que lhes é imputado; ou se assim não for entendido
MAS SEM CONCEDER,
Se for tido como provado o facto ilícito na parte respeitante à aquisição por N,
c) julgue o facto como não punível, por força do disposto no art.º 103º, nº 2 do RGIT, atendendo a que o valor da vantagem ilegítima alegadamente obtida, seria inferior a 15.000 euros; e EM QUALQUER CASO,
d) absolva os demandados do pedido de indemnização civil em que foram, indevidamente, condenados; ou, em alternativa, se assim não for entendido, mas sempre SEM CONCEDER,
e) corrija o montante da indemnização civil, quantificando-o em 5.675 euros ou, no máximo, em 74.324,00 euros, como se demonstrou.
Exmos. Senhores Juízes Desembargadores,
As sentenças judiciais são uma construção jurídica. Mas são sempre uma construção. E como todas as construções (humanas), umas poderão vir a durar séculos, mas outras estão destinadas a ruir em poucos meses. Tudo depende da solidez da edificação e das fundações que as suportam. No caso das sentenças, todas, mas sobretudo as criminais, as suas fundações são constituídas pela prova em que assentam. Se esta for sólida, de aço e betão, a sentença perdurará. Mas se for de barro ou de simples areia ou, mesmo, inexistente, a sentença não será sustentável e terá vida curta na ordem jurídica.
É este último, que deve ser o destino julgado da sentença recorrida a qual, por todo o exposto, não poderá manter-se na nossa ordem jurídica.”
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Na primeira instância, a Digna Magistrada do MP, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que pugna pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida:
“O Tribunal para tomar a decisão que firmou recorreu-se de prova manifestamente suficiente e credível para chegar às conclusões que chegou, e nesse contexto, para condenar os arguidos pela prática do crime pelo qual vieram aqueles a ser condenados.
Em nosso entender, fez o Tribunal a quo uma correcta apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pelo que nenhum reparo nos merece a valoração da prova produzida.
Face ao exposto, entende-se ser de manter, na íntegra, a sentença recorrida por nenhuma censura nos merecer.
Pelo exposto, deverá ser julgado improcedente o recurso interposto.”
***
Anteriormente, a 1.3.2022, os arguidos interpuseram um recurso do despacho que julgou improcedente o pedido de declaração da prescrição do procedimento criminal com as seguintes conclusões:
1ª. É imputada aos arguidos a prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º, nº 1, do RGIT.
2ª. Sendo o limite máximo da pena de 3 anos prisão, o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido 5 anos.
3ª. Atendendo ao tipo de crime em causa, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Ou seja, 7 anos e 6 meses.
4ª. Ao contrário do que entendeu o despacho recorrido, na impugnação judicial fiscal deduzida pela sociedade arguida, apenas estava em causa o recurso pela AT a métodos indiciários para determinar o lucro tributável de toda a atividade da sociedade arguida.
5ª. Não estando em discussão naquele processo fiscal, o valor da vantagem obtida com a venda das 6 frações autónomas aqui subjudicio.
6ª. Respeitando o presente processo penal à venda daquelas 6 frações autónomas e não estando a venda destas em discussão no processo fiscal, a decisão deste nunca poderia ser relevante para a qualificação criminal dos factos, pelo que não existia fundamento legal válido para ter ocorrido a suspensão do processo penal, nos termos do art.º 47º do RGIT.
7ª. Contrariamente ao que entendeu o despacho recorrido, a suspensão do processo de inquérito é ilegal, por violar o disposto no art.º 47º, nº 1, do RGIT, e, como tal, não pode relevar para o cômputo do prazo estipulado no art.º 121º, nº 3, do Código Penal.
8ª. Tendo o último facto imputado aos arguidos ocorrido em 26/10/2004 – data do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal – o prazo máximo de 7 anos e 6 meses de prescrição do procedimento criminal verificou-se em 26/04/2012, sendo certo que até essa data não ocorreu qualquer causa válida de suspensão que devesse ser cumprida nos termos da lei.
9ª. Tendo a acusação sido notificada em 06/10/2020, verifica-se, sem margem para dúvidas, que, naquela data, há muito que, de acordo com a lei, o procedimento criminal já se encontrava prescrito. Razão pela qual nunca poderia ter sido proferida qualquer acusação e, muito menos, ter sido deduzido pedido de indemnização civil, o qual só seria possível no caso de dedução da acusação validamente proferida (art.º 71.º do CPP);
10ª. Normas jurídicas violadas: Art.º 47º, nº 1, do RGIT, Art.º 121º, nº 3, do Código Penal e Art.ºs 20º, nº 4 e 32º, nº 2, ambos da CRP.
Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso, por provado, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que declare a prescrição do procedimento criminal, em data muito anterior à prolação da acusação, do que resulta a impossibilidade processual para a dedução do pedido de indemnização civil e, consequentemente, ordenar-se o arquivamento dos autos, ficando, assim, prejudicada a respectiva produção de prova e o conhecimento do mérito da causa.
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A este recurso o MºPº respondeu apresentando as seguintes conclusões:
1. A impugnação judicial que deu origem ao processo 316/09.0BECBR constitui causa de suspensão do procedimento criminal nos termos do artigo 47º, nº 1, do RGIT.
2. O procedimento criminal em relação aos factos pelos quais os arguidos foram acusados e pronunciados não se encontra prescrito.
3. Não foi violado qualquer imperativo legal.
Deste modo, o despacho recorrido não merece qualquer reparo, devendo ser mantido na íntegra e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelos arguidos recorrentes, assim se fazendo justiça.
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Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que aduziu o seu entendimento de que o recurso deve ser julgado improcedente.
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, não houve resposta ao parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo conhecer e decidir.

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)
Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são:
A – Prescrição do procedimento criminal;
B – Impugnação alargada da matéria de facto no que respeita: à gerência de facto da sociedade arguida (ponto 3), ao propósito de obter vantagem patrimonial indevida (ponto 4), à declaração de valores nas escrituras inferiores aos valores reais (ponto 5) e ao recebimento de valores superiores aos das escrituras (pontos 6 a 17);
C- Subsidiariamente, que se julgue o facto como não punível por o valor da vantagem obtida ser inferior a 15.000€ - art.º 103º, n.º 2 do RGIT;
D- Absolvição do pedido de indemnização civil e se assim não se entender, correcção do montante indemnizatório para €5.675,00 ou no máximo 74.324,00€.

III – APRECIAÇÃO:
Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão desta concreta questão suscitada pelo ajuizado recurso, importa verter aqui os factos que, na parte que se considera relevante, o Tribunal a quo considerou e valorou na fundamentação de direito e ainda a respectiva motivação.
“1. À data dos factos que se passarão a descrever, a D., tinha sede fiscal na área do Serviço de Finanças de Odivelas e por objecto social a actividade de empreendimentos turísticos e urbanos, construção e comércio de imóveis e prédios, revenda dos adquiridos para esse fim, loteamentos e urbanizações.
2. A referida sociedade estava enquadrada no regime geral de tributação quanto ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime de isenção, e as operações activas que efectuava estavam sujeitas a Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (IMT).
3. No mesmo período temporal a sociedade arguida foi gerida pelo pai dos arguidos, já falecido, E, e pelos arguidos A e B, os quais foram responsáveis pela sua administração e gestão diária, em especial por proceder aos pagamentos aos credores, incluindo os pagamentos de impostos ao Estado, por diligenciar pelo cumprimento das obrigações declarativas perante este, bem como por diligenciar pelo fornecimento de informação contabilística correcta, verdadeira e completa e pela manutenção do respectivo registo contabilístico em conformidade.
4. No ano de 2004, os arguidos e E, agindo em conjugação de vontades e esforços, no seu próprio interesse e no da sociedade arguida, formularam o propósito de obter vantagens patrimoniais indevidas através da venda de imóveis propriedade da sociedade arguida, concretamente de imóveis cujos artigos matriciais se localizam na área dos Serviços de Finanças de Loures-1 (artigo 2074), Coimbra-1 (artigos 11730, 11755 e 11757), Coimbra-2 (artigos 3660 e 806) e Poiares (artigo 4512).
5. Para tanto, os arguidos decidiram declarar nas escrituras de compra e venda valores inferiores relativamente aos quais venderam esses imóveis, e, por via dos valores escriturados, diminuir a prestação tributária a entregar ao Estado em sede de IRC e de IMT.
Neste contexto,
6. Por escritura pública outorgada no dia 23/03/2004, em Vila Franca de Xira, a sociedade arguida, representada pelos arguidos A e B, vendeu a G e a H a fracção autónoma designada pela letra “F”, sita na freguesia de Santo António dos Cavaleiros, concelho de Loures, inscrita na matriz sob o artigo 2074.
7. Nesse acto os arguidos declararam ter vendido a fracção pelo preço de €142.500 (cento e quarenta e dois mil e quinhentos euros), mas o valor que efectivamente receberam e que lhes foi entregue pelos compradores foi o de €190.000 (cento e noventa mil euros).
8. Por escritura pública outorgada no dia 04/05/2004, em Coimbra, a sociedade arguida vendeu a L a fracção autónoma designada pela letra “J”, sita na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, e inscrita na matriz sob o artigo 11730.
9. Nesse acto os arguidos declararam ter vendido a fracção pelo preço de €225.000 (duzentos e vinte e cinco mil euros), mas o valor que efectivamente receberam e que lhes foi entregue pelo comprador foi o de €350.000 (trezentos e cinquenta mil euros).
10. Por escritura pública outorgada no dia 05/05/2004, em Coimbra, a sociedade arguida vendeu a J a fracção autónoma designada pela letra “F”, sita na freguesia de Eiras, concelho de Coimbra, e inscrita na matriz sob o artigo 3660.
11. Nesse acto os arguidos declararam ter vendido a fracção pelo preço de €90.000 (noventa mil euros), mas o valor que efectivamente receberam e que lhes foi entregue pela compradora foi o de €130.996 (cento e trinta mil novecentos e noventa e seis euros).
12. Por escritura pública outorgada no dia 08/07/2004, em Coimbra, a sociedade arguida, representada por E e pelo arguido B, vendeu a L, casado com M, a fracção autónoma designadas pelas letras “O”, sitas na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, e inscritas na matriz sob o artigo 11755.
13. Nesse acto os arguidos declararam ter vendido cada uma das fracções pelo preço de €155.000 (cento e cinquenta e cinco mil euros), mas o valor que efectivamente receberam por cada uma, e que lhes foi entregue pelos compradores, foi o de €250.000 (duzentos e cinquenta mil euros).
14. Por escritura pública outorgada no dia 26/10/2004, em Coimbra, a sociedade arguida, representada por E e pelo arguido B, vendeu a N a fracção autónoma designada pela letra “D”, sita na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, inscrita na matriz sob o artigo provisório 11757.
15. Nesse acto os arguidos declararam ter vendido a fracção pelo preço de €125.000 (cento e vinte e cinco mil euros), mas o valor que efectivamente receberam e que lhes foi entregue pela compradora foi o de €175.000 (cento e setenta e cinco mil euros).
16. Por escritura pública outorgada no dia 08/07/2004, em Coimbra, a sociedade arguida, representada por E e pelo arguido B, vendeu a M, casada com L a fracção autónoma designada pela letra “J”, sita na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, inscrita na matriz sob o artigo 11755.
17. Nesse acto os arguidos declararam ter vendido a fracção pelo preço de €155.000 (cento e cinquenta e cinco mil euros), mas o valor que efectivamente receberam e que lhes foi entregue pela compradora foi o de €250.000 (duzentos e cinquenta mil euros).
18. Assim, com o propósito de reduzir o valor da prestação tributária a entregar à Autoridade Tributária em sede de IRC, os arguidos não declararam como rendimento a diferença total entre o preço efectivamente recebido e o escriturado pela venda dos imóveis identificados, assim concretizada:
IMOVEL
Artigo Fracção VTP Valor Escritura Valor de Venda Diferença entre Valor Declarado e
Valor de Venda
2074 F €151.000,00 €142.500,00 €190.000,00 €47.500,00
3660 F €98.800,00 €90.000,00 €130.996,00 €40.996,00
11755 J €169.480,00 €155.000,00 €250.000,00 €95.000,00
11755 O €169.270,00 €155.000,00 €250.000,00 €95.000,00
11730 J €307.920,00 €225.000,00 €350.000,00 €125.000,00
11757 D €152.230,00 €125.000,00 €175.000,00 €50.000,00
TOTAL €1.048.700,00 €892.500,00 €1.345.996,00 €453.496,00
19. Como consequência directa e necessária da conduta dos arguidos, a sociedade arguida obteve uma vantagem patrimonial indevida no valor total de €236.305,73 (duzentos e trinta e seis mil e trezentos e cinco euros e setenta e três cêntimos), correspondente a imposto devido e não pago ao Estado.
20. Os arguidos, ao declararem, em escrituras públicas, preço de venda inferior ao real e ao registarem esses preços na contabilidade da sociedade arguida reduziram o montante real dos proveitos efectivamente auferidos, e ao fazerem constar tais preços na declaração fiscal da sociedade arguida referente ao exercício de 2004 agiram com o propósito de que o imposto liquidado em sede de IRC fosse em montante inferior ao devido, retirando a correspondente vantagem patrimonial, o que lograram.
21. Os arguidos agiram com o propósito concretizado de omitir o valor real obtido na sequência da venda dos imóveis em referência e de não os reflectir na declaração apresentada à Autoridade Tributária em sede de IRC, assim ocultando circunstâncias que conheciam e que sabiam ser essenciais à liquidação do referido imposto, o que fizeram com o intuito de auferir vantagens a que não tinham direito, bem sabendo que, consequentemente, provocavam uma diminuição de receitas ao Estado, o que lograram.
22. Os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades, no seu interesse e no da sociedade arguida, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
23. Os arguidos ainda não procederam ao pagamento da quantia €236.305,73 (duzentos e trinta e seis mil e trezentos e cinco euros e setenta e três cêntimos), a qual se mantém em dívida.
24. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
25. O arguido A é gerente e aufere €1.100 líquidos mensais.
26. É casado e vive com a mulher, um filho de 18 anos, estudante e um filho de 25 anos que já trabalha.
27. A mulher é gerente e aufere €1.100 euros líquidos mensais.
28. Vive em casa própria e paga 500 euros mensais do empréstimo que contraiu para a sua aquisição.
29. Possui como habilitações literárias o 2º ano do curso de gestão de empresas.
2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
De relevante para a discussão da causa não se logrou provar a seguinte matéria de facto:
Que o valor peticionado pelo demandante já se encontra pago.
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A acusação continha um lapso de escrita, uma duplicação de factos, constando a venda da fracção J do artigo 11755 no ponto 12 como tendo sido vendida a L e no ponto 16 como tendo sido vendida à sua mulher, M, tendo-se eliminado tal lapso
A formação da convicção do Tribunal teve por base a análise global das provas produzidas em audiência, em conjugação e confronto, analisadas e valoradas segundo as regras da experiência comum e normalidade das coisas, particularmente os elementos seguintes:
Quanto à denominação da sociedade representada pelos arguidos, o seu objecto social, sede e legais representantes, foi valorada a certidão da respectiva matrícula na C. R. Comercial (fl. 5223),
Relativamente ao facto de os arguidos A e B exercerem de facto a gerência da sociedade, teve-se em atenção a referida certidão, as escrituras de compra e venda de fl. 265, 275, 353, 358, 5261 e 5314, o depoimento da testemunha G que afirmou que foi o arguido A quem lhe mostrou o apartamento, conjugado com as regras de experiência comum.
Assim, e pese embora, com excepção da referida testemunha, todos os demais compradores ouvidos, começaram por afirmar, sem que tal lhes tivesse sido perguntado, que todo o negócio foi feito com o pai dos arguidos, facto que nos causou alguma estranheza, e que o arguido A, único que quis prestar declarações, ter afirmado que ele e o irmão, ora co-arguido, nada tinham a ver com a gerência de facto da sociedade, a qual era gerida unicamente pelo pai, trabalhando o ora arguido como gerente numa empresa de construção civil, sediada nas Caldas da Rainha (da qual o pai também era gerente), e o irmão num armazém de produtos alimentares em Coimbra, o certo é que das escrituras verifica-se que em cinco delas quem esteve presente em representação da sociedade arguida foi o arguido B e o pai e numa delas estiveram presentes ambos os arguidos;
É certo que, tal como argumentou a defesa, que a sociedade obrigava-se com a assinatura de dois sócios gerentes, pelo que, pelo menos um dos arguidos teria sempre que intervir na escritura para vincular a sociedade.
Mas, se a empresa era do pai e era este quem geria sozinho os destinos da sociedade, não se compreende que tenha criado a sociedade e decidido que a mesma se obrigava com duas assinaturas, colocando-se assim numa situação de dependência dos filhos, necessitando da assinatura de um deles para vincular a sociedade.
Por outro lado, da análise da certidão verifica-se que o pai dos arguidos renunciou à gerência no ano de 2008 continuando os arguidos a exercer tal gerência até 2016, altura em que passou a exercer a gerência da sociedade a mulher do arguido B, O.
Ora, se os arguidos nada tivessem a ver com a gerência de facto da sociedade arguida, não se compreende que, não tenham renunciado à gerência logo que confrontados com os factos destes autos, já que seria normal que tendo o pai cometido factos crime e arrastado os filhos para o processo pelo facto de serem gerentes da sociedade, estes renunciassem de imediato a tal cargo. E muito menos se compreende que não o tenham feito após a renúncia do pai em 2008, por motivos de saúde como afirmou o arguido A, já que a ser o pai quem comandava de facto os destinos da sociedade, estando os arguidos alheados de tais factos, tenham continuado a ser gerentes.
E menos ainda que após a renuncia à gerência tenham colocado como gerente a mulher de um deles e uma outra pessoa que pelos apelidos e morada indicada (a mesma do arguido e da outra gerente) só pode ser um familiar próximo, quem sabe filha do arguido B.
O facto de o arguido exercer a gerência de uma sociedade nas Caldas da Rainha não é impeditivo de exercer a gerência efectiva da sociedade arguida.
Analisando todos estes factos, à luz das regras de experiência comum, só podemos concluir que os arguidos exerciam de facto a gerência da sociedade arguida, no período em causa nos autos.
No que concerne ao enquadramento no regime geral de IRC e regime de isenção de IVA, teve-se em atenção a informação das Finanças.
Relativamente aos valores de venda declarados nas escrituras, teve-se em atenção as escrituras juntas a fl. 265, 275, 353, 358, 5261 e 5314 e quanto ao VPT (valor patrimonial tributário) teve-se em atenção a informação das finanças e o depoimento da sra. Inspectora tributária, N, que prestou um depoimento tranquilo e isento.
No que respeita ao valor real da venda dos imóveis, teve-se em atenção:
- O depoimento da testemunha G, que prestou um depoimento tranquilo e isento, e que adquiriu com o marido uma das fracções, (fracção F do art.º 2074); inicialmente começou por dizer não se recordar se na escritura foi declarado valor diferente da aquisição para no final do seu depoimento, confrontada com o facto de ter pago um valor adicional de imposto devido por aquela transacção, acabar por confirmar que saber que pagou tal imposto porque o valor declarado na escritura era inferior ao valor de aquisição. Apesar de não se recordar dos valores em causa, o que se compreende atento o tempo decorrido, foi confrontada com a escritura de aquisição junta a fl. 265, com o teor do documento de fl. 37, declarações por si prestadas nas finanças onde declarou o verdadeiro valor de venda do imóvel, tendo reconhecido a sua assinatura, e a liquidação adicional de IMT junto a fl. 5121 em nome do seu então marido, H, comprovando o pagamento do imposto relativo à diferença do valor declarado na escritura e do valor real da venda.
- O depoimento da testemunha N, que prestou um depoimento tranquilo e isento, e que adquiriu a fracção D do artigo 11757, que de forma espontânea disse ter adquirido a fracção por um valor superior ao declarado na escritura, não se recordando do valor exacto da compra, e que mais tarde foi chamada às finanças e acabou por pagar o imposto adicional. Foi confrontada com a escritura de fl. 275, com as declarações que prestou nas finanças de fl. 61 onde declarou o valor real da compra e com a liquidação adicional de IMT que pagou junto a fl. 5125;
- relativamente aos valores reais de venda dos imóveis adquiridos por L e mulher M (Letra J e O do artigo 11755 e J do art.º 11730), teve-se em atenção os documentos juntos aos autos a fl. 68 a 71 e 5129 e o depoimento destas testemunhas analisado à luz das regras de experiência comum.
Assim, as testemunhas afirmaram que adquiriram vários imóveis à sociedade arguida e que o valor declarado nas escrituras foi o valor pelo qual adquiriram os imóveis. Confrontada a testemunha M com os supra referidos documentos referiu recordar-se de ter sido chamada às finanças mas já não se recorda porque motivo e que “pagou algo às finanças porque foi ameaçada”. Porque questionada acabou por dizer que não disse nada às finanças que fosse mentira ou não correspondesse à verdade, tendo reconhecido a sua assinatura nos referidos documentos;
Por seu turno, o seu então marido L, recorda-se de ter sido chamado às finanças foi confrontado com os documentos e disse não se recordar de ter pago nada mais às finanças pela aquisição dos imóveis, tendo sido confrontado com os referidos documentos. Porque questionado disse não ter dividas às finanças.
Os seus depoimentos não nos mereceram qualquer credibilidade. Pese embora tenham decorridos vários anos sobre os factos, não sofrendo as testemunhas de doença de foro mental que lhes afecte a memória, não é crível que se tenham esquecido que declararam nas finanças ter adquirido as referidas fracções por um valor superior ao declarado na escritura e que, por causa dessas declarações que prestaram acabaram por ter que pagar imposto adicional de IMT referente ao imposto em falta devido à diferença de valor de aquisição e de valor de escritura. Enfim, pagamentos ao Estado, em especial às finanças é algo que não se esquece. E, muito menos quando se paga algo que não é devido, uma vez que se o valor declarado na escritura fosse o real nada era devido.
No entanto, tendo afirmado que não mentiram às finanças e que nada devem às finanças, visto o teor dos referidos documentos onde consta o valor real de aquisição das fracções e a liquidação do imposto adicional, o tribunal deu como assente os factos;
Relativamente à fracção adquirida por ..., o tribunal teve em atenção os documentos juntos a fl. 65, onde a adquirente declarou nas finanças que adquiriu a fracção por €130.996 e fl. 5137 onde consta que a mesma pagou o imposto adicional de IMT no valor de €1273,85 acrescido de juros no montante de €207,59 referente à diferença entre o valor escriturado €90.000 e o valor real de aquisição e as regras de experiência comum.
Sendo do conhecimento de qualquer cidadão o imposto é pago sobre o valor de aquisição do imóvel, não se compreende, por contrário às regras da normalidade, que a depoente afirme perante as finanças que adquiriu o imóvel por um valor substancialmente superior sabendo que ao fazê-lo o imposto seria recalculado e ira ter que pagar a diferença, tal como veio a acontecer, pelo que só podemos concluir que falou a verdade e que foi esse o valor de aquisição do imóvel.
Tendo em atenção os factos objectivos dados como assentes e analisados à luz das regras de experiência comum, deu-se como assente que se tratou de um plano delineado pelos arguidos com intenção de não procederem ao pagamento dos impostos devidos ao Estado.
Na verdade, quem mais aproveita com esta situação é sem dúvida o vendedor. É certo que o adquirente beneficia porque, paga menos imposto, mas quem lucra mais é o vendedor já que celebra vários contratos e em todos eles há uma parcela que é ocultada às finanças, com a consequente diminuição dos rendimentos e menos IRC. Sendo que actualmente, o comprador, caso venha a vender o imóvel, acaba por não beneficiar porque terá que pagar uma quantia superior aquando do pagamento das mais valias.
E considerando que tal simulação aproveita em 1ª mão ao vendedor, deu-se como assente que foram os arguidos que delinearam tal plano para se eximirem ao pagamento dos impostos devidos.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, o mesmo extrai-se dos factos objectivos apurados conjugados/analisados à luz regras de experiência comum. Sendo os arguidos cidadãos que residem em Portugal, gerentes de uma sociedade, pois tinham que saber que não podiam ocultar ao Fisco os valores efectivamente recebidos, que ao actuarem dessa forma ocultavam rendimentos e não procediam ao pagamento do imposto efectivamente devido a título de IRC, tendo agido com intenção de obterem uma vantagem ilegítima causando uma diminuição das receitas do Estado, sendo que agiram sempre em representação e no interesse da sociedade, como já acima se concluiu.
Quanto ao montante do prejuízo causado pelos arguidos ao Estado Português ou a vantagem obtida pelos arguidos, teve-se em atenção a informação das finanças contida no relatório final da AT junto a fl. 5161, e o depoimento da Sra. Inspectora Tributária que nos elucidou quanto ao modo com o mesmo é calculado.
A defesa entende que o valor é substancialmente inferior, que é de €74.324,00 como alegou em sede de contestação, defendendo que o imposto terá que ser obtido aplicando a taxa de 25 % ao produto da diferença entre o valor real de aquisição e o VPT (valor Patrimonial Tributário) ou, tal como defendeu em audiência aplicando a taxa de 25 % ao produto da diferença entre o valor real de aquisição e o valor declarado na escritura.
Desconhecemos em que regras se baseou a defesa para proceder a tais cálculos.
O que resulta da lei e tal como afirmado pela Sra. Inspectora Tribuária o produto da diferença entre o valor real de aquisição e o valor declarado na escritura terá que ser levado em conta na declaração de IRC do sujeito passivo do ano a que respeita a venda, e aí é que é apurado o valor em falta/vantagem obtida.
Assim, deu-se como assente o valor constante da informação das finanças e resultante do depoimento da Sra. Inspectora.
Mais, teve-se em atenção os CRC juntos aos autos a fl. 5498 a 5500 e as declarações que o arguido A prestou quanto às suas condições de vida.
As testemunhas de defesa ..., ... e ... os seus depoimentos incidiram sobre outras vendas de imóveis feitos pela sociedade arguida, onde apenas o pai dos arguidos teve intervenção e por isso, sem interesse para os autos, tendo no entanto a testemunha ... afirmado que os arguidos estavam na empresa embora não soubesse o que aí faziam, e ... que conheceu os arguidos aquando da compra, o que corrobora que os arguidos não eram apenas gerentes de direito que nada tinham a ver com a sociedade, já que aí laboravam.
No que concerne à matéria de facto provada e não provada relativa ao pedido de indemnização cível, teve-se em atenção o depoimento da Sra. Inspectora, conjugado com os documentos juntos aos autos a fl. 5378 a 5380 verso, da decisão do Tribunal Central Administrativo Norte proferida no processo 316/09.0BECBR e junta a fl. 5140.
Assim, começou a defesa por afirmar que já pagou o montante aqui em causa e juntou comprovativo do pagamento efectuado em 14.12.2016 - v. fl. 5378, 5380 e 5380 verso. No entanto, e como a defesa muito bem sabe, já que invocou tais factos no processo, os arguidos impugnaram essa liquidação adicional a qual veio a ser anulada pelo Tribunal Central Administrativo Norte porquanto a mesma foi feita recorrendo a métodos indiciários, e foi devolvido o pagamento à arguida sociedade, tal como o I. Mandatário acabou por reconhecer após a Sra. Inspectora ter feito referência a essa devolução.
A vantagem obtida/imposto em falta nestes autos não se confunde com a liquidação paga e anulada pelo TCA Norte. O montante aqui em causa, apurado posteriormente não foi feito recorrendo a métodos indiciários mas a dados objectivos – ao valor real das vendas versus valor declarado.
Ora, tendo o pagamento efectuado sido anulado e devolvido à sociedade é bom de ver que o montante em causa nestes autos não está pago e, por isso, continua em dívida.
Assim, deu-se como assente que o montante está em dívida e como não provado que a quantia foi paga.”
***
E o despacho recorrido proferido a 31.1.2022 tem o seguinte teor:
“Vieram os arguidos invocar a excepção da prescrição do procedimento criminal.
Para tanto alegam que pese embora os arguidos se encontrem pronunciados pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos art.º 103º, n.º1, al. a) e c) e art.º 104º, n.º 3 do RGIT, tendo em atenção que os factos imputados aos arguidos ocorreram em 2004 e que na redacção vigente à data dos factos não estava prevista a qualificação, o crime só pode ser subsumível no tipo previsto pelo art.º 103º, n.º 1 do RGIT, o qual é punido com pena de prisão até três anos, sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal de cinco anos;
Tendo em atenção que os factos ocorreram em 26.10.2004 (última das escrituras realizadas), a prescrição de sete anos e seis meses ocorreu em 26.04.2012, pelo que aquando da notificação da acusação, que ocorreu em 06.10.2020, já há muito que o procedimento criminal estava prescrito, uma vez que a suspensão do processo determinada ao abrigo do art.º 47º do RGIT, carece de suporte legal, por não se verificar o pressuposto exigido por tal artigo.
E a entender-se que o prazo esteve suspenso, apenas se pode entender que esteve suspenso entre 04.12.2009 e 01.10.2014, data em que o Ministério Público determinou o prosseguimento dos autos - cfr. fl. 257, pelo que o procedimento criminal está prescrito.
A Digna Magistrada do Ministério Público teve vista dos autos e promoveu que se indeferisse o requerido por ainda não ter ocorrido a prescrição do procedimento criminal.
Decidindo:
De acordo com a pronúncia os factos imputados ao arguido ocorreram em 2004 e, nessa data a agravação prevista no art.º 104º, n.º3 do RGIT ainda não estava em vigor, uma vez que se trata de alteração introduzida em pela Lei 64-B/2011, de 30.12., pelo que há que enquadrar a conduta dos arguidos no art.º 103 do RGIT, crime punido com pena de prisão até três anos ou multa, sendo o prazo de prescrição de cinco anos de acordo com o disposto no art.º 118 º do Código Penal.
Temos assim, que o prazo de prescrição é de cinco anos e começa a correr com a celebração do negócio simulado, tendo o último ocorrido em 26.10.2004.
Dos autos resulta que A e B foram constituídos arguidos em 03.12.2008 e a sociedade arguida em 16.10.2009 – v. fl. 94, 102, o que constitui causa de interrupção do procedimento criminal.
Tal causa de interrupção do procedimento criminal ocorreu antes do decurso do prazo de prescrição de cinco anos.
Em 03.04.2009, os arguidos apresentaram impugnação judicial que veio a dar origem ao processo 316/09.0BECBR para reagirem contra a liquidação adicional de IRC do ano de 2004, sendo que nessa liquidação adicional estava em causa apurar o valor pelo qual os imóveis em causa na pronúncia terão sido transacionados por negócio jurídico simulado quanto ao valor.
Tendo em atenção, e como bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público, “…que nessa acção estava em causa apurar ou determinar qual o método a utilizar para apurar qual o valor da vantagem obtida pelos arguidos com a prática dos factos que lhe são imputados, entendemos que se tratava de uma verdadeira questão prejudicial determinante de suspensão do processo crime.”
Improcede, assim, o invocado pelo arguido entendendo-se que existe motivo para a suspensão do processo nos termos do art.º 47º do RGIT.
Alegam os arguidos que, a entender-se que os autos estiveram suspensos só se pode defender que estiveram suspensos até 01.10.2014, data em que o Ministério Público determinou o prosseguimento dos autos - cfr. fl. 257.
Visto o despacho de fl. 257, afigura-se-nos que não assiste razão aos arguidos, afigurando-se-nos existir, por parte dos arguidos, alguma confusão entre a suspensão do processo e a determinação do prosseguimento dos autos para a realização de determinadas diligências de investigação, sendo que a realização destas em nada contende com a suspensão decretada nos autos.
Assim, há que concluir que o processo esteve suspenso desde 03.04.2009 até ao trânsito da decisão, o qual não está certificado nos autos, sendo que a decisão está datada de 31.10.2018, considerando-se esta por mais favorável aos arguidos.
Em 06.10.2020 foram os arguidos notificados da acusação, o que constitui causa de interrupção e de suspensão do procedimento criminal – art.ºs 120º e 121º ambos do C.P.
Tendo em atenção a causa de interrupção do procedimento criminal e descontado o período de suspensão, verifica-se que até à notificação da acusação não decorreu o prazo máximo de suspensão de 7 anos e 6 meses, e desde tal data encontra-se o prazo de procedimento criminal suspenso, sendo certo que ainda não se atingiu o limite máximo dessa causa de suspensão.
Pelo exposto, indefere-se o requerido por não se verificar a prescrição do procedimento criminal.
Notifique.”
***
Como é sabido, e resulta do disposto nos art.ºs 368.º e 369.º, ex vi art.º 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.
Analisemos então as questões colocadas.

1ª Questão - Prescrição do procedimento criminal

Nas conclusões 16.ª, 17.ª e 18.ª, os recorrentes invocam a prescrição do procedimento criminal, alegando que a suspensão do processo penal violou o disposto no artigo 47.º do RGIT, tendo-se verificado o prazo máximo de prescrição de 7 anos e 6 meses, nos termos do art.º 121.º, n.º 3, do Código Penal, em 26.4.2012.
Para melhor entendimento importa ver o que se passou.
Como consta do relatório elaborado em 22.12.2018, em 2008 iniciou-se o inquérito n.º 227/08.7IDLB, sendo que em 2013 foi extraída certidão desse inquérito dando origem ao presente processo.
Os arguidos foram condenados pela prática de um crime de fraude fiscal, p. p. pelo art.º 103.º do RGIT, em penas de multa de 1800,00 Euros e no pagamento da quantia de 236.305,73 €, a título de indemnização, por venda no ano de 2004, de seis fracções, por preço superior ao declarado nas respectivas escrituras de compra e venda.
As vendas foram efectuadas em 23 de Março, em 4 e 5 de Maio, em 8 de Julho (duas fracções) e em 26 de Outubro de 2004, sendo que em Setembro de 2007 foi realizada uma inspecção ao sujeito passivo D., de que resultou em 2008 liquidação adicional de IRC e juros compensatórios, no valor de 426.879,74€.
Após audição e procedimento de revisão, em 2.4.2009, a Sociedade deduziu impugnação judicial contra aquela liquidação adicional de IRC de 2004 e juros compensatórios, no valor de 426.879,74 €, por esta se ter socorrido de métodos indirectos, avaliação indirecta, que em seu entender não deveria ter lugar, dando origem ao processo tributário n.º 316/09.0BECBR.
Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra de 24.3.2015 foi julgada improcedente a impugnação, por se entender correcto o recurso a métodos indirectos.
Interposto recurso jurisdicional para a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo do Norte, tendo o Ministério Público entendido dever ser concedido provimento ao recurso, e estando em causa analisar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao decidir estarem verificados os pressupostos para aplicação de métodos indirectos e inexistir errónea quantificação ou excesso na presunção da matéria tributável, por acórdão de 31.10.2018, foi decidido conceder provimento ao recurso, revogar a sentença na parte recorrida e julgar a impugnação judicial procedente, anulando o acto de liquidação adicional de IRC e respectivos juros compensatórios, referente ao ano de 2004, na parte afectada pela decisão de recurso a métodos indirectos.
Consta da fundamentação: “Nestes termos, a dúvida quanto à verificação dos pressupostos de determinação da matéria tributável por métodos indirectos tem de se resolvida contra quem tem esse ónus probatório, ou seja, a Administração Tributária (artigo 74.º, n.º 3 da LGT).
Destarte, assim não se tendo entendido na sentença recorrida, impera concluir pela ilegalidade das liquidações decorrentes da ilegal determinação da matéria tributável que lhe subjaz, por a Administração Tributária não ter demonstrado, como lhe competia, a verificação dos pressupostos de que a lei faz depender o recurso aos métodos indirectos de avaliação.
Por conseguinte, o recurso merece provimento, sendo de revogar a sentença na parte recorrida e eliminar da ordem jurídica o acto de liquidação adicional de IRC e respectivos juros compensatórios, referente ao exercício de 2004, na parte afectada pela decisão de recurso a métodos indirectos”.
Pelo seu manifesto interesse, transcrevem-se as conclusões em sumário:
I – Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação (artigo 74.º, n.º 3 da LGT).
II – O n.º 4 do artigo 77.º da LGT determina que a decisão de tributação pelos métodos indirectos especificará os motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável e bem assim indicará os critérios utilizados na avaliação da matéria tributável.
III – Não basta a existência de irregularidades na contabilidade para que a AT possa recorrer ao apuramento da matéria colectável com recurso a métodos indirectos, é ainda necessário que aquelas irregularidades impossibilitem o apuramento da matéria tributável por métodos directos, tal como resulta da conjugação do disposto no artigo 87.º, n.º 1, alínea b) e artigo 88.º da LGT.

Analisando.
Por via da apresentação da impugnação judicial no processo tributário o inquérito crime ficou suspenso a partir de 3.4.2009, aguardando decisão final naquele outro processo n.º 316/09.0BECBR, nos termos do artigo 47.º do RGIT, o que só veio a acontecer em 31.10.2018.
Na análise da questão há que ter em conta disposições do RGIT, da Lei Geral Tributária (LGT) e Código Penal.
No que respeita à prescrição do procedimento penal tributário dispõe em especial o artigo 21.º do RGIT em termos que se afastam do regime geral do Código Penal.
Artigo 21.º
Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal
1 – O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2 – O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena for igual ou superior a cinco anos.
3 – O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infracção depender daquela liquidação.
4 – O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos do n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º.

Dispõe o Artigo 42.º do RGIT - Duração do inquérito e seu encerramento
1 –  ….
2 – No caso de ser intentado procedimento, contestação técnica aduaneira ou processo tributário em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos, não será encerrado o inquérito enquanto não for praticado acto definitivo ou proferida decisão final sobre a referida situação tributária, suspendendo-se, entretanto, o prazo a que se refere o número anterior.

Dispõe o Artigo 47.º do RGIT - Suspensão do processo penal tributário
1 – Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.
2 – Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie.
O n.º 1 tem a redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12, em vigor a partir de 1.1.2007.

Dispõe o Artigo 48.º do RGIT - Caso julgado das sentenças de impugnação e de oposição
A sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram.

A Lei Geral Tributária, aprovada pela Lei n.º 698/98, de 27-12(LGT), sobre prescrição dispõe:

Artigo 49.º
Interrupção e suspensão da prescrição
1 – A citação, a reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e o pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo interrompem a prescrição.
2 – A paragem do processo por período superior a um ano por facto não imputável ao sujeito passivo faz cessar o efeito previsto no número anterior, somando-se, neste caso, o tempo que decorrer após esse período ao que tiver decorrido até à data da autuação.
3 – O prazo de prescrição legal suspende-se por motivo de paragem do processo de execução fiscal em virtude do pagamento de prestações legalmente autorizadas ou de reclamação, impugnação ou recurso.
A redacção do n.º 3 foi introduzida pela Lei n.º 100/99, de 26.07.

O crime de fraude, p. e p. pelo artigo 103.º do RGIT é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

Disposições do Código Penal
 
Artigo 118.º - Prazos de prescrição
1 - O procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:
c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferir a cinco anos;

Artigo 119.º - Início do prazo
1 – O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado

Artigo 120.º - Suspensão da prescrição
1 – A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal.
6 – A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.

Artigo 121.º - Interrupção da prescrição
1 – A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação …
2 – Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3 – Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.

Como referido, entendem os recorrentes que não havia lugar a suspensão do processo crime em virtude da impugnação judicial tributária.
A sociedade arguida em 2.4.2009 deduziu a impugnação, defendendo que não havia lugar a recurso a métodos indirectos para determinar o rendimento colectável.
Estando em causa o apuramento do montante a entregar ao fisco, estamos perante uma questão prejudicial a ser conhecida na jurisdição própria, não tendo lugar o princípio da suficiência do processo penal previsto no artigo 7.º do Código de Processo Penal, o qual consiste na competência do tribunal penal para decidir todas as questões prejudiciais penais e não penais que interessarem à decisão da causa, dispondo:
1- O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.
2- Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.

Para o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25.9.2014, processo n.º 218/13.6TCGMR – Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira razão de ser à existência da segunda.
 Para o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.6.2018, processo n.º 2380/09.3 - Verdadeiramente causa prejudicial é aquela cuja decisão pode destruir o fundamento ou a razão de ser da causa dependente, e cuja resolução constitui pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto (total ou parcial) dessa acção.
Na impugnação judicial tributária discute-se o acto tributário que definiu o montante do imposto que com o crime fiscal o arguido deixou de pagar. O apuramento do valor é questão prejudicial.
No caso concreto o acórdão de 31.10.2018 anulou a liquidação adicional de IRC de 2004 e juros compensatórios, no valor de 426.879,74 €, por recurso a métodos indirectos, seguindo-se avaliação directa (cfr. Relatório de 12-2018 -fl. 5161/8, vol. 14)

Sobre impugnação judicial tributária - Suspensão da prescrição do procedimento penal, o Acórdão do STJ n.º 3/2007, de 12-10-2006, Processo n.º 256/06-3.ª Secção, in Diário da República, 1.ª série, de 21-02-2007, fixou a seguinte jurisprudência:
“Na vigência do artigo 50.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, a impugnação judicial tributária determinava, independentemente de despacho, a suspensão do processo penal fiscal e, enquanto esta suspensão se mantivesse, a suspensão da prescrição do procedimento penal por crime fiscal”.
Consta da fundamentação deste acórdão uniformizador:
“A impugnação judicial tributária constitui objecto próprio de apreciação e decisão na competência da jurisdição administrativa e fiscal. Mais, constitui matéria da competência exclusiva de tal jurisdição, assim se afastando, neste limite, o princípio da suficiência do processo penal. Nestes termos, se o conhecimento de matéria penal fiscal depender da prévia apreciação de impugnação judicial tributária, esta constitui uma questão prejudicial ope legis ao conhecimento penal e, por isso, suspende o processo penal fiscal até que transite em julgado a decisão proferida em sede fiscal quanto à respectiva impugnação, sem necessidade, pois, de despacho judicial nesse sentido.
Conclui que a suspensão do procedimento penal por crime fiscal em virtude de impugnação fiscal constitui um imperativo legal, não dependendo de despacho judicial expresso”.
E o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 441/2012, de 26-09-2012, Processo n.º 890/2011-3.ª Secção, in Diário da República, II Série, de 22-02-2013, decidiu:
“Não julga inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 49.º da Lei Geral Tributária, na redacção anterior à da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, quando interpretada no sentido de que a apresentação de impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a respectiva decisão”.

Como refere Germano Marques da Silva em Direito Penal Tributário, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 127, as normas dos art.ºs 42.º, n.ºs 2 e 4 e 47.º do RGIT pressupõem que o processo relativo à determinação da prestação tributária corre no processo próprio, autónomo do processo penal pelo crime tributário, nada tendo a ver com a questão da indemnização dos danos emergentes do crime tributário.
O procedimento meramente tributário é distinto do procedimento pelo crime tributário e por isso que se a definição da situação tributária é questão prejudicial relativamente ao crime tributário deve naturalmente ser previamente determinada. O que aquelas normas do RGIT estabelecem é que se seguirá o regime das questões prejudiciais próprias, agora por expressa imposição legal: dos art.ºs 42.º e 47.º do RGIT decorre simplesmente o afastamento do artigo 7.º do Código de Processo Penal. Esta questão nada tem a ver com a responsabilidade civil emergente da prática do crime, regulada nos art.ºs 71.º e seguintes do Código de Processo Penal”.
Sobre este ponto convoca-se o parecer de Augusto Silva Dias, no processo n.º 111/02.8TAALQ, onde refere:
“Por outro lado, a responsabilidade fiscal rege-se pela legislação tributária, pautando-se pelos princípios que a enformam, designadamente o princípio da legalidade. Nesta linha, a disciplina dos n.ºs 2 e 4 do art.º 42.º e do art.º 47.º do RGIT pressupõe que o procedimento relativo à determinação da dívida e da responsabilidade tributárias corre em termos próprios, configurando uma questão prejudicial. A autonomia processual tributária conduz, assim, ao afastamento do princípio da suficiência do processo penal previsto no art.º 7º do CPP.
 
Germano Marques da Silva, loc. cit., abordando a suspensão do processo tributário e caso julgado no processo de impugnação ou oposição, diz, a págs. 163/4:
“I. Especialidades muito relevantes do processo penal tributário relativamente ao processo penal comum são as previstas nos art.ºs 47.º (suspensão do processo penal tributário) e 48.º (caso julgado das sentenças de impugnação e de oposição) do RGIT.
O artigo 47.º tem que ver com a questão prejudicial não penal e com os prazos de prescrição.
O processo de impugnação judicial e a oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, põem em causa a subsistência da obrigação tributária.
Este princípio de suspensão do processo penal tributário constitui um desvio à regra da suficiência do processo penal, consagrado no n.º 1 do artigo 7.º do Código de Processo Penal, por se considerar que o processo de impugnação judicial ou a oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário, constituem questão não penal, prejudicial ao conhecimento de um crime tributário.
O artigo 48.º é a consequência inevitável do disposto no art.º 47.º. Se o processo criminal se suspende para aguardar a decisão não poderia depois deixar de considerar essa decisão. Constitui, aliás, a aplicação ao processo penal tributário de solução equivalente à da norma do art.º 7.º do Código de Processo Penal.
E na pág. 179, refere: “As causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal são as estabelecidas no art.º 120.º do Código Penal, mas o n.º 4 do art.º 21.º do RGIT acrescenta como causa especial de suspensão da prescrição a suspensão do processo por efeito do disposto no n.º 2 do art.º 42.º e no art.º 47.º.
As causas especiais de suspensão são o desenvolvimento da causa prevista na alínea a) do n.º 1 do art.º 120.º do Código Penal”.
Sobre a questão prejudicial fiscal em processo penal, diz Paulo Marques em Crime de abuso de confiança fiscal, Coimbra Editora, 2010, pág. 108: “Em rigor só se pode falar em questão prejudicial nas situações contempladas no art.º 47º do RGIT, pois só aí a questão fiscal está sujeita à jurisdição de um tribunal tributário. As situações do art.º 42º configuram uma questão prejudicial apenas num sentido material, não coberto pelos n.ºs 2 e 3 do art.º 7.º do CPP”. 
      
Na impugnação judicial apresentada no tribunal tributário estava em análise saber se o recurso a métodos indirectos era legal, estando em causa liquidação adicional referente a 29 fracções. A impugnação judicial é meio processual tributário (art.º 101.º, a), da LGT), que põe em causa a subsistência da obrigação tributária. A questão a resolver era uma questão não penal, questão prejudicial, a ser resolvida na jurisdição própria, ultrapassando o princípio da suficiência previsto no art.º 7.º do CPP. A decisão acabou por ser favorável no que ao uso de métodos indirectos dizia respeito.
A decisão na impugnação judicial não deixa de ter reflexos no processo penal como decorre do disposto no art.º 100.º da LGT (Efeitos de decisão favorável ao sujeito passivo):
“A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

Conclui-se do exposto que não houve violação do disposto no artigo 47.º do RGIT, ficando suspenso o prazo de prescrição do procedimento criminal de 3.4.2009 a 31.10.2018, data do acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, não tendo sido certificado o trânsito em julgado, referindo-se na decisão instrutória, a fl. 5348 que não terá ocorrido antes de 2.12.2018.
O despacho do Ministério Público de 4.4.2013 justificou-se, pois como decorre do n.º 3 do art.º 7.º do CPP, a suspensão não pode prejudicar a realização de diligências urgentes de prova, sendo certo que a impugnação estava então pendente há mais de quatro anos.

Com a constituição de arguidos dos recorrentes A e B em 3.12.2008 e da sociedade em 16.10.2009, interrompeu-se a prescrição do procedimento criminal.
Com a notificação da acusação em 6.10.2020, nos termos do art.º 121.º, n.º 1, al. b), do CPP, interrompeu-se a prescrição do procedimento criminal. E como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
Pelo exposto, julga-se improcedente a arguição de prescrição.

Questão prévia - Incumprimento do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP
Cumpre-nos apreciar, por manifestamente relevante para o caso sub judice, a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia relativamente a parte do alegado pelos recorrentes na contestação ao pedido de indemnização civil apresentado, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP por não ter sido considerada toda a matéria plasmada na contestação.
Diversamente do que ocorre com os vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP, a análise da existência das nulidades decorrentes da inobservância da injunção legal contida no nº 2 do artigo 374º, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a), não se cinge ao texto da decisão, antes pressupõe o cotejo dessa peça processual com a(s) fonte(s) delimitadora(s) do objecto do processo, enformadoras da vinculação temática a ter em conta pelo tribunal - cfr. artigos 339º, nº 4 e 368º, nº 2 do CPP – efectuando-se esse confronto com referência à acusação (ou pronúncia) - sempre – e, eventualmente, com a contestação à acusação, com o articulado de pedido cível e contestação a este, ou com outros tipos de requerimento do arguido em que se contenha a alegação de factos com manifesto interesse para a decisão da causa.
Apreciando.
Definindo os requisitos da sentença penal dispõe o artigo 374º, nº 2, do CPP, na redacção actual, dada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999, e mantida inalterada:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A jurisprudência do STJ firmou-se, de há muito, no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta, feita da mesma forma, dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias, ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, desde que tenham efectivo interesse para a decisão, mas já não no caso de factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou a matéria de facto já  prejudicada pela solução dada a outra.
Da leitura da decisão tem que se concluir que o tribunal não considerou especificadamente toda a matéria de prova que foi trazida à sua apreciação e que tem relevo para a decisão, por ter sido incluída numa das peças processuais constantes dos autos – acusação, pronúncia, pedido cível, contestação criminal e contestação cível, neste caso a contida na contestação ao pedido cível.
 Como se referiu no acórdão do TR Coimbra, de 24.11.1999, recurso 2465/99, “factos provados e não provados, segundo o   preceito do art.º 368.º, n.º 2, são todos os factos submetidos à apreciação do tribunal e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, os constantes da acusação ou da pronúncia e da contestação que seja substanciais, quer sejam instrumentais ou acidentais, bem como os não substanciais que resultarem da discussão da causa e sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da discussão, quando aceites nos termos do art.º 359.º, n.º 2”.
Este tipo de fundamentação é de estender aos casos em que é deduzido pedido cível. Os factos do articulado, bem como da defesa, havendo-a, constituem igualmente objecto do processo, integrando a vinculação temática do caso.
No caso concreto acontece que apenas foi dado por não provado o pagamento da quantia pedida. Mas os arguidos na sua contestação ao pedido de indemnização civil a fl. 5374 e ss., mais propriamente a fl. 5376, no art.º 30º dessa contestação, nas alíneas b) e c) alegam que em cumprimento da lei, a sociedade arguida declarou adicionalmente à administração fiscal, no Quadro 07, da sua declaração Mod. 22 de IRC, do ano de 2004, a diferença positiva entre os valores declarados nas escrituras de venda das 6 fracções autónomas em causa (no total de 892.500,00) e o valor total do respectivo VPT (1.048.700,00)  e ainda que essa diferença foi de 1.048.700,00-892.500,00= 156.200,00, que foi acrescida pela sociedade arguida à sua matéria colectável e, como tal, foi sujeita a tributação, como se refere no parecer da Divisão de Processos Criminais Fiscais, da DF de Lisboa.
Esta matéria supra não foi levada nem à matéria de facto provada, nem à não provada, sendo que no plano factual se nos afigura que é relevante e importa para efeitos de consideração de todas as soluções jurídicas plausíveis, na determinação do montante indemnizatório.
Assim, decide-se declarar a nulidade da sentença recorrida ao abrigo do disposto no art.º 379º, n.º 1, al. a) do CPP por violação do disposto no art.º 374º, n.º 2 do CPP, o que implica a remessa dos autos ao tribunal recorrido para suprimento da nulidade suprareferida, lavrando-se nova sentença em que se conheça da matéria omitida. O tribunal de primeira instância reabrirá a audiência se o entender necessário, produzindo eventualmente prova adicional e, após novas alegações orais, deverá proferir nova decisão que contemple a matéria de facto omissa.
Face a esta solução fica para já prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.    

IV - DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a arguição da prescrição do procedimento criminal e em declarar a nulidade da sentença recorrida na parte em que não conheceu da matéria constante da contestação ao PIC, nomeadamente do artigo 30º alíneas b) e c) da contestação, remetendo os autos à 1º Instância para suprimento da referida nulidade, se necessário reabrindo a audiência.
Sem custas.
*
Lisboa, 9 de Março de 2023
Lídia Renata Goulart Whytton da Terra
Maria José Cortes
Paula de Sousa Novais Penha