Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
40700/19.0YIPRT.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: FORNECIMENTO DE ÁGUA
FACTURA
COBRANÇA COERCIVA
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL JUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Com a entrada em vigor da Lei 114/2019, de 12/09, os tribunais administrativos e fiscais não têm competência para as acções que, como a dos autos, se destinem a apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva” (cfr. artº 4º, nº 4, al e) do ETAF).
2. Tal norma é aplicável a acção instaurada antes da sua entrada em vigor, tendo em conta o disposto no artº 38º, nº 2 da L.O.S.J., conjugado com os artºs 211, nº 1 e 212º da C.R.P., sendo caso de modificação de direito relevante, em que o legislador teve a intenção manifesta de pôr termo a inúmeros conflitos de competência, excluindo da jurisdição administrativa e fiscal a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais e, “concomitantemente, tornar clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

A. [ … SA], empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água ao concelho de C, intentou a presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias contra o B [ Condomínio …] , requerendo o pagamento do montante global de € 447,98.
Para o efeito alegou que:
1- A Requerente (Rte) e o Requerido (Rdo) celebraram o contrato n.º 2010544102 (com Imp. Selo pago), por força do qual a primeira pode faturar ao segundo o serv. de fornecimento de água prestado pela Rte ao prédio da Praceta P, 57 Edif. M, em C, correspondente à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão) instalado no mesmo prédio, ao abrigo do supra indicado contrato. Fornecida a água e verificada aquela diferença, foram emitidas e enviadas pela Rte as faturas infra ao Rdo, que estão vencidas e por pagar, desde as suas datas de vencimento:
N.º Doc.               Data Emis.           Data Venc.             Valor EUR
201810903369  13-11-2018             05-12-2018                 237,14
2-  O Rdo não pagou as faturas e entrou em mora (arts. 805º, nº2, a) e 806º, do CC) e sendo um crédito de empresa comercial, a Rte tem direito a juros de mora à taxa de 7% (Aviso n.º 8266/2014, de 16/07/2014, publicado no DR, 2ª Série, da Direção-Geral do Tesouro e Finanças), consoante os períodos de mora a que sejam aplicáveis, desde a data de venc. das faturas até integral pagamento.
3- O Rdo deve pagar à Rte 237,14 € de capital, 6,09 € de juros de mora vencidos calculados até 18/04/2019, juros vincendos até integral pagamento, 153,75 € (c/IVA) de despesas de cobrança, e o valor da taxa de justiça paga.”
O requerimento de injunção foi apresentado no Balcão Nacional de Injunções em 26/04/2019, o qual prosseguiu com distribuição no tribunal judicial por frustração da notificação do requerido, como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias.
Por requerimento posterior a A. juntou aos autos o contrato celebrado com o R., intitulado “Contrato de fornecimento de água e drenagem de águas pluviais”.
O Requerido deduziu oposição. Invocou, além do mais, a exceção de incompetência material, defendendo que o litígio é matéria da competência da ordem administrativa e fiscal, nos termos do art.º 4, n.º 1 do ETAF, máxime na sua alínea d).
Notificada a A. para se pronunciar quanto à exceção, veio a mesma alegar que apesar de estarmos perante um contrato de fornecimento de água celebrado por uma concessionária de serviço público, não estamos perante um litígio de natureza administrativa e fiscal, que deva ser regulado pelos tribunais administrativos e fiscais. O objeto do litígio resultante do incumprimento por parte do Réu, enquanto consumidor ou utilizador final do correspondente contrato de fornecimento celebrado, vigente entre as partes, relativo ao preço devido por aquela prestação, não é atingido por uma regulação de direito público (administrativo ou tributário), antes resulta numa relação de direito privado, submetida aos Tribunais Comuns, ainda que a entidade fornecedora seja uma entidade pública ou uma concessionária. Para além do mais, por via da 12.ª alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), levada a cabo pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, entrou em vigor, no passado dia 12 de Novembro de 2019, a (nova) alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do mesmo Estatuto, a qual estipula que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.  É de concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio dos autos é a jurisdição dos tribunais comuns, os tribunais judiciais.
Em 28/01/2020 foi proferida decisão que declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria e absolveu o Requerido da instância, com fundamento em que “as competências da A., designadamente de “exploração e gestão conjunta da manutenção do sistema de águas pluviais e exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e da recolha e rejeição de efluentes domésticos” foram-lhe concessionadas pelo Município de C conforme decorre do Contrato de Concessão, dos Estatutos e do Regulamento nº….  Ora, resulta do disposto no artigo 212º, nº3 da C.R.P. e do artigo 1º, nº1 do E.T.A.F. que compete à jurisdição administrativa julgar os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.  Trata-se pois de uma relação jurídica que é subsumível ao conceito de relação administrativa previsto no artigo 1º, nº 1 do E.T.A.F. e por isso sempre seria da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais nos termos do artigo 4º, nº1, alínea o) do E.T.A.F., na redação vigente à data da entrada da presente ação (os pressupostos processuais são verificados àquela data).”
A A. interpôs recurso desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
a) A ora Recorrente não concorda com a sentença recorrida, proferida pelo tribunal “a quo”;
b) Uma vez que considera, que, subjacente à questão em controvérsia, nos autos, não há uma relação jurídica administrativo-tributária;
c) Antes de mais, tendo sido definido pela Autora, ora Recorrente, o objeto do litígio suscitado nos autos, relacionado com a sua pretensão formulada, de pagamento pelo Réu, ora Recorrido, dos serviços de fornecimento de água efetuados pela primeira, enquanto prestador, à segunda;
d) Fornecimento de água, esse, traduzido em consumo constituído pela diferença entre o valor da medição por parte do contador totalizador e o valor da medição do conjunto dos contadores divisionários/diferenciais instalados no prédio do Réu, ora Recorrido;
e) E portanto, estar-se perante um objeto do litígio emergente de relação de consumo relativa à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água) e respetiva cobrança coerciva;
f) Referindo-se, assim, o objeto do litígio a relação contratual não atingida por uma regulação de direito público;
g) Por se entender que a matéria de incumprimento de contrato de fornecimento de água não se insere numa relação jurídica administrativo-tributária;
h) Antes resulta numa relação de direito privado, submetida aos Tribunais Comuns;
i) Ainda que a entidade fornecedora seja uma entidade concessionária;
j) Da análise da causa de pedir apresentada pela Autora, ora Recorrente, verifica-se que a situação de vida levada a juízo não se refere a uma relação especial do tipo Estado versus Cidadão, em que o primeiro esteja imbuído dos seus poderes de autoridade, mas antes a uma relação contratual estabelecida entre as partes, não sendo relevante a concessão aludida;
k) De facto, em concreto, nos autos, não estamos perante matéria tributária;
l) Nos autos não se discute uma «questão fiscal»;
m) Na verdade, o litígio dos autos não se situa no quadro ou no âmbito de relação jurídica tributária;
n) Visto que o litígio insere-se estritamente nas relações contratuais, entre a Autora/Recorrente, prestadora dos serviços de abastecimento de água e o Réu/Recorrido, seu cliente, e utilizador;
o) Nos autos, a Autora, ora Recorrente, na sua qualidade de empresa privada concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais, pede/exige o pagamento, não efetuado, pelo Réu, ora Recorrido, de quantia devida por fornecimento de água, a que estava obrigada, por força da relação contratual estabelecida;
p) E ao abrigo da qual foi instalado contador totalizador (vulgo contador padrão) no prédio do Réu/Recorrido;
q) Ora, atenta à matéria que está em causa, e o que a mesma Autora pretende obter do Réu, a competência para a sua discussão e julgamento reside nos tribunais comuns;
r) Restringindo-se o litígio em causa à cobrança de um crédito por água fornecida e não paga à empresa concessionária do serviço municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais;
s) Tem de se considerar processualmente correto, por adequado, a distribuição dos autos nos tribunais comuns;
t) Estando em causa a competência para conhecer matéria relativa à validade da relação contratual entre Autora e Réu e a sua execução e o seu cumprimento;
u) Relação contratual consubstanciando uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado;
v) Uma vez que a relação em causa não se destina a quaisquer fins de “interesse público”;
w) A jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação são os tribunais comuns;
x) Pelo que, deve considerar-se que o Juiz “a quo” fundou a sua decisão numa inexistente relação jurídica administrativa-tributária;
y) Para além do mais, e acima de tudo, por via da 12.ª alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), levada a cabo pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, entrou em vigor, no passado dia 12 de Novembro de 2019, a (nova) alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do mesmo Estatuto, a qual estipula que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”;
z) Ora, no caso dos autos estamos perante um litígio emergente de relação de consumo atinente à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água), com base no previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho (com respetivas alterações subsequentes) e respetiva cobrança coerciva (inicialmente através de injunção e subsequentemente, com carácter judicial);
aa) Por outro lado, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/10/2019 (portanto, proferido pouco tempo antes da entrada em vigor da supra indicada alteração do ETAF), referente ao Processo de Apelação 124980/18.4YIPRT.L1, em que foi recorrente a ora Recorrente/Autora, chamava já a atenção para a publicação do diploma com a mencionada alteração do ETAF, considerando-a um relevante elemento de interpretação sistémica, nomeadamente, quando o legislador claramente enuncia a sua intenção interpretativa;
bb) Tal Acórdão vem considerar que “a relação contratual estabelecida entre uma concessionária de serviço de fornecimento de água e drenagem de águas residuais e uma entidade privada não tem a natureza de contrato administrativo, não está sujeita às regras da contratação pública, nem tem por objeto questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais, pelo que não se enquadra na previsão doa artigo 4.º do ETAF, na redação do DL 214-G/2015, estando sujeita à jurisdição dos tribunais comuns.”;
cc) Diga-se que, não é por haver medição por parte de contador totalizador (não isoladamente, mas em comparação com a medição resultante do conjunto dos vários contadores divisionários instalados no prédio dos autos) que deixa de estar em causa uma relação de consumo;
dd) Tal é, inclusive, demonstrado quando o n.º 3 do artigo 66.º do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto (artigo com o título de “Instrumentos de medição”), estipula que em alternativa à instalação de contador para medição do consumo nas zonas comuns dos prédios em propriedade horizontal, em alternativa, por opção da entidade gestora, podem ser instalados contadores totalizadores;
ee) Depois de já o n.º 1 do mesmo artigo estipular o direito à medição dos níveis de utilização dos serviços;
ff) E o n.º 2 do mesmo artigo 66.º declarar a competência da entidade gestora para colocação dos contadores adequados às características do local e ao perfil de consumo do utilizador;
gg) A nova redação da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, introduzida pela Lei 118/2019, não mereceu do Tribunal “a quo” qualquer atenção;
hh) Ora, atento o supra exposto, verifica-se que a sentença ora recorrida, omite/não aborda questão essencial que devia abordar, isto é, a questão da entrada em vigor da supramencionada alteração do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, que introduz uma nova alínea – a alínea e) – a qual passa a ser decisiva para a análise da matéria da competência do tribunal para conhecer e decidir dos autos;
ii) Tal omissão é causa de nulidade da sentença, de acordo com o previsto no n.º 1, alínea d), primeira parte, do artigo 615.º do CPC;
jj) Tendo levado a entendimento do Tribunal “a quo” que não foi o correto e adequado, sendo inaceitável;
kk) Resultando tal entendimento, claramente, de um erro de apreciação e de aplicação do Direito ao caso vertente;
ll) E levando o Tribunal “a quo”, considerar-se incompetente materialmente para apreciar o litígio dos autos;
mm) Decretando a verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal “a quo” para a causa;
nn) Assim, sendo, pelas razões supra indicadas, é de concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio dos autos é a jurisdição dos tribunais comuns, os tribunais judiciais;
oo) Pelo que não podia devia, como fez o Tribunal “a quo”, considerar-se incompetente materialmente para apreciar o litígio dos autos;
pp) Nem decretar a verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal “a quo” para a causa;
qq) Assim, pelo supra exposto, deverá o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada.
Termos em que deverá o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada, assim se fazendo Justiça!”
Não foram apresentadas contra-alegações.
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A factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a constante do relatório que antecede.
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Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
1. Da nulidade da decisão
2. Determinar se é competente, em razão da matéria, para conhecer da ação os tribunais comuns (in casu, Juízo Local Cível) ou se tal competência se insere na jurisdição administrativa, concretamente na tributária.    
1 Da nulidade
A apelante invoca a violação do artº 615º, nº 1, al. d) do CPC, por considerar que a decisão recorrida omite/não aborda questão essencial que devia abordar, isto é, a questão da entrada em vigor da alteração do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, que introduz uma nova alínea – a alínea e) – a qual passa a ser decisiva para a análise da matéria da competência do tribunal para conhecer e decidir dos autos.
Estabelece o artº 615º, nº 1 do C.P.C. que:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Este preceito está diretamente relacionado com o disposto no artº 608º e 609º do C.P.C., dele resultando que o juiz deve apreciar todas as questões que lhe são colocadas, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão daquelas, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A nulidade de decisão por omissão de pronúncia apenas ocorre quando o Tribunal deixe por decidir qualquer questão temática principal, para o que relevam as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Como é unânime na jurisprudência, de que são exemplos (in www.dgsi.pt):
- Ac. STJ de 03-10-2017:
“I - As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas no art. 615.º do CPC, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão ou a não conformidade dela com o direito aplicável.
II - A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objeto do recurso, em direta conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada.
III - A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respetivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.
IV - É em face do objeto da ação, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver.
V - Não padece de nulidade por omissão de pronúncia o acórdão reclamado que conheceu de todas as questões que devia conhecer, resolvendo-as, ainda que a descontento da recorrente/reclamante.”
A alteração legislativa não constitui questão na aceção exposta, sendo mero argumento aduzido para a decisão da questão da competência material do Tribunal.
De todo o modo, a decisão recorrida pronunciou-se, ainda que de forma sintética, mas suficiente, nos seguintes termos:
Trata-se pois de uma relação jurídica que é subsumível ao conceito de relação administrativa previsto no artigo 1º, nº 1 do E.T.A.F. e por isso sempre seria da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais nos termos do artigo 4º, nº1, alínea o) do E.T.A.F., na redação vigente à data da entrada da presente ação (os pressupostos processuais são verificados àquela data).”
Improcede, pois, a invocada nulidade.
2  Determinar se é competente, em razão da matéria, para conhecer da ação os tribunais comuns (in casu, Juízo Local Cível) ou se tal competência se insere na jurisdição administrativa, concretamente na tributária.
A competência determina-se em função da ação proposta, considerando o pedido e a causa de pedir, importando, pois, a relação jurídica invocada.
A competência exclusiva para o abastecimento público de água e para o tratamento de águas residuais cabe aos municípios, podendo ser concessionada a entidades terceiras (artºs 2.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, alínea d), do DL. 194/2009, de 20/08, na redação da Lei 12/14, de 06/03). A autora é concessionária do Município de Cascais.
Estabelece o artº 1º, n.º 1, do ETAF que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.”
À data da instauração da ação estabelecia o artº 4º do E.T.A.F. (Lei 13/2002, de 19/02), sob a epígrafe “Âmbito de aplicação”, que:
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:
a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.”
A Lei n.º 114/2019 de 12/09, que entrou em vigor em 12 de novembro de 2019, introduziu uma nova alínea ao nº 4 do citado art. 4º do ETAF, com a seguinte redação:
“e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”
Consta da Exposição de Motivos que acompanhou o Projeto de Lei nº 167/XIII, de que veio a resultar a referida Lei que:
Cumpre realçar também as alterações propostas para o âmbito da jurisdição e da competência dos tribunais administrativos e fiscais.
A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS 7 de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” (sublinhado nosso)
O artigo 38.° da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) dispõe que:
“1. A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
2. São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.”
Antes da entrada em vigor da Lei 114/2019, em situações idênticas à dos presentes autos, foram proferidas diversas decisões pelos Tribunais superiores (Tribunais da Relação, Tribunal de Conflitos e, ainda, Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal), quer no sentido de atribuir a competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais, posição largamente maioritária (cfr. a título de exemplo, Ac.RL de 12-10-2017, Ac. Tribunal de Conflitos de 25/06/2013, Processo n.º 033/13; 26.9.2013, Processo n.º 030/13; 05/11/2013, Processo n.º 039/13; 18/12/2013, Processos n.º 038/13 e n.º 053/13, 19/06/2014, Processo nº 022/14, 19/01/2017, Processo nº 014/16, Ac. do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 10/4/2013, Processo n.° 015/12, todos disponíveis em www.dgsi.pt), como no sentido de atribuir a competência aos tribunais comuns (cfr. Ac.Tribunal de Conflitos de 21/01/2014, Ac.RP de 04/05/2015, mesma base de dados).
As duas posições em confronto deixaram de assumir relevância com a alteração introduzida pela Lei 114/2019 de 12/09.
Com a entrada em vigor desta Lei, em 11/11/2019, os tribunais administrativos e fiscais não têm competência para as ações que, como a dos autos, se destinem a apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (cfr. artº 4º, nº 4, al e) do ETAF).
Tal norma é aplicável a ação instaurada antes da sua entrada em vigor - como a presente - tendo em conta o disposto no artº 38º, nº 2 da L.O.S.J. (conjugado com os artºs 211, nº 1 e 212º da C.R.P.), sendo um caso de modificação de direito relevante, em que o legislador teve a intenção manifesta de pôr termo a inúmeros conflitos de competência, excluindo da jurisdição administrativa e fiscal a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais e, “concomitantemente, tornar clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
Já Alberto dos Reis ensinava: “propôs-se uma ação no tribunal comum, incompetente para ela, em razão da matéria, nesse momento; veio uma lei nova sujeitar ao foro comum as ações da natureza daquela de que se trata. Sendo este o estado de direito no momento em que a exceção de incompetência tem de ser julgada, quid juris?
A exceção não pode proceder. Veja-se o que sucederia se o tribunal comum fosse julgado incompetente. Absolvido o réu da instância, o autor teria de propor outra ação; e havia de propô-la necessariamente no tribunal comum, pois era esse o tribunal competente segundo a lei em vigor à data da proposição da nova ação. Seria absurdo que se declarasse incompetente o tribunal comum para, a seguir, o autor ter de propor nova ação perante o tribunal comum” (“Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. I, pág.117).
Sublinhe-se que a norma geral de competência tinha à época a seguinte redação: “ São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão judiciário a que a causa estava afeta, ou se deixar de ser competente em razão da matéria e da hierarquia”.
Compete, pois, aos tribunais judiciais a apreciação da presente causa, pelo que devem os autos prosseguir no tribunal recorrido.
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e julgando competente em razão da matéria o tribunal recorrido, devendo os autos aí prosseguir, se a tal nada obstar.
Custas do recurso pelo R..

Lisboa, 8 de outubro de 2020
Teresa Sandiães
Ferreira de Almeida
Alexandrina Branquinho