Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5366/21.6T8LSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
EXTRAVIO DA MERCADORIA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Para efeitos do artigo 29.º da CMR (afastamento da limitação da responsabilidade do transportador) a negligência grosseira/culpa grave é equivalente a dolo. Tendo em conta os últimos desenvolvimentos, o mais que se pode defender actualmente é que essa culpa tem de ser uma culpa grave consciente (uma falta indesculpável).

II. Demonstra (por presunção natural ou judicial) actuação com culpa grave (e consciente / indesculpável), o facto de o transportador não dar qualquer explicação para o que sucedeu à mercadoria (para além de que ela se tinha extraviado).
III. Não sendo aplicáveis nenhuma das alternativas do artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, da CMR, a indemnização deve ser fixada com equidade, por força do art.º 566.º/3 do CC.

IV. Contribui com culpa para o dano, o expedidor que contrata o transporte da mercadoria sem dizer nada quanto ao seu valor e paga pelo transporte 106,89€, quando a mercadoria pode atingir o valor de 17.330€. Neste caso a indemnização não deve ser fixada, ao abrigo do artigo 570.º do CC, com equidade, em mais de 10 vezes o valor que resulta do artigo 23º/3 da CMR.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

B - Unipessoal, Lda, intentou a presente acção declarativa comum contra T- Unipessoal, Lda, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe 17.330€, acrescida dos correspondentes juros de mora legais à taxa de 5% a contar da data da reclamação escrita à ré, ou seja, desde o dia 07/04/2020, até efectivo e integral pagamento, cfr. 27/1 da CMR; mais 106,89€ a título de reembolso do valor do transporte que não foi cumprido.
Para tanto alega, em síntese, que contratou com a ré o transporte de uma encomenda, contendo dois equipamentos de uso médico, para a Alemanha. Contudo, uma vez que o destinatário não a recebeu no prazo esperado, a autora contactou a ré que, depois de diligências várias, admitiu o extravio da mercadoria. A ré propôs pagar uma indemnização de 286€, o que a autora não aceita, porquanto entende ter direito ao valor da mercadoria transportada, que totalizava 17.330€, equivalente ao custo da mercadoria nova. A actuação da ré no transporte, cujos pormenores desconhece, constitui culpa grave, pelo que não há lugar à aplicação de qualquer limite da responsabilidade do transportador.
A ré contestou, invocando a limitação da sua responsabilidade, (art.º 23 da CMR) que não poderá ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta, de acordo com a convenção aplicável. Para além disso, disse desconhecer o conteúdo da encomenda transportada, o seu valor e estado de conservação.
A autora foi convidada a responder à matéria da excepção, o que fez, reiterando a argumentação (art.º 29 da CMR) que já tinha deduzido na petição.  
(utilizou-se até aqui, no essencial, o relatório da sentença recorrida)
Depois de realizada a audiência final foi proferida sentença condenando a ré apenas no pagamento à autora de 261,39€, que já incluiu o preço do transporte (106,89€) e 1,81€ de juros.
A autora recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por acórdão que julgue procedente os pedidos deduzidos pela autora -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - Face à matéria de facto dada como assente e provada nos autos, o tribunal a quo errou ao entender que, por não se encontrar demonstrado o dolo da transportadora ré, se aplica a limitação de responsabilidade prevista no artigo 23/3 da CMR.
2ª - Está em causa o incumprimento de um contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias, celebrado entre a autora e ré segundo o qual esta obrigou-se ao transporte de dois equipamentos, da propriedade da autora, por via terrestre, que foram recolhidos nas instalações da sede da autora (no dia 09/03/2020) e que deveriam ter sido entregues na Alemanha, mas que na realidade não chegaram ao destino, por terem sido extraviados.
3ª - Nos termos do disposto no artigo 17/1 da CMR, aplicável ao caso em apreço, o "transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim, como pela demora na entrega".
4ª - De acordo com o art.º 17/2 da CMR "o transportador só fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar".
5ª - A ré, em momento algum, alegou e muito menos comprovou que a perda decorreu de alguma das circunstâncias enunciadas no artigo 17/2 da CMR e, tal como dispõe o artigo 18 da CMR, era sobre ela que recaia o ónus de fazer essa alegação e prova.
6ª - A ré não alegou um só facto relativo às circunstâncias da perda, desconhece-se por completo o que sucedeu à mercadoria, bem como desconhece-se quais as medidas que a ré se rodeou para que tal não sucedesse e nem tão pouco a ré sequer arguiu uma justificação para o sucedido extravio.
7ª - Está em causa, no contrato de transporte, uma obrigação de resultado, por parte do transportador, bastando a demonstração pelo credor – expedidor – da não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria no destino, para se estabelecer o incumprimento do devedor -transportador.
8ª - Encontra-se demonstrado nos autos, que pese embora a ré tenha recolhido a mercadoria nas instalações da autora, a mesma desapareceu in itinere.
9ª - Impendia sobre a ré o dever de custódia, guarda e conservação da mercadoria.
10ª - O extravio da mercadoria em causa nos autos revela um elevado grau de incúria no cumprimento desse dever que se inscreve na esfera jurídica de entidades como a ré que se dispõem profissionalmente a realizar a deslocação geográfica de bens.
11ª - A autora demonstrou a não entrega da mercadoria no destino, tal como resulta do facto K: “A ré extraviou a mercadoria que lhe foi confiada para ser entregue ao destinatário na Alemanha, não tendo fornecido à autora qualquer explicação para o que sucedeu."
12ª - A ré não fez prova de circunstâncias que não podia evitar ou cujas consequências não podia obviar, de modo a excluir ou limitar a sua responsabilidade.
13ª - Com efeito, apesar de não haver elementos que permitam afirmar que o extravio da mercadoria se possa enquadrar numa falta considerada dolosa, na qual se possa apontar a intencionalidade inerente a esse tipo de imputação, o que é certo é que não se pode deixar de qualificar a falta como culpa grave.
14ª - A limitação da indemnização, decorrente do regime previsto no mencionado artigo 23 da CMR não ocorre se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, nomeadamente segunda a lei portuguesa, seja considerada equivalente ao dolo, atento o disposto no artigo 29/1 da CMR.
15ª - Como reza [o acórdão] do STJ de 12/10/2017, “Face ao regime português que equipara o dolo a mera culpa, para efeitos de responsabilidade contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a reparar integralmente os danos sofridos pelo expedidor. Nesta conformidade, a ré, ainda que possa não ter agido com dolo, não pode aproveitar-se da limitação da indemnização prevista nos artigos 23 e 24 da CMR, pois que, sendo o incumprimento do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada imputável, a título de culpa, responde pelos prejuízos causados ao expedido, nomeadamente nos termos previstos no 17/1 da CMR.”
16ª - Pelo que, de acordo com a culpa grave da ré, resultante do elevado grau de incúria no cumprimento da prestação de serviços, sem que tivesse sequer logrado uma explicação para o sucedido, limitando-se a assumir que após buscas não conseguiu localizar a mercadoria, ou seja, nem sequer conseguiu apurar as circunstâncias do extravio, as quais são desconhecidas, está afastado o regime especial de indemnização, previsto no artigo 23 da CMR.
17ª - Deste modo, a autora tem o direito ressarcitório que vem estipulado no artigo 562 do CC, ou seja, a reconstituição da situação em que a autora se encontrava se não fosse a lesão, o que equivale ao montante necessário para adquirir equipamentos equivalentes, ou seja, tal como peticionado na ação tem direito à quantia peticionada de 17.330€, acrescida dos juros de mora à taxa de 5 %, desde a data da reclamação escrita - 07/04/2020 – até efetivo e integral pagamento, de acordo com o art.º 27/1 da CMR.
18ª - A sentença recorrida, ao limitar a responsabilidade da ré nos termos previstos no artigo 23/3 da CMR, fez uma incorreta aplicação do direito aos factos, violando, entre outros, o disposto nos artigos 17, 18 e 29 da CMR.
A ré contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso. Na parte da resposta, a ré, no essencial, segue a posição da sentença, que, por sua vez, no essencial, seguiu a sua contestação, onde ela, com argumentos já muito vistos na jurisprudência e doutrina que segue, defende que a culpa grave não pode ser equiparada ao dolo para efeitos do art.º 29 da CMR, com apelo, para além de ao regime interno, do Decreto-Lei 239/2003, principalmente à posição de José Luís Saragoça, A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias e o dolo ou falta equivalente ao dolo”, Temas de Direito dos Transportes (coord. M. Januário da Costa Gomes), vol. III, Coimbra, Almedina, 2015), segundo o qual “o segmento final do artigo 29.º que se refere a ‘falta equivalente ao dolo’ só é de aplicar nas jurisdições em que a noção de dolo não seja conhecida” (págs. 425 a 428), o que não é caso de Portugal. Invoca ainda o abuso de direito da autora.
Na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, a ré apresenta as seguintes conclusões:
i. A ré considera que o tribunal a quo não deu como provados factos que resultam efectivamente do julgamento e discussão da causa, com referência a todas as soluções plausíveis de Direito.
ii. Segundo as regras de repartição do ónus da prova, a autora não só não provou que a ré sabia do valor da mercadoria, como a própria ré, que nada lhe competia sobre a prova desta matéria, provou que nada sabia sobre as características, o valor e o estado de conservação da mercadoria transportada, ou seja, fez a prova negativa.
iii. Com referência ao alegado no artigo 55 da contestação, resulta claramente de toda a prova produzida e, designadamente, dos depoimentos das testemunhas TC e DC, que a ré não tinha conhecimento do valor real da mercadoria transportada e do seu estado de conservação.
iv. Assim, deve ser aditado aos factos provados, a seguinte factualidade: “A ré não tinha conhecimento das características das mercadorias que estava a transportar, o valor das mesmas e o respectivo estado de conservação.”
v. Esta factualidade é relevante na medida em que a ré conseguiu ir além daquilo que lhe era exigido segundo as regras de repartição de ónus da prova, tendo logrado fazer uma prova negativa, a qual sempre terá de ser tida em consideração no momento de analisar a conduta negligente da autora, que nada referiu acerca das características, do valor e do estado de conservação da mercadoria transportada.
vi. Essa conduta omissão da autora (dever de informar/declarar) releva para efeitos de negligência contributiva para a verificação dos danos ocorridos, aí se verificando um nexo de causalidade entre essa omissão e o valor dos mesmos.
vii. Assim, jamais pode ser exigido à ré uma indemnização pelo valor total da mercadoria extraviada, devendo ser aplicada, conforme julgado pelo tribunal a quo, a regra da limitação da responsabilidade constante do artigo 23 da CMR.
A autora não respondeu.
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Questões que importa decidir: se a ré devia ter sido condenada nos pedidos, no essencial por não dever beneficiar das limitações da responsabilidade previstas no art.º 23 da CMR, por força do art.º 29 da CMR; e a da impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pela ré ao abrigo do art.º 636/1 do CPC.
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Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão destas questões [o ponto 4 foi agora aditado, tendo em conta o resultado da impugnação da decisão da matéria de facto que consta do requerimento de ampliação do objecto do recurso, que consta das contra-alegações da ré]:
A) A autora é uma pessoa colectiva que se dedica à comercialização, distribuição, importação e exportação de equipamentos médicos e acessórios e equipamentos de fitness.
B) A ré dedica-se ao transporte de mercadorias.
C) No seguimento de solicitação da autora, em 09/03/2020, a ré, no exercício da sua actividade e conforme acordado, procedeu ao carregamento da encomenda nas instalações da autora […] sitas […no] concelho de Odivelas, […], com destino à Alemanha (morada: […] Erlangen […]), por via terrestre, tendo recebido a carta de porte n.º 000000000.
D) A ré cobrou, pelo transporte da mercadoria, o montante de 106,89€, tendo emitido a respectiva factura, com o número FT 003/0000000 na qual se identifica o peso declarado da mercadoria de 15kg.
E) Na ausência de informação acerca da encomenda, a autora enviou e-mail, datado do dia 07/04/2020, dando conhecimento que a encomenda não havia chegado ao destinatário e solicitando saber o seu paradeiro.
F) Em resposta, no dia 07/04/2020, a ré disse ter envolvido o departamento responsável para ajudar na resolução do caso.
G) Nesse mesmo dia 07/04/2020, a autora recebeu um e-mail da ré, solicitando informações para ajudar a busca, tendo a autora respondido, pelo e-mail junto como documento 6, enviando fotos do volume.
H) Posteriormente, em 23/04/2020, a ré acabou por comunicar à autora que, após buscas, não conseguiu localizar a mercadoria.
I) Nesse seguimento, a autora apresentou nova reclamação através do site da ré, tendo junto todos os elementos solicitados, incluindo a factura de aquisição dos equipamentos.
J) Após várias interpelações, a ré, no dia 28/05/2020, volta a mencionar que não consegue encontrar a encomenda e que ao até ao final do dia seguinte daria uma resposta definitiva quanto ao extravio.
K) A ré extraviou a mercadoria que lhe foi confiada para ser entregue ao destinatário na Alemanha, não tendo fornecido à autora qualquer explicação para o que sucedeu.
L) Por e-mail datado de 29/05/2020, a ré propôs à autora pagar-lhe indemnização de 286€, solicitando o envio de factura no referido valor.
1. A mercadoria cujo transporte a autora solicitou à ré consistia em dois equipamentos, designados LinScan diode laser e Foot Switch. 2. A autora adquiriu tais equipamentos em 26/09/2018, no estado de novos, à empresa G o linScan diode laser e seus acessórios pelo valor de 17.000€ e o foot switch pelo valor de 330€.
3. Os equipamentos foram entregues à ré em bom estado, sem danos ou anomalias visíveis e a sua expedição para a destinatário G tinha como finalidade a revisão dos mesmos.
4. A ré não tinha conhecimento das características das mercadorias que estava a transportar, o valor das mesmas e o respectivo estado de conservação.     
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Apreciação:
Como diz a sentença recorrida, o contrato celebrado entre as partes é um típico e nominado contrato de transporte, oneroso, ou seja, aquele pelo qual o transportador se obriga, perante outrem a transportar determinada coisa até um determinado local de destino, ao qual se aplica a Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR), celebrada em Genebra em 19/5/1956, aprovada por adesão pelo Decreto-Lei 46235 de 18/03/1965, alterada pelo Protocolo de Genebra de 05/07/1978, aprovado para adesão pelo Decreto-Lei 28/88 de 06/09, e pelo Protocolo Adicional, sobre a declaração de expedição electrónica, de 20/02/2008 (aprovado pelo Decreto 20/2019, de 30/07 - este último sem interesse para o caso dos autos), já que o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes.
Este contrato implica para o transportador, para além do dever de deslocação/transporte, os deveres de protecção e de segurança e de custódia das mercadorias (este quando existe – e existe quase sempre, como no caso dos autos – a transferência da detenção material da mercadoria para o transportador), incluídos por alguns nos deveres principais e por outros em deveres acessórios (seguiu-se Nuno Manuel Castello-Branco Bastos, Direito dos transportes, IDET, cadernos, n.º2, 2004, Almedina, páginas 47 a 50).
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A constituição da responsabilidade
O art.º 17/1 da CMR dispõe: O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega.
O art.º 17/2 da CMR trata de “cláusulas liberatórias de responsabilidade” ou seja, que desobrigam o transportador dessa responsabilidade; e o art.º 17/4 da CMR trata dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos que enumera que isentam o transportador daquela responsabilidade [factos liberatórios também excludentes da responsabilidade], tudo, grosso modo (não é necessário mais, visto o que se segue), com o ónus de alegação e prova do transportador, como decorre especialmente dos artigos 17 e 18 da CMR (utilizaram-se as expressões de Castello-Branco Bastos, obra citada, páginas 94-96, e do Professor M. Januário da Costa Gomes, no comentário ao ac. do STJ de 12/10/2017 (ou o persistente alheamento do STJ relativamente ao regime específico do CMR, publicado na Revista de direito das sociedades, 2018/3, pág. 620).
No caso a ré nada alegou no sentido do preenchimento da previsão daquelas cláusulas e factos, pelo que não fica desobrigada ou isenta da responsabilidade que decorre do art.º 17/1 da CMR.
Neste sentido vai a sentença recorrida, embora fale numa presunção de culpa da ré, não ilidida pela ré, quando é preferível falar numa presunção de responsabilidade. Neste sentido, Castello-Branco, obra e local citados, e Januário da Costa Gomes, obra citada, pág. 612: “[…] a presunção que ressalta do regime do artigo 17.º da CMR não é de simples culpa, mas, mais amplamente, de responsabilidade […]; no sistema da CMR, o facto de não ser ilidida a presunção resultante do artigo 17.º/1 não significa que o transportador seja culpado: significa, antes, que é responsável […].”                
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A limitação da responsabilidade
O art.º 23 da CMR, nos seus n.ºs 1 e 2, diz como é que a indemnização pela perda total ou parcial da mercadoria será calculada e o seu n.º 3, na redacção introduzida pelo Protocolo de 1978 acrescenta que “a indemnização não poderá, porém, ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta.”
Trata-se de uma limitação da responsabilidade estabelecida em benefício do transportador.
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A perda do benefício da limitação
Ora, quanto a isto, o artigo 29/1 da CMR dispõe: “O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.”
Sendo evidente, no caso dos autos, que não se provou que o dano provenha de dolo, agora importa apenas apurar se se pode dizer que estão provados os factos que preenchem a 2.ª alternativa do art.º 29/1 da CMR, isto é, se se pode dizer que o dano provém de culpa que seja imputável à ré, culpa essa que, segundo a lei portuguesa, seja de considerar equivalente ao dolo.
A ré e a sentença recorrida entendem que para a lei portuguesa nenhuma situação de falta de cumprimento negligente, mesmo que com culpa grave ou negligência grosseira, é equiparável ao dolo (com base na consideração genérica de “que o brocardo latino culpa lata dolo aequiparatur não se mantém vigente no [nosso] direito actual” (neste sentido, o acórdão do STJ de 18/09/2018, processo 4051/10.9TBPTM.E1.S1 e já antes o acórdão do STJ de 06/07/2006, processo 06B1679). Pelo que, excepto se estiver provado o dolo, o transportador beneficia sempre da limitação da responsabilidade (diz a sentença: “Resta-nos, por isso, concluir que apenas o dolo do transportador permitirá a reparação integral dos danos advenientes da perda da mercadoria.” – 1.º§ da página 10 da sentença). Se o expedidor da mercadoria se queria proteger deste regime, isto é, conseguir obter uma indemnização calculada nos termos do art.º 23/1-2 da CMR ou uma indemnização superior, tinha ao seu dispor ou declarar ao transportador o valor da mercadoria ou um interesse especial na entrega, nos termos previstos nos artigos 23/6 e 24 e 26 da CMR, ou celebrar um contrato de seguro (neste sentido, a sentença invoca os acórdãos do STJ de 11/03/1999, proc. 99B097; de 06/07/2006, proc. 06B1679; de 17/05/2001, este publicado na CJSTJ, tomo II, páginas 91-92; do TRG de 01/10/2015, proc. 3381/11.7TBGMR.G1; do TRP de 05/01/2009, proc. 0856797; do TRP de 29/10/2009, proc. 982/07.1TVPRT.P1 [revogado pelo ac. do STJ de 29/04/2010, proc. 982/07.1TVPRT.P1.S19, que considerou a situação como de dolo eventual]; do TRL de 24/06/2010, proc. 7298/05.6TCLRS.L1-2; e do TRP de 25/10/2012, proc. 9268/07.0TBMAI.P1 [foi revogado pelo ac. do STJ de 15/05/2013, proc. 9268/07.0TBMAI.P1.S1).
Parte da jurisprudência segue uma segunda posição, oposta àquela: o dolo e a negligência, na lei portuguesa, são ambas formas de incumprimento culposo das obrigações, pelo que a negligência (mesmo que leve) seria, para efeitos do art.º 29 da CMP, equiparável ao dolo (neste sentido, a sentença recorrida refere os acórdãos do STJ de 14/06/2011, proc. 437/05.9TBANG.C1.S1, e de 05/06/2012, proc. 3303/05.4TBVIS.C2.S1, para além do acórdão do STJ de 12/10/2017, proc. 4858/12.2TBMAI.P1.S1).
Uma terceira corrente, seguida pela autora, entende que a lei portuguesa equipara ao dolo a culpa grave do transportador, pelo que, provando-se esta, o transportador não beneficia da limitação da responsabilidade (ac. do STJ de 15/05/2013, proc. 9268/07.0TBMAI.P1.S1; de 30/04/2019, proc. 613/13.0TVPRT.P1.S1: VI - Resultando dos factos provados que a conduta do motorista/transportador foi “grosseiramente negligente ou temerário”, é inaplicável ao caso a limitação de responsabilidade constante do art. 23/3 da CMR, dado que, mesmo considerando que a lei portuguesa não equipara necessariamente o dolo e a negligência para efeitos de cálculo de indemnização na responsabilidade contratual, o carácter “grosseiramente (…) temerário” da conduta (grau de culpabilidade) exclui a possibilidade de redução da indemnização (art.º 494 do CC); no mesmo sentido, a autora invoca o ac. do TRL de 10/09/2020, proc. 571/18.5T8MFR.L1-8, em que também não se apuraram “quais as concretas circunstâncias em que tal extravio ocorreu; […] não se consegue perceber não só como tal extravio aconteceu, e muito menos que não logre a própria ré aventar uma explicação para o sucedido” e em que se afastou a limitação da responsabilidade com base na culpa grave da transportadora).
Em qualquer destes casos, o ónus da prova dos factos que permitam a conclusão de que se verifica o dolo, uma culpa grave ou negligência grosseira ou mesmo uma culpa leve cabe sempre ao expedidor, como factos impeditivos do direito do transportador ao benefício da limitação da responsabilidade (art.º 342/2 do CC; com desenvolvimento da questão, veja-se João Ricardo Branco, A conduta antijurídica do transportador e a preclusão da limitação de responsabilidade, Temas de Direito dos Transportes I, Almedina, Coimbra, 2010, páginas 376-380; no mesmo sentido, Januário da Costa Gomes, na obra citada, pág. 610, fala na “circunstância impeditiva (designadamente) da limitação de responsabilidade” e mais à frente, na pág. 613, diz que “a perda do direito à limitação vai exigir uma nova etapa, cabendo ao interessado a prova de factos que demonstrem não ser o transportador merecedor da limitação […]” – segundo a sentença o ónus da prova cabe à autora porque considera que se trata de o expedidor demonstrar o direito à reparação integral, ou seja, um facto constitutivo, o que leva à aplicação do art.º 342/1 do CC).
Para a sentença recorrida, como a autora “não alega quaisquer factos que permitam qualificar o incumprimento da ré como doloso” e é exigível o dolo, e, mesmo que se seguisse a terceira corrente, entende que com “o simples facto de a mercadoria ter sido perdida” “não se poderia presumir uma “culpa grave (como se essa ocorrência só se pudesse dever a uma conduta grosseiramente negligente)”, tal implica que o transportador não perde, no caso dos autos, o benefício da limitação da responsabilidade.
A sentença, entretanto, admite que “a alegação de tais factos [seria] difícil para a autora, face à ausência de explicações por parte da ré […]”.
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O dever de esclarecimento do transportador
O Prof. Januário da Costa Gomes, no já citado comentário ao acórdão do STJ de 12/10/2017, páginas 609-620, especificamente pág. 613, nota 9 e texto correspondente, lembra que:
“Naturalmente […] a prova exigida [ao interessado, ou seja, a prova de factos que demonstrem não ser o transportador merecedor da limitação] não pode ser diabólica, estando o transportador em melhores condições para esclarecer os factos, razão pela qual sustenta Jesser-Huss, in Münchener Kommentar zum Handelsgesetzbuch, 7, cit., p. 1140 e ss., impender sobre o transportador um dever de esclarecimento, um “prozessuale Aufklärungspfl icht”; cf. também, Koch/Shariatmadari, Internationaler Strassentransport (CMR), cit., p. 442 e ss. e, com referência ao § 435 HGB, Hubert Widmann, Kommentar zum Transportrecht, 3.ª edição, Luchterhand, Darmstadt, 1999, p. 53 e ss.. Entre nós, cf. João Ricardo Branco, estudo já citado, páginas 376 e ss..” Na nota 10 acrescenta: “Cf., v. g., Alfredo Antonini, Corso di Diritto dei Trasporti, cit., pp. 298-299, acentuando o facto de o regime normal da limitação não poder “premiar” o transportador em certas situações.”
João Ricardo Branco, no estudo citado, depois de nas páginas 376 a 380 desenvolver a questão, conclui na pág. 380:
“[…] a solução quanto à repartição do ónus da prova não deve ser desligada da defesa de uma apreciação abstracta da conduta do transportador. Assim se equilibram minimamente os interesses em presença: de um lado, as dificuldades de prova do lesado são atenuadas por um julgamento tendencialmente objectivo da conduta do transportador; do outro, para se fazer valer dos tectos indemnizatórios estabelecidos na lei bastará ao transportador invocar as respectivas normas, nada mais tendo de provar.”
E quanto à apreciação objectiva da conduta tinha dito nas páginas 373 a 375:
“[…] na apreciação in abstracto a conduta do transportador deve ser apreciada em termos objectivos, apelando ao grau de diligência de um bom transportador e lançando mão da lógica dos normais padrões profissionais.
A apreciação in abstracto tem por efeito, como facilmente se percebe, alargar o sistema de preclusão da limitação da responsabilidade, pois bastará provar que o transportador não cumpriu os graus mínimos e exigíveis de diligência e que um transportador minimamente atento teria verificado que a sua actuação se apresentava vedada pelo ordenamento jurídico.
A justificação deste tipo de concepção ancora-se, por um lado, no exponencial avanço e desenvolvimento do ramo dos transportes, com uma redução significativa dos perigos associados e com o elevado grau de profissionalização do sector. Deste modo, o transportador apenas deverá poder limitar a sua responsabilidade se ficar demonstrado que cumpriu os parâmetros de diligência exigíveis. Sustenta-se, inclusivamente, a este respeito que a possibilidade do transportador limitar a sua responsabilidade se apresenta como uma hipótese excepcional, que só deverá beneficiar o transportador bom e diligente. Por outra banda, faz-se notar que a prova do animus do transportador se afigura extremamente difícil.”
E adopta, na pág. 376, a seguinte posição:
“[…] o certo é que se impõe hoje uma apreciação de tipo tendencialmente abstracto, apelando à diligência profissional.
Nos casos em que estiver em causa uma conduta temerária do transportador, impõe-se, com especial intensidade, fixar o carácter censurável dessa conduta à luz de critérios normativos, dados os valores em presença. De facto, seria manifestamente chocante e disforme com o sistema de responsabilidade do transportador que este se pudesse fazer valer dos limites de responsabilidade naquelas situações em que a sua conduta objectivamente apreciada não condiz com os patamares de diligência que passageiros e carregadores podem normalmente esperar.”
Em suma:
O transportador tem, pelo menos, de alegar o que é que se passou com a mercadoria. Ao fazê-lo, dá ao expedidor as bases necessárias para que possa fazer a investigação dos factos que lhe permitam alegar que o transportador agiu com culpa grave, sem adoptar os cuidados precisos para evitar a perda/destruição, total ou parcial, da mercadoria. Se não o fizer, isto é, se o transportador não cumprir aquele dever de esclarecimento mínimo, tem de se concluir, por presunção judicial (art.º 349 do CC), que ele não actuou de forma minimamente diligente. Pois só um transportador completamente despreocupado com as mercadorias, isto é, com os interesses das suas contra-partes, é que nem sequer é capaz de dizer o que é que se passou com as mercadorias; se não fosse assim, teria organizado a sua empresa e o transporte de mercadorias de modo a ter o mínimo de conhecimento do que é que se passava com elas. O sistema de responsabilidade do transportador não está pensado para proteger este tipo de transportador que não cumpre minimamente com os padrões de diligência exigíveis. Os expedidores, quando contratam o transporte da mercadoria, estão à espera que os transportadores tenham a sua empresa organizada de tal modo que possam, pelo menos, ter conhecimento do que é que se passa com as mercadorias.
Conclui-se, assim, que no caso a ré não deve poder beneficiar do limite à sua responsabilidade porque, face à ausência de qualquer explicação para o desaparecimento da mercadoria (factos H, J e J), demonstra que não tem a sua empresa organizada de modo a cumprir os parâmetros de diligência exigíveis, nem os cumpriu no caso dos autos.
*
Neste sentido, a Profª Drª Elena Orrù, PhD 2007 UniBO, Tenured Assistant Professor in Maritime and Transport Law, Department of Legal Studies Adjunct Professor of Transport Infrastructures Law, School of Engineering and Architecture, Campus of Ravenna, Alma Mater Studiorum – University of Bologna, na parte da sua participação no estudo sobre o Article 29 CMR overview countries, publicado em Tijdschrift Vervoer & Recht 2017-3, sobre ITALY - The Interpretation and Enforcement of Article 29 CMR in the Italian Law, lembra (pág. 83 nota 80) que o Tribunal de Roma numa sentença de 11/05/2016 [com um comentário de F. Berlingieri, ‘L’incapacità del vettore di individuare il tempo e il luogo in cui si è verificata la sottrazione di parte delle merci trasportate costituisce colpa grave?, ambos publicados na Rivistti Diritto Maríttimo, 2016, II, páginas 322-323], considerou como um caso de culpa lata, equivalente ao dolo, a falta de entrega das mercadorias sem se poder apurar qualquer motivo para isso.
A resenha da sentença e o comentário de F. Berlingieri são os seguintes [não estão em acesso livre na internet; foram fornecidos graciosamente, a pedido, pelo Dr. Giorgio Berlingieri da Revista em causa; por isso transcrevem-se a seguir às respectivas traduções, que, aqui como em cima e em baixo, foram feitas pelo relator deste acórdão, informalmente, tendo como base de trabalho a ferramenta de tradução do Google]:
“Transporte terrestre; Não entrega de parte da carga; Falha grave da transportadora; Existe na ausência de explicação quanto à sua causa
Em fevereiro de 2011, a Fábrica de Calçados Agostini comissionou a Speed ​​Service International S.r.l. para cuidar do envio aos compradores de diversos bens que lhes tinha vendido. Em execução do encargo que lhe foi conferido, a Speed ​​Service celebrou um contrato de transporte com a SDA Express Courier. Uma vez que algumas destas mercadorias não chegaram ao seu destino, a Speed ​​Service indemnizou a Fábrica de Calçados Agostini pelos danos sofridos e, por sua vez, obteve junto da sua seguradora, Alleanzatoro S.p.a. o reembolso do valor pago. Esta última, agindo em sub-rogação nos termos do art. 1916 CCit, demandou a SDA Express Courier perante o Tribunal de Roma, pedindo que fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização.
A falta de entrega de parte da mercadoria transportada, para a qual o transportador não especificou a causa, implica a sua responsabilidade por culpa grave, com a consequente exclusão do limite de responsabilidade previsto no primeiro parágrafo do artigo 1696 do Código Civil italiano.
Constitui culpa grave a impossibilidade do transportador identificar a hora e o local onde ocorreu a retirada de parte da mercadoria transportada?
A exclusão da limitação da indemnização prevista no § 2º do art.º 1696 CCit tem sido objecto de inúmeras decisões, quase sempre relacionadas com casos em que foram apuradas as causas da deslocação dos bens e foram imputáveis ​​à falta de guarda diligente dos bens. Ver a resenha no final da sentença do Tribunal de Milão 29 de dezembro de 2010, nesta Revista, 2012, 553. A avaliação da culpa grave da transportadora com base no facto de que a transportadora não conseguiu explicar a causa da não entrega das mercadorias transportadas ou parte delas tem em qualquer caso pelo menos um precedente, e esse é o decidido pelo Tribunal de Apelação de Milão com sentença de 20 de janeiro de 2009, Traini e Torrisi S.p.a. c. Lloyd's de Londres 17 de novembro de 2009, nesta Revista, 2011, 910, no qual o Tribunal de Apelação declarou que a culpa grave do transportador estava implícita na própria falta de identificação das circunstâncias da perda da mercadoria, que o Tribunal considerou comprovar o incumprimento pelo transportador do dever de guarda e a própria inexistência de um controlo efectivo sobre a própria localização das mercadorias após a sua entrega ao transportador.
O raciocínio do Tribunal de Roma no acórdão ora em análise é muito semelhante, ainda que apresentado de forma menos clara. Com efeito, depois de ter afirmado que o transportador não esclareceu de forma alguma em que circunstâncias ocorreu a perda da mercadoria, nem quais foram as causas, a sentença examina as circunstâncias que levaram à exclusão da prova do transportador da ausência de sua responsabilidade nos termos do art.º 1693 CCit, e continua afirmando: "Daí resulta que a perda das coisas transportadas... das quais o transportador nem sequer soube precisar as circunstâncias de tempo, nem as do lugar em que ocorreu a remoção implica ex se uma responsabilidade por culpa grave, sendo claro que a SDA Express Courier não adoptou qualquer medida adequada para evitar o risco de extravio da mercadoria transportada."
Esta conclusão é claramente independente da investigação realizada anteriormente e, portanto, não está relacionada com o disposto no art. 1693, mas com os do art. 1696 último parágrafo.
Não há dúvida de que a incapacidade do transportador de identificar as circunstâncias em que ocorreu a retirada de parte da carga pode ser considerada uma omissão "daquele grau mínimo e elementar de diligência observado por todos" (Cass. 19 de novembro de 2001, n.º 14456, Fabio Terreni v. Bertolturi Coluccini S.r.1., nesta Revista, 2003, 1300).
Por outro lado, pode perguntar-se se a causa foi suficientemente instruída, tendo em conta as características que a culpa grave deve ter. Embora o desconhecimento do transportador quanto ao momento e à forma como ocorreu a perda constitua um elemento de indiscutível relevância, pois implica que o transportador não cuidou adequadamente da guarda da mercadoria, contudo esta circunstância não parece ter sido devidamente comprovada. De facto, a sentença revela uma afirmação da autora segundo a qual "parte da mercadoria nunca chegou ao seu destino" e "a transportadora nunca apresentou qualquer justificação, nem contestou o incidente" e ainda a invocação por parte do transportador contratual da "ocorrência de um evento fortuito capaz de isentá-lo de qualquer responsabilidade". Parece não ter havido investigação preliminar e, portanto, a afirmação que lemos na sentença, segundo a qual a transportadora não soube precisar as circunstâncias de tempo ou local em que ocorreu o furto, parece basear-se na ausência de esclarecimentos a esse respeito na defesa escrita.”
F. BERLINGIERI
Trasporto terrestre; Mancata consegna di parte del carico; Colpa grave del vettore; Sussiste in assenza di spiegazione sulla sua causa
Nel febbraio 2011 il Calzaturificio Agostini incaricava la casa di spedizioni Speed Service International S.r.l. di curare la spedizione agli acquirenti di varie merci ai quali esso le aveva vendute e in esecuzione dell'incarico conferitole la Speed Service stipulava un contratto di trasporto con la SDA Express Courier. Poiché alcune di tali merci non erano giunte a destinazione, la Speed Service provvedeva a risarcire al Calzaturificio Agostini il danno subito e a sua volta otteneva dai propri assicuratori, Alleanzatoro S.p.a. il rimborso dell'importo versato. Quest'ultima, agendo in surroga ex art. 1916 cod. civ., conveniva in giudizio dinanzi al Tribunale di Roma la SDA Express Courier, chiedendone la condanna al risarcimento del danno.
L'omessa consegna di una parte delle cose trasportate, della quale il vettore non abbia precisato la causa, implica la sua responsabilità per colpa grave, con conseguente esclusione del limite della responsabilità previsto nel primo comma del’art.1696 cod. civ.
L'incapacità del vettore di individuare il tempo e il luogo in cui si è verificata la sottrazione di parte delle merci trasportate costituisce colpa grave?
L’esclusione della limitazione del risarcimento prevista dal secundo comma dell'art. 1696 cod. civ. è stata oggetto di numerose decisioni, quasi sempre relative a casi in cui le cause della sottrazione della merce erano state accertate ed erano imputabili alla mancata diligente custodia della merce. Si veda in argomento la rassegna in calce alla sentenza del Tribunale di Milano 29 dicembre 2010, in questa Rivista, 2012, 553. L'accertamento della colpa grave del vettore basato sul fatto che il vettore non era stato in grado di spiegare la causa della mancata consegna delle merci trasportate odi parte di esse ha comunque almeno un precedente, e cioè quello deciso dalla Corte d'Appello di Milano con sentenza 20 gennaio 2009, Traini e Torrisi S.p.a. c. Lloyd's di Londra 17 novembre 2009, in questa Rivista, 2011, 910, in cui la Corte d'Appello ha affermato essere la colpa grave del vettore implicita nella stessa mancata individuazione delle circostanze dello smarrimento della merce, che la Corte ha considerato dimostrare l'inadempimento da parte del vettore del dovere di custodia e l'assenza stessa di un efficace controllo sulla stessa collocazione dei beni dopo l'affidamento al vettore.
Il ragionamento fatto dal Tribunale di Roma nella sentenza ora in esame è molto simile, anche se esposto in maniera meno chiara. Infatti dopo avere premesso che il vettore non aveva in alcun modo chiarito in quali circostanze fosse avvenuto lo smarrimento delle merci, né quali ne erano state le cause, la sentenza esamina le circostanze che portavano ad escludere la prova da pane del vettore dell'assenza di una sua responsabilità in base all'an. 1693 cod. civ., e quindi continua affermando: "Ne consegue che la perdita della cose trasportate... di cui ìl vettore  non sia stato neanche in grado di specificare le circostanze di tempo, né quelle di luogo in cui la sottrazione si è verificata implica ex se una responsabilità per colpa grave, essendo di tutta evidenza che la SDA Express Courier non abbia adottato alcuna misura idonea a evitare il rischio della perdita della merce trasportata."
Questa conclusione è chiaramente indipendente dalla indagine in precedenza svolta e non è quindi collegata con le disposizioni dell'art. 1693, bensì con quelle dell'art. 1696 ultimo comma.
Non vi è dubbio che l'incapacità del vettore di individuare le circostanze in cui si è verificata la sottrazione di una parte del carico possa essere considerata una omissione "di quel grado minimo ed elementare di diligenza osservata da tutti" (Cass. 19 novembre 2001, n. 14456, Fabio Terreni c. Bertolturi Coluccini S.r.1., in questa Rivista, 2003, 1300).
Può peraltro chiedersi se la causa sia stata sufficientemente istruita, tenendo conto dei caratteri che deve rivestire la colpa grave. Sebbene l'ignoranza del vettore del tempo e del modo in cui l'ammanco si è verificato costituisce un elemento di indubbia rilevanza poiché implica che il vettore non ha curato in modo adeguato la custodia della merce, tuttavia questa circostanza non sembra essere stato provata in modo adeguato. Infatti dalla sentenza risulta una affermazione dell'attore secondo cui "parte della merce non era mai giunta a destinazione" e "la società di trasporto non aveva mai fornito alcuna giustificazione, né aveva contestato l'accaduto" e risulta inoltre l'invocazione da parte del vettore contrattuale della "ricorrenza di un evento fortuito idoneo a esonerarla da qualsivoglia responsabilità". Non risulta vi sia stata istruttoria e, quindi, l'affermazione che si legge in sentenza, secondo cui il vettore non è stato in grado di specificare le circostanze di tempo né quelle di luogo in cui la sottrazione si è verificata, sembra basarsi sulla assenza di precisazioni al riguardo nelle difese scritte.
A observação crítica à sentença do Tribunal de Roma, na parte final, não tem aplicação ao caso dos autos. A falta de explicação da ré, como resulta dos factos já referidos, existiu sempre, isto é, mesmo na fase extrajudicial.
A autora italiana citada acima lembra ainda um acórdão App. Milan, 20 January 2009, Dir. Mar. (2011), 919-920, com um comentário de N. Medica, ‘Autotrasporto di merce su strada: il furto, la colpa grave e “importanza di un’analisi approfondita della singola fattispecie concreta’ [na mesma revista páginas 942 a 953].
A resenha do acórdão do Tribunal de Apelação de Milão consta, na parte que importa, do seguinte [também fornecida graciosamente pela Revista citada]:
“A empresa Tod's vendeu calçado à empresa Trois Pommes em Zurique, confiando o transporte para o comprador à Traini & Torresi S.p.a. A embalagem que continha os sapatos, segurada pelo Lloyd's de Londres, não chegou ao seu destino sem que a transportadora pudesse esclarecer as circunstâncias em que ocorreu o seu desaparecimento. A Lloyd's, tendo indemnizado os danos, intimou a Traini & Torresi perante o Tribunal de Génova pedindo uma condenação no pagamento de uma indemnização pelos danos. A sentença […pelo] Tribunal de Milão […], proferida em 08/09/2005, […] condenou a Traini & Torresi a pagar uma indemnização pela totalidade dos danos. Com efeito, o Tribunal considerou que o prejuízo era imputável a culpa grave da transportadora.
Traini & Torresi propôs um recurso.
[...]
Há culpa grave do transportador, com a consequente inaplicabilidade do limite de indemnização, quando o transportador não conseguir identificar em que circunstâncias ocorreu a perda da mercadoria que lhe foi confiada para transporte.
[…]
Motivos da decisão.
[...]
A recorrente critica [...] a conclusão do tribunal recorrido que considerou a responsabilidade da transportadora como culpa grave, não operando, assim, a limitação especial de responsabilidade.
A razão é infundada.
[...]
Este Tribunal partilha integralmente [...] a motivação do acórdão impugnado, que identifica a prova da culpa grave do transportador no próprio facto da perda da mercadoria em data e local não especificados, conforme declarado pelo condutor da ré aos Carabinieri (ver documento Lloyd's nº 6).
Deve, pois, considerar-se que a autora provou cabalmente a existência de culpa grave do transportador, implícita na própria falta de identificação das circunstâncias da perda da mercadoria, o que demonstra o incumprimento do dever de guarda por parte do transportador, e a inexistência de um controlo efectivo sobre a mesma localização das mercadorias [...]
La Società Tod's vendeva alla Ditta Trois Pommes di Zurigo delle calzature incaricando del trasporto alla acquirente la Traini & Torresi S.p.a. Il collo contenente le calzature, assicurato con i Lloyd's di Londra, non giungeva peraltro a destinazione senza che il vettore potesse-chiarire in quali circostanze si era verificata la sua scomparsa. I Lloyd's, risarcito il danno, convenivano in giudizio la Traini & Torresi dinanzi al Tribunale di Genova chiedendone la condanna al risarcimento del danno. Il giudizio veniva quindi riassunto dinanzi al Tribunale di Milano il quale con sentenza depositata in data 8 settembre 2005, […] condannava la Traini & Torresi al risarcimento dell'intero danno. Il Tribunale infatti riteneva che la perdita fosse imputabile a colpa grave del vettore.
Proponeva appello la Traini & Torresi.
[...]
Sussiste la colpa grave del vettore, con la conseguente inapplicabilità del limite del risarcimento, quando il vettore non è in grado di individuare in quali circostanze è avvenuto lo smarrimento della merce affidatagli per il trasporto.
[…]
Motivi della decisione.
[...]
L'appellante censura in primo luogo la conclusione del primo Giudice che ha ritenuto la responsabilità per colpa grave del vettore, così non operando la speciale limitazione di responsabilità.
Il motivo è infondato.
[...]
Questa Corte condivide pienamente, anche a questo riguardo, la motivazione della sentenza impugnata, che individua la prova della colpa grave del vettore nel fatto stesso dell'avvenuto smarrimento della merce in data e luogo imprecisato, come dichiarato dall'autista della convenuta ai Carabinieri (cfr. documento n. 6 della Lloyd's).
Si deve dunque ritenere che l'attrice abbia pienamente provato l'esistenza della colpa grave del vettore, implicita nella stessa mancata individuazione delle circostanze dello smarrimento della merce, che dimostra l'inadempimento da parte del vettore al dovere di custodia, e l'assenza stessa di un efficace controllo sulla stessa collocazione dei beni dopo l'affidamento al vettore [...].
Deixe-se nota de que, contra estes dois acórdãos e respectivos comentários, a autora italiana citada refere outros dois e um comentário, que não se consultaram, por falta de acesso e de tempo e porque, na lógica do estudo, não são eles que representam a jurisprudência e doutrina dominantes em Itália: Cass., 13 October 2009, nº. 21679, Dir. Mar. (2011), 146, with comment by A. Frondoni, ‘Notarella su colpa grave vettoriale e diligenza professionale’; Cass., 15 April 2011, n.º 8732, Giustizia Civile (2012) I: 209.
Naquele mesmo artigo, agora na participação alemã, o Dr. Tobias Eckardt, na parte International conference 60 years CMR Rotterdam, 06./07.10.2016, Article 29 CMR, lembra que [não se cita o original, porque ele está disponível on-line através do link já colocado acima e por isso a tradução feita por este acórdão pode ser confrontada com o original]:
“Após a reforma da lei alemã dos transportes, para estabelecer a negligência grosseira passou a ser necessário provar uma violação muito grave do dever do transportador, ou seja, que este desrespeitou grosseiramente os interesses de segurança do remetente; e isto não é apenas um teste objectivo a ser cumprido, havendo também um lado subjectivo que exige que a pessoa que agiu/omitiu tenha percebido que a ocorrência do prejuízo era uma consequência provável desse acto negligente ou omissão.”    
Mas, a seguir, este autor lembra que:
“No entanto, essa mudança na situação legal do direito material foi efectivamente contrariada por um desenvolvimento na abordagem do direito processual.
O ónus secundário de alegar factos é um conceito universal do direito processual alemão. Portanto, não se limita aos casos CMR […].
Em geral, cabe ao demandante demonstrar que a transportadora agiu com negligência grosseira. No entanto, o remetente ou o destinatário da carga pouco ou nada saberá sobre como foi realizada a remessa específica. Por conseguinte, raramente estará em condições de alegar os factos necessários e apresentar as provas necessárias para estabelecer a negligência grave. Não fazer isso significaria que a responsabilidade da transportadora permanece limitada.
O Supremo Tribunal Federal estabeleceu firmemente que o princípio da boa-fé auxilia o demandante aqui. Nos casos em que uma parte obrigada a alegar os factos e a provar esses factos só pode fazer uma alegação genérica, enquanto a outra parte tem os factos relevantes à mão e pode facilmente divulgá-los, esta última está obrigada a fazê-lo.
Em consequência disso, compete ao demandante (apenas) apontar os aspectos do caso que fazem parecer pelo menos possível um transporte grosseiramente negligente por parte do transportador.
O ónus secundário de alegar os fatos obriga então o transportador a alegar (mas não provar!) os factos que envolvem o transporte. Uma vez recebidos esses factos, cabe ao demandante fazer uso deles para provar a sua pretensão de forma satisfatória para o tribunal. Portanto, não há inversão do ônus da prova.
Uma vez preenchidos os pré-requisitos para o ónus secundário de alegar os factos pelo demandante, o transportador demandado precisa definir em detalhe quais as medidas que foram tomadas para evitar um roubo ou dano para esse transporte específico. O transportador terá que explicar como essas medidas preventivas foram documentadas e é ainda obrigado a fazer suas próprias investigações sobre a perda e divulgar as conclusões ao demandante. A obrigação do transportador não se limita aos factos e acontecimentos que ele próprio presenciou. O transportador é também obrigado a apresentar os factos conhecidos ou na posse dos seus empregados e subcontratados. A razão por trás disso é que o transportador não deve fugir às suas obrigações subcontratando o transporte. O transportador é obrigado a detalhar as medidas de segurança em vigor de tal forma que o demandante e o tribunal possam ver como as diferentes medidas interagem na vida real de maneira ordenada, clara e confiável. Além disso, deve ficar claro quais as medidas foram tomadas para garantir que as medidas que deveriam ser tomadas de acordo com o planeamento foram de fato tomadas. Obviamente, o encargo secundário abrange apenas os aspectos relevantes para o caso. Se uma remessa foi roubada, o transportador não tem que dar detalhes sobre suas medidas de prevenção de incêndio.
[…]
Outro exemplo [German Supreme Court, judgement of 18 December 2008, I ZR 128/06]: após o desaparecimento de uma remessa durante o transporte, o réu informou o expedidor por carta informando simplesmente que “a carga estava danificada e o seu conteúdo totalmente destruído”. Mais tarde, o réu alegou que a carta era um texto normalizado e que, na realidade, o camião que continha as mercadorias foi roubado enquanto estava estacionado nas instalações do aeroporto de Linz. O réu alegou que a) o aeroporto estava rodeado por uma cerca alta de arame farpado, protegida por um portão e sob videovigilância e que b) as instalações eram patrulhadas por guardas à noite.
O Tribunal considerou que o réu não tinha fornecido pormenores completos sobre as medidas de segurança tomadas. O Tribunal estabeleceu que o réu também deveria ter fornecido informações sobre as questões de como o camião foi protegido contra roubo, se o portão foi arrombado ou aberto com chave, porque o CCTV não registrou a remoção do camião, com que frequência e com intervalos os guardas patrulhavam as instalações, o que era exactamente verificado pelas patrulhas e quem controlava os guardas. Além disso, o Tribunal esperava informações sobre a frequência com que os roubos ocorreram anteriormente e quais medidas foram tomadas para evitar mais perdas, bem como os nomes das pessoas envolvidas (motorista, guardas, etc.).
O Tribunal considerou que o réu era responsável de acordo com os artigos 17 e 29 CMR, uma vez que não se desincumbiu do ónus de demonstrar que foram tomadas medidas organizacionais suficientes para garantir a segurança das mercadorias transportadas. Isso, por sua vez, levou à constatação de que as medidas para impedir a perda das mercadorias eram tão insuficientes que eram grosseiramente negligentes.
Além disso, o Tribunal considerou que, uma vez que não só as primeiras informações prestadas pelo réu que relatavam o sinistro estavam incorrectas, mas que o réu também se tinha recusado a fornecer mais informações sobre o prejuízo, apesar de vários pedidos do autor, isso deu origem a uma presunção de uma organização grosseiramente negligente das operações de negócios do réu.”
Num post colocado a 03/07/2021, no blog do IPPC, sobre O "ónus de alegação secundário" do demandado: um caso concreto, o Professor Miguel Teixeira de Sousa chama a atenção para o seguinte:
“1. Na Alemanha encontram-se pendentes vários processos em que, no âmbito do chamado Dieselgate, compradores de automóveis, cujo software de controlo de emissões de gases de escape foi manipulado, pedem a restituição do preço pago contra a devolução do automóvel ao fabricante.
Num recente acórdão, o BGH (BGH 11/5/2021 (VI ZR 154/20)) reconheceu que sobre a parte demandada recai um "ónus de alegação secundário" quanto a saber de quem partiu a iniciativa da manipulação do software e se a administração da VW tinha conhecimento dessa manipulação.
2. No referido acórdão, o BGH diz, em concreto, o seguinte:
"13. a) É verdade que, em princípio, recai sobre aquele que faz valer uma pretensão baseada no § 826 BGB a totalidade do ónus de alegação e de prova dos factos constitutivos. [...]
14. Este princípio sofre, no entanto, uma restrição quando a parte primariamente onerada com o ónus de alegação não tem nenhum conhecimento próximo das circunstâncias relevantes e também não tem nenhuma possibilidade de qualquer outra investigação, enquanto a parte contrária conhece todos os factos essenciais e lhe é facilmente possível e exigível trazer informações mais próximas. Neste caso, recai sobre a parte contrária um ónus de alegação secundário (sekundäre Darlegungslast), no quadro do qual também lhe pertence realizar as investigações exigíveis. Se ela não cumprir o seu ónus de alegação secundário, a afirmação do demandante considera-se, segundo o § 138 par. 3 ZPO, confessada [...]
15. b) Segundo estes princípios, recai sobre a demandada o ónus de alegação secundário quanto às questões de saber quem nela tomou a decisão sobre a utilização do dispositivo de desactivação [para manipulação da emissão de gases de escape] e sobre se a sua administração tinha disso conhecimento."
Depois, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa tira consequências desta posição para a questão do ónus da impugnação no sistema jurídico português (art. 574/2 do CPC).
No caso, a exposição deste Professor importa para melhor compreensão do que é que é dito pela jurisprudência alemã, mas não é a aplicação ao regime da impugnação que agora interessa, mas a forma como a doutrina e jurisprudência estrangeira têm aplicado o art. 29/1 da CMR, legislação convencional, ou seja, o que é que é necessário para que se deva afastar o benefício da limitação da responsabilidade do transportador, exigindo deste que dê esclarecimentos ao expedidor (ou destinatário, no caso de ser este o interessado) do que é que aconteceu à mercadoria, tal como também resulta das posições do Januário da Costa Gomes e de João Ricardo Branco, sob pena de o facto de não o fazer naturalmente levar à presunção de que actuou com negligência grave.
Também importa ter presente, aquilo que este último autor lembra (páginas 350-351), ou seja, “que o preenchimento desta conduta típica [embora ele se esteja a referir a outra] não tem por função [aqui] estabelecer qualquer espécie de imputação objectiva/subjectiva, onde a diferença entre o dolo e negligência terá de pesar necessariamente mais. A conduta do transportador não serve [aqui] de critério de imputação: é valorada apenas no âmbito de um juízo de merecimento de um benefício: a limitação da responsabilidade.”
*
Da culpa equiparada ao dolo – culpa grave
Tudo o que antecede tem já como pressuposto (a jurisprudência italiana e alemã inequivocamente apontam no sentido de que há uma conduta do transportador que, apesar de não ser dolosa, deve ser equiparada a ela e que afasta a limitação da responsabilidade) que a única posição aceitável é a da jurisprudência da terceira corrente descrita acima.
O que se passa a demonstrar:
O art.º 29/1 da CMR diz que:
“O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.”
A expressão discutida acima não é a expressão legal relevante, mas apenas uma tentativa de tradução, pelo legislador português, de apenas uma das versões (a francesa) da CMR:
Ora, o que consta das duas versões é o seguinte (sendo que ambas versões são igualmente autênticas):
Na versão inglesa:
Article 29/1: The carrier shall not be entitled to avail himself of the provisions of this chapter which exclude or limit his liability or which shift the burden of proof if the damage was caused by his wilful misconduct or by such default on his part as, in accordance with the law of the court or tribunal seized of the case, is considered as equivalent to wilful misconduct.
Na versão francesa:
Article 29/1: Le transporteur n'a pas le droit de se prévaloir des dispositions du présent chapitre qui excluent ou limitent sa responsabilité ou qui renversent le fardeau de la preuve, si le dommage provient de son dol ou d'une faute qui lui est imputable et qui, d'après la loi de la juridiction saisie, est considérée comme equivalente au dol.
Segundo o art.º 33 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em 23 de Maio de 1969, aprovada, para adesão, pela Resolução da Assembleia da República n.º 67/2003, artigo esse dedicado à Interpretação de tratados autenticados em duas ou mais línguas:
1 - Quando um tratado for autenticado em duas ou mais línguas, o seu texto faz fé em cada uma dessas línguas, salvo se o tratado dispuser ou as Partes acordarem que, em caso de divergência, prevalecerá um determinado texto.
2 - Uma versão do tratado numa língua diferente daquelas em que o texto foi autenticado só será considerada como texto autêntico se o tratado o previr ou as Partes o tiverem acordado.
3 - Presume-se que os termos de um tratado têm o mesmo sentido nos diversos textos autênticos.
4 - Salvo o caso em que um determinado texto prevalece, nos termos do n.º 1, quando a comparação dos textos autênticos evidencie uma diferença de sentido que a aplicação dos artigos 31.º e 32.º não permita superar, adoptar-se-á o sentido que melhor concilie esses textos, tendo em conta o objecto e o fim do tratado.
Temos assim que não é o dolo/dol, sem mais, que está em causa, mas a conduta que também está subjacente ao wilful misconduct.
Ora, wilful miscondut, que corresponde a uma falha em que a vontade tem participação [a definição utilizada vem do artigo de João Ricardo Branco], abrange aquilo que nos sistemas continentais são condutas com dolo directo ou necessário, ficando de fora o dolo eventual, mas abrange também condutas levadas a cabo com culpa grave consciente, que não é dolo por não implicar a aceitação do dano (neste sentido, com desenvolvimento, João Ricardo Branco, estudo citado, páginas 338 a 341, e Nuno Manuel Castello-Branco Bastos, Direito dos transportes, IDET, cadernos, n.º2, 2004, Almedina, páginas 107 a 116).
Assim, se se interpretar o art.º 29/1 da CMR como querendo apenas abranger o dolo – como faz a ré e a sentença recorrida – está-se a deixar de fora as condutas incluídas na wilful miscondut que têm a ver com a culpa grave consciente, ou seja, deixa-se de fora uma das formas de comportamento do transportador que, inequivocamente, a vontade das partes contratantes da CMR quiseram incluir.
E não se dando utilização à frase ‘falta […] equiparada a dolo’ está-se a afastar todas as condutas negligentes graves que, nos sistemas continentais, são normalmente equiparadas a dolo ao menos no âmbito das regras gerais da limitação da responsabilidade.
Daí que, nas posições já citadas da Alemanha e da Itália, a consideração da culpa grave seja um pressuposto não discutido, por ser evidente.               
Ora, isto é suficiente para afastar quer a primeira corrente – porque só inclui o dolo esquecendo a culpa grave – quer a segunda corrente –porque inclui a culpa leve.
*
A jurisprudência de outros países partes na CMR
Segundo o artigo 31 da referida convenção sobre os tratados, relativo à regra geral de interpretação:
1 - Um tratado deve ser interpretado de boa fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respectivos objecto e fim.
2 - Para efeitos de interpretação de um tratado, o contexto compreende, além do texto, preâmbulo e anexos incluídos:
[…]
3 - Ter-se-á em consideração, simultaneamente com o contexto:
[…]
b) Toda a prática seguida posteriormente na aplicação do tratado pela qual se estabeleça o acordo das Partes sobre a interpretação do tratado;
[…]
4 - Um termo será entendido num sentido particular se estiver estabelecido que tal foi a intenção das Partes.
João Ricardo Branco, no estudo citado, defende que a remesa feita pelo art.º 29/1 da CMR para a “lei da jurisdição que julgar o caso” implica que se torna necessário atentar nas soluções consagradas nos diversos sistemas jurídicos nacionais (pág. 353-354).
No mesmo sentido, Castello-Branco Bastos, obra citada, págs. 111-112, diz que “tem sido geralmente entendido que a Convenção faz uma remissão material ad aliud ius cabendo ao direito interno do foro resolver essa questão e decidir se deve equiparar um certo tipo de negligência ao dolo, para estes efeitos, e que tipo de negligência será esse.”
Januário da Costa Gomes, obra citada, pág. 610, também lembra a necessidade de se fazer a “[…] interpretação da CMR, à luz do modo como o regime de responsabilidade e de limitação tem sido interpretado por tribunais de outros países vinculados à CMR”.
Pelo que João Ricardo Branco, concluindo que “a tipologia de comportamentos […] terá de ser vista à luz dos sistemas jurídicos nacionais” (pág. 355), tenta esclarecer o que é que se passa nalguns sistemas jurídicos estrangeiros e diz sobre alguns deles o seguinte (em síntese e com simplificações feita por este TRL):
No sistema jurídico alemão, depois da reforma do Direito de Transportes de 1998, máxime a alteração do § 435 do HGB, que passou a pôr em relevo a conduta temerária e consciente do transportador, relevantes para efeitos de preclusão da limitação da responsabilidade do transportador passaram a ser apenas as condutas conscientes, ou seja, no que se refere à negligência, as condutas grosseiras conscientes. […]
Em França é também clássica a admissão da equiparação entre o dolo (dol) e a culpa grave (faute lourde), entendida esta última como uma negligência extrema, situada nos confins do dolo e que denota a falta de capacidade e aptidão do transportador para o desempenho dos seus deveres contratuais. […] Em termos jurisprudenciais, essa admissão é plenamente corroborada, podendo mesmo afirmar-se que a França é provavelmente o país – a par da Alemanha – em que o transportador tem mais fortes possibilidades de ser condenado com base no art. 29 da CMR. […]”
Na Bélgica, pelo contrário, não existe um princípio geral de equiparação entre o dolo (dol) e a culpa grave (faute lourde). Todavia, a análise de alguma jurisprudência local permite verificar que a inexistência dessa equiparação de princípio não obsta a que, face às circunstâncias do caso, se decida quebrar o benefício da limitação da responsabilidade do transportador sempre que este adopte uma conduta especialmente reprovável, ainda que não dolosa. […]
No sistema juridico italiano é tradicional a orientação jurisprudencial que equipara o dolo a culpa grave (colpa grave) no âmbito da aplicação do art 29 da CMR, sobretudo a partir da decisão da Cassuzione de 16 de Setembro de 1980, Nesta decisão considerou-se que em matéria de responsabilidade contratual deve dar-se um tratamento similar, em termos de consequências jurídicas, ao dolo e à culpa grave, entendida esta última como correspondente ao comportamento daquele que age com extraordinária e indesculpável imprudência, não cumprindo a diligência média, nem sequer a mais elementar diligência por todos observada. […] A nível da doutrina a questão não é totalmente pacífica e existe uma tendência para desconsiderar a questão da equiparação da culpa grave ao dolo em prol de uma valoração autónoma do comportamento do transportador à luz das normas internacionais que fazem relevar a conduta temerária e consciente do transportador". Do ponto de vista do Direito positivo, a alteração, em 2005, do art. 1696 do Codice Civile veio equiparar a culpa grave ao dolo para efeitos de preclusão da limitação da responsabilidade do transportador.
Quanto ao sistema jurídico português, mesmo desconsiderando os autores, como Galvão Telles, que diz (Dtº das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 358), que “[a] culpa grave, sabemo-lo, é, em princípio, equiparável ao dolo. É-o no sentido de que, se a lei na sua letra só der relevância ao dolo, a sua estatuição deverá considerar-se extensiva à culpa grave, salvo se em relação a determinado preceito legal houver porventura razões ponderosas para entendimento contrário”, já no âmbito das regras gerais sobre a limitação da responsabilidade do devedor, com algumas excepções (referidas, por exemplo, em Ana Filipa Morais Antunes, que segue o mesmo caminho, no Comentário ao CC, Dtº das Obrigações, UCP/FD/UCE, Dez2018, páginas 1147 a 1157), equipara-se a culpa grave ao dolo para se concluir que só nestes casos (e não no de culpa leve) é que, por força do art. 809 do CC, são proibidas as cláusulas, legais ou voluntárias, de limitação de responsabilidade. É a posição fundamental de António Pinto Monteiro em termos gerais (citado através daquela obra) e é a posição de João Ricardo Branco, Januário da Costa Gomes e Castello-Branco Bastos para a aplicação da CMR.
Isto não só por razões de ordem prática - como as dificuldades de provar a intenção dolosa -, mas também por força do princípio da boa fé, que veda a limitação da responsabilidade daquele que não observa as mais elementares regras de prudência. E também por razões de índole económico-social, como forma de evitar a generalização da incúria e da negligência no tráfico jurídico.
É também isto que resulta do regime das cláusulas contratuais gerais (LCCG) – aqui sem entendimentos contrários - onde o art.º 18/c-d equipara nitidamente a culpa grave ao dolo, sendo que a maior parte dos contratos de transporte são celebrados com recurso às cláusulas contratuais gerais.
O regime jurídico português do transporte nacional, do DL 293/2003, de 04/10, que apenas prevê, no art.º 21, a exclusão da limitação em caso do dolo, não impede a equiparação da culpa grave ao dolo para efeitos do art.º 29 da CMR porque esta “não manda, em nenhum momento, considerar especificamente o regime do contrato de transporte rodoviário interno de mercadorias: a remissão para a lex fori deve entender-se em termos amplos, como sendo uma remissão para os diversos sistemas jurídicos nacionais no seu conjunto” e “em matéria de Direito dos transportes […] a equiparação a culpa grave surgirá como princípio dominante no nosso regime sobre as cláusulas de limitação e de exclusão de responsabilidade.”
Para além de que, como diz Castello-Branco Bastos (obra já citada, página 115), se pode entender que a norma do art.º 21 do DL 293/2003 leva pressuposta a equiparação da culpa grave ao dolo que “em direito comum soi fazer-se.”
Nestes últimos §§ seguiu-se, a posição de João Ricardo Branco, no estudo citado, de quem são as passagens entre aspas, sendo que, no essencial, é também esta a posição de Castello-Branco Bastos, obra e local citados, e de Januário da Costa Gomes (páginas 616 e 617-618; assim, sem prejuízo do que se dirá mais à frente:
“O artigo 29.º não abre mão da nevrálgica definição das situações em que o transportador “perde o direito de aproveitar-se” da limitação […]: essa perda só acontece no caso de dolo ou, então, de uma “falta” que, no direito interno, esteja ao nível do dolo em termos de gravidade – uma falta que, como refere Rolf Herber, conquanto com referência ao § 435 do HGB, constitua uma “culpa especialmente qualificada” […], ou, como referem Zunarelli/Comenale Pinto, desde que existam “condotte suscettibili di un giudizio di particolare disvalore” [conduta suscetível de um julgamento de desvalor particular – tradução deste TRL].
 […] A partir daqui, a hipótese que poderia ter sido, eventualmente, discutida e assumida […] teria sido a de saber se, no direito interno, um comportamento qualificável como de “culpa grave” deve ou pode ser equiparável ao dolo para efeitos do artigo 29.º da CMR […]. É um caminho que tem sido trilhado, por exemplo, na Alemanha, relativamente à “grobe Fährlässigkeit” [negligência grosseira – tradução deste TRL]
Neste particular, o facto de o artigo 18.º do Decreto-Lei 446/85, de 25/10, equiparar, em sede de certas cláusulas contratuais gerais absolutamente proibidas, o dolo à culpa grave pode constituir um apoio de peso, podendo também retirar-se relevantes consequências, designadamente, do regime do artigo 809.º do Código Civil.
[…]
Admitir-se-ia mesmo que, em função de a culpa dever ser entendida em termos éticos e não psicológicos, pudesse ser colocada a mesma dúvida relativamente a uma situação qualificada como de “negligência grosseira”, como, ao fim e ao cabo, parece ter sido feito no Acórdão do STJ de 15/05/2013 […].”
Assim, conclui-se, para efeitos do art.º 29/1 da CMR deve considerar-se que a culpa grave é equiparada ao dolo.
*
Da culpa grave consciente – falta indesculpável
No estudo colectivo já citado acima, publicado em 2017, e em relação a França, Alexandre Gruber, Avocat au Barreau de Paris, Associé/Partner, na parte sob How Article 29 of the CMR Convention is interpreted by the French courts, páginas 71 e 72, lembra que:
Antes da Lei 2009-1503 de 08/12, que inseriu o art.º L133-8 no Código do comércio francês, a falta grave por parte do transportador equivalia a má conduta dolosa na acepção do artigo 29 da Convenção CMR e era consistentemente definida pelos tribunais como “negligência extremamente grave que beira a má conduta dolosa que mostra que o transportador, que está no controle de suas acções, é incapaz de executar a tarefa contratual que assumiu.”
Mas, depois daquela lei, de acordo com a qual “O único equivalente à má conduta dolosa é a culpa indesculpável do transportador ou do remetente. Uma falta indesculpável é uma má conduta deliberada que implica que a pessoa que a cometeu estava ciente da probabilidade do dano que, no entanto, aceitou imprudentemente / temerariamente sem qualquer razão válida”, apenas uma falta indesculpável pode constituir um defeito equivalente a dolo na acepção do artigo 29 da Convenção, desde que sejam cumpridos os quatro requisitos cumulativos do artigo L133-8 do Código do Comércio francês.
Posição que continua a ser seguida apesar da alteração efectuada no art. 1231-3 do Code Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei 2016-132, de 10/02, que agora excepciona a inexecução devida a culpa grave (faute lourde) ou dolosa: o anterior artigo 1150 do CCfr só excepcionava o dolo. Neste sentido, o acórdão da Cour de cassation, civile, Chambre commerciale, de 9 mai 2018 (Arrêt n.º 395, Pourvoi 17-13.030) que concordou com o Cour d'appel de Versailles, du 29 novembre 2016 que “apenas a culpa indesculpável definida no artigo L. 133-8 do Código Comercial a que se refere o artigo 29.º da CMR é suscetível de afastar os limites da indemnização” (está comentado por Xavier Delpech, La faute inexcusable du transporteur routier de marchandises dans un contexte international). Consagrando pela primeira vez esta posição, num caso que se pode considerar típico daqueles que têm sido discutidos, veja-se o acórdão da Cour de Cassation, Com. 21/11/2018, n° 17-17.468, que “sustenta […] a existência de uma culpa indesculpável do transportador: estacionou o seu camião à noite, num local isolado no meio do campo, mesmo regularmente ocupado por viaturas de uma empresa de transportes, dando directamente sobre a via pública, sem qualquer vigilância efectiva, tendo a sua carga num reboque sem cadeado (comentado também por Xavier Delpechle 04/12/2018, que é o autor do síntese).
Assim, em França, agora só a falta/culpa indesculpável do transportador – a conduta que implica a consciência da probabilidade do dano e a sua aceitação temerária sem razão válida – equivale a dolo para efeitos do art.º 29 da CMR. O que, de qualquer modo, a contrário, quer dizer que não é só o dolo que está em causa, mas também a falta indesculpável.
Quanto à Grécia, Evangelia Patrikalaki, Lawyer LLM – Maritime & Transport Law (Erasmus University of Rotterdam), Associate at Antapasis – Albouras – Asanakis Law Office, Piraeus, Greece, na usa parte sob GREECE - Article 29: The Interpretation of ‘Wilful Misconduct’ under Greek Law, páginas 78 a 81, esclarece que:
O STJ grego fez uma interpretação clara da expressão wilful miscondut em 1998 [no acórdão n.º 18/1998 - Supreme Court (Plenary Session) 18/1998, EpiskED B (1998), 392 et seq.], usando uma fórmula entre a intenção [dol francês, dolos grego] e a negligência grosseira, que se tornou a base das decisões subsequentes.
Assim, a interpretação seguida pelos tribunais gregos pode ser descrita em poucas palavras como segue: a wilful miscondut como um grau de incumprimento que inclui - para além da intenção (imediata ou eventual) - o comportamento do transportador (ou dos seus agentes ou funcionários), em que ele actua com conhecimento de que seu acto ou omissão acarretará um aumento do risco de um resultado lesivo que lhe é indiferente ou para o qual tem um desrespeito temerário pelas prováveis consequências [Supreme Court (Plenary Session) 18/1998; Supreme Court 1628/2001; Supreme Court 270/2002; Supreme Court 1885/2005; Supreme Court 1319/2011, NOMOS.].
[…]
De facto, desde a decisão do Supremo Tribunal Federal 18/1998, o conceito de dolo ampliou-se ao aceitar que há alguma conduta que se situa entre a definição de dolo e negligência grave. Assim, a jurisprudência inseriu uma nova definição de culpa que não pode ser comparada com qualquer outra forma do direito grego.
Em termos gerais, o direito civil grego reconhece duas categorias principais de culpa: dolo e negligência. Quanto à primeira categoria, existem dois tipos ou graus: ‘intenção imediata’ e ‘intenção eventual’. Mais especificamente, a «intenção imediata» está presente em dois casos: (i) quando o autor do facto premedita o resultado ilícito, ou seja, quando age com o objetivo de cometer um crime com plena consciência dos seus resultados ilícitos; e (ii) quando não premedite o resultado do delito, mas o espera como consequência lógica de sua acção ou omissão. Por outro lado, a ‘intenção eventual’ está presente quando o autor do acto não premedita nem busca o resultado ilícito, mas espera que ele ocorra, como única consequência possível de suas ações, e procede ciente dessa eventualidade. Isso significa que ele aprova o resultado como o resultado final de suas acções.
A negligência segundo a lei grega pode ser classificada como negligência grosseira ou inconsciente.    
A wilful miscondut, segundo a jurisprudência grega, não pode ser comparada com negligência grosseira devido ao elemento subjetivo do conhecimento que deve ser provado no primeiro caso.
No caso de “negligência grosseira”, a pessoa não exerce a diligência e o cuidado de uma pessoa razoavelmente prudente pelo facto de que, devido a grande indiferença ou imprudência, ela não pode estar ciente das consequências prejudiciais de seu comportamento. Nesse caso, a medida de “diligência” é baseada em elementos objetivos.
No entanto, em caso de wilful miscondut, é necessário um elemento subjetivo, ou seja, a atitude mental do autor específico que sabe que o seu acto aumenta o risco de dano (conhecimento e indiferença).
Consequentemente, os tribunais gregos criaram uma nova fórmula de incumprimento [a referida no início] que, como foi referido, é algo entre dolo e negligência grosseira.”
Ou seja, para além da intenção/dol/dolos, também afasta a limitação da responsabilidade uma conduta entre o dolo e a negligência grosseira, ou seja, uma negligência grosseira acompanhada de um elemento subjectivo, de conhecimento [a atitude mental do agente que sabe que o seu acto aumenta o risco de dano]. Ou seja, ressalvada a simplificação, trata-se da falta indesculpável francesa.    
*
Na parte italiana, a Professora já citada, esclarece que:
De acordo com a jurisprudência prevalecente dos tribunais italianos (tanto o Supremo Tribunal quanto os tribunais de mérito) e a maioria dos estudiosos, a falta equivalente a dolo no regime doméstico – e, consequentemente, também para os efeitos do artigo 29 CMR - é a negligência grosseira (colpa grave). A fundamentação baseia-se na disposição geral do artigo 1229.º, n.º 1, do próprio Código Civil, segundo a qual não é possível excluir ou limitar a própria responsabilidade contratual em caso de wilful miscondut (rectius, dolo) ou negligência grosseira. No entanto, é discutido entre os tribunais e estudiosos italianos se existe um princípio geral de equalização entre dolo e negligência grave (culpa lata dolo æquiparatur) no direito italiano, como resultado da tradição jurídica continental europeia, na ausência de uma provisão expressa mais geral.
A equivalência entre dolus e culpa lata é interpretada pela maioria como um princípio geral, portanto também aplicável nos casos em que não esteja expressamente prevista. Pelo contrário, uma das razões para a opinião contrária consiste no facto de o artigo 1229.º do Código Civil se referir especificamente a cláusulas contratuais que excluem ou limitam a responsabilidade do devedor e, portanto, é discutida não apenas a sua aplicação em relação a outras questões contratuais, mas, além disso, a aplicação desse princípio fora do escopo de disposições expressas é afastada […]
Considerando que, sob a direito comum, “uma má conduta grave e intencional é muito mais do que mera negligência” - trata-se de algo de natureza criminal, a prática intencional de algo com o conhecimento de que é suscetível de resultar em lesão grave ou com uma consideração arbitrária e imprudente   e de suas prováveis ​​​​consequências' - os tribunais italianos interpretaram o padrão equivalente a wilful miscondut (rectius, dolus) como imprudência e negligência extraordinárias e inescusáveis, como a omissão da diligência mínima que todos observam, que é inferior à diligência devida, ou seja, a diligência do homem razoavelmente prudente, a ser apurada segundo critérios objetivos.
A wilful miscondut é considerada mais como outro tipo de negligência identificado por tribunais e estudiosos italianos, mas não aplicado pela maioria na interpretação do artigo 29 CMR: a colpa con previsione ou a colpa temeraria e consapevole, que é a imprudência com o conhecimento de que o dano vai provavelmente resultar dessa conduta, das Regras de Haia Visby e de outras convenções uniformes relativas ao transporte internacional, e é considerado mais grave do que negligência grave.
[…]
No que diz respeito às abordagens escolhidas pelas convenções uniformes mais recentes sobre transporte internacional, ou seja, 'intenção de causar danos, ou de forma imprudente e com conhecimento de que o dano provavelmente resultaria', esta abordagem foi interpretada pela jurisprudência e estudiosos italianos como exigindo não apenas (grosseira) negligência, porque, juntamente com o desrespeito grosseiro pela segurança de pessoas ou bens, é necessária a consciência (pelo menos potencial) do risco que o dano provavelmente resultaria. Assim, o conceito é muito semelhante ao supracitado culpa consciente.
A existência de ambos os elementos deve ser verificada caso a caso com métodos objetivos, levando em consideração o comportamento do transportador e seus auxiliares antes do evento e comparando esse comportamento com o modelo abstrato de um transportador diligente nas mesmas circunstâncias.
Ou seja, grosso modo, no âmbito da CMR equivalente ao dolo é a culpa grave. No âmbito de outras convenções já se exige uma culpa grave consciente.
Na Lithuania, Giedrius Abromavičius, Attorney-at-law, COBALT, sob Article 29 of the CMR Convention, diz que (págs. 86 a 88):
Deve notar-se que na jurisprudência dos tribunais lituanos tem havido relativamente muitos casos em que os tribunais reconheceram negligência grosseira por parte da transportadora e aplicaram a responsabilidade ilimitada da mesma. De acordo com a jurisprudência dos tribunais lituanos, as ações são consideradas equivalentes a má conduta dolosa quando a observância dos requisitos mínimos de precaução teria impedido tal má conduta, ou omissão – falha em realizar todas as ações possíveis que poderiam ter minimizado ou evitado o risco de danos. […]
E, no sumário:
O artigo 29.º da Convenção CMR é geralmente interpretado e aplicado pelos tribunais da Lituânia a favor do expedidor e não a favor do transportador. Os tribunais da Lituânia estabeleceram negligência grave do transportador e aplicaram responsabilidade ilimitada em vários casos em que ocorreram danos ou perdas de mercadorias. Portanto, por enquanto, a Lituânia deve ser considerada uma jurisdição favorável aos expedidores.
Nos Países Baixos, Rutger van Dijk, advocaat at AKD, sob Dutch interpretation of Article 29 CMR, páginas 88-89, diz que:
Está firmemente estabelecido que, nos processos judiciais dos Países Baixos, é praticamente impossível quebrar as limitações da CMR com base na culpa equivalente a dolo. Isso tem implicações importantes para as partes interessadas na carga e para as transportadoras CMR. Nos Países Baixos, a culpa equivalente a dolo é regida pelo artigo 1108.º do Livro 8 do Código Civil Holandês («DCC»). Isso exige um 'acto ou omissão cometido de forma imprudente e com o conhecimento de que a perda provavelmente resultaria disso'.
E mais à frente conclui significativamente:
As partes interessadas na carga devem evitar a jurisdição holandesa se desejarem quebrar a limitação ou reivindicar IVA, impostos especiais de consumo ou taxas de uma transportadora CMR, com base na culpa equivalente a dolo nos termos do artigo 29 da CMR. Para as transportadoras CMR que podem ser processadas por responsabilidade por uma perda durante o transporte, é uma proposta atraente estar envolvida em processos perante os tribunais holandeses em vez de um tribunal em uma jurisdição favorável à carga. […]
O autor chama a atenção para que:
O Supremo Tribunal deixou claro que, para determinar se uma transportadora agiu de forma imprudente e sabendo que provavelmente resultaria em perda, não se deve aplicar um teste objetivo ('o motorista deveria saber...'), mas um teste subjetivo ('o motorista sabia...'). Assim, quebrar limitações na Holanda com base na culpa equivalente a dolo requer alguma habilidade psicológica, pois o reclamante terá que provar o que estava acontecendo dentro da cabeça do motorista.
Apesar disto note-se: também aqui há uma culpa equivalente à wilful miscondut: act or omission which is committed recklessly and with the knowledge that loss would probably result from it.’ Isto é, aquela que se poderia chamar a colpa con previsione ou a colpa temeraria e consapevole, das regras de Visby, isto é, grosso modo, a culpa grave consciente. Por outro lado, como se vê, segue-se a posição da necessidade de uma apreciação em concreto, não em abstracto da conduta antijurídica do transportador, contra o que se entende correcta e maioritariamente (veja-se a discussão em João Ricardo Branco, já citada).
Na Polónia, Marta K. Kołacz, PhD Candidate, Erasmus University Rotterdam, páginas 89 a 91, conclui que:
Como foi demonstrado, a negligência grave é considerada na jurisdição polaca como equivalente a dolo. O ponto de partida para avaliar o grau de negligência é o artigo 355/1 do CCP, que estabelece que o devedor está obrigado à diligência geralmente exigida nas relações de um determinado tipo. Se o juiz constatar violação do artigo 355/1 do CCP, determinará caso a caso o grau dessa violação.
No entanto, uma vez que um transportador é considerado um parceiro comercial profissional em relação a um remetente, a sua devida diligência é determinada tendo em conta a natureza profissional da sua atividade comercial. Assim, um transportador como entidade empresarial profissional deve ter a experiência necessária, que inclui qualificações formais, conhecimento necessário para transportar tipos específicos de transporte de mercadorias e experiência profissional geral.
Na Suíça, Lars Gerspacher e Roger Thalmann, Zurich/Switzerland, concluem que:        
[…] Destas normas, os tribunais suíços deduziram que a negligência grosseira corresponde a dolo por força do artigo 29 da CMR, de modo que uma parte lesante agindo por negligência grosseira não beneficia das limitações de responsabilidade do CMR.
Em termos de negligência, a lei suíça aplica um teste objetivo para avaliar se uma pessoa agiu com negligência ou não. Qualquer pessoa que cumpra obrigações contratuais é obrigada a um padrão objetivo quanto ao cuidado devido. Qualquer desvio negativo de tal cuidado padrão é considerado comportamento negligente. O conceito de negligência grave baseia-se nesta definição. Presume-se negligência grosseira em caso de violação grosseira dos cuidados devidos, na medida em que a pessoa que cumpre um dever nem sequer observa medidas cautelares de natureza elementar que seriam óbvias para qualquer pessoa razoável.
Na linha disto, pode ver-se a posição de Januário da Costa Gomes, páginas 618-619:
“A interpretação que circunscreve a perda do direito de limitação à identificação de situações especialmente graves – grosso modo, à identificação de uma faute inexcusable – é, de resto, conforme às soluções que, com claros propósitos de evitar disparidades interpretativas e aplicativas, encontramos noutras convenções internacionais em matéria de transportes, nas quais tende a ser adotada a mesma “fórmula”: o transportador perde o direito à limitação quando se prove que o prejuízo tenha resultado de facto ou omissão próprios, cometidos com a intenção de causar tal prejuízo ou temerariamente e com a consciência de que esse prejuízo provavelmente se produziria.
Assim, na alínea e) do parágrafo 5.º do artigo 4.º das Regras da Haia/Visby, prevê-se o seguinte: “[…] if it is proved that the damage resulted from an act or omission of the carrier done with intent to cause damage, or recklessly and with knowledge that damage would probably result.” Fórmula similar encontramos no artigo 8.º/1 das Regras de Hamburgo ou no artigo 61.º/1 das Regras de Roterdão.
A nível de legislações internas, essa fórmula foi, entretanto, adotada na Alemanha, na nova redação do § 435 do HGB (Wegfall der Haftungsbefreiungen und-begrenzungen), numa clara demonstração da sua geral aceitação.
Também as convenções internacionais marítimas de limitação de responsabilidade apontam no mesmo caminho: assim, por exemplo, o artigo 4.º da LLMC ou o artigo V/2 da CLC 92.”
Tudo isto tido em conta, não existe um só país dos vistos acima que não inclua nas condutas que impedem a limitação da responsabilidade do transportador condutas que não são dolo, mas sim negligência. O máximo que se pode dizer é que tem havido uma evolução no sentido de, se antes se admitia como equivalente ao dolo a negligência grosseira ou culpa grave, agora, nalguns países, faz-se uma qualificação desta, e tem-se exigido uma culpa grave consciente. Mas isto nem em todos os países e alguns deles não fazem esta qualificação em relação ao art. 29 da CMR, como por exemplo a Itália. Para além disso, só os Países Baixos têm feito uma aplicação das regras da limitação de forma a tornar excepcional a perda da limitação.
Ora, entende-se que sem alteração da CMR, nem do regime jurídico dos transportes em Portugal, a evolução da culpa grave para a culpa grave consciente, na aplicação da CMR, não tem base legal suficiente. Não é pelo facto de outras convenções internacionais do direito do transporte terem evoluído para o regime da culpa grave consciente que, sem mais, a CMR deve ser entendida do mesmo modo. Por outro lado, ao contrário dos outros países, Portugal não tem um regime interno que genericamente tenha evoluído nesse sentido e o regime do DL 239/2003 é inaproveitável pelo que já foi dito sobre ele acima (outras páginas de Castello-Branco Bastos, no mesmo sentido: 97-98 do estudo citado): no máximo ter-se-á que admitir que pressupõe a equiparação entre a culpa grave e o dolo.
Mas, e é isso que releva para o caso, mesmo que se exija a culpa grave consciente, esta tem sido descrita de um modo que engloba a conduta da ré deste caso, como resulta claro tendo em conta os casos e as considerações alemãs e italianas transcritas acima. A conduta da ré, que nem sequer dá quaisquer explicações sobre o destino da mercadoria, pressupõe um comportamento que não é adoptado nem pelo mais dos descuidados transportadores e a presunção judicial invocada abrange também o elemento da consciência do aumento risco da verificação do dano e da sua aceitação.
*
Por fim, quanto às hipóteses, referidas pela sentença e pela ré, de a autora poder obter um valor superior de indemnização através da declaração do valor da mercadoria ou de um interesse especial na entrega ou da celebração de um contrato de seguro, não são uma razão para afastar este regime e colocam-se antes da sua aplicação. Ou seja, se a autora optar por alguma delas, a questão da limitação da responsabilidade não se colocará, mas isso não quer dizer que, não tendo a autora optado por nenhuma delas, deixe de ter o direito ao cumprimento correcto do contrato de transporte pela ré, com as consequências do regime normal do incumprimento, sendo que este, se for bem aplicado, não conduz aos absurdos pretendidos pela ré (como se verá de seguida).
Por outro lado, se é certo que a opção por uma daquelas hipóteses pouparia à autora estar a percorrer o caminho do afastamento da perda da responsabilidade, tal poderia ter a contrapartida ou de ela não conseguir celebrar o contrato de transporte (por a ré o rejeitar) ou de pagar mais pelo transporte ou por um seguro.
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A culpa do expedidor/autora
Tudo isto tem a contrapartida na consideração da contribuição da culpa do expedidor para o dano, nos termos do art.º 570 do CC.
Na parte do estudo já referido, relativa à Alemanha, o respectivo autor, depois de tudo aquilo que já foi referido acima, acrescenta:
“A negligência contributiva do remetente como meio de diminuir a responsabilidade
Com base no princípio da boa-fé, várias decisões proferidas pelo Supremo Tribunal em 2004-2006 estabeleceram que a negligência contributiva do remetente pode diminuir a responsabilidade do transportador nos casos do artigo 29 do CMR. Antes dessas decisões, o Tribunal já havia declarado que a negligência contributiva também deveria ser considerada em casos de responsabilidade ilimitada sob a lei nacional de transporte.
Nos casos relativos ao CMR, considerou-se que a negligência do remetente contribuiu para a perda nos casos em que o remetente não informou o transportador sobre o risco de uma perda extraordinariamente alta devido ao valor das mercadorias. Uma perda é excepcionalmente alta se exceder o limite de responsabilidade da CMR por um factor de dez.
[…]
O terceiro cenário em que a negligência contributiva do remetente é relevante reside na omissão do remetente em declarar o verdadeiro valor das mercadorias (para obter um transporte mais barato). As decisões sobre este aspecto centram-se no transporte de encomendas para as quais o transportador estava disposto e em condições de oferecer maior protecção às encomendas com um valor declarado superior a um determinado limiar.”
E acrescenta:
“A negligência contributiva do remetente pode até anular completamente a responsabilidade do transportador.”
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Da impugnação subsidiária da matéria de facto (art. 636/1 do CPC)
O caso dos autos poderia ter a ver com isto, mas os factos dados como provados não permitem dizer que é esta a situação que se verifica.
Prevenindo esta hipótese a ré veio, como se vê nas respectivas contra-alegações, ao abrigo do artigo 636/2 do CPC - “[p]ode ainda o recorrido, na respetiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas” – impugnar a decisão da matéria de facto, para que fosse dado como provado que:
“A ré não tinha conhecimento das características das mercadorias que estava a transportar, o valor das mesmas e o respectivo estado de conservação.”
A ré transcreve, para o efeito, algumas passagens – que localiza devidamente - dos depoimentos de duas testemunhas suas.
A autora não respondeu a esta impugnação.
Apreciação:
Dos depoimentos invocados pela ré decorre, realmente e sem qualquer dúvida, o que a ré pretende, tanto que a autora não disse nada contra. Aliás, é isso que logo está indiciado pela forma como foi contratado o transporte, pois que a autora não disse ter declarado o valor da mercadoria, nem disse ter falado nas características e estado da mercadoria.
Pelo que os factos em causa serão aditados aos factos provados, como ponto 4.
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Como já se afastou o benefício da limitação da responsabilidade, a ré teria de responder pelo valor da encomenda, nos termos do art.º 23/1-2 da CMR: 1. Quando for debitada ao transportador uma indemnização por perda total ou parcial da mercadoria, em virtude das disposições da presente Convenção, essa indemnização será calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que for aceite para transporte. 2. O valor da mercadoria será determinado pela cotação na bolsa, ou, na falta desta, pelo preço corrente no mercado, ou, na falta de ambas, pelo valor usual das mercadorias da mesma natureza e qualidade.
Posto isto,
A autora contratou o transporte de encomenda relativa a um equipamento que, quando o comprou, em estado novo, cerca de 1 ano e meio antes, tinha o valor de 17.330€ (factos c e 2). Tinha como finalidade a revisão do equipamento pela vendedora (facto 3). Estes factos permitem a presunção judicial de que o valor da mercadoria não era o valor dela no estado de novo (já se tinham passado cerca de 18 meses, não se sabe qual o uso que lhe foi dado e o envio destinava-se à revisão, pelo que a própria autora não podia dizer que ele estivesse a funcionar bem, apesar do seu estado “novo” afirmado no início do ponto 3, que naturalmente, por isso, fica afastado: trata-se se um estado novo só aparente). Como o equipamento se perdeu não se podia apurar o valor dele por qualquer exame. Assim, por tudo isto, não é possível afirmar-se o preenchimento das várias alternativas de previsão do valor dos n.ºs 1 e 2 do art.º 23 da CMR.
Este valor teria de ser calculado, por isso, com base na equidade (artigo 566/3 do CC) entre os limites que se tivessem por provados.                            
Dado o que se disse atrás, o valor do bem poderia variar entre, pelo menos, o valor do transporte (logicamente ninguém gastaria com o transporte do bem um valor superior ao mesmo) e, pelo mais, o valor do bem, desvalorizado já em 1,5 anos, presumindo-se uma vida útil do bem de 10 anos (De acordo com a tabela disponível no site da Receita Federal, os equipamentos médicos possuem vida útil de dez anos. A depreciação é anual, com taxa de 10% de seu valor - https://www.contmed.com.br/gestao/depreciacao-de-equipamentos-medicos-o-que-e-e-qual-a-importancia/ ou https://dimave.com.br/depreciacao-de-equipamentos/ De acordo com o formulário do US Internal Revenue Service, a vida útil dos equipamentos médicos é de dez anos. https://globalthings.net/2021/12/aquisicao-e-depreciacao/). Ou seja, entre 106,89€ e 14.700€. Pelo que o valor da indemnização deveria ser fixado entre estes dois limites.
No entanto, como resulta do facto 4 aditado, a ré não tinha conhecimento das características das mercadorias que estava a transportar, o valor das mesmas e o respectivo estado de conservação. Não tinha esse conhecimento diga-se, embora a ré não o tenha dito, naturalmente porque ele não lhe foi comunicado pela autora (outra presunção judicial).
Ora, a entrega pela autora de um bem de valor em muito mais de 100 vezes o valor do transporte, sem nada dizer à ré quanto ao valor do bem (ou suas características ou seu estado de conservação), não pode ter deixado de contribuir substancialmente para a produção do dano. Tivesse a ré sabido daquele valor do bem naturalmente que ou não aceitaria o contrato, ou não o aceitaria pelo preço em causa ou, aceitando-o, teria actuado de um modo completamente diferente dado o valor do bem, designadamente tomando as diligências necessárias para o controlar devidamente. Ninguém envia uma encomenda que pode ter um valor de 17.330€ por um valor de cerca de 100€, sem ter o cuidado, pelo menos, de informar o transportador do valor da mercadoria que vai transportar. Por isso, a negligência da autora, ao contratar o transporte da forma como o fez, revela-se tão grave quanto o da ré ao fazer o transporte.
A contribuição da culpa da autora para o dano, deve ser tomada em consideração ao abrigo do art.º 570 do CC.
Tendo a indemnização de ser calculada com base na equidade por força do art.º 566/3 do CC e tendo-se de ter em conta a contribuição da culpa da autora nos termos do art.º 570 do CC, entende-se que uma boa forma de determinar essa indemnização, no caso, passa por considerar o valor de 10 vezes o valor da indemnização prevista no art.º 23/3 da CMR, sugerido pela prática dos tribunais alemães para tratar deste problema embora a outro nível.
Por isso, a indemnização será fixada - tendo em conta os dados a que já tinha chegado a sentença recorrida, nesta parte não posta em causa -, em 10 x 8,33 unidades de conta (x 1,222€, à data em que a mercadoria foi aceite, segundo dados do Banco de Portugal - https://bpstat.bportugal.pt/serie/12533639) x 15 kg, ou seja, 1526,89€.
A isto há que somar o valor do transporte (106,89€), em que a ré já tinha sido condenada.
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Quanto aos juros: como o crédito era ilíquido, não há mora, salvo se a falta de falta de liquidez fosse imputável à ré (art.º 805/3 do CC), o que não há motivos para dizer que é o caso. Assim, os juros só serão devidos para o futuro (depois do trânsito em julgado deste acórdão), para além dos 1,81€ de juros vencidos no período de 07/04/2020 a 28/05/2020, fixados pela sentença recorrida e que não foram objecto de recurso.
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Tendo em conta tudo o que antecede – a aplicação correcta das normas do regime da responsabilidade -, vê-se que não há razão para falar em inconstitucionalidades, nem a aplicação das regras conduz à conclusão do abuso do direito por qualquer das partes.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente, condenando agora a ré a pagar à autora 1635,59€ (= 1526,89€ + 106,89€ + 1,81€), com juros de mora vincendos, à taxa anual pedida, a partir do trânsito em julgado deste acórdão, sendo absolvida do resto que era pedido.
Custas de parte, por autora e ré, na proporção do decaimento, quer na acção quer no recurso.

Lisboa, 27/10/2022
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas